A artista Carmela Gross, no Sesc Pompeia. Foto: Everton Ballardin

A exposição Quase circo, de Carmela Gross, em cartaz no Sesc Pompeia, em São Paulo, possui um grau de opacidade que nos obriga pensar sobre o que podem explicitar aqueles objetos e instalações ali dispostos. Constituída por obras tão densas, desde o início a exposição foge das típicas mostras fast food, muito comuns hoje em dia. Quase circo não se confunde com essas exposições “engajadas” que encharcam vários espaços de arte da cidade, compostas por obras interessadas em sublinhar apenas o óbvio, em detrimento de qualquer dimensão poético/política mais complexa. Neste sentido Quase circo deve ser caracterizada, para começar, como um antídoto contra a mediocridade que anda assombrando o circuito de arte da cidade.

A primeira reflexão que a mostra detona diz respeito ao lugar onde ela ocorre: justamente o Sesc Pompeia, um dos espaços mais emblemáticos da cidade de São Paulo. Concebido pela arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, o Sesc Pompeia – produzido durante os anos 1970 e aberto em 1982 –, desde sua inauguração, significou uma aposta no futuro da cidade e do país, um marco da arquitetura comprometida com a regeneração do Brasil enquanto nação democrática.

Não percebo a presença dos trabalhos de Carmela naquele espaço tão simbólico como uma junção feliz da sua poética com a de Lina. Pelo contrário: para mim, o que amplia a potência de Quase circo é a oposição entre a confiança no futuro que Lina projetou naquele espaço e o compromisso com o presente, visível nos trabalhos de Carmela, como o lugar ideal para a revolta.

É como se Lina, com o Sesc Pompeia, jogasse a vida para a frente, enquanto Carmela relembrasse a todo momento que dificilmente teremos um devir, se a transformação não ocorrer agora, na urgência do presente.

Enquanto o edifício do Sesc Pompeia expressa confiança no futuro, as peças e intervenções de Carmela explicitam que, caso a revolta não irrompa, nossa contemporaneidade permanecerá fixada num eterno presente, violento e sem escapatória.

Ao contrário de Lina, que apostou numa arquitetura revolucionária, rumo à utopia, ao futuro, as peças e instalações de Carmela assumem que já vivemos a distopia, que ela é o agora e o aqui. Suas produções não pregam a revolução, como as de Lina, e sim a revolta, a transformação imediata do presente (Não é à toa que a mostra prima por desviar quase tudo para o vermelho, até A Negra (1997-2024).

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Outra questão que a exposição apresenta e que, de alguma forma, amplia e complementa a primeira é que, apesar de ser composta por objetos, gravuras, projeções e instalações, Quase circo é desenho.

O desenho  sempre definiu a poética de Carmela Gross: uma artista que manifesta seu posicionamento sobre o real usando como fundamento os elementos da gráfica e suas extrapolações visíveis, tanto em seus trabalhos bidimensionais, quanto expandidas pelas peças tridimensionais e instalações que exibe.

O que é aquele “impenetrável” Roda Gigante (2019/24), a não ser um desenho no espaço, linhas que possuem como ponto de chegada (ou de partida) as ruínas de uma cidade que é, ao mesmo tempo, edificação e desmonte? Roda Gigante é um trabalho fundamental para politizar de novo – e sob outro viés – aquilo que se convencionou chamar de “arte participativa”.

E o que é Rio madeira (1994/2024), a não ser um conjunto de linhas configurado por traços vermelhos e verdes no chão – margeando o espelho d’água – um desenho retondulante?

E as Escadas vermelhas (2012/24) – traços-luz no espaço?

As obras de Carmela são a própria afirmação da gráfica em plena arte contemporânea: ponto e linha/traço e mancha, e é com tal conjunto restrito de elementos (às vezes revestidos de cor, às vezes não) que a artista interfere no real, o desmonta e o reconfigura.

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Estranho afirmar que o trabalho de Carmela em tese nega a eficácia projetual da arte, na medida em que afirmo que toda sua produção é desenho. Como seus trabalhos, sendo desenhos, duvidam do futuro? Não seria o desenho puro vir a ser?

Quando Carmela produz seus trabalhos em neon, o uso da luz acaba por represar (não aniquilar, mas conter) o caráter projetual que caracteriza todo desenho, na medida em que a luz converte as linhas em formas latejantes, formas que acabam por deliberadamente confundir a objetividade dos traços que lhe deram origem. Exemplo: Luz del fuego (2018/24), que é uma mancha luminosa carregada de sentidos que pulsam em ritmo próprio.

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Bem concebida e exibida, para mim o ponto alto da mostra é Bando (2016/24): manchas verdes impressas sobre folhas de zinco dispostas em um corredor construído com madeirite vermelho.

O que são aquelas manchas? São nuvens, continentes imaginários? São silhuetas de monstros, de animais?

Caminhar por aquela espécie de corredor vermelho, que remete à cidade sempre em construção e desmonte, é entender que, se os neons latejam nas outras peças e instalações presentes na exposição, nas impressões de Bando, as formas também pulsam, sempre no limiar entre o reconhecível e o irreconhecível.

Por outro lado, seria impossível caminhar por entre aquelas formas gravadas e não lembrar que Carmela teve que trabalhar muito até chegar àquele resultado. Naquelas impressões sobre zinco estão os Carimbos produzidos pela artista no final dos anos 1970, o Projeto para a construção de um céu, do início dos 1980, os Quasares, de 1983, os Buracos, dos anos 1990 e tantas outras obras em que os esquemas de representação deliberadamente perdem em objetividade. São, também puros vir a ser, puras indicações da necessidade de se revoltar contra o estabelecido, o já esquematizado.

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Para finalizar estes comentários, sublinho que a dimensão política da produção de Carmela, presente em Quase circo, não se encontra de jeito nenhum numa mensagem da qual cada trabalho de arte é apenas o meio para expressá-la. Pelo contrário: o caráter político de sua produção é o resultado do entrelaçamento entre a poética da artista e o fazer plástico/visual que ela produz na concepção/execução de cada uma daquelas obra.

Decididamente os trabalhos de Carmela não tematizam, eles são a política.

 

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