Page 33 - ARTE!Brasileiros #58
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de cana de açúcar estão vazados. colonial e ao estético. A fotografia violência por excelência, porque
Esse procedimento de retirar sempre esteve, como qualquer em vez de ferir a minha liberdade,
os rostos das imagens aparelho técnico, eivada de chama-a à responsabilidade e
apropriadas acontece em outros ambiguidades; serviu à arte, à implanta-a.” (1988, p. 181) O
de seus trabalhos a partir do memória, mas também aos trabalho escravo, a violência de
relativamente vasto acervo da órgãos de polícia, aos projetos de ser reduzido a corpo-instrumento,
fotografia de escravizados e eugenia e de genocídio, como na corpo carregador de fardos, corpo
“negros libertos” do século 19. Isso Alemanha nazista, no Camboja de torturado, corpo fotografado,
acontece com a fotografia, Pol Pot e nos cárceres das destitui o indivíduo dessa
também de August Stahl, Mina ditaduras latino-americanas, outridade que institui a ética a
Ondo, de 1885 (Ermakoff 2004, p. como nas conhecidas fotografias partir da outridade absoluta do
240), parte central da prancha As da ESMA, em Buenos Aires. rosto. Ao retirar o rosto dessas
gentes, do livro-obra ¿História Paulino explora essa ambiguidade mulheres ou do indígena, Paulino
natural?, 2016. Nessa mesma da fotografia, como, por exemplo, apaga o rosto para mostrar que
prancha, Paulino reproduz Harun Farocki o fez em muitas de esses grupos de pessoas tiveram
flanqueando a Mina Ondo a suas obras, apontando a seus rostos anulados. Ao invés do
imagem famosa do indígena cumplicidade entre fotografia e infinito que todo rosto guarda,
Muxuruna do volume de 1823, guerra, destruição. Assim, como eles eram reduzidos a fachadas de
Reise in Brasilien, de Johann Spix lemos no catálogo sobre as seres sem outridade e sem
e Carl Friedrich Philipp von fotografias antropométricas de ipseidade. Paulino nos chama
Martius. O indígena também está Stahl, essas imagens foram novamente à responsabilidade
sem rosto. O mesmo acontece na colocadas pelo cientista Agassiz diante dos rostos na medida em
série Paraíso tropical, de 2017, em um álbum ao lado de que ela os apaga para os restituir.
com fotografias de Marc Ferrez, representações da beleza A cena retratada em Atlântico
com a mesma vendedora de clássica. Os rostos deveriam ser vermelho é uma poderosa síntese
bananas que vimos acima; ocorre confrontados, para provar a das narrativas da arte
ainda com uma foto de Albert suposta superioridade de uma afrodescendente contemporânea
Henschel, de 1870, de uma “negra raça sobre as demais. Estamos brasileira. Dessa obra pendem
posando em ateliê” (Ermakoff em plena cena não só de eugenia, ainda fios vermelhos, que
2004, p. 117) e com outra de mas de genocídio, como o extravasam os “azulejos” e
August Stahl de Mina Bari, de formulou Abdias Nascimento. escorrem pela parede como
1865, de uma mãe com o filho às Essa ausência de rosto sangue. Esses corpos sem rosto,
costas (Ermakoff 2004, p. 233), significa também o tornar-se mas que sangram remetem
entre outras. Em Paraíso tropical anônimo dessas pessoas também à obra anterior de Paulino,
essas imagens são associadas a objetificadas por um trabalho que em nanquim sobre papel,
caveiras e imagens de tipo as matava e por uma fotografia Autorretrato com máscara para
representação botânica “científica” que as reduzia a peças de um comedores de terra, de 1997. Nela,
dos viajantes. Esses rostos teatro macabro da ciência. O uma mulher “posa” como as
ausentes podem ser lidos tanto rosto, para o filósofo Lèvinas, vale escravas fotografadas no século 19,
como uma metáfora do vazio, lembrar, é a nossa parte mais portando essa máscara tão
exposta e mais frágil e também a
emblemática da violência colonial.
como o faz Juliana Ribeiro da Silva
FOTO: PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO exposição na Pinacoteca de 2018, outro. “A epifania do rosto é ética”, passaram pelo Brasil naquele
Debret, entre outros artistas que
portadora do nosso ser para o
Bevilaqua no catálogo da
século, registrou imagens do
como também podem remeter ao
ele escreveu. (1988, p. 178) E
ainda: “O rosto onde se apresenta
processo de desumanização pelo
emprego dessas máscaras. Comer
qual essas pessoas fotografadas
terra era um meio de se suicidar,
o Outro – absolutamente outro –
buscando a liberdade da escravidão
não nega o Mesmo, não o violenta
passaram, do qual fez parte e foi
cúmplice o próprio dispositivo
na morte. O acima mencionado
[...]. Fica à medida de quem o
fotográfico. Esse dispositivo
artista mineiro Paulo Nazareth, na
acolhe, mantém-se terrestre.
Essa apresentação é a não
sua série Para venda, realizou um
estava aliado aos dispositivos
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