Page 29 - ARTE!Brasileiros #58
P. 29

ruptura da cumplicidade entre o   exposições deixaram de ocorrer:   também presente na sua recente
                  dispositivo estético e o colonial.   o campo estético já estava por   exposição na Pinacoteca de São
                  Não se pode mais falar de modo   demais ocupado por essas novas   Paulo de 2018-2019.
                  inocente de “democracia racial”   políticas e modos de imaginar e   Parede da memória, na sua
                  ou comemorar nossa cultura      costurar a memória. O programa   apresentação aparentemente
                  “sincrética” e a “miscigenação”   do atual governo (2020) visa, via   simples, sintetiza na verdade o
                  sem perceber o trauma que está   censura e cortes profundos no   encontro de vários gestos: o
                  na origem dessa hibridização.   investimento na área cultural,   fotográfico, o da costura, o da
                  Com as mudanças profundas       asfixiar esse boom de arte crítica   rememoração tanto da família
                  ocorridas no campo das artes    no qual a arte negra se inseriu.   como de uma origem afro. A obra
                  nas últimas décadas do século xx   Teremos que acompanhar que    também alude aos universos da
                  ocorreu uma ascensão, como      tipo de efeito essas políticas de   religiosidade, do jogo (jogo de
                  vimos, do sujeito, do agente da   opressão vão ter.              memória) e da montagem, já que
                  arte, que antes estava em parte    Para finalizar esse painel    se trata de um arranjo que está
                  submetido ainda ao campo da     reflexivo sobre a arte negra     sempre em movimento, sendo
                  representação. Uma série de     contemporânea no Brasil me       remontado, sem nunca deixar de
                  artistas afrodescendentes, quase   deterei na produção de duas   ser a Parede da Memória. Essa
                  todos formados em artes visuais,   artistas, mesmo que de modo   parede com uma série de patuás,
                  e coletivos artísticos passaram a   breve, para indicar a força   não deixa de ser uma versão
                  interagir na cena cultural      dessa produção.                  contemporânea afro dos loci
                  brasileira desse ponto de vista da                               memoriai, os lugares de memória
                  virada decolonial. Eles vão     rosana paulino:                  da mnemotécnica. Nessa
                  imaginar a negritude nos espaços   anarquivanDo o arquivo        tradição une-se a memoria rerum,
                  da diáspora. Imaginar no sentido   Da ColonialiDaDe              memória das coisas, com a
                  de criar imagens, mas também     Rosana Paulino é reconhecida    memoria verborum, memória das
                  de criar um campo de ação lúdico   como uma pioneira na nova arte   palavras. Os imagnines agentes,
                  e político.  Com a entronização   negra brasileira. Sua obra Parede   ou seja, agentes da memória, são
                           [7]
                  do sujeito e o deslocamento do   da memória, de 1994, é uma      colocados em certos locais para
                  campo estético em direção à     referência dentro dessa produção.   se narrar imageticamente
                  política e micropolíticas, essa   Essa obra é composta por 11    histórias (Yates 1966). Existe um
                  repolitização da arte implicou   fotografias de sua família que se   movimento nessa obra de Paulino
                  novas costuras da memória, para   repetem atingindo diferentes   de apropriação de elementos da
                  jogar com o título da exposição   números, chegando a atingir 1500   memória, de uma memória
                  de Rosana Paulino na Pinacoteca.   dessas fotos, que são impressas   próxima, familiar, mas também
           FOTO: ISABELLA MATHEUS / ACERVO DA PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO
                  O elemento testemunhal se torna   sobre tecido em tamanho de     distante, associada a uma
                  central. Ao mesmo tempo, no     cerca de 8x8x3cm cada, formando   ruptura, a uma deriva, de um
                  Brasil ocorre na primeira década   patuás, ou seja, um elemento da   saber e de um modo de estar no
                  deste século um aumento do      religiosidade afro que tem um    mundo o qual, de certa forma, a
                  apoio às artes, com mais prêmios,  valor de amuleto no candomblé.   artista reconhece como seu.
                  bolsas e opções de espaços      Cada patuá leva cores específicas,   Como nas palavras de Musa
                  expositivos, fruto de uma       associadas a Orixás que irão     Michelle Mattiuzzi, Rosana
                  expansão econômica              então proteger aquele que porta o   Paulino parece de fato “habitar as
                  acompanhada de uma              talismã. Lembremos do que        ruínas da colonialidade”, ela se
                  democratização que se refletiu   Abdias Nascimento escreveu      apresenta como alguém que sabe
                  também nas Universidades e na   sobre o candomblé como “o       “habitar e reviver as ruínas dessa
                  cultura como um todo. Esse      ventre gerador da arte afro-     pluralidade afro-atlântica”.
                  movimento começou a oscilar de   brasileira”. É importante pensar   A fotografia se tornou uma
                  volta em direção à crise        que a própria Rosana Paulino     metáfora fundamental na arte
                  econômica e política a partir de   narra a sua carreira a partir dessa   contemporânea e no Brasil tem
                  2013. Mas nem por isso as       obra emblemática que esteve      estado na base da produção de


                                                                                                              29





                                                                                                                25/03/2022   10:59
         Book_ARTE_58.indb   29                                                                                 25/03/2022   10:59
         Book_ARTE_58.indb   29
   24   25   26   27   28   29   30   31   32   33   34