Page 26 - ARTE!Brasileiros #58
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ARTIGO DEMOCRACIA E REPARAÇÃO
musa miChelle mattiuzzi: Por sua vez, o volume de textos um caráter quase de manifesto
habitar as ruÍnas Da críticos fruto da exposição decolonial. Ela escreve:
ColonialiDaDe ocorrida em São Paulo, em 2018,
Impossível apresentar aqui outras Histórias afro-atlânticas, nos Na história contada pela
tentativas de se construir a capítulos introdutórios de Adriano branquitude – que ainda hoje
narrativa acerca da história da Pedrosa, Heitor Martins, Amanda apresenta facetas de um Brasil
arte negra no Brasil. Em termos Carneiro e André Mesquita colonial – a noção compulsória
de conceituação, nenhuma no localizam a tarefa de repensar a sobre o “outro” é o que qualifico
século 20 foi tão radical quanto as arte brasileira a partir do prisma de mirada folclórica branca sobre
formulações de Abdias decolonial. Além disso, o catálogo aspectos da estética negra e
Nascimento, ainda que algumas contém textos de Achille Mbembe indígena. É um olhar e uma
vezes seu trato do tema caia para (p. 125-144) e a contribuição de prática construídos a partir do
uma espécie de hagiografia Okwui Enwezor (p.145-158), que uso de signos que engendram a
condescendente de artistas. também nascem dentro do atual necropolítica como pos sibilidade
Menciono apenas mais duas debate de reconstrução pós- de inclusão e de representa-
obras. colonial do campo estético. Mas tividade, em um jogo perverso
O historiador da arte Roberto nem todos os textos do catálogo da linguagem branca de captura
Conduru tem um livro de caráter seguem essa perspectiva, pois a e visibilidade. Penso isso quando
introdutório voltado para a escola, intenção era mostrar também um investigo as narrativas que fazem
mas nem por isso menos panorama do debate sobre as parte desse imaginário
interessante e cheio de histórias afro-atlânticas no Brasil. supremacista. Penso isso de
informações, o seu Arte afro- O antropólogo Kabengele Tarsila do Amaral (1886-1973),
brasileira, de 2007. Ele não se Munanga, em Arte afro-brasileira: artista que pintou a obra A negra
limita a artistas afrodescendentes o que é afinal?, inclusive localiza a que, se analisada friamente, é de
e tampouco se alinha a uma sua leitura da arte afro-brasileira cunho racista, embora tenha
leitura decolonial da questão, na chave do belo, do “universal e conseguido fazer-se creditada
contentando-se em fazer uma necessário” (2018, p. 113, 120) e por uma falsa narrativa de que a
história da arte mais escolar. Já o comemora o “trabalho pioneiro de repre sentatividade importa e
livro de 2013 de Kimberly L. Nina Rodrigues” na fundação da tenha sustentado durante muito
Cleveland, Black art in Brazil. história da arte afro-brasileira tempo o mito da diversidade
Expressions of Identity, apesar de (2018, p. 118). Ele se distancia da racial e cultural desse país. Há
não romper com a tradição expressão “arte negra no Brasil” uma tecnologia política dos
brasileira, que tem sua origem na por desconfiar de existir aí um colonos herdeiros de criar
ideologia da “democracia racial”, “certo biologismo” e defende que soterramentos. [...] A “arte”
de tratar sob o conceito de arte seria a partir de uma noção “mais destas terras que nunca
negra e afro-brasileira artistas que ampla, não biologizada, não deixaram de ser colônia, uma
não são afrodescendentes, etnicizada e não politizada, que se “arte” instituída aqui com o
discute com muita ponderação pode operar para identificar a violento processo de inserção
esse tema trazendo o enorme africanidade escondida numa obra” na modernidade ocidental. “Arte”
aporte dessa discussão nos (2018, 122). Por que a africanidade como o meio privilegiado por
Estados Unidos. Sua obra é uma se esconderia numa obra? onde circulam as ideias escritas
importante contribuição e deveria Estamos a quilômetros, aqui, do e a criação visual realizadas por
ser traduzida no Brasil para poder manifesto de Rubem Valentim e da colonos herdeiros, estes que
enriquecer o debate sobre esse postura combatente e fazem parte de uma classe social
tema. A autora trata abertamente política também abastada, que operam os signos
explicitamente em capítulos das defendida por Abdias Nascimento. na onda de apropriação e tratam
obras dos seguintes artistas: Nessa linhagem desses dois as suas ideias como universais.
Abdias Nascimento, Ronaldo autores, o pequeno texto da artista Na representação do discurso
Rego, Eustáquio Neves, Ayrson performática Musa Michelle de que somos todos iguais eles
Heráclito e Rosana Paulino. Mattiuzzi, ao final do catálogo, tem nos expropriam. Vejo a
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