Page 30 - ARTE!Brasileiros #58
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ARTIGO DEMOCRACIA E REPARAÇÃO
artistas que lidam com a memória e é em torno de fotografias racista que oprime tanto corpos
e, mais ainda com o apropriadas, suas cópias, recortes negros como femininos ou que
esquecimento. Recordo Hélio e inversões, que boa parte da obra não correspondam ao padrão
Oiticica, com seu Bólide Caixa 18 de Paulino se constrói. Isso sem, cisgênero. Ao denominar sua obra
“Homenagem a Cara e Cavalo, de no entanto, romancear alguma Bastidores ela joga com o
1966 ou o seu famoso seja herói, origem perdida, ou estabelecer significado múltiplo do termo: por
seja marginal de 1968. A alguma ontologia identitária. um lado, ela explicita os
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fotografia, sobretudo a analógica, Antes, a reprodução técnica das bastidores dessa sociedade com
tem um momento de “impressão” fotografias desconstrói qualquer seu gesto de costurar nos rostos
(vale lembrar que Rosana Paulino visada essencialista. Trata-se de desses retratos. Mas, bastidor
é bacharel e especialista em abrir espaço para se imaginar remete aqui também ao suporte
gravura; Lopes 2018, p. 171). A origens e narrativas alternativas da tecelagem que é onde essas
fotografia reatualiza outras às construídas pelos discursos fotografias foram impressas. Ao
metáforas da memória, como a coloniais. invés de costurar
escritura, metáfora também Na sua série de 1997 de “comportadamente” e fazer as
fundamental na referida tradição Bastidores, ela costura os olhos, a suas tecelagens cumprindo o
da arte da memória com sua ideia garganta, a boca e a fronte de papel “feminino” que a sociedade
de inscrições mnemônicas. Afinal, retratos fotográficos de mulheres impõe às mulheres, Paulino
a fotografia é literalmente uma negras colecionadas por ela nos desloca o bastidor, rompe com
escrita de luz. Mas ela também álbuns de sua família. Como em seu papel de instrumento de
remete à concepção psicanalítica muitas obras da mencionada controle de gênero e transforma-o
de nossa memória como camadas, Rosangela Rennó, essas em dispositivo de sua arte
umas mais outras menos fotografias são precarizadas, para eminentemente política.
conscientes. A inscrição do indicar apagamentos, perdas, Mais recentemente a artista
trauma também já foi comparada subtrações, mas também para tem trabalhado com a costura
ao flash fotográfico. A fotografia indicar que essas mulheres são ao de fragmentos de tecido, que
enquanto retrato tem também um mesmo tempo um indivíduo chamarei de “retalhos” para
elemento corpóreo e singular e todas aquelas que se enfatizar o seu elemento de
fantasmático: o retrato fotográfico identificam com elas. O ato da fragmentação e de precarização,
literaliza ambiguamente o artista é sempre duplo: ao nos quais se vê impressas
aparecer e o desaparecer, a costurar a boca e o pescoço ela se algumas das fotografias e
presença e a ausência, o desejo assume como agente da fala, gravuras mais icônicas realizadas
de ver e o evanescer da imagem. descosturando a sua boca e a de por fotógrafos e artistas, na sua
Paulino se torna também nessa quem admira o seu trabalho. Ao maioria viajantes ou emigrados,
sua obra/jogo quem dá as cartas costurar os olhos ela se institui feitas no Brasil no século 19. Em
na cena da apresentação dos como agente na construção das alguns desses “retalhos” estão
corpos negros. Como Eustáquio imagens e do imaginário impressas imagens de azulejos,
Neves e seus retratos, ela afirma- contracolonial, descosturando os representativos da arquitetura e
se como agente de suas imagens seus olhos e os dos que veem sua da cidade colonial portuguesa
e não mais como objeto obra. Ao costurar a fronte ela se (como ocorrem também em
representado e sem fala própria. assume como agente pensante e muitas obras de outra importante
A obra consegue ser ao mesmo não como objeto pensado, artista brasileira que tematiza a
tempo extremamente dissecado pela ciência e violência colonial, Adriana
contemporânea e citar passados esmagado pelo trabalho servil, Varejão). A obra de Paulino Musa
mais ou menos próximos. Ela é um descosturando o seu cérebro e do paradisíaca, de 2018, reproduz
buraco no tempo, cria uma seu espectador. Em uma palavra, três vezes a mesma fotografia de
metaespacialidade e outros ela afirma: sou dona do meu Marc Ferrez (“o mais importante
cronotopoi. A fotografia é tratada corpo, a mulher negra manda em dos fotógrafos atuantes no Brasil
como fragmento, escombro, seu corpo, isso em uma sociedade no século 19”; Lago, 2001, p.14),
sobrevivência de um naufrágio ainda colonial, falocêntrica e conhecida como “Uma vendedora
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