Page 35 - ARTE!Brasileiros #58
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(2017) e (Outros) Fundamentos pergunta: é você mesmo? Por que habitarmos para além do
(2017-2019) apresentam, a partir de demorou tanto?”. desabrigo e do mal-estar. Esses
uma narrativa em off da autora, dispositivos rompem como
com imagens captadas em Serra palavras finais picaretas muros de esquecimento
Leoa, na Nigéria e em diversos Como no Manifesto Tardio, de e de silenciamento forçado.
locais de sua origem no Brasil, a Rubem Valentim, também Aline Como afirmei na abertura deste
história de uma busca por Motta pontua essa temporalidade texto, a impressionante força
fragmentos de passado visando do “demorar”, o après coup que, e originalidade da arte negra
instituir um “assentamento” (para como vimos, não é nada mais do brasileira contemporânea
retomarmos a imagem de Paulino) que a temporalidade do trauma, também responde à terrível
no presente. Suas obras nascem a com o seu retardamento ascensão de neo-fascismos
partir de um momento de ruptura, característico. O tempo do que repetem hoje seus
de quebra de um “segredo”, de trauma é um tempo que nos desígnios genocidas.
uma camada de silêncio dura que atravessa, que faz com que o A arte negra existe apenas em
manteve na penumbra a sua tráfico negreiro, a violência de um devir, em um construir-se que
origem, ainda no século 19, na quase quatro séculos de é paralelo ao devir negro. Para ela
prática de um filho de aristocrata escravidão e as políticas existir, artistas, críticos e
que violou a sua bisavó. Sua avó eugenistas e genocidas contra os curadores precisaram
porta em sua certidão de negros que existem até hoje desvencilhar-se de séculos de
nascimento apenas o nome de sua sejam parte de um mesmo uma historiografia
mãe e a qualificação de “filha presente. Trata-se de um passado brancocêntrica que invisibiliza a
natural”. A partir dessa descoberta, que não passa. A arte negra arte negra. Curadores precisaram
da violência recalcada, dessa contemporânea brasileira, que desvencilhar-se de sua cegueira
origem negativa, a obra de Aline se procurei apresentar aqui a partir colonial para perceber que a arte
desdobra como um enorme rio de seu difícil nascimento, que se negra não é apenas um afluente
caudaloso que jorra, repleto ergueu contra tantos da “arte brasileira”, mas constitui
também de fotografias de família apagamentos, recalcamentos e um campo cultural e simbólico
que, em seus vídeos, navegam tantas mortes e violência, essa que, pelo contrário, deve ser lido
literalmente boiando pelas águas arte de certa forma mora nesse no contexto da diáspora negra,
do oceano Atlântico e por rios do “demorar” de que Aline nos fala. para além da máquina trituradora
Brasil e da África. Nessas obras Habitar a demora implica sempre das diferenças do dispositivo da
plenas de transparência, de água e uma urgência de falar, de nacionalidade. Pensar em uma
de espelhos, de superfícies que inscrever infinitas histórias não arte afro-brasileira só tem
(se) refletem para nós refletirmos, a simbolizadas, não imaginadas, sentido se o termo “brasileira”
artista busca os caminhos que ainda não traduzidas em imagens. servir para localizar o espaço da
podem religar os fios quebrados, As obras de tantos artistas aqui diáspora,
de sua história de família e os que mencionados e dos não o seu contexto, e não para impor
ligam, também, os continentes das mencionados são verdadeiras limites nacionais no sentido da
duas margens do Atlântico sul. construções híbridas, marcadas construção de uma ilusória
No final de sua obra (Outros) pela montagem, pela costura, por grande “arte brasileira”. A arte
Fundamentos assistimos a cenas serem coletas de cacos e negra transcende as fronteiras
na cidade de Lagos com pessoas escombros, por serem da colonialidade, ela explode o
sobre canoas e à beira do rio instalações, impressões gráficas código usual da história da arte
portando pequenos espelhos em ou fotográficas, performances e com suas histórias nacionais,
suas mãos. A narradora fala: “Se cenas teatrais. A força desses lineares e ascendentes, pontuada
pertencer é uma ficção, posso dispositivos artísticos consiste por seus “grandes vultos”. Ao
apontar um espelho para a Nigéria em serem trabalhos de memória construir seus teatros de
e ver o Brasil? O inverso também é que lançam e abrem diante de memória que possibilitam a
possível? Para além do oceano, nós novos territórios, ajudam a imaginação de outros espaços de
um aponta o dedo para o outro e erguer novas casas para ação lúdica, essa arte negra aqui
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