Page 37 - ARTE!Brasileiros #58
P. 37

quarentena devido à pandemia de covid-19.   Seu apelo por um mundo plural e não   claramente derivados dos cultos afro-
                    O crime cometido por forças do Estado se   monolíngue é fundamental em nossos   brasileiros. Na fusão de religiosidade e
                    deu no dia 18/05/2020 no município de   dias de fundamentalismo supremacista.  trabalho artístico ele criou um caminho
                    São Gonçalo, região metropolitana do Rio   [3]   Evidentemente não se trata aqui de criticar   original e incomparável no cenário da arte
                    de Janeiro, quando João Pedro brincava   Kant por ter sido “eurocêntrico”, posto   do país que ao mesmo tempo forçou e
                    dentro de sua casa com outras crianças.                         desconstruiu o dispositivo estético.
                                                    que não existia outra possibilidade na
                  [2]   No contexto dos estudos subalternos,   sua Königsberg do século 18, mas, antes,   (Hidalgo, 1996) As performances do artista
                    Chakrabarty repensou a história do   devemos criticar o uso não refletido e   Ayrson Heráclito, que unem religiosidade,
                                                                                    rito e o campo estético deslocado,
                    ponto de vista dos grupos subalternos,   acrítico de sua obra estética hoje.  desdobram essa trilha aberta por Bispo
                    procurando redimi-la da visão colonial.   [4]   Trata-se de um bairro central de São Paulo,   do Rosário.
                    Com ele, os agentes passaram a   mas que até meados do século 19 era
                    ser reconhecidos nesses grupos   ainda periférico e onde se concentrava o   [7]   Além dos  aqui  já  mencionados artistas,
                    subalternizados. Esse ponto de vista   terror a que os escravos vindos da África   poderíamos lembrar de Sidney Amaral,
                    encontra um antecessor em Walter   eram submetidos: o pelourinho e a forca.   Charlene Bicalho, Dalton Paula, Janaína
                    Benjamin que em suas teses “Sobre o   O nome do bairro aparentemente é uma   Barros, Antônio Obá, Juliana Santos, Priscila
                    conceito da história”, de 1940 afirmou:   homenagem à abolição da escravidão   Rezende, Lídia Lisboa, Renata Felinto, o
                   “O sujeito do conhecimento histórico é   oficialmente ocorrida em 1888.  curador e artista Daniel Lima, Tiago Gualberto,
                    a própria classe oprimida combatente.                           Janaina Barros, Moisés Patrício, Marcio
                    Em Marx, ela aparece como a última   [5]   No seu artigo do catálogo da exposição   Marianno, Peter de Brito, Ana Lira, Ayrson
                    classe escravizada, como aquela que   de 1988, Aracy Amaral escrevia ainda   Heráclito, Jota Mombaça, o bailarino e
                    se vinga, que vai consumar o trabalho   de modo não crítico com relação à   performer Luiz de Abreu, o quadrinista
                    de libertação em nome de gerações   cumplicidade entre os dispositivos   Marcelo D’Salete e a Frente 3 de Fevereiro.
                    [inteiras] de massacrados.” (2020, p. 46)   estético e o colonial: “os países novos da   [8]
                    Mas, além dessa virada copernicana   América se apresentam como uma real     Recordo também de Eustáquio
                    do conhecimento e da ação históricas,   fonte de miscigenação e nova realidade. A   Neves, outro importante precursor da
                    Chakrabarty pensa criticamente a   identidade passa a ser baseada, assim, a   arte negra contemporânea, recordo
                    estrutura de dominação na Índia moderna,   partir de nosso meio-ambiente, ou melhor,   Paulo Nazareth, figura chave na arte
                    com suas camadas de domínio político   de nossos processos tumultuados de   negra atual também e das fotografias
                    nacional associado ao uso de códigos   deculturação, ou aculturação segundo   de Ayrson Heráclito. A fotografia
                    e instituições britânicos. Ele propõe   os modelos dos centros hegemônicos de   é igualmente fundamental nas
                    desconstruir a teleologia do historicismo   arte ocidental.” (1988, 272) Assim afirma-  obras  de Rosângela  Rennó,  de
                    (também  presente  em  Marx  e  nos   se a máquina colonial com seu trabalho   Claudia Andujar, de Paula Trope,
                    marxismos) e a ideia de Modernismo   de destruição do “outro”. A autora ainda   Miguel Rio Branco, entre tantos
                    como modelo universal. Sua proposta   enfatiza o mito da “ausência de memória”   outros artistas contemporâneos
                    dá-se no contexto não apenas a virada   (1988, 272) dos brasileiros, quando se trata   não diretamente relacionados com a arte
                    epistemológica do ponto de vista   na verdade de reconhecer uma luta pelas   afrodescendente. (Diegues & Ortega 2013)
                    subalterno, mas também do pós-colonial.   memórias, na qual as histórias da violência   [9]   É importante confrontar essa obra
                    Ele propõe escovar a história a contrapelo,   contra os negros e da resistência negra   de Paulino com a obra impactante
                    restituindo elementos empoderadores de   são sistematicamente sufocadas.  da artista norte-americana Carrie
                    memórias coletivas que são heterogêneos   [6]   Com relação a essa origem da arte negra   Mae Weems,  From Here I Saw What
                    ao modelo europeu, passando-se a   brasileira no candomblé é essencial   Happened and I Cried, 1995-6, que
                    valorizar passados subalternos. Trata-  lembrarmos da figura de Arthur Bispo   também é feita a partir da apropriação
                    se de uma veemente recusa do modelo   do Rosário (1909 – 1989), um dos mais   de fotografias de negros do século xIx,
                    colonizador da episteme iluminista,   aclamados artistas negros brasileiros,   submetidos por dispositivos científicos,
                    universalizante e que se considera o único   com obras expostas nas Bienais de São   fotográficos, sexistas, ao exército, como
                    capaz de portar a “objetividade”. Trata-  Paulo e Veneza. Seu trabalho, marcado   ama de leite etc. Isso mostra como as
                    se também de uma denúncia da violência   pelo colecionismo, pela montagem, pela   histórias afro-atlânticas se repetem
                    das práticas coloniais, tanto em termos   costura, construção de narrativas e por   para além das fronteiras nacionais.
                    da violência física como da simbólica.   serializações utilizava muitos códigos   O sistema colonial era e é global.

















                                                                                                              37





                                                                                                                25/03/2022   10:59
         Book_ARTE_58.indb   37
         Book_ARTE_58.indb   37                                                                                 25/03/2022   10:59
   32   33   34   35   36   37   38   39   40   41   42