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OPINIÃO DEMOCRACIA E REPARAÇÃO



                  serem gordas; quem cria a       de pesquisa do Google, entre    modificações sociais que eles
                  gordofobia é quem cria a        outras - cada vez mais          exigem. A percepção da
                  glutonaria e inventa que a      direcionada, mercantilizada e   afrodescendência na internet,
                  felicidade “pode estar a seu    minimizada, porque já não       nesse sentido, tem se tornado um
                  alcance: basta clicar aqui”. O   entrega resultados livres e    alimento fértil para o exercício
                  mundo da suposta facilidade é   abrangentes sem que haja        cidadão virtual promovendo um
                  um dos mais tirânicos mundos    intermediação monetária de      ponto de ebulição nesse exato
                  possíveis. A pós-verdade        algum tipo -, a internet, que já foi   momento de descenso
                  aplicada à internet tem o mesmo   o espaço da liberdade, é hoje o   democrático, avivado também
                  objetivo que a publicidade tinha   biscoitinho dirigido ao dragão e   pela internet. Na medida em que
                  na televisão: formar internautas   somos nós que o alimentamos,   um grupo gigantesco é chamado
                  passivos, dóceis, submissos,    desavisados, com nossos         a ancorar-se nessa “baía” tomada
                  moldáveis dentro do espectro de   cliques cheios de empolgação.  militarmente por forças
                 “consumidor de conteúdos”.          Nenhuma metáfora é melhor    retrógradas e antidemocráticas,
                    No embate entre a             para a enorme perda de tempo de   ainda que sejam aceitos apenas
                 “expectativa versus realidade”   navegação nos smartphones do    como consumidores, esta
                  (tornada meme para ser          que a ideia de usar o dedo na   inserção afro-brasileira pode
                  deglutida no universo do        telinha para “enxugar gelo” e   também significar um ponto de
                  aceitável), a enorme diferença   trabalharmos como “cliqueiros”   inflexão: na aparência de
                  entre o título e miniatura caça-  gratuitamente para empresas   democracia, a necessidade agora
                  níqueis dos vídeos e seu        bilionárias que financiam o     premente de inserção da
                  verdadeiro conteúdo é           autoritarismo mundial. A ideia de   diversidade no quadro
                  naturalizada, tornada chiste,   ser produto à venda não se      publicitário também gera entre
                  assimilada e aceita como “ossos   coaduna com a de viver ou     os jovens cultura e consciência
                  do ofício”. Na sociedade        trabalhar sob um sistema        negras - eles não parecem e não
                  publicizada o meio se tornou o   democrático e um regime        querem aceitar tão pouco!
                  fim, o sonho de classe média não   republicano. Se o que é         Aqueles que foram chamados
                  é mais ter uma casa e um carro,   apresentado como              a participar do mundo mercantil e
                  mas sim ter seu vídeo           entretenimento vira vício, trabalho   eram excluídos da cidadania e do
                  recomendado, seu post           ou manipulação, estamos falando   consumo agora também
                  viralizado, sua vida exposta para   de uma enfermidade do fim de   desconfiam daqueles que os
                  o maior número de pessoas. Pois   uma era e não início de outra -   chamam. Aqueles que por meio
                  assim é possível ser            pois não haveria futuro sem uma   de sua consciência negra vêm
                  recomendado, ter seu post       luz no fim do túnel.            percebendo que ser chamado ao
                  viralizado e poder recomeçar o     Sendo jogados no meio da     consumo significa apenas ser
                  ciclo vicioso que não levará a   disputa atual entre interesses   “consumidor” negará esta
                  maioria dos “criadores” de      mercantis e interesses públicos,   participação à sua própria
                  conteúdo e seus (consumo)       os afrodescendentes e seus      maneira nesta esfera em que
                  seguidores a lugar algum, nem   defensores, agora munidos de    tudo tem preço, tudo se compra,
                  mesmo, às vezes, à monetização   seus smartphones, apareceram   tudo se vende. Ao contrário, este
                  de um lado ou entretenimento do   como fenômeno consistente na   novo sujeito recentemente
                  outro - apenas perda de tempo e   internet. Porém,              inserido sabe que a inclusão
                  aumento do autoritarismo geral.   contraditoriamente, devido à   negra no mundo mercantil o
                  Via de regra, com a invasão     grande força raivosa da busca por  torna mais uma entre outras
                  intrometida dos cookies - que   direitos pelas redes sociais,   mercadorias. Por isso ele
                  impedem praticamente dar um     como uma “luz no fim do túnel”,   também tem usado de sua
                  passo sequer em qualquer site   parecem querer fazer o exercício   própria capacidade e               FOTOS: REPRODUÇÃO REDES SOCIAIS
                  sem a captura de informações    da democracia, em vez de aceitar   originalidade para encontrar
                  pessoais valiosas dos           passivamente “enxugar gelo”     meios de afirmar-se na esfera
                  internautas - e com a atual forma   diante da emergência das    pública como cidadão e rejeitar o


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