Page 34 - ARTE!Brasileiros #58
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ARTIGO DEMOCRACIA E REPARAÇÃO
autorretrato de perfil portando uma fogueira. Ao chão, do lado das opta pela costura inexata, por
caveira bovina que faz às vezes de duas “fogueiras”, dois pequenos mostrar a fragilidade desse corpo
uma máscara para comedor de monitores apresentam ondas em de pessoas que foram
terra (2011). Nessa performance de um oceano se quebrando na objetificadas pela escravidão,
Paulo Nazareth ele coloca a praia. É importante lembrar aqui pela fotografia, pela ciência e
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máscara para que consigamos também o duplo sentido do título pelo voyeurismo. As imagens
finalmente ver aquilo que parece da obra: assentamento, entre dos “corpos escravizados” no
estar para além do visível e nos outras coisas, é o ato de se século 19 colocam-nos apenas
cega diante da violência que essas assentar azulejos ou ladrilhos, ato nesses dois lugares: do trabalho
imagens friamente descritivas de de construção, portanto, que ou do sofrimento. Rosana Paulino
Debret apresentam. remete ao corpo dos que opta por fazer um assentamento,
A série Assentamento, de 2013, constroem no Brasil desde o um ritual de homenagem, de
de Paulino, retoma um dos século 16 - que assentaram, entre religadura, impossível, mas
grupos de fotografias de Stahl de outros, os azulejos aos quais necessária, com o passado que
1865 para o projeto de Agassiz algumas das obras de Paulino se não passa. Coração, útero e
que se encontra hoje no Peabody referem. Por outro lado, raízes não restituem a vida ou
Museum of Archeology and assentamento pode ser também curam as feridas, mas servem
Ethnology de Harvard (em um um local que recebe os sem-terra, para deslocar nosso modo de nos
bairro de Cambridge, aliás, que categoria de muitos negros aproximar dessas imagens
se chama Agassiz). (Ermakoff expelidos da força de trabalho no fantasmáticas do passado,
2004, p. 252) As três fotografias, Brasil, herdeiros do fardo da permite iniciar um diálogo com
em tamanho natural, “libertação” dos escravizados de os mortos, abre uma varanda
recuperando a sua dimensão 1888. No candomblé, por fim, sobre o oceano, contextualizando
humana, foram recortadas cada assentamento é um conjunto de a escravidão no mundo afro-
uma em cinco tiras e objetos colocados em um lugar atlântico. Restituir raízes aos que
recosturadas de modo irregular. específico para homenagear um foram cortados delas, dar-lhes
Na fotografia frontal da mulher Orixá. Nesse local assenta-se a descendência e vida, mesmo que
nua, Paulino insere um coração força do Orixá. Podemos pensar uma sobrevida, é um trabalho
pintado, como um órgão externo, como em Assentamento circulam delicado ao qual a arte de Paulino
do qual escorrem, novamente, esses significados. Essa obra, de tem se dedicado de modo
fios vermelhos “de sangue”. Na modo explícito, trata dos traumas, original e poderoso.
fotografia de perfil, ela introduz das feridas abertas pela
uma gravura de um nenê no útero, escravidão. Feridas que não se aline motta: reflexos De um
mas, novamente, como algo fecham. Trauma vem do grego e (Des)enContro
externo, transparente. Na significa ferida. Não existe Estabelecer uma corrente de
fotografia da mesma suturação possível para quatro memória que ao mesmo tempo
personagem, sempre nua, de séculos de regime escravocrata costure com sua nervura o
costas, a artista não remenda a ou para a violência do tráfico de território brasileiro na sua longa
parte de baixo da fotografia, pessoas escravizadas. Paulino história de escravidão e nunca
correspondente ao final da perna nos fala dessa violência, no realizada libertação e, ao mesmo
e aos pés, e em seu lugar costura entanto, não reproduzindo as tempo, abra uma varanda sobre o
um tecido que possui uma famosas imagens de Rugendas e oceano são partes de um mesmo
costura de veios que lembram Debret que retrataram os gestos projeto mais ou menos explícito
raízes que se ramificam, como se de tortura dos colonizadores e de dentro da produção da arte
a retratada estivesse criando seus algozes sobre os corpos afrodescendente. No caso da
raízes. Essas três fotografias negros, que povoam os livros artista niteroiense Aline Motta, por
constituem uma instalação da didáticos no Brasil (produzindo exemplo, com sua trilogia de
qual fazem parte também uma associação que naturaliza a videoinstalações, isso fica evidente.
pedaços de lenha empilhadas, relação entre “corpo negro” e Suas obras Pontes sobre Abismos
como se fossem para uma “corpo violentado”). Antes, ela (2017), Se o mar tivesse varandas
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