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ARTIGO DEMOCRACIA E REPARAÇÃO



                  autorretrato de perfil portando uma   fogueira. Ao chão, do lado das   opta pela costura inexata, por
                  caveira bovina que faz às vezes de   duas “fogueiras”, dois pequenos   mostrar a fragilidade desse corpo
                  uma máscara para comedor de     monitores apresentam ondas em   de pessoas que foram
                  terra (2011). Nessa performance de   um oceano se quebrando na   objetificadas pela escravidão,
                  Paulo Nazareth ele coloca a     praia. É importante lembrar aqui   pela fotografia, pela ciência e
                                                                                                 [9]
                  máscara para que consigamos     também o duplo sentido do título   pelo voyeurismo.  As imagens
                  finalmente ver aquilo que parece   da obra: assentamento, entre   dos “corpos escravizados” no
                  estar para além do visível e nos   outras coisas, é o ato de se   século 19 colocam-nos apenas
                  cega diante da violência que essas   assentar azulejos ou ladrilhos, ato   nesses dois lugares: do trabalho
                  imagens friamente descritivas de   de construção, portanto, que   ou do sofrimento. Rosana Paulino
                  Debret apresentam.              remete ao corpo dos que         opta por fazer um assentamento,
                    A série Assentamento, de 2013,  constroem no Brasil desde o   um ritual de homenagem, de
                  de Paulino, retoma um dos       século 16 - que assentaram, entre   religadura, impossível, mas
                  grupos de fotografias de Stahl de   outros, os azulejos aos quais   necessária, com o passado que
                 1865 para o projeto de Agassiz   algumas das obras de Paulino se   não passa. Coração, útero e
                  que se encontra hoje no Peabody   referem. Por outro lado,      raízes não restituem a vida ou
                  Museum of Archeology and        assentamento pode ser também    curam as feridas, mas servem
                  Ethnology de Harvard (em um     um local que recebe os sem-terra,  para deslocar nosso modo de nos
                  bairro de Cambridge, aliás, que   categoria de muitos negros    aproximar dessas imagens
                  se chama Agassiz). (Ermakoff    expelidos da força de trabalho no   fantasmáticas do passado,
                  2004, p. 252) As três fotografias,   Brasil, herdeiros do fardo da   permite iniciar um diálogo com
                  em tamanho natural,            “libertação” dos escravizados de   os mortos, abre uma varanda
                  recuperando a sua dimensão      1888. No candomblé, por fim,    sobre o oceano, contextualizando
                  humana, foram recortadas cada   assentamento é um conjunto de   a escravidão no mundo afro-
                  uma em cinco tiras e            objetos colocados em um lugar   atlântico. Restituir raízes aos que
                  recosturadas de modo irregular.   específico para homenagear um   foram cortados delas, dar-lhes
                  Na fotografia frontal da mulher   Orixá. Nesse local assenta-se a   descendência e vida, mesmo que
                  nua, Paulino insere um coração   força do Orixá. Podemos pensar   uma sobrevida, é um trabalho
                  pintado, como um órgão externo,   como em Assentamento circulam   delicado ao qual a arte de Paulino
                  do qual escorrem, novamente,    esses significados. Essa obra, de   tem se dedicado de modo
                  fios vermelhos “de sangue”.  Na   modo explícito, trata dos traumas,  original e poderoso.
                  fotografia de perfil, ela introduz   das feridas abertas pela
                  uma gravura de um nenê no útero,  escravidão. Feridas que não se   aline motta: reflexos De um
                  mas, novamente, como algo       fecham. Trauma vem do grego e   (Des)enContro
                  externo, transparente. Na       significa ferida. Não existe    Estabelecer uma corrente de
                  fotografia da mesma             suturação possível para quatro   memória que ao mesmo tempo
                  personagem, sempre nua, de      séculos de regime escravocrata   costure com sua nervura o
                  costas, a artista não remenda a   ou para a violência do tráfico de   território brasileiro na sua longa
                  parte de baixo da fotografia,   pessoas escravizadas. Paulino   história de escravidão e nunca
                  correspondente ao final da perna   nos fala dessa violência, no   realizada libertação e, ao mesmo
                  e aos pés, e em seu lugar costura   entanto, não reproduzindo as   tempo, abra uma varanda sobre o
                  um tecido que possui uma        famosas imagens de Rugendas e   oceano são partes de um mesmo
                  costura de veios que lembram    Debret que retrataram os gestos   projeto mais ou menos explícito
                  raízes que se ramificam, como se   de tortura dos colonizadores e de   dentro da produção da arte
                  a retratada estivesse criando   seus algozes sobre os corpos    afrodescendente. No caso da
                  raízes. Essas três fotografias   negros, que povoam os livros   artista niteroiense Aline Motta, por
                  constituem uma instalação da    didáticos no Brasil (produzindo   exemplo, com sua trilogia de
                  qual fazem parte também         uma associação que naturaliza a   videoinstalações, isso fica evidente.
                  pedaços de lenha empilhadas,    relação entre “corpo negro” e   Suas obras Pontes sobre Abismos
                  como se fossem para uma        “corpo violentado”). Antes, ela   (2017), Se o mar tivesse varandas


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