Page 25 - ARTE!Brasileiros #58
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orixás.” Constituindo a fonte e a   século 15 ao 19. Antes, esses   Paulo Freire ser esta “a grande
                      principal trincheira da resistência   novos agentes produzem uma   tarefa humanística e histórica do
                      cultural do africano, bem como o   arte que rompe com a divisão   oprimido – libertar-se a si mesmo
                      ventre gerador da arte afro- entre o sujeito e seu objeto,      e aos opressores”  (2016, p.
                      brasileira,  o candom blé teve que   gerando uma fusão, como afirmei   203-204).
                             [6]
                      procurar refúgio em lugares ocultos,  no início, um “subjeto”, com o
                      de difícil acesso, a fim de suavizar  perdão do neologismo. Mas    Não por acaso, no início da
                      sua longa história de sofri mentos   Abdias também procurou romper   mencionada encenação da peça
                      às mãos da polícia (2016, p. 125).  com a “definição elitista de ‘belas-  Black Brecht - E se Brecht fosse
                                                  artes’ que envolve exclusivamente   negro, lia-se em um estandarte
                  Ele também já formulava palavras   a arte branco-ocidental” (2016, p.   com desenhos de obás e de
                  de ordem fortes com relação ao   201) no que ele tinha razão, pois se   formas geométricas inspiradas
                  tema da arte negra roubada por   tratava e se trata de “desoutrizar”   em um imaginário afro as letras
                  instituições policiais e mantidas   as artes e culturas          garrafais: “rE-ExIStÊNCIA NEGrx”.
                  também em instituições de       tendencialmente “outrificadas”     Essa luta é calcada também na
                  psiquiatria, história e etnografia.   pelo Ocidente (Ndikung 2019;   desconstrução daquilo que
                  Sua ideia era a de criar um Museu   Seligmann-Silva 2019). Romper   Abdias denomina de “mito do
                  de Arte Negra para valorizar a   com essa definição elitista de   ‘africano livre’” (2016, 79):
                  cultura afro-brasileira. (2016, p.   belas-artes significa desmascarar
                  173) No capítulo “Arte Afro-    a cumplicidade entre o dispositivo    Depois de sete anos de trabalho,
                  Brasileira: Um espírito Libertador”   estético e o colonial.        o velho, o doente, o aleijado e o
                  ele pensa essa arte a partir do    Portanto, suas palavras são      mutilado, aqueles que so bre-
                  genocídio de africanos nas três   extremamente válidas ainda hoje   viveram aos horrores da
                  Américas, rompendo, portanto,   no contexto dos movimentos          escravidão e não podiam
                  com as fronteiras nacionais e com   artísticos negros contemporâneos,   continuar mantendo satisfatória
                  a narrativa tradicional da      não só no Brasil. Sua concepção,    capacidade produtiva – eram
                  formação da arte brasileira que   como a de Rubem Valentim, é da    atirados à rua, à sua própria sorte,
                  reservava à arte afro-brasileira   arte como parte de uma técnica de   qual lixo humano indesejável;
                  apenas um papel secundário de   luta. Indo mais longe, ele formula   estes eram chamados  de
                  fonte de influência.            uma arte negra da diáspora:        “africanos livres.” (Id.)
                     É verdade que Abdias algumas
                  vezes (2016, p. 197) mostra estar   Pois a arte africana é pre cisamente    Ou seja, essa libertação era
                  ainda vinculado a um projeto de     a prática da libertação negra –  um gesto genocida, a última etapa
                  valorização estética da produção    reflexão e ação/ação e reflexão –  no processo: e o mesmo o foi a
                  artística afro, não percebendo o    em todos os níveis e instantes da   chamada abolição ou Lei Áurea de
                  colapso dessa tradição estética, o   existência humana. [...] A arte dos  1888: “Não passou de um
                  compromisso entre o estético e o    povos negros na diáspora     assassinato em massa, ou seja, a
                  colonial, e que na verdade é a arte   objetifica o mundo que os rodeia,  multiplicação do crime, em menor
                  estetizada que está se dirigindo    fornecendo-lhes uma imagem   escala, dos ‘africanos livres.’” (Id.)
                  ao leito da arte afro, lGBtQIA+,    crítica desse mundo. E assim essa   As artes afro-brasileiras aos
                  feminista etc., produzida por       arte preenche uma necessidade   poucos se entenderam como esse
                  artistas agentes autoconscientes,   de total relevância: a de    espaço de luta pela efetiva
                  que não “representam” mais          criticamente historicizar as   liberdade, revertendo esse gesto
                  mundos externos, pacificados,       estruturas de dominação, vio- genocida cujas consequências
                  com geografias sempre vistas a      lência e opressão, características   se desdobram mais de cem anos
                  partir de instrumentos              da civilização ocidental-capi- depois daquele teatro da
                  eurocêntricos, a começar pela       talista. Nossa arte negra é aquela   libertação sintomaticamente
                  técnica da perspectiva e passando   comprometida na luta  pela   aclamado ainda hoje por nossos
                  pelos gêneros clássicos que         humanização da existência    políticos bandeirantes, a saber,
                  dominaram a história da arte do     humana, pois assumimos com   a edição da Lei Áurea.


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