Page 20 - ARTE!Brasileiros #58
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ARTIGO DEMOCRACIA E REPARAÇÃO
seja no bairro da Liberdade em arte negra, seja ela vista como destacada. O organizador do
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São Paulo. Na medida em que o brasileira ou ocupando seu lugar volume recorda o longo processo
magma dessa história de violência no espaço afro-Atlântico como de pesquisa para a construção
jorrou, a virada na história da arte local multi-tópico da diáspora. desse importante volume e
negra levou também a uma Não nos surpreende que boa exposição visando recuperar “ao
ruptura radical com a ideologia do parte dessa história reafirmou um menos parcialmente, a
estético: a nova arte negra que local excepcional, ou seja, participação do homem negro e
nasceu desse banho no líquido marginal, dessa história da arte mestiço na formação da cultura
amniótico do horror mas também negra, reproduzindo uma série de nacional” (1988, p. 9) A ideia de
da luta resistente, é padrões do modelo colonial da uma “cultura nacional” em
eminentemente política e crítica narrativa histórica. A força formação reproduz um modelo
do discurso do universalismo monstruosa do dispositivo colonial de formação da nação a
amnésico, assimilador e estético em sua versão colonial partir de suas contribuições das
destruidor da identidade negra, não pode ser desprezada. Esse diferentes etnias ou raças.
na mesma medida em que dispositivo também é reforçado É importante que Araújo
procura estabelecer as bases por boa parte da história que destaque já no título do livro a
de uma cultura afro-atlântica. narra a arte negra brasileira. questão do afrodescendente e não
A luta negra também institui da arte afro-brasileira, mas os
novos calendários e estabelece a mão afro-brasileira textos não manterão essa
novas conexões com passados Assim, mesmo em uma obra fidelidade ao título, já que, em sua
instituidores de novos presentes. fundamental no processo de maioria, misturam análises de
A arte negra brasileira manifesta autoafirmação da arte negra contribuições de artistas
essa irrupção do passado brasileira, como foi o volume A afrodescendentes ou não, mas que
recalcado que é libertado no mão Afro-Brasileira. Significado da estariam todos valorizando a
curso de sua construção. Ela Contribuição Artística e Histórica, contribuição de uma certa origem
rompe com a falsa narrativa da organizado por ninguém menos africana, que havia sido até então
historiografia colonial que relega que o artista, colecionador e pouco valorizada. Araújo escreve:
a história negra ao campo de fundador do Museu Afro Brasil, “Não existe hoje uma arte
trabalho ou aos pelourinhos. Emanoel Araújo (1988), podemos legitimamente brasileira sem a
Tratarei mais adiante dessas detectar esse fato. Esse catálogo criativa e poderosa influência do
imagens que funcionam veio à luz junto com a exposição no negro”. Nem vou discutir aqui a
como verdadeiras imagens MAM com o mesmo nome e que, questão de gênero que perpassa
encobridoras (Deckerinnerungen, em 1988, aos 100 da Lei de essas colocações, já que sempre
outro conceito de Freud, precioso Abolição, pretendia resgatar o fala-se no “negro”, no masculino, a
aqui, como veremos). papel dos negros na história da saber, ocorre o apagamento
arte nacional. Mas já no título daquelas mãos afro-brasileiras que
uma história Da arte percebemos que a visão não seriam de homens, mas
paCifiCaDora dominante na exposição e no destaco novamente a ideia de um
No entanto, é essencial, antes catálogo reproduzia a ideia de que veio principal de uma arte
de nos aproximarmos de alguns temos uma história da arte única, legitimamente brasileira (o que
exemplos dessa nova arte negra como um grande rio que flui, com seria isso?) que em sua formação
brasileira, que frequentemos a seus afluentes secundários o recebe “influências” do “negro”.
história de sua história, ou seja: alimentando, um deles sendo a Araújo também elogia em sua
como os construtores de “contribuição” da mão afro- apresentação a contribuição do
narrativas da história da arte brasileira. Temos aqui o poderoso médico psiquiatra e eugenista Nina
afro-brasileira se localizam nesse modelo historicista de uma Rodrigues: “Pioneiro dos estudos
embate político-epistemológico formação orgânica composta por antropológicos no Brasil, foi quem
entre a história da arte dita partes, sendo que caberia agora primeiro chamou a atenção para
“central”, eurocêntrica, e a reconhecer essa “contribuição” arte dos colonos africanos” (1988,
construção da especificidade da específica até agora pouco p. 10), referindo-se ao ensaio de
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