Page 18 - ARTE!Brasileiros #58
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ARTIGO DEMOCRACIA E REPARAÇÃO
imposição de um racismo afrodescendente ou afro- Europa”, na expressão já clássica
descarado e oficial, com a política brasileira. Considero esses três de Dipesh Chakrabarty (2007).
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de destruição das florestas e de conceitos legítimos e eles são Elas, desse modo, não puderam
suas populações originárias, com utilizados pelos historiadores da ou podem aceitar mais a ideia de
o desmonte do sistema arte muitas vezes de modo quase uma “universalidade da arte”, tal
educacional que, finalmente, intercambiável. Mas esse debate como fora formulada por um
neste século havia se aberto às nominalista possui um aspecto platonismo na Antiguidade (com a
populações negras, o governo que não podemos perder de vista. sua doutrina dos Eide, os ideais
atual do Brasil impõe uma revisão Existiu durante muito tempo ao transcendentes) e reformulada por
da história brasileira e, longo do século 20 e até bem Kant na modernidade (com a sua
especificamente no nosso caso, recentemente, como veremos, ideia de arte como prazer “sem
uma revisão da história da arte uma tendência a tratar de modo interesse”, desprovido de
afrodescendente. Afinal, uma das indiferenciado artistas envolvimento e volição). Por mais
pedras de toque da campanha e afrodescendentes e artistas não que Kant tenha sempre enfatizado
do atual governo é a edulcoração afrodescendentes como parte de que o universal na arte é sempre
da história colonial e do período uma “arte afro-brasileira”. Apenas subjetivo (Crítica do juízo §8), ele
da ditadura de 1964-1985. a partir do final do século passado submete a sua estética a uma
Em nenhum outro país da que esse procedimento começou epistemologia de cunho iluminista
América Latina ocorreu que a ser questionado. e eurocêntrico bem como a um
políticos nostálgicos da Nesse momento, que estará no padrão de beleza clássico. [3]
escravidão e da tortura centro deste artigo, surge uma Essa relação umbilical entre a
conseguissem galgar os degraus nova arte “do corpo”, com forte doutrina do universalismo nas
mais altos da hierarquia estatal teor testemunhal (Seligmann- artes e o projeto colonial é
por meio do voto. O que ocorre Silva 2016), que tornou impossível fundamental e muitas vezes foi
atualmente no Brasil é uma a separação entre os artistas, a deixada de lado pelos teóricos e
espécie de campo de provas para construção de sua subjetividade e historiadores da arte, isso mesmo
uma política fascista radical que de suas obras. Esses artistas com relação à arte afro, o que é
pretende devolver o país à era pré- atuam sobre o que denomino inadmissível. Para Kant, o artista é
República. Nunca o culto dos “subjeto”, o sujeito que ao invés de um meio de construção do belo
bandeirantes foi tão longe junto tentar idealisticamente (ou do sublime), mas a sua
com o desprezo e a violência “representar” um mundo exterior, subjetividade é na verdade
policial e dos políticos contra dá forma ao mundo a partir de sua apagada assim como todo e
populações negras e indígenas. A subjetividade constituída no qualquer contexto político o é:
pobreza, junto com esses grupos contexto de conflitos de classe e “Todo interesse vicia o juízo de
étnicos, é criminalizada e um de raça. Não podemos esquecer gosto e tira-lhe a imparcialidade”
genocídio negro é produzido a que essa “virada subjetiva” (Crítica do juízo, §13; 1959 p. 62).
cada dia nas cidades e no campo. também foi uma virada étnica e, Com Kant estabeleceu-se o
É nesse contexto que percebemos como teóricos da arte como Hal discurso moderno da
a história do Brasil agora. A Foster o detectaram já nos anos universalidade da arte que é
história da arte negra deve ser 1990, etnológica (Foster 1996). indissociável de sua, apenas
revista dentro dessa macro Nesse novo contexto das artes aparente, “apoliticidade”. Digo
história, como parte de um longo tornou-se necessária a relação apenas aparente, porque por
embate colonial que não se entre a produção artística e a detrás da universalidade existe
fechou, muito pelo contrário. identidade étnica racial, uma poderosa política de
sobretudo quando se tratava de apagamento do “outro” e das
arte negra, afroDesCenDente um artista com origem afro. Pois diferenças. Admite-se como arte
ou afro-brasileira e o as identidades afro se apenas a “grande arte europeia”,
Dispositivo estÉtiCo estabelecem dentro e em da Grécia à modernidade.
É bom começar com a questão combate à episteme e ao sistema O classicismo, que está na base
dos conceitos de “arte negra”, colonial, “provincializando a do nascimento da história da arte,
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