Page 19 - ARTE!Brasileiros #58
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Cena de (Outros) Fundamentos, de Aline Motta
com Winckelmann, e também século 20 e, mais recentemente, conquista dessa continuidade.
sustenta a teoria estética da arte toda uma série de autores pós- Trata-se da superação de um
de Kant, impõe-se como uma coloniais desenvolveram em seus apagamento imposto por
poderosa máquina ontotipológica trabalhos, como Achille Mbembe poderosas políticas de
(Lacoue-Labarthe & Nancy, 1991). (2017), Walter Mignolo (2011), Grada esquecimento que, no Brasil,
Esse modelo clássico gera o Kilomba (2019) ou Bell Hooks (2014). procuram de modo ambíguo,
“próprio” eliminando o “outro” que Podemos dizer que a luta que glamourizar nossa história na
é produzido nesse mesmo gesto se dá no campo das artes mesma medida em que negam
de aniquilação. Estamos diante de afrodescendentes no Brasil é a qualquer continuidade entre a
um dispositivo, o dispositivo luta pelo reconhecimento do violência do sistema escravocrata
estético, talvez o mais violento que elemento violento, ideológico, de e as violências biopolíticas e
a modernidade criou, pois é a partir apagamento dos negros e de uma raciais de hoje.
dele que se produz a linha divisória miríade de culturas, no bojo dessa A história da arte negra é a
entre os dignos de direitos e de ideologia estética “universal” e história da construção de pontes
compaixão e aqueles que são a universalizante, antes de mais e de veios de comunicação com o
“carne” da máquina colonial nada branca, eurocêntrica e passado (um passado traumático
(Seligmann-Silva, 2019). O racista. Portanto, quando se fala que não passa, que está em
dispositivo estético é um aliado do aqui em “arte negra”, suspenso), é a história de ruptura
dispositivo colonial, ambos afrodescendente ou afro- da camada de concreto com a
produzem e aniquilam os seus brasileira, refiro-me à arte qual a ideologia colonial branca
“outros”. O “próprio” (europeu) para produzida por artistas que se procurou enterrar a história da
violência de classe e racial nesse
existir, necessita de seu não eu, o
entendem como parte de uma
FOTO: CORTESIA DA ARTISTA “outro”, seja a África ou o Oriente, continuidade daquelas país, bem como a história de lutas
e resistências. Basta ver nossos
populações submetidas à história
como autores como Frantz Fanon
cemitérios negros, literalmente
da violência e de sua resistência a
(1952), Abdias Nascimento ([1976]
sob o concreto de nossas cidades,
ela. Mas, vale insistir: trata-se,
2016), Edward Said (1978), e Stuart
seja no Valongo, no Rio de Janeiro,
para esses artistas, de uma
Hall (2003) o constataram no
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