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ENTREVISTA ARACY AMARAL
acompanhar a escrita através do original, imagine enigma, uma pessoa ter uma formação na sua área
agora. Mas você pode dizer: por isso mesmo eles têm sem conhecer os que o precederam.
um bom treino para tudo que nós estamos passando.
Falando em formação, você poderia nos contar um
De certa forma a gente sempre está em minoria, pouco da sua. Na sua família há uma veia artística
não? Esse esforço pela democratização da arte, muito forte, não?
por tornar a arte acessível – uma marca de sua Minha formação foi eclética, confusa, caótica (risos).
trajetória – não acaba. Mas acho que se houve influência artística familiar,
Essa é uma luta insana, mas é uma luta que prosse- veio tudo pelo lado da minha mãe, Abreu. Do nosso
gue. É uma batalha permanente. Agora os museus lado lusitano. Como meu pai era primo distante de
tentam temperar, fazem coisas mais recreativas. Ir Tarsila, todo mundo pensa que veio por aí, mas do
ao museu se tornou um passeio, você não pode levar lado da Tarsila não há absolutamente nenhum outro
muito a sério, porque senão ninguém vai. Há que se artista. Já minha mãe, minhas tias pintavam. Uma
fazer exposições que distraiam. É complicado isso, delas, que morreu aos 27 anos, era desenhista gráfica.
ter que enganar o público. Não é como na Europa
onde é possível fazer, sei lá, uma retrospectiva de E foi nesse ambiente doméstico que o gosto foi
um grande artista como Holbein ou Delacroix, que as se formando?
pessoas vão visitar porque muitos deles já estuda- Não é que minha mãe fazia a gente se interessar.
ram esses autores no curso ginasial, no secundário. Mas do ponto de vista de influência, a gente sabia
Aqui não existe isso. Se nós temos dificuldade de que minha mãe gostava dessas coisas, que minhas
alfabetizar, imagine se pensarmos do ponto de vista tias também gostavam. Havia um precedente fami-
da alfabetização do conhecimento, da leitura dos liar aí, mesmo que não fosse percebido. Só hoje
períodos da arte. A situação é muito mais grave e percebo isso, olhando para trás. E creio que tanto
não devemos pensar apenas do ponto de vista das eu como minhas irmãs e meu irmão pertencemos a
grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro. uma geração que se formou numa época bastante
Temos que pensar em termos do interior de Goiás, tumultuada e alvissareira, do ponto de vista de curio-
do interior do Ceará, do Pará. Imagine, é um deserto sidade intelectual aqui no Brasil e em São Paulo em
absoluto. Só escapa desse deserto aquele que tiver particular. Minha adolescência foi toda durante a
a possibilidade de ganhar uma bolsa e estudar fora. Segunda Guerra Mundial, eu era chamada na minha
Não que aqui não haja bons professores, mas é casa de repórter Esso porque eu tinha verdadeira
muito pouca gente que segue, é muito pouca gente loucura para ouvir o que estava acontecendo. Eu
interessada nesse tipo de formação. É preciso ali- despencava escada abaixo para ouvir o repórter
mentar a formação do artista, que ele saiba o que
aconteceu no começo do século, o que aconteceu
no século xix, que tenha ideia do que ocorreu no Na 2a Bienal de São Paulo, conversando
fim do século xviii. É uma raridade o artista que com o critico uruguaio Nelson di Maggio
pode se expressar em relação ao que aconteceu
no passado. Acontece o mesmo com os críticos
de arte. Em 2011 participei de um grupo que fez a
curadoria da exposição do Mercosul e notei que os
críticos que tinham por volta de 40, 45, até 50 anos
se interessavam apenas por artistas que surgiram
a partir da década de 1990 pra cá. O que aconteceu
antes não conheciam e não tinham nenhum inte-
resse em conhecer. Interessava do conceitual para
cá. Há uma delimitação muito grande do ponto de
vista geracional de estar aberto ou não para todas
as épocas. Eu acho que é impossível querer ser um
grande escritor sem ter lido os autores do começo
do século xx, do fim do século xix. Para mim é um
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