Page 49 - ARTE!Brasileiros #53
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iam dizer: você não é arquiteta. Uma não arqui- Talvez também a arte aqui não fosse uma carreira
teta escrevendo sobre arquitetura! A prova disso tão valorizada pelos homens?
é que depois, quando me cansei do problema do Se o Milton da Costa era um excelente artista até um
concretismo e decidi fazer um trabalho sobre a certo ponto da vida dele, a Maria Leontina foi grande
preocupação social na arte brasileira, outra coisa durante todo o decorrer de sua carreira. E no entanto
que começou e me apaixonar, um amigo arquiteto ela mantinha também esse espaço discreto de ser a
me perguntou: “Seu capítulo sobre arquitetura você mulher de um artista que ela respeitava. Tanto que
não vai publicar né?”. Ao que respondi: “Por que uma vez, nos anos 1970, um diretor do Guggenheim
não? Faz parte do livro, já está até com editora”. veio aqui e eu levei ele para conhecer vários artistas.
Gostaria muito que ele conhecesse o trabalho da
Você enfrentou muitas dificuldades? O Brasil Maria Leontina. Liguei para ela para perguntar se
parece ser um lugar em que, na arte, as mulhe- poderia marcar. Ela me disse: “Aracy, seja bem clara
res tiveram um pouco mais de espaço do que em comigo. Ele quer ver os meus trabalhos ou ele quer
outros lugares. A que você atribui isso? ver os trabalhos do Milton?” Eu falei: “Os seus”. Ela
É verdade, o Brasil tem muita artista mulher. Nos falou: “Me desculpe muito, mas prefiro então não
Estados Unidos, as mulheres se queixavam, na recebê-lo”. O caso é muito datado, mas é peculiar.
década de 1970, 1980, que não havia espaço para Veja bem, é o retrato de uma época.
elas, que eram perseguidas. É o caso até da mulher
do Pollock, a Lee Krasner, ou da Helen Frankenthaler, Aproveito essa história para falar desses movimen-
mulher do Motherwell. No Brasil ao contrário, nossas tos mais recentes de resgate da arte das mulheres
grandes artistas são muitas: Anita Malfatti, Tarsila, e dos negros também. Como você vê este movi-
Maria Martins, Maria Leontina, Lygia Clark, Mira mento, mais ligado a causas identitárias?
Schendel, Carmela Gross, Regina Silveira... Há uma Bem, o das mulheres está aberto aí porque os Esta-
infinidade de artistas mulheres que não podemos dos Unidos já o fazem há muito tempo e aqui no Brasil
negar, porque elas fazem parte da história da arte começou de uma forma até meio exasperada mais
do Brasil. Uma vez eu escrevi para uma revista em recentemente. Mas a arte dos negros acho uma coisa
Nova York que me pediu um texto sobre isso. Nas incrivelmente positiva, porque nós ficamos fechados para
décadas de 1950, 1960 e talvez até nos dias de hoje, a cultura negra, nós ignoramos a história da negritude.
as mulheres brasileiras talvez tenham tido mais Até hoje você sabe que é uma disciplina que deveria ser
espaço para pesquisa que as mulheres da França, ensinada em todas as escolas, mas não há nem pro-
dos eua, Alemanha, porque aqui sempre tiveram fessores especializados em África. Agora, nós estamos
auxiliares que davam uma mão na casa enquanto assistindo um outro tempo, não é? Na televisão vemos
em outros países a vida doméstica era muito mais muitos anúncios em que há casais miscigenados, apre-
dura. Esse é um dos lados. sentam o negro de uma forma inaudita.
E do ponto de vista artístico há uma grande potên-
Obras na mostra Das Mãos e do Barro, na Galeria Millan, sobre
arte popular indígena e latino-americana, com curadoria de Aracy cia, talvez a mais importante do momento, na arte
contemporânea, não?
Na verdade a inspiração afro sempre existiu, seja na
pintura, em particular na música. Qual a maior influên-
cia internacional na música do século xx? É a música
negra. Seja no tango, seja no samba, seja no ritmo
caribenho, no jazz na música norte-americana, onde
você quiser, o ritmo que se impôs é o ritmo negro, é
a música internacional que chega a Paris. Não só por
causa da Josephine Baker na década de 1920, mas
porque é o ritmo do século xx. Não há dúvida nenhuma.
Outro capítulo nessa mesma linha, digamos, de
lacunas que estão sendo escancaradas, é que o
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