Em sua sétima edição, o Seminário Internacional realizado pela arte!brasileiros marcou mais um capítulo de nossa luta pela cultura e educação. Com o título Cultura, Democracia e Reparação, temas urgentes nos cenários sociopolíticos brasileiro e mundial, o encontro de 2022 teve sua primeira edição presencial após dois anos, devido às restrições sanitárias da pandemia. Com a parceria do Sesc SP, o seminário contou, entre os dias 22 e 23 de setembro, na unidade da Vila Mariana, com um público cativo, recorrente em nossos eventos, formado, em sua maioria, por estudantes e acadêmicos, além de representantes das mais importantes instituições culturais de São Paulo, como Jochen Volz (diretor-geral da Pinacoteca), Cauê Alves (curador do Museu de Arte Moderna de São Paulo), entre outros.
Em sua fala de abertura, Danilo Santos de Miranda – filósofo, sociólogo e Diretor do Departamento Regional do Sesc SP – salientou as parcerias feitas com as instituições no campo da cultura e do interesse público, que possibilitam iniciativas e eventos como o VII Seminário Internacional. Em seguida, Patricia Rousseaux, diretora da revista e plataforma arte!brasileiros, ressaltou que “não estamos mais em condições de exercer apenas a contemplação: arte e cultura estão imbricadas em uma democracia.”
O tema da mesa do primeiro dia foi O Abismo e a Costura, uma referência ao poço sem fundo em que o Brasil parece ter caído nos últimos (quase) dez anos, desde quando ocorreram as chamadas Jornadas de Junho, em 2013. A vilanização da política, a tomada do poder por parte da extrema direita e o recrudescimento dos ataques ao meio ambiente e a minorias – negros, povos originários, a comunidade LGBTQ+ – marcaram os últimos quatro anos, tudo agravado pela pandemia.
Ao mesmo tempo, partiram, justamente desses alvos, algumas iniciativas que têm por princípio a solidariedade, a empatia e o respeito, que vêm costurando formas de resistência, criando novas práticas culturais, novas utopias para o presente. Para discutir essas cisões e as potenciais suturas, foram convidados o professor e psicanalista Christian Dunker e a pesquisadora e curadora Sandra Benites, membro da comissão artística do Museu das Culturas Indígenas. A introdução da mesa foi feita por Paula Macedo Weiss, doutora em Direito pela Universidade de Tübingen e Presidente da Fundação do Museu de Artes Aplicadas de Frankfurt, na Alemanha. Weiss leu trechos de seu livro Democracia em Movimento.
No segundo dia, a mesa teve como tema A Farsa e a Comunidade. Seu objetivo foi repensar a primazia do indivíduo sobre a coletividade, um movimento exacerbado pelo neoliberalismo, e apontar que ações de resistência vêm sendo elaboradas, dentro e fora do Brasil, como contraponto. Para isso, reuniu importantes figuras de hoje a fim de aprofundar a reflexão. Para falar de suas experiências, estiveram presentes o artista, curador e membro da comissão de arte do MAM SP, Claudinei Roberto da Silva; o artista indonésio Farid Rakun, membro do coletivo ruangrupa, responsável pela concepção e execução da documenta quinze, e a artista e educadora Graziela Kunsch, brasileira convidada a participar da mostra ocorrida até setembro em Kassel, na Alemanha. A abertura ficou a cargo da professora Ligia Fonseca Ferreira, que apresentou um case sobre a representação e a visualidade do corpo negro na História da Arte, a partir do livro Uma Africana no Louvre, de Anne Lafont, que Ferreira acabou de traduzir para o português.
Os encontros tiveram tradução simultânea e foram acessíveis em Libras. O Seminário será disponibilizado online nas plataformas digitais da arte!brasileiros e do Sesc SP. Leia, nas próximas páginas, a cobertura do VII Seminário Internacional.
Democracia em movimento
Nascida em 1969, no auge da ditadura civil-militar, filha de um político da oposição, Paula Macedo Weiss pôde vivenciar muito de perto o processo de redemocratização e de retomada da democracia plena no Brasil com o advento da Constituição de 1988. Hoje, defende: “A democracia não é apenas um regime político, mas sim uma forma de vida.”
Foi com essa fala que Weiss deu o tom à abertura do VII Seminário Internacional: Cultura, Democracia e Reparação, promovido pela arte!brasileiros e pelo Sesc São Paulo nos dias 22 e 23 de setembro. Doutora em direito pela Universidade de Tübingen, presidente da Fundação do Museu de Artes Aplicadas de Frankfurt e membro do Conselho Consultivo Internacional da Bienal de São Paulo, Weiss vem se engajando em projetos em prol da democracia por diferentes formatos, por meio da literatura, de projetos culturais e, mais recentemente, como cofundadora do Netzwerk Paulskirche, um grupo da sociedade civil alemã que visa incentivar a participação política e criar práticas e experiências democráticas positivas no cotidiano.
Convidada para o evento, fez a leitura de um ensaio de seu livro Democracia em Movimento, lançado pela Folhas de Relva Edições em 2022. A publicação reúne textos curtos, que misturam crônicas literárias e ensaios jornalísticos, nos quais Weiss parte de suas experiências pessoais para comentar e refletir sobre aspectos da vida contemporânea. O ensaio As Regras do Jogo não é diferente: a escritora se debruça sobre sua própria experiência de compreender o Estado Democrático de Direito durante sua passagem pela faculdade, poucos anos após o fim da ditadura, e destaca: “Uma sociedade não pode viver em paz se cada grupo jogar só por seus interesses individuais, deixando os demais participantes abandonados”. Transcrevemos aqui o ensaio na íntegra:
Sabe aquela pessoa que cruza seu caminho e se torna determinante para você ver o mundo de outra maneira? Essa experiência tem um poder exponencial se você ainda está numa fase da vida na qual, como Paulo Leminski precisamente descreve, “o sabor da carne / ainda não foi estragado / pela salmoura do dia a dia”.
O meu marco divisor foi um professor de Teoria Geral do Direito. Ele acabava de voltar de um pós-doutorado em Direito Constitucional da Alemanha. Idealista, tinha a ambição de formar uma nova geração de juristas holísticos, interessados no bem comum, num momento significativo na sociedade brasileira: o da retomada da democracia através de nossa nova Constituição cidadã, detentora de todos os direitos fundamentais e necessários para a construção de um Estado e uma sociedade justos e igualitários; uma frátria, na voz de Caetano Veloso. Esse professor conseguiu flamejar a imaginação do nosso grupo e nos cativar para a beleza e a complexidade da estrutura e do funcionamento do Estado ocidental moderno: o Estado Democrático de Direito.
Ao destrinchar o conceito de Estado Democrático de Direito, meu caro professor entregava-nos esse bem maior, a recém-adquirida democracia, como um neonato, nas nossas mãos. A Terra Brasilis encontrava-se ainda na sua mais tenra infância democrática; essa práxis política era ainda inexperiente e passível de traumas e desequilíbrios, porém robusta constitucionalmente, e vinha desde o seu nascimento mostrando sua capacidade de desenvolvimento e aprendizado. Entender esse recém-nascido com toda sua complexidade era conditio sino qua non para a superação dos traumas sociais e falácias impostos por 21 anos de ditadura e a oportunidade real e legal de um futuro digno, plural e promissor. A nós cidadãos cabiam a obrigação e o direito de nos imiscuir nessa árdua tarefa de estancar as inúmeras feridas abertas que ainda latejavam na nossa sociedade brasileira. Com a retomada da democracia resgatamos também a nossa cidadania plena e com ela a premissa de que todos nós participávamos do mesmo jogo democrático.
Havia aí, porém, alguns senões. Considerando que somos todos iguais perante a lei, temos nós, cidadãos, de fato os mesmos direitos, se declinarmos estes em igualdade de chances e participação? Existem outros mecanismos que influenciam as regras desse jogo democrático? José Saramago considerava que a “verdadeira democracia” não existe, porque os governos responderiam aos interesses do poder econômico. O filósofo Ortega y Gasset, apesar de conservador, tinha uma visão dinâmica do indivíduo. A sua célebre frase “o homem é o homem e sua circunstância” nos revela que não é possível considerar o ser humano como sujeito ativo, sem levar em conta simultaneamente tudo que o circunda, a começar pelo próprio corpo e o contexto histórico, político e social em que se insere. Aquele que nunca teve a oportunidade de participar ou aquele que desistiu ou foi excluído do jogo por questões adversas à sua vontade terão as mesmas chances e cartas na mão que aquele que foi sempre privilegiado por sua classe social, sua etnia, seu fenótipo, sua crença? Diante dessas contingências, será que jogamos todos o mesmo jogo com as mesmas regras?
Lembrei-me do cultuado e complexo filme de Jean Renoir, A Regra do Jogo. O filme é um jogo coletivo, com várias narrativas e claras regras. Percebe-se que a obra se relaciona com a ideia de Corte/Estado, traz uma série de interações humanas, além de pincelar indagações sobre a democracia e o jogo político no prelúdio da Segunda Guerra Mundial. Assim como o ser humano, a sociedade não é algo estático e insuscetível de mudanças. Diante dessas transformações estruturais do mundo pós-moderno, a arte é um importante meio de se entender casos multifacetados, nos quais é preciso fazer uma análise mais ampla e crítica para que haja soluções mais justas e democráticas no plano político.
A política tem que modelar e balancear permanentemente distúrbios de afetividade – fruto da disputa de concepções de mundo e de existência social – nas sociedades contemporâneas. O reconhecimento virou moeda de câmbio e a rejeição, um tema de extrema relevância nesse jogo político. A melhora de um determinado grupo não pode significar a desvalorização material e cultural do próximo. As perdas econômicas, o medo de declínio, a sensação de não ter lugar e nenhum valor na sociedade são pontos nevrálgicos nesse tabuleiro. Temas como esperança, confiança, medo, liberdade, igualdade, justiça, segurança determinam a partida.
Uma sociedade não pode viver em paz se cada grupo jogar só por seus interesses individuais, deixando os demais participantes abandonados nos seus anseios e impotências, pois isso cria um dilema político estrutural. O característico e promissor do jogo político é que este nunca termina e as regras podem, dentro do princípio da legalidade, ser sempre adaptadas aos novos desenvolvimentos sociais, às diversas narrativas que estão sendo construídas ao mesmo tempo agora. E se o jogo não fosse competitivo, mas cumulativo? Venceríamos se compreendêssemos que somos um, que somos todos. Como diria Vicente Mateus, o lendário presidente do Corinthians, “o jogo só acaba quando termina”.
Em uma democracia – em movimento – nem sempre ganhamos, mas quando perdemos, temos na próxima eleição uma nova possibilidade de lutar por nossas convicções e vencer. Esse é o maravilhoso e sóbrio jogo da democracia. Essa é a minha deixa: temos a chance real de determinarmos uma nova narrativa para o nosso país através do exercício do direito de sufrágio. Portanto, cidadãos brasileiros, avante!
E, para o caminho, uma frase do patrono da educação brasileira, Paulo Freire, odiado pela extrema-direita no poder: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho – os homens se libertam em comunhão”.
O abismo e a costura
A fala de Paulo Freire reverberou na apresentação de Sandra Benites. A curadora, educadora e doutoranda em antropologia social pelo Museu Nacional da UFRJ trouxe à mesa O Abismo e a Costura mais do que sua experiência individual. Como mulher indígena guarani nhandewa, partilhou sua caminhada coletiva: “O que carrego com maior força é a minha coletividade, onde está a minha sabedoria ancestral. Se não escutasse essas memórias dos nossos antepassados, não estaria aqui hoje falando sobre a minha resistência”.
Trazer essas memórias passa também por um histórico de silenciamento iniciado na colonização brasileira e ainda hoje presente. Segundo o IBGE, existem atualmente no Brasil 305 etnias indígenas e cerca de 274 idiomas. Como coloca Benites, porém, esse número já foi maior. “Muitos perderam as suas palavras faladas, a língua materna. Hoje algumas estão sendo retomadas depois de vários processos que proibiram pessoas indígenas de falarem as suas próprias línguas, porque elas não eram tão importantes para aquele sistema que foi imposto.” A invisibilização vai além do caráter linguístico: “Hoje, nós [indígenas] somos chamados de invasores, e isso é muito revoltante. Meus parentes foram massacrados, literalmente, porque o governo atual fala que nós somos invasores. Parentes foram assassinados, lideranças foram assassinadas, crianças foram assassinadas. Isso não foi divulgado”, declara Benites.
A curadora se refere aos crimes ocorridos com as comunidades guaranis, mas a isso podemos somar o fato de que os assassinatos de pessoas indígenas aumentaram mais de 60% no primeiro ano da pandemia, segundo o relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Entre os dias 3 e 13 de setembro de 2022, logo antes do Seminário Internacional, ocorreram seis assassinatos entre os povos guajajara, guarani-kaiowá e pataxó. Em abril de 2022, o Presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami, Júnior Hekurari, denunciou que a Terra Indígena Aracaçá, em Roraima, foi totalmente incendiada, após a acusação de um estupro e assassinato de uma menina indígena de 12 anos por garimpeiros. Em 2021, 32 líderes indígenas e quatro servidores públicos que trabalham com as comunidades receberam ameaças de morte, segundo um relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
“Aí eu pergunto: onde está a democracia? Onde está a reparação?”, indaga Benites. Para a curadora, a fim de se discutir a temática central do seminário — cultura, democracia e reparação — é preciso compreender como lidamos com a “fronteira” que existe entre o eu e o outro. “Como a gente vai discutir democracia se não existe escuta?.” Em contraponto a esse cenário, ela traz a perspectiva guarani: “A política se desenvolve a partir do encontro, da escuta e do entendimento do outro. Nós temos as nossas desavenças, dificuldades e desafios, mas não tentamos apagar o outro por conta dessa diferença”.
Benites costura, então, essa falta de escuta ao cenário artístico, a partir de sua experiência pessoal. No dia 17 de maio, após o Masp decretar a suspensão de um dos núcleos da coletiva Histórias Brasileiras, por conta da declarada impossibilidade de exibir uma série de fotos sobre o Movimento Sem Terra (MST), Benites pediu demissão do museu, onde até então era curadora adjunta. O núcleo, intitulado Retomadas, foi curado por ela e Clarissa Diniz, e após uma série de manifestações de ambas e de outras figuras do mundo artístico, a decisão do Masp foi revogada e o núcleo, reintegrado (saiba mais sobre as discussões em torno da mostra e da postura do Masp).
“A partir do momento em que a gente ocupa um espaço com diferentes corpos, a gente soma, a gente amplia. Mas essas ampliações requerem muito escuta”, afirma Benites. “Quando decidi sair, acho que o meu silenciamento foi também minha resistência. Esse lugar onde não posso somar, não posso ficar.” Com esse exemplo, a curadora mergulha nas ideias de democracia e reparação, o que nos mostra que apenas o convite aos espaços e cargos, sem uma real escuta e abertura para a cultura do outro, não adianta, não leva a uma legítima ocupação por corpos diferentes, mas a uma tentativa de moldá-los ao sistema. “Muitas das vezes a gente não cabe nesses espaços.”
O psicanalista, autor e professor titular do Instituto de Psicologia da USP, Christian Dunker, deu seguimento a essa fala de Benites quando expressou que a democracia pode se estender em razão de incluir aqueles que estavam excluídos por ela em um determinado momento, mas também pode se contrair. Para ele, são nesses momentos em que percebemos que a democracia não é de graça, “episódios de ruptura que, de certa forma, representam todo o processo pela negação do processo” e nos quais surge a imagem do abismo. “A alegoria do abismo, ou do precipício, surge espontaneamente quando pensamos na história da democracia no Brasil, como um índice da desigualdade, da diferença, da intransponibilidade entre raças, classes, gêneros, fruto de uma colonização marcada por uma relação em abismo, em que a passagem de um lado para o outro se encontra interditada”, propõe Dunker.
Mas, afinal, do que falamos quando falamos de democracia? Em artigo publicado na edição 58 da arte!brasileiros, o psicanalista expande a questão: “Alguns dirão que a ideia de democracia originada na antiguidade realizou-se em instituições da modernidade. Outros argumentarão que esta é uma realização incompleta, pois a democracia permanece como ideal, ou seja, a ideia de uma comunidade por vir, capaz de ser-para-todos e a todos incluir. Outros ainda consideram que a aplicação da ideia de democracia a pessoas e ideias é uma falsificação do termo. Democracia nunca existiu, logo nunca existirá. É só um nome que damos a certos regimes políticos não autocráticos. O Brasil dos anos 2013-2020 tem sido descrito como um país em democracia regressiva, ou seja, marcado pela precarização do funcionamento institucional, retração do uso livre da palavra e violação de direitos humanos”. Nesse sentido, Dunker agrega à experiência da democracia uma constante tarefa de “recordar, repetir e elaborar”, mas não só, para ele é preciso ainda reparar.
“Então se a gente quer pensar um Brasil capaz de se reparar e reinventar, num sentido não só de perdoar, transpor, mas de compartilhar algo, é preciso olhar para o abismo e enxergar nele mais do que mera negatividade, mais do que mero hiato intransponível, mas enxergar nesse abismo um comum por vir, que pode nos aproximar”, declara o psicanalista. Para ele, “há artistas, como Anselm Kiefer, Alfredo Jaar, Nazareth Pacheco e Itamar Vieira Júnior que se dedicaram especificamente ao trabalho de luto e reparação, assim como há testemunhas éticas de desastres inomináveis, como Sojourner Truth, Primo Levi ou a compilação de sonhos feita por Charlotte Bernhardt, mas sua mensagem torna-se realmente um compromisso com o futuro quando nos implica uma espécie de trato entre viventes, morrentes e seres vindouros”.
A farsa e a comunidade
Foi explorando um desses esforços de reparação e compromisso com o futuro que Ligia Fonseca Ferreira, professora associada do Departamento de Letras da UNIFESP e doutora pela Universidade de Paris 3 – Sorbonne, iniciou as reflexões do segundo e último dia do VII Seminário Internacional arte!brasileiros, mais especificamente a exposição O Modelo Negro de Géricault a Matisse, que aconteceu no Museu d’Orsay em 2019. A mostra contou com obras feitas desde a abolição da escravatura na França (1794) até os dias modernos e, de acordo com o Museu d’Orsay, foi concebida para “fornecer uma perspectiva de longo prazo” e “centra-se sobretudo na questão dos modelos e no diálogo entre o artista que pinta, esculpe, grava ou fotografa e o modelo que posa. Explora notavelmente o modo como evoluiu a representação de sujeitos negros em grandes obras de Théodore Géricault, Charles Cordier, Jean-Baptiste Carpeaux, Edouard Manet, Paul Cézanne e Henri Matisse, bem como as fotografias de Nadar e Carjat”.
Com curadoria de Cécile Debray, Stéphane Guégan, Denise Murrell e Isolde Pludermacher, a exposição, “além da sua beleza proposta, pôs em destaque o valor e o papel determinante das pesquisas acerca da representação e da representatividade de negras e negros na arte ocidental”, afirma Ferreira. Entre tais pesquisas está a própria tese de doutorado de Denise Murrell, intitulada Seeing Laure: Race and Modernity From Manet’s Olympia to Matisse, Bearden and Beyond e defendida em 2013 na Universidade de Columbia, nos EUA.
Em um caso objetivo de reparação, a professora ressalta que alguns dos modelos foram identificados por meio das pesquisas e “muitos deles passaram de simples figurantes a indivíduos. Conseguiu-se, inclusive, resgatar a biografia de alguns deles. [Com isso] o Museu d’Orsay finalmente dá o nome às esquecidas e aos esquecidos pela História da Arte, e abre uma reflexão sobre conflitos sempre atuais de representação”. Não apenas isso, mas algumas obras também tiveram seus títulos revisitados para eliminar expressões pejorativas e racistas. A exemplo disso, Ferreira assinala o caso de Retrato de uma Mulher Negra (1800), de Marie-Guillemine Benoist, reformulado para Retrato de Madeleine. Ela também traz ao debate o trabalho de Anne Lafont, professora da École des hautes études en sciences sociales, em Paris, cujo livro Uma Africana no Louvre foi traduzido por Ferreira e será lançado pela editora Bazar do Tempo ainda este ano. Por fim, transportando as questões para o cenário nacional, a professora lembrou da obra Onde Estão os Negros?, criada pela Frente 3 de Fevereiro e exibida como uma intervenção na fachada do Masp na ocasião da mostra Histórias Afro-Atlânticas.
O professor, curador e artista visual Claudinei Roberto da Silva parece ecoar tal questionamento. Atual membro da comissão de arte do MAM São Paulo e cocurador do 37o Panorama da Arte Brasileira promovido pela instituição, o participante da mesa escreveu em artigo para a edição 53 de arte!brasileiros: “Num Brasil profundamente comprometido com seu passado escravagista e, portanto, com o racismo estrutural e as práticas que ele entroniza, do que falamos quando falamos de arte afro-brasileira?”. No mesmo texto, ele sugere que falemos “da necessidade de construção de um novo desenho de história, inclusive de arte, que na sua constituição se alicerce no antirracismo e imponha um debate sobre a branquitude”.
No VII Seminário Internacional, Silva reafirmou: “A ideia que nós temos de democracia não pode prescindir de cultura e não pode prescindir de reparação. Em especial em um país que como o nosso tem uma história de violência e de exclusão”, pontuou Silva. Nesse sentido, o curador extrapola a ideia discursiva para destacar a importância de ações práticas e de um direcionamento das políticas de nosso país: “A defesa da nossa incipiente democracia passa obrigatoriamente pela defesa das instituições de cultura, ensino e arte”. Na sequência, retomou Mário de Andrade: “A cultura é mais importante que o pão, porque sem a cultura sequer fazemos o pão”.
Na opinião do artista, porém, isso envolveria uma reformulação do próprio ambiente cultural e artístico. “É preciso criar um léxico qualquer e uma ética também para lidar com essa realidade incontornável, dessa emergência de uma produção intelectual e simbólica periférica”. Faz a proposta ao lembrar da constante criminalização dos movimentos populares: “É preciso admitir que o nosso capitalismo é um capitalismo de senzala, que ainda não qualifica os seus consumidores, que não quer que as populações periféricas frequentem os shoppings, é um capitalismo que interdita o rolezinho, que criminaliza os movimentos populares.”
Para o curador, no entanto, longe de favorecer a reparação, o momento sociopolítico atual traz preocupação, a exemplo das frequentes trocas no Ministério da Educação nos últimos quatro anos: “Vivemos um ataque tremendo”..
documenta quinze
Complementares, as participações de Farid Rakun e Graziela Kunsch iluminaram os fundamentos curatoriais da documenta quinze, encerrada em setembro. Artista, Rakun é também membro do ruangrupa, coletivo indonésio de Jakarta, que esteve à frente da conceituação e montagem da mostra. Artista, mãe e educadora, Kunsch representou o Brasil no projeto em Kassel, na Alemanha, com sua Creche Parental Pública.
No começo de sua fala, Rakun mostrou, no telão, um dos primeiros pontos de encontro do ruangrupa. Criado e atuante entre os anos de 2016 e 2017, esse espaço que ele denominou de ecossistema, em que ele e seus companheiros começaram a lidar com a noção de lumbung em si, de ser um coletivo composto de coletivos, onde um dos objetivos era o compartilhamento de recursos diversos.
“Quando fomos convidados para a documenta, decidimos que não queríamos que o projeto fosse extraído de Jakarta e levado a Kassel. Não queríamos fazer coisas que não estivessem de acordo com a nossa pauta. E a pauta europeia é ocidental. A documenta queria fazer parte da trajetória que temos seguido ao longo de quase 20 anos, nós então devolvemos o convite à documenta, para mostrar, lá, o que temos feito na Indonésia, que é, indiscutivelmente, o produto de um Estado falido”, disse o curador.
Rakun afirmou que seu país não conseguiu fornecer infraestruturas para as artes e a cultura, ou ao menos o tipo de arte e cultura em que eles de fato estão interessados. Argumentou que não são um grupo alternativo, porque sequer existe algo tido como mainstream na Indonésia, algo para o grande público.
“O que estamos fazendo na verdade é construir, antes e acima de tudo, infraestruturas. E a partir delas tentar entender se o que criamos coletivamente pode originar não apenas uma soma de partes, mas algo que de fato tenha resultados artísticos e estéticos”, afirmou.
O curador também salientou que o trabalho feito na documenta quinze não partia de um tema — lumbung, lembrou ele, significa literalmente celeiro de arroz, em sua língua —, mas de um conjunto de práticas em aberto, ilimitadas. “Não procuramos artistas que ilustrassem um conceito. Era muito mais algo ligado a uma maneira de fazer coisas”, explicou.
Em seguida, Rakun disse que a curadoria da documenta quinze tentou não seguir a lógica de uma direção de arte clássica, numa posição de jogo de poder, optando por delegar decisões às pessoas. E antes mesmo do início da mostra, o ruangrupa buscou agrupar artistas, fazer com que antes de sua abertura eles se conhecessem e construíssem afinidades, adquirissem confiança e, essa era a esperança, pudessem participar de modo a fazer projetos colaborativos também.
O curador elencou alguns dos pontos altos da edição de 2022 da documenta, entre eles a ausência de competitividade entre os participantes — Graziela, afirmou ele em sua fala, poderia ser um exemplo de alguém que, apesar de tomada por certa “febre lumbung”, devido ao entusiasmo com seu projeto, jamais buscou holofotes. Outro fruto da documenta quinze é a lumbung gallery, um dos muitos desdobramentos de sua experiência que devem vir a seguir. Ele lembrou que cerca de 95% dos colaboradores — algo em torno de 1500 nomes — que convidou não são representados por galerias.
“Estamos tentando pensar numa forma de galeria, por falta de palavra melhor, mais conectada com os nossos valores. A precificação, por exemplo, é algo em que temos pensado muito. Como adquirir como colecionador, como colecionar coletivamente, como colecionar trabalhos que não sejam concebidos como objetos”, explica. “Não se trata apenas de comprar, mas pensar contratos que incluam um compromisso político ou ideológico, do comprador em relação ao artista.”
Um dos projetos mais comentados da documenta quinze, uma estrutura comunitária dinâmica que traduziu bem a proposta de lumbung do ruangrupa, foi a Creche Parental Pública, da mãe, educadora e artista brasileira Graziela Kunsch, que encerrou o VII Seminário Internacional. Em sua apresentação, Kunsch recordou como nasceu seu projeto. Numa carta endereçada ao ruangrupa, ele falava sobre o “Chão da Manu”, ou o projeto de uma creche parental, que então seria tão somente um pedaço de chão (ou um enorme tapete de pano), com materiais abertos de brincar sobre ele.”
“Esse chão hoje existe e foi montado algumas vezes no Goetheanlage, meu parque preferido na cidade. Mas o projeto original cresceu — para ocupar uma sala do Fridericianum — e esteve, desde o início, fortemente enraizado na cidade de Kassel. A partir da minha pesquisa local, conheci Elke Avenarius, que se tornou uma grande parceira de trabalho. Juntas, desenhamos o espaço que ocupa aproximadamente 200 metros quadrados, no térreo do museu”, contou Kunsch, em leitura de sua carta.
Segundo Kunsch, o espaço por ela concebido para a documenta quinze era dividido em salas de ver e ler e uma creche parental, com entrada gratuita pelos fundos do museu. A área da creche possuía espaços de cuidado — como trocadores de fralda, uma cozinha, poltronas de amamentação e uma sala de dormir, onde os adultos cuidam dos bebês. E a creche possuía espaços de brincar, onde os bebês eram capazes, como diria a pediatra húngara Emmi Pikler (1902-1984), de cuidar de si mesmos. Adultos estavam ali, presentes, explica a artista, mas não precisavam ensinar as crianças como brincar ou como movimentar seus corpos.
Após o término da documenta quinze, explicou Kunsch, seu desejo era remontar a creche parental em São Paulo, enviando móveis e materiais de brincar por contêiner. “Mas muitas famílias começaram a me procurar, defendendo a permanência do projeto em Kassel. Perguntaram-me se havia algo que elas poderiam fazer, para o projeto continuar na cidade. Eu me limitei a responder que elas poderiam se auto-organizar. Bem, elas se auto-organizaram”, contou a artista, no texto que leu durante sua apresentação.
Segundo Kunsch, diversas famílias enviaram cartas para políticos locais, e a demanda que ela recebeu do grupo foi listar tudo o que comporia o trabalho, no caso de sua compra pela prefeitura de Kassel, por meio da lumbung gallery.
“Estou preparando um pequeno dossiê sobre o trabalho, mas, em linhas gerais, a minha proposta, e da minha parceira Elke Avenarius, é que a prefeitura possa designar um novo espaço para a creche ser instalada, que assuma uma reforma básica do espaço (caso isso seja necessário para o espaço ser habitado — por exemplo, um banheiro e cuidados com elétrica e hidráulica), e nós duas cuidaremos de adequar o projeto à nova situação, usando parte do valor da venda para essa produção/construção”, prosseguiu a artista. “É claro que essas propostas levantam o maior desafio da continuidade do projeto, que é: quem cuida de tudo isso?”.
Para responder essa pergunta, continuou Kunsch, ela contou como gosta de trabalhar como artista: “No lugar de pensar e decidir tudo sozinha, sempre busco deixar a ideia inicial o mais aberta possível e envolver pessoas de fora do contexto da arte nessa construção. O próprio sentido de arte é construído coletivamente, ampliando os entendimentos do que é arte e a própria noção de arte”.
Para encerrar, Kunsch afirmou que a continuidade da proposta poderia implicar em uma mudança no título em alemão: “No lugar de Eltern und Kleinkinder Krippe [creche de pais e bebês], passar a chamá-la de Öffentliche Elterliche Krippe [Creche Parental Pública], marcando a transformação do projeto artístico em política pública que, como semente — para usar o vocabulário lumbung —, ou como as árvores de Beuys, poderá se espalhar e abrir novas paisagens. Tanto para a vida, como para a arte”, concluiu.