Sidney Amaral, detalhe de Sem Título 1 [série Teatro do Meu Fascínio]. Foto: Estúdio em obra

O fogo que consumiu o Museu Nacional do Rio, a Cinemateca de São Paulo, as queimadas na Amazônia e no Pantanal, e até mesmo o ataque incendiário à estátua do bandeirante Borba Gato, no início do ano, na capital paulista, inflamaram o imaginário da equipe de curadores do 37º Panorama da Arte Brasileira, que acontece até o dia 15 de janeiro de 2023. Desde março do ano passado, o grupo – formado por Claudinei Roberto da Silva, Vanessa Davidson, Cristiana Tejo e Cauê Alves – buscou conceituar e montar uma exposição que refletisse, poetica e esteticamente, a simbologia de resiliência e renascimento que envolve o elemento da natureza, para falar das questões mais candentes do País no momento: as pautas sociais e ambientais, a ancestralidade, a promoção de igualdade étnica, de gênero e classe.

Com o título Sob as Cinzas, Brasa, a mostra abriga criações de 26 artistas, em sua maioria comissionadas para esta edição – com todas as dificuldades que o trabalho remoto imposto pelas restrições sanitárias da pandemia ainda vêm impondo. Para exibir as instalações, fotografias, pinturas, os vídeos e as esculturas, o Panorama buscou ampliar seu espaço expositivo, incluindo no circuito o Jardim das Esculturas, que acolhe um trabalho de Jaime Lauriano; e, numa parceria que dá prosseguimento a experiências anteriores com equipamentos da vizinhança, como o MAC USP e a Bienal, entra em cena agora o Museu Afro Brasil, onde se encontram as criações de Davi de Jesus do Nascimento e Lídia Lisboa.

O conjunto de obras apresentadas, no entanto, não necessariamente traduzem de forma didática o título deste Panorama. A interlocução se propõe mais sutil. “Não há uma ligação mais evidente, não houve uma preocupação de que as obras ilustrassem seu nome”, afirma Cauê Alves. As criações se debruçam sobre símbolos nacionais, território, cartografia, ancestralidade, trazem referências ao Bicentenário da Independência, à Semana de 22 e retomam a discussão sobre a identidade nacional. Mas a escolha do título ecoa, de toda forma, pela mostra.

“Há uma ambiguidade das palavras que levamos ao título do Panorama, que por sua vez remetem a cores com um sentido político e histórico. As cinzas geralmente são associadas à terra arrasada. O próprio nome do País se refere à primeira commodity que explorou,  uma árvore, com uma madeira vermelha, como uma brasa. E a brasa arde, permanece como uma espécie de resistência da matéria, ainda que represente destruição, seja de um patrimônio ou nas queimadas de nossas florestas”, pondera Cauê.

“Uma obra como a da Gisele Beiguelman, que fica logo na entrada [uma reprodução do monumento de Borba Gato, cortado longitudinalmente ao meio e que serve como um banco] alude a este momento de nossas vidas em que estamos apagando incêndios, de modo figurado, mas também incendiando ícones, como os bandeirantes. O fogo surge também como possibilidade de uma ressurreição. É dali que a Fênix renasce, que as cinzas podem recuperar o solo”, conclui o curador.

Primeiro negro a fazer parte da equipe curatorial de um Panorama, Claudinei Roberto da Silva ressalta que a seleção de artistas desta edição reflete o “policentrismo” da produção artística brasileira no momento, o que por sua vez reforça seu caráter de diversidade. O curador afirma que, desde o convite para integrar o grupo, feito em 2020, ficou evidente que havia uma vontade de se criar “um diálogo maior com setores da sociedade que talvez não tenham sido exatamente privilegiados pela história da própria instituição” até este momento. “E essa nossa articulação me parece inédita, faz emergir uma força política que, embora existisse, não se apresentava de maneira tão organizada”, argumenta.

Claudinei conta que alguns dos artistas selecionados não têm na política o cerne de sua investigação criativa. Como Luiz 83 ou André Ricardo. “Os trabalhos deles não trazem uma marca de discurso político. Mas a gente entende que essa vocação política surge na maneira como privilegiamos este grupo de artistas. O Luiz 83 é frequentemente associado a um artista que adere a um partido concreto. De fato, talvez ele possa ser percebido como herdeiro de uma tradição do concretismo brasileiro. Mas ele sai de um lugar do mundo em que essa informação não estava presente. Mas ele faz com que pensemos suas obras também a partir de outras referências, que ainda precisam ser prospectadas. Ele é um artista periférico, mas o que significa sê-lo, num cenário de policentrismo, em que esta oposição entre centro e periferia começa a ser esgarçada?”, questiona.

O curador acrescenta que se pode falar o mesmo da obra de André Ricardo. “Ele tem um percurso extraordinário, foi aluno do departamento de artes da USP e absorveu essa cultura. Mas quando ele deixa o departamento, passa por um processo de autorreconhecimento, um homem negro, de pele clara, que tem passabilidade maior, por conta disso, do que um retinto. E a partir daí ele vai ficar mais sensível às histórias ligadas à própria origem. E você começa a perceber no trabalho que certos signos da cultura popular surgem. E ele usa têmpera, tem erudição muito grande. Daí ser comum que pessoas o remetam à obra de Volpi. Mas isso não é totalmente justo, porque a pesquisa dele pode até abarcar Volpi, mas não é devedora. Ele é mais devedor da observação que ele faz da arquitetura popular, que em São Paulo se origina também da diáspora nordestina”, diz.

Em maio desse ano, quando foi feito o anúncio dos artistas selecionados para o Panorama, houve críticas ao grande número de artistas paulistas ou radicados em São Paulo (18 dos 26), formando um grupo que, de modo geral, representava mais uma produção artística sudestina do que propriamente dita brasileira. Para a curadora Cristiana Tejo, que é pernambucana, a seleção final e as obras daí resultantes são capazes de mostrar, por exemplo, as eventuais conexões que podem haver entre Caruaru (PE) e São Paulo.

“Meu olhar parte sempre de uma perspectiva do Nordeste. Mas não preciso necessariamente fazer uma exposição sobre a região, porque é uma mirada descentralizada. Como curadora, eu me volto para outras tradições artísticas que não apenas o concretismo paulista ou a Semana de Arte de 22, por exemplo. Embora eu tenha trabalhado muito, ao longo de minha trajetória, com a inserção do artista nordestino no cenário nacional”, pondera.

“Nosso Panorama, no entanto, foi feito durante uma pandemia, o que criou uma dificuldade de circulação pelo País e impactou nossa pesquisa. Além disso, enxergamos essa edição como complementar a várias exposições que têm acontecido nos últimos anos, na própria cidade de São Paulo. E outra questão é a renovada migração que tem havido do Nordeste para a capital paulista por conta do desmonte de políticas públicas para a cultura. Por exemplo, a Eneida Sanches é baiana, eu a conheci há dez anos lá, mas hoje ela mora aqui. Eu entendo a crítica, a demanda deve continuar. No entanto, neste momento, estamos olhando para outras questões, não apenas a regionalidade. Mas gênero, raça e classe social, por exemplo. Que respostas os artistas estão dando a elas? Que estratégias estamos criando, como sociedade, para lidar com estes ciclos repetitivos de destruição do Brasil?”, indaga.

Os curadores destacaram também o papel importante da expografia desta edição do Panorama, que ficou a cargo da arquiteta Anna Ferrari. O desejo deles era reforçar a integração entre os espaços expositivos e facilitar a visibilidade das obras. “A ideia, por um lado, era revelar a dimensão do MAM, e por outro, não criar anteparos entre os trabalhos expostos. O que me possibilitou chegar ao resultado desejado foi o fato de a maioria das obras serem volumétricas, de chão, soltas no espaço. Só não sabíamos de antemão como seriam ao fim, porque eram comissionadas em sua maioria”, conta.

“O maior desafio era conseguir definir uma expografia, um partido de ocupação do MAM inteiro, foi então um trabalho coletivo com os curadores e os artistas. Tentei deixar o máximo de espaço livre e usar a menor quantidade de painéis. Outra questão era o desejo latente de que o tema da exposição refletisse no meu trabalho, por isso decidimos pintar o teto de vermelho. Como uma arquiteta de formação na Escola Paulista, eu me senti lisonjeada de poder trabalhar num espaço histórico da arquitetura moderna da cidade”, conclui a arquiteta.

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