Mateus Moreira
Mateus Moreira, "Frenesi" (2022). Foto: Eduardo Ortega/Cortesia Fortes D'Aloia & Gabriel

A ideia de destruição, escombros, perdas e assombro atravessa as mais de 30 obras exibidas na exposição Tragédia!, em cartaz até 15 de outubro, no Galpão da Fortes D’Aloia & Gabriel, em São Paulo. Convidado no ano passado para conceber uma mostra que se referisse aos 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, Raphael Fonseca preferiu não fazer uma montagem diretamente conectada ao evento, buscava algo mais sutil e com apelo histórico, elemento caro às suas investigações curatoriais.

Em suas pesquisas sobre fatos ocorridos naquele ano, Fonseca encontrou a menção a um terremoto na cidade de Mogi Guaçu, interior de São Paulo, que aconteceu apenas duas semanas antes do célebre encontro modernista no Theatro Municipal paulistano. O abalo sísmico lhe serviu como “ponto de partida ficcional”, como ele diz, para estabelecer nexos entre a Semana de 1922, o bicentenário da Independência, comemorado em setembro, e as eleições brasileiras, com aquilo que há de trágico e de ruptura nesses três momentos.

“Fiquei conectando os pontos e pensando nessas narrativas. Já tinha em mente, de modo mais claro, que precisaria ter, no projeto, artistas que lidam, em certa medida, com um certo fantasma, uma noção de tragédia. Mas, não me interessava fazer uma exposição literal”, diz o curador. “Então, eu não queria apenas ter obras que ilustrassem a ideia de trágico, mas que a ecoassem, por meio dos materiais, das cores etc.”

Fonseca aponta que, ao fim, muitas das obras dos 13 artistas elencados para a exposição são feitas com “restos de coisas” e, “querendo ou não, elas têm algo de escombros”. A maior parte desses artistas apresenta trabalhos feitos especialmente para a mostra, à exceção de Ivens Machado (1942-2015) e Sonia Andrade, cujo vídeo Sem Título (1977) está em exibição. Segundo ele, a seleção foi um processo “muito orgânico” e, de imediato, alguns nomes lhe vieram à cabeça, como Gilson Plano e a Mayana Redin. Também a ideia de destruição e de restos surge ao se contemplar as obras.

“Muitos desses trabalhos usam materiais encontrados no lixo, em escombros, coisas baratas que você comprar ou mesmo pegar na rua. O Anderson Borba, por exemplo, usou madeiras que vieram do incêndio do Museu da Língua Portuguesa. E tem ainda a Mayana com as grades de ferro, as roldanas de Gabriela Mureb, o cobre e o tijolo na criação da Carla Chain, ou o couro e as pedras do Gilson”, exemplifica, ponderando: “Não é uma exposição de reciclagem, mas os materiais se ligam a certa noção de descarte. O que acaba contribuindo com o campo semântico do terremoto”.

Havia, no entanto, um desafio para Tragédia! na primeira sala do Galpão: exibir os trabalhos de modo que eles não passassem despercebidos diante da arquitetura grandiosa do lugar. Para tanto, Fonseca convidou Renato Pera para criar um papel de parede na primeira e maior sala, sobre o qual alguns dos trabalhos foram dispostos. A ideia, a propósito, vem de uma busca, por parte do curador, de fugir da costumeira disposição sequencial de obras.

“O resultado é um jogo bem cenográfico. Em certa medida, não parece nada do que fiz antes, e revela um interesse que vem crescendo em mim de fazer algo meio espetacular. De pensar a exposição como algo realmente próximo de um pensamento espacial, de um espetáculo, num cenário, e não de um cubo branco ou do interior de uma casa, em que você vai decorar, colocando objetinhos aqui e ali”, afirma.

 

Dois dos artistas selecionados para a exposição participam também da oitava edição do programa de residência artística Bolsa Pampulha, com curadoria de Fonseca e Amanda Carneiro (Masp), e promovido pelo Museu de Arte da Pampulha (MAP), em Belo Horizonte (MG): os mineiros Lucas Emanuel e Mateus Moreira. Ambos pintores, eles levaram trabalhos bem distintos ao espaço expositivo do Galpão, em Tragédia!.

“Lucas é um pintor que trabalha com vídeo também. Ele vai jogando com a relação entre os dois suportes em seus trabalhos. Ele tem uma pintura que lida muito com o corpo humano, mas sempre com uma estranheza. Um tom meio fúnebre, sombrio, misterioso. No vídeo ‘Compasso’, por exemplo, aparece um colchão, ao redor estão sapatos, e tem ainda uma vela, que vai se apagando. Parece meio uma sessão espírita, há a expectativa de que algo aconteça, mas é somente a vela ali, apagando-se”, comenta Fonseca.

Para o curador, Lucas se interessa por um tipo de imagem mais crua, ao passo que Mateus é um “virtuoso”. “Se a pintura do Lucas tem uma relação muito forte com o corpo, a do Mateus busca ter cenas. São imagens muito complexas, com várias coisas acontecendo ao mesmo tempo, num caráter teatral. E, muitas vezes, nesse caráter teatral, tem algo de trágico, violento. Há elementos monstruosos e fantásticos também”, diz.

Sem Título, o díptico apresentado na exposição Tragédia! por Lucas Emanuel, traz um “duelo de imagens, no contexto político das eleições, com as pessoas de costas uma para a outra”, segundo o artista. Em uma das pinturas, o céu aparece numa maior porção da superfície; noutra, é a terra que ocupa mais espaço na tela. Simbolicamente, diz ele, há uma referência a céu e inferno, trabalhada também num uso de tom mais azul, de um lado, e terroso, do outro.

Já no vídeo Compasso, o artista mostra sapatos que vinha coletando na rua ao longo do tempo, “como rastros de uma tragédia, objetos meio mórbidos, mas, ao mesmo tempo, objetos de fetiche”, diz. “A resposta ao argumento da mostra surge no sentido de um enclausuramento, num espaço que poderia ser um velório, mas também uma festa ou um ambiente íntimo. Há a ideia de um fato que parece ter acontecido ou que vai acontecer. No áudio, há também um vazamento de som, de pessoas falando, com uma certa estética de encarceramento. Mas há uma figura ausente, num jogo com a noção de uma perda.”

Já Mateus afirma que, diante do argumento proposto por Fonseca, ele logo associou Tragédia! à ideia de desordem, caos e violência. “Pensando nisso, todos esses conceitos se uniram na pintura em uma atmosfera densa, turva e claustrofóbica. Os vestígios desses acontecimentos, dessa tragédia, emaranhavam-se e se tornavam corpos nebulosos que só eram iluminados pelo fogo, que tanto traz esse estigma da devastação, mas também da renovação”, afirma o artista.

Mateus conta ainda que cada obra criada foi motivada pela “premissa da ruína” que, para ele, tornou-se a “característica cotidiana cada vez mais presente na civilização”. O artista considera que os trabalhos realizados para a exposição são um marco em sua trajetória. “Mas, talvez isso não seria possível se o tema não tivesse se encaixado tanto com os anseios que motivam minha produção. Ao investigar a memória e a imaginação, dentro do contexto atual da minha vida, tem sido quase impossível desvincular do trabalho os sintomas da vivência distópica do mundo contemporâneo”, argumenta.

Além de Machado e Sonia, Raphael Fonseca buscou, para a mostra, obras de jovens artistas contemporâneos, já com carreira consolidada, como Adriana Varejão. Desde o começo, o curador e Adriana tinham em mente fazer algo a partir das experiências dela com as texturas craqueladas. “Ela, então, teve ideia de propor um trabalho em torno do Zé Celso e do Teatro Oficina. Sabendo da relação com o terremoto e o fantasma da Semana de Arte Moderna, do argumento da mostra, Adriana achou interessante estabelecer um arco, uma ligação entre as duas coisas”, explica Fonseca.

Adriana aponta que o craquelado de sua obra, intitulada Homenagem a Zé Celso, “lembra um pouco as placas tectônicas, que são a origem dos abalos sísmicos”, numa alusão ao tal terremoto de 1922. “O trabalho mais ou menos comenta essa lógica, essa mecânica, essa questão da movimentação das placas. Ao mesmo tempo, quando o Raphael fala em tragédia, com um ponto de exclamação, tem um duplo sentido. Porque se refere à Semana de 22, que representaria toda a questão do modernismo, a tentativa de trazer para os trópicos as atualizações modernas, de vanguardas que estavam acontecendo na Europa”, comenta a artista.

Por outro lado, continua Adriana, a tragédia também evoca o teatro grego. Uma tragédia que Zé Celso usa, segundo ela, de uma maneira especial: “Fazendo uma paródia, ao mesmo tempo criando algo muito original. Então, eu pego esse discurso e me aproprio, vou para outro lado. Penso em São Paulo, em tragédia, por livre associação também pode-se pensar no Zé Celso e seu Oficina. O Zé Celso criou esse termo, o Sampã [que está escrito em seu quadro] para o espetáculo Macumba Antropófaga, evocando o mito grego de Pã, brincando com a questão de gênero da cidade. São vários caminhos ficcionais que respondem à provocação que Raphael trouxe”, conclui Adriana.

SERVIÇO

Tragédia!
Até 15 de outubro
Galpão da Fortes D’Aloia & Gabriel: Rua James Holland 71 – Barra Funda, São Paulo (SP)
Visitação: Terça a sexta-feira, das 10h às 19h; sábado, das 10h às 18h

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