Cena de "A Última Floresta". Foto: Pedro Márquez / Divulgação.
Cena de "A Última Floresta". Foto: Pedro Márquez / Divulgação.

O Festival É Tudo Verdade 2021 acabou no domingo, 18 de abril, com o filme A Última Floresta, de Luiz Bolognesi. Antes de ser selecionado como filme de encerramento do maior festival de documentários da América Latina, a obra já havia composto a mostra Panorama da Berlinale deste ano, sendo a única produção brasileira no prestigiado festival alemão. Foi lá também que o filme anterior de Bolognesi, Ex-Pajé, recebeu a Menção Especial do júri para documentário original na edição de 2018. Entre eles, no entanto, há uma grande diferença – são quase obras dísticas. No primeiro, a história parte de Perpera, um pajé destituído de suas forças como resultado da interferência da igreja evangélica em sua tribo. Os Paiter Suruí, dos quais Perpera é integrante, são habitantes da terra indígena Sete de Setembro, em Rondônia, e viveram isolados até 1969. Perpera tinha 20 anos quando seu povo fez o primeiro contato com os brancos. Até aquele momento, ele era o seu pajé. Com entrada dos brancos e a condenação do xamanismo, Perpera viu-se obrigado a abandonar suas práticas ancestrais, interrompeu suas rezas e parou de tocar as flautas sagradas; como resultado disso, ele relata a cólera dos espíritos da floresta.

Enquanto filmava Ex-Pajé, o diretor lia A Queda do Céu, livro escrito a partir das palavras do líder Yanomami Davi Kopenawa, contadas – ou melhor, narradas – ao etnólogo e escritor Bruce Albert, com quem nutre uma longa amizade de mais de 40 anos. Ainda no feitio do filme, Bolognesi sentiu a necessidade de fazer um documentário que mostrasse o contrário de Ex-Pajé, ou seja, retratar um grupo indígena onde o xamã está na plenitude dos seus poderes. Na figura de Kopenawa, o diretor encontrou a chave para este projeto, decidindo incluí-lo no processo criativo do documentário, não apenas como uma personagem. Logo no começo de A Última Floresta sente-se uma estranheza que se manifesta na inquietação para saber como o filme consegue chegar tão perto e de forma tão orgânica. Parte desse feito vem de Kopenawa. Logo na pré-produção, o xamã manifestou a Bolognesi que não queria fazer um filme sobre vítimas, ou um clichê romântico. “Somos um povo muito forte, muito bonito e temos muita saúde”, teria dito, segundo contou o diretor em uma conferência à AFP.

A inclusão do xamã na construção do documentário forçou a equipe a pensar como a linguagem cinematográfica e o modo de vida Yanomami poderiam se polinizar no filme. Nesse sentido, uma barreira era o fato dos Yanomami não distinguirem sonhos do que nós reconhecemos como real. “Para eles, e a maioria dos povos indígenas do Brasil, não há uma separação entre o que é mundo real e o que é sonho. A gente separa, o lugar das lendas é guardado numa caixa como se fosse algo falso. Para eles, o que acontece de noite, durante o sonho, é verdadeiro. O índio pode ter passado a noite voando como uma coruja ou ter acordado muito cansado por ter fugido de um jaguar”, relata Bolognesi a Márcia Bechara, da RFI. “Na verdade, muitas das coisas que acontecem de dia, eles só compreendem à noite”, diz. Na mesma entrevista, Bolognesi detalha: “Decidimos então filmar de um modo indígena, filmando também sonhos e tratando num nível de realidade onde não se separa o que é realidade, o que é sonho, o que é magia, o que é mito, o que é documentário clássico, o que é documentário encenado. Na verdade, é tudo uma grande mistura, o que traduz a maneira com que eles lidam com isso”.

Davi Kopenawa em cena de "A Última Floresta". Foto: Divulgação.
Davi Kopenawa em cena de “A Última Floresta”. Foto: Pedro Márquez / Divulgação.

Na árdua luta para proteger suas tradições, mesmo sendo gravados, os Yanomami ainda retém aspectos dela para si. Na cerimônia mostrada em A Última Floresta, por exemplo, pode-se intuir o que ocorre enquanto o xamã se comunica com os espíritos, mas nada é revelado, não há legendas, é um momento em que o espectador compreende a ocorrência do ritual e se contenta em presenciá-lo através do filme. Sobre esse episódio, a João Pedro Soares, do Deutsche Welle, Bolognesi conta: “Eles falam e cantam o tempo todo. Eu perguntei ao Davi e a outros xamãs: vocês podem contar o que está sendo falado e cantado para legendarmos? Eles responderam que não, e o filme não tem essa legenda”. Ele complementa que “percebemos a força daquilo, mas não temos capacidade e nem nos é permitido compreender o que está sendo dito”. O diretor explica ainda que pelo que lhe foi contado pelos Yanomami, nos rituais, o xamã se torna uma espécie de antena. “O espírito fala em primeira pessoa, através da boca dele, com os outros xamãs e com a comunidade.”

O diretor atribui a conquista de poder gravar o rito, em A Última Floresta, ao relacionamento de confiança criado com Kopenawa e a tribo, um processo longo, de quatro semanas, com descobertas, interações, conflitos e encantamentos. A sensibilidade da equipe toda, muito pequena, de seis pessoas, é ressaltada, assim como é a escuta de Pedro Márquez, cinegrafista que também trabalhou em Ex-Pajé e cujo papel neste filme foi central.

Cena de "A Última Floresta". Foto: Pedro Márquez / Divulgação.
Cena de “A Última Floresta”. Foto: Pedro Márquez / Divulgação.

“Estávamos encantados com a realidade Yanomami: uma mulher fazendo um cesto, uma criança tomando um banho, um caçador em ação, alguém fazendo uma mochila de folha de palmeira – tudo tinha muita poesia. Não podíamos ser crus e despoetizar essa narrativa. Tínhamos algumas dificuldades”, relata Bolognesi a Camila Gonzatto, em entrevista para o Goethe Institut. “Buscamos fazer uma cinematografia que respeitasse a beleza da pele deles, que aproveitasse as palhetas beges das cestas, o colorido das redes. Sempre com o cuidado de não forçar a mão. Buscamos uma fotografia que restabelecesse a poiesis do ser Yanomami”, conta sobre o trabalho de Márquez. Junto disso, era necessário encarar a história “sem também o falso purismo: tem chinelo Havaianas, short, celular, vários elementos ali, mas profundamente conectados com o epicentro semântico da sua cultura, a expressão estética da sua cultura. Está tudo muito vivo ali”.

O que ameaça suas tradições é a entrada do homem branco. Há urgência; nunca não houve. Mas agora há demasiada urgência à medida que enfrentam a invasão, em terras Yanomami, de cerca de 20 mil garimpeiros ilegais, acusados de destruir florestas e poluir os rios com mercúrio. Mesmo preservadas – em teoria -, o presidente Jair Bolsonaro defende sua exploração, ao mesmo tempo que questiona a extensão das reservas Yanomami. Em curto prazo, o metal pesado utilizado na mineração ilegal mata os peixes e os animais que bebem a água do rio e ainda pode contaminar os indígenas que se banham naquelas águas. A longo prazo, a falta de alimento e a aparente saída fácil pelo garimpo tenta os jovens a abandonar suas tradições e abandonar a tribo, algo que apavora Kopenawa.

“Omana escondeu o minério embaixo da terra para ninguém mexer. Os brancos reviram a terra para tirar petróleo, ouro… E libertam os espíritos maléficos. A fumaça da doença se espalha. As doenças e o veneno podem aumentar. Omama nos deu esta floresta para cuidar.”

 


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