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Bakun e a vida das coisas

Miguel Bakun, Caules, óleo sobre tela, 46 x 54 cm. FOTO: Rafael Dabul

Quem me apresentou a obra de Miguel Bakun foi Eliane Prolik. Em uma das inúmeras visitas que fiz a Curitiba no início dos anos 1990, a então jovem artista certo dia me ofereceu uma cerimônia especial de boas-vidas: após me buscar no aeroporto, me levou a uma exposição do artista numa das instituições da cidade (teria sido o Museu de Arte Contemporânea? Não me lembro mais ao certo). Diante de minha reação, na sequência me levou para visitar uma coleção particular em que outras obras do artista se destacavam.

Com esse encantamento perante as pinturas daquele Bakun, até então um completo desconhecido para mim, Eliane parecia confirmar o acerto de sua proposta: como era gratificante apresentar a um então jovem crítico de São Paulo a obra de um artista excepcional e praticamente desconhecido fora do Paraná, um filho de imigrantes ucranianos, nascido no interior do Estado em 1909 e que morrera tragicamente em 1963.

Mas só depois fiquei sabendo desses fatos. Meu encontro com Bakun, graças à sensibilidade de minha amiga, digamos, foi a frio. Sem biografia que sublinhasse traços românticos ou romantizados, fui levado direto à sua obra, que se revelou como uma verdade sobre a existência da pintura enquanto celebração da vida das coisas porque era – em cada um dos quadros por ele pintados –, uma celebração da própria pintura.

Daquele primeiro contato até hoje, Bakun ficou para mim como uma das principais referências sobre como determinados procedimentos nascidos durante o início da arte moderna internacional (impressionismo, pós-impressionismo etc.) podiam medrar em países periféricos como o Brasil, anos depois de seus respectivos nascimentos na Europa; como alguns artistas, anos depois, tinham a capacidade de torna-los de novo atuais e, de certa maneira, fundamentais para uma compreensão mais abrangente sobre cada um deles, sobre seus desvios e aprofundamentos. O encontro com a obra de Bakun, naquela manhã fria de Curitiba, me ajudou a entender que devia haver uma história dos reaparecimentos das vertentes modernas em localidades isoladas desse mundo de meu Deus, reaparições que desmentiam qualquer sentido de “ideia fora do lugar” ou do tempo. Foi como descobrir que o pós-impressionismo nas produções do paranaense ali reaparece porque, para se completar enquanto forma de enxergar o mundo, aquela vertente necessitava de Bakun.

(O primeiro resultado mais importante desse meu encontro com a obra de Miguel Bakun foi a inclusão de sua obra na mostra “Bienal Brasil Século XX (São Paulo, 1994) no segmento “Modernismo”, sob minha responsabilidade e de Annateresa Fabris).

Bakun se tornou Bakun porque, em certo período, teve um contato forte com outro artista brasileiro significativo como José Pancetti, mas Bakun se tornou ele mesmo porque também se impregnou da visualidade criada por Van Gogh escrutinado por meio de revistas e livros. Em certa medida (aliás, como Iberê Camargo em seus inícios), visualizar o artista holandês por meio de reproduções permitiu-lhe descobrir que a pintura não era apenas o assunto tratado, mas que ele (o assunto) só poderia existir pela construção da forma, que se dá pelo agenciamento da cor e do gesto sobre a matéria.

A obra que Bakun, retirando de si mesma a condição de mera repetidora de estilemas criados pelos mestres do passado moderno por meio da realização plena de pintura, no aqui e agora, tem o poder de propiciar ao espectador o prazer (intraduzível em palavras) de uma pintura que se manifesta em sua totalidade no próprio ato de visualiza-la.

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Estas lembranças e considerações surgiram a partir da visita à mostra “Miguel Bakun”, na Simões de Assim Galeria de Arte, em São Paulo, em cartaz até 14 de dezembro próximo. Uma exposição impecável que tomou como partido restringir a produção apresentada às obras que antecedem a última fase do artista, atitude perfeitamente compreensível dado, inclusive, às limitações do espaço. Porém, ao não apresentar exemplares da última fase do artista, a Galeria fica devendo ao público paulistano uma exposição em que contemple, justamente, os derradeiros anos de Bakun. Nesse período, me parece, sua visão animista (perceptível, de maneira sutil em algumas das obras apresentadas) ganhará uma força transgressora e desconcertante e que, sob determinados aspectos, consegue ir além de onde chegou a própria pintura Van Gogh.

Um autorretrato do artista Miguel Bakun. FOTO: Reprodução

Enquanto essa nova exposição não ocorre, sugiro ao leitor que assista ao documentário Autorretrato de Bakun (1984), de Sylvio Back, uma demonstração cabal do quanto um documentário sobre a obra de um determinado artista pode se transformar, ele mesmo, numa obra de arte. Back, em Autorretrato de Bakun, longe de assumir um tom historicista ou “crítico”, mergulha de cabeça na complexa subjetividade do artista, recriando-a enquanto arte. Assim, fica aqui a dica para este final de semana: Bakun e Back.

Pivô promove 8ª edição do Leilão Anual de Parede

Obra de Erika Verzutti no Leilão

No dia 23 de novembro, o Pivô promove o almoço beneficente anual que arrecada fundos para sua manutenção. Em atividade desde 2012 sob a direção artística de Fernanda Brenner, o Pivô é uma plataforma de intercâmbio e experimentação artística. Sua sede, um espaço de 3500 m² no icônico Edifício Copan, no centro de São Paulo, atua como uma fomentador da produção artística nacional e internacional, articulando a interlocução entre diferentes agentes culturais. Desde sua abertura o Pivô já recebeu mais de 65 mil visitantes, 95 projetos artísticos e 180 artistas de mais de 20 nacionalidades para o programa de residência.

O retorno do projeto para a cidade é amplo: além da retomada de um espaço que permaneceu fechado por duas décadas, anualmente o Pivô recebe em média 40 artistas, brasileiros e estrangeiros e em diferentes estágios de carreira, que participam de seu programa de residências artísticas, o Pivô Pesquisa. Sua programação é composta por cerca de oito exposições de arte contemporânea, palestras e programas públicos, todos com gratuidade.

Na oitava edição, o Leilão de Parede Anual reúne mais de 100 obras doadas por nomes como: Anna Maria Maiolino, Adriano Costa, Alexandre da Cunha, Ana Mazzei, Cristiano Lenhardt, Eduardo Navarro, Leda Catunda, Lenora de Barros, Marcius Galan, Paulo Pjota Nimer, Sonia Gomes, Lucia Koch, Jac Leirner, Erika Verzutti e outros. O cardápio do evento beneficiente fica a cargo dos chefs Janaína e Jefferson Rueda, com a premiada feijoada da Casa do Porco, a sonorização com a DJ Cris Naumovs, além de uma performance musical da cantora Aretha Sadick.

O Pivô é uma associação cultural sem fins lucrativos que atua como plataforma de experimentação para artistas, curadores, pesquisadores, estudantes e público em geral. Desde 2012, o espaço vem se consolidando com um dos principais centros de exibição e produção de conteúdo em arte contemporânea da cidade. Situado no icônico edifício Copan, projetado por Oscar Niemeyer, o espaço é totalmente aberto, acessível e tem visitação gratuita.

EntreMeadas — Sesc Vila Mariana

Idealizada pelo Sesc São Paulo, com curadoria da crítica e historiadora do design Adélia Borges, a mostra dá destaque ao artesanato brasileiro feito por mulheres e valoriza o patrimônio cultural ao reunir o trabalho de artesãs e coletivos de 14 cidades paulistas, para as quais o artesanato é um meio de expressão, de afirmação de identidade e de geração de renda.

Com riqueza de trançados, cores e formas, a exposição apresenta obras artesanais e suas raízes, desde o material escolhido, a comunidade de origem e a artesã criadora. O trabalho de curadoria também se destaca pelo recorte geográfico. Durante o processo de pesquisa, Adélia Borges mapeou uma rica diversidade artesanal no estado, que tem como resultado uma mostra com obras feitas na capital paulista e oriundas das cidades de Carapicuíba, Atibaia, Olímpia, Cananeia, Bertioga, São Bento do Sapucaí, Miracatu, Bauru, Américo Brasiliense, Guapiara, Eldorado, Tremembé, Bertioga e Osasco.

A mostra fica em cartaz até 9 de fevereiro de 2020.

Dentro do Furacão

Esta é a última edição do ano de 2019, um ano onde todas as áreas produtivas neste país tiveram que trabalhar além de suas forças, em um ambiente mesquinho. Foi um ano de dificuldade econômica para a maioria da população. Não fosse suficiente, estamos em meio a uma inacreditável demonstração de pobreza intelectual.

Dentro da pobreza de pensamento generalizada, o governo tomou a decisão de transformar a cultura num apêndice do Ministério do Turismo. Talvez tenham pensado: “Vejam, nos guias turísticos há indicações de cinemas, teatros e museus, vamos colocar tudo junto”. Seria cômico se não fosse trágico.

Não obstante, enquanto ouvíamos a burrice de inúmeras bravatas — algumas que nos fazem retroceder décadas na história de nossas vidas e do país —, o que nos salvou mais uma vez foi a arte, com sua força absolutamente inquebrantável. A possibilidade de ainda ter acesso à cultura permitiu que a população se voltasse em massa a exposições em museus e instituições culturais.

ARTE!Brasileiros, junto ao Itaú Cultural, conseguiu realizar um profundo debate sobre várias abordagens e alternativas possíveis para a sustentabilidade das instituições e a importância da gestão cultural, no seminário Gestão Cultural: desafios contemporâneos. A partir daí, decidimos dar início a uma série de entrevistas que nos permitam ouvir e acompanhar outras vozes de forma permanente. Cada vez mais se reforça a ideia de uma instituição cultural participativa, capaz de envolver a população em suas causas, e não apenas um espaço de contemplação.

Nessa função mesquinha, o Estado só aprofunda as cicatrizes de séculos de discriminação e violência e abre caminho para mais violência. Na arte a resposta é uma denúncia ativa. Os artistas buscam se expressar, definitivamente, estética e eticamente. Pesquisam arquivos, suportes e temáticas que os ajudem a falar. As lutas raciais, de gênero e contra a censura estiveram presentes, ao longo do ano, nas obras de bienais, como a do Sesc_Videobrasil, nos prêmios, tanto no Marcantonio Vilaça como no Pipa, e na maioria das exposições nacionais.

Na capa, obra de No Martins, da série #JáBasta!, 2019. Em exibição na 21ª Bienal Sesc_Videobrasil.

Mais de 100 artistas participam de uma exposição na Ocupação 9 de Julho em São Paulo, engajando-se no apoio à luta pela moradia. Aline Motta, uma das ganhadoras do Prêmio Marcantonio Vilaça, faz de sua obra uma procura permanente, nas suas raízes, da memória coletiva de milhares de famílias brasileiras construídas (ou destruídas) no violento processo de formação do país, baseado na escravidão e na estrutura patriarcal. 

Guerreiro do Divino Amor, ganhador do Prêmio Pipa deste ano, numa linguagem completamente original e de experimentação, dá nome aos bois e denuncia as manobras de setores evangélicos fascistas, defensores de costumes já ultrapassados, e a responsabilidade que certos grupos midiáticos estão tendo nisso.

Nossa capa, obra do artista paulistano No Martins, que faz parte sem dúvida deste ethos, sintetiza de alguma maneira o nosso sentimento, expressado também no texto extraído do livro Crítica da Razão Negra, da n-1 edições, do camaronês Achille Mbembe: “Humilhado e profundamente desonrado, o negro é, na ordem da modernidade, o único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa e o espírito em mercadoria  a cripta viva do capital. Porém e esta é sua patente dualidade —, numa reviravolta espetacular, tornou-se o símbolo de um desejo consciente de vida, força pujante, flutuante e plástica, plenamente engajada no ato de criação e até mesmo no ato de viver em vários tempos e várias histórias simultaneamente”.

Assim como No Martins, nós dizemos BASTA!!!

Aline Motta e o mergulho pessoal na memória coletiva

Filha natural #6
Filha natural #6. Foto: Divulgação

A jornada da artista Aline Motta à procura de suas raízes e dos vestígios de seus antepassados é, sem dúvida, uma empreitada pessoal. O resultado, no entanto, diz respeito à memória coletiva de milhares de famílias brasileiras construídas (ou destruídas) no violento processo de formação do país, baseado na escravidão e na estrutura patriarcal.

“Levou um tempo até que eu adquirisse alguma maturidade e centramento psíquico para lidar com questões tão profundas e difíceis que dizem respeito a minha própria história e família”, conta a artista em entrevista à ARTE!Brasileiros. Esse tempo de maturação incluiu não só alguns primeiros trabalhos artísticos que tratavam de outros temas, realizados especialmente a partir do início desta década, mas também uma vasta trajetória como continuísta de cinema, iniciada em 2001.

Foi a partir de 2016, quando teve o projeto Pontes sobre Abismos selecionado pelo programa Rumos, do Itaú Cultural, que Motta, hoje aos 45 anos, passou a se dedicar em tempo integral aos trabalhos autorais, com uma produção multimídia que não deixou de lado o cinema, mas se desdobrou também em instalações, fotografias, textos, publicações e performances.

Além do projeto para o Rumos, obras como (Outros) Fundamentos, Se o Mar Tivesse Varandas, Filha Natural e Jogo da Memória – este último, vencedor da Bolsa ZUM do IMS e ainda em desenvolvimento – levaram a artista a diversas cidades do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia e a travessias além-mar para Portugal, Serra Leoa e Nigéria. E aprofundaram, de diferentes modos, uma pesquisa sobre a história familiar de Motta e, ao mesmo tempo, sobre a herança africana na formação do Brasil.

No último mês de setembro a artista foi agraciada, ao lado de Dalton Paula, Dora Longo Bahia, Ismael Monticelli e Rodrigo Bueno, com o Prêmio Marcantonio Vilaça, em sua 7a edição. Neste contexto, a ARTE!Brasileiros conversou com Motta sobre sua trajetória e produção. Leia abaixo.

Pontes sobre Abismos #8
Pontes sobre Abismos #8. Foto: Divulgação

ARTE!✱Seu trabalho parece ter caminhado, ao longo dos anos, de modo mais contundente para discussões sociais e políticas. Elas não estavam ausentes anteriormente, mas pareciam menos explícitas do que as preocupações formais e de linguagem. Faz sentido pensar assim? Como você enxerga essa sua trajetória?

Aline Motta — Certamente discussões em torno de questões raciais foram ganhando corpo no meu trabalho paulatinamente, à medida que eu me sentia mais confiante e preparada para abordar esse assunto com o rigor e pesquisa que eu julgava necessários. Isso levou um tempo até que eu adquirisse alguma maturidade e centramento psíquico para lidar com questões tão profundas e difíceis que dizem respeito a minha própria história e família.

ARTE!✱ – Através de uma pesquisa pessoal, sobre memória familiar, você trata também de um vasto universo da memória coletiva, que tem a ver com as violências históricas na formação do Brasil, com a escravidão, com o patriarcado. Queria que contasse um pouco sobre essa pesquisa e sobre o que descobriu a partir dela.

A pesquisa se iniciou tendo como base a genealogia da minha própria família, no caso eu sou fruto de um casamento interracial. Logo ficou evidente que a pesquisa genealógica sobre os familiares brancos poderia continuar ad infinitum, já que muitos eram primos e se casaram entre si, em consonância com os arranjos comuns em que se formaram muitas famílias de origem portuguesa no Brasil. Já em relação à família negra, precisei procurar em lugares não tão óbvios, mas encontrei, por exemplo, farta documentação sobre a escravidão no Vale do Paraíba, indo contra a ideia de que esses papéis foram queimados. Não foram. Então, é urgente que se dê visibilidade a essa documentação e se façam estudos críticos da iconografia, principalmente a do século XIX, para que ninguém mais possa se sentir no direito de propagar inverdades ou minimizar os efeitos da escravidão em nosso país.

Filha natural #5
Filha natural #5. Foto: Divulgação

ARTE!✱ – Em uma entrevista, você afirmou que somos um país violentamente racista e que poucas medidas reparatórias foram implantadas ao longo do tempo. Até que ponto você diria que a arte pode ter também um papel reparatório, seja no sentido de “fazer justiça” ou no caminho mais de cura?

Talvez um trabalho em artes visuais possa despertar em um determinado público algumas conexões profundas, que podem levar a algum entendimento acerca de traumas pessoais, familiares, coletivos. Ainda assim é algo restrito e as artes visuais ainda são um campo muito elitista. Ou seja, falar em cura não dá conta dos complexos modos de ser e estar no mundo que precisamos enfrentar cotidianamente, muitas vezes abraçando uma série de contradições apenas para nos manter vivas ou nos comportar como é esperado de nós. Em relação ao conceito de “justiça”, sou bastante cética, já que a todo momento precisamos explicar o óbvio em relação a medidas reparatórias como cotas raciais, por exemplo, e mesmo assim essas poucas medidas são duramente contestadas.

ARTE!✱ – Em seus trabalhos que lidam com memória, é notável também o lugar que assumem as “lacunas” e o “apagamento”. De que modo você lida com essas lacunas?

A partir do momento em que surgem lacunas, cabe à nossa imaginação criar um passado e um futuro para essa falta.

ARTE!✱ – Até que ponto você diria que o apagamento e a manipulação da história e da memória são causadores (ou os perpetuadores) de violências e desigualdades no Brasil ainda hoje?

O modo proposital como esse apagamento é feito cotidianamente em nossa sociedade é só mais um fator que explica porque certas famílias continuam mandando nesse país desde as capitanias hereditárias.

Filha natural #6
Filha natural #6. Foto: Divulgação

ARTE!✱ – Tanto no que se refere ao racismo quanto ao machismo, dois temas muito presentes em seu trabalho, parece haver um quadro bastante complexo na sociedade brasileira hoje. Se de um lado os movimentos negros e feministas ganharam força e protagonismo, de outro vemos um movimento conservador de forte perfil machista e racista tendo também cada vez mais espaço. Como você enxerga esse momento?

Espero que esses movimentos conservadores que, na verdade, atentam contra a vida – ao fim e ao cabo são discursos de morte –, voltem-se contra si mesmos. Perceba que a cultura negra em nosso país é uma cultura de resistência, portanto de afirmação da vida e de emancipação do ser, através de processos vividos coletivamente. Isso vai na direção contrária destes movimentos de motivação profundamente individualista, narcisista, militarmente hierarquizada, que não levam em conta a vida em comum.

ARTE!✱ – Em seus trabalhos você se utiliza de diferentes linguagens e suportes – fotografia, vídeo, texto, performance, documentos. Queria que contasse um pouco como se dá esse trabalho. Normalmente, surgem primeiro os temas a serem trabalhados, os suportes, ou cada caso é diferente um do outro?

Eu acho que os trabalhos são verdadeiramente interdisciplinares, congregando vários campos de estudo e saberes artísticos, refletindo a minha formação um pouco fora dos padrões e que também não segue uma linearidade. Então, é natural para mim que os trabalhos se desdobrem em vários suportes ao longo de bastante tempo, o que, às vezes, me dá a sensação de que estou construindo um extenso e único trabalho.

Inhotim mostra novo fôlego ao inaugurar obras, exposição e jardim

Nova obra permanente de Robert Irwin. Foto: Leo Lara/Divulgação

No último dia 9 de novembro, em um sábado ensolarado marcado por inaugurações de obras e de um novo jardim, pela reabertura de pavilhões que estavam em manutenção e por um show ao ar livre, o clima no Instituto Inhotim era de celebração. Um enorme número de visitantes caminhava pelos vários trajetos dos 140 hectares do “parque museu” mineiro, localizado na cidade de Brumadinho, e formava filas para adentrar as galerias de arte contemporânea, os restaurantes e cafés e para conseguir lugar nos carrinhos que levam às obras mais afastadas do parque.

Não que 2019 tenha sido um período fácil para a instituição, criada pelo empresário Bernardo Paz e que completa 13 anos aberta ao público. Pelo contrário, se Inhotim já atravessara diversas crises políticas e financeiras nos últimos anos – da condenação de Paz na justiça em 2017 ao surto de febre amarela na região em 2018, que resultou em enorme queda na visitação – nada seria comparável ao rompimento da barragem da mineradora Vale no dia 25 de janeiro deste ano, que inundou grandes áreas de Brumadinho e deixou 251 mortos na região.

Se a lama não atingiu diretamente o território do instituto, afetou a vida de grande parte de seus funcionários – entre os 600 empregados diretos de Inhotim, 80% são da cidade – e causou outra drástica queda no número de visitantes, com a quase paralisação do turismo local. Para quem começou o ano neste quadro, chegar a novembro inaugurando a maior obra já construída do americano Robert Irwin, uma instalação na galeria Claudia Andujar, uma grande exposição coletiva de esculturas e reabrindo para visitação célebres obras de Matthew Barney, Tunga e Yayoi Kusama parece ser, de fato, motivo de celebração. Ainda mais considerando a rápida retomada nos números de visitação e o aumento nos valores de patrocínios e doações financeiras.

Instalação de Claudia Andujar, Leandro Lima e Gisela Motta. Foto: Leo Lara/Divulgação

Para alcançar tais resultados, Inhotim focou primeiro em campanhas de esclarecimento – “precisávamos mostrar que estávamos abertos e em pleno funcionamento”, conta o diretor-presidente do instituto, Antonio Grassi. Além disso, promoveu uma renovação institucional, com a chegada da nova diretora executiva, Renata Bittencourt, e um fortalecimento dos vínculos com a cidade de Brumadinho. O programa Nosso Inhotim, criado este ano para permitir aos moradores da cidade visitação gratuita e regular ao parque, já soma 5500 cadastrados. Grassi ressalta que o instituto contou ainda com a “sensibilização de patrocinadores e doadores”, por mais que ainda dependa de um aporte de Bernardo Paz para fechar o orçamento anual de cerca de R$ 34 milhões.

“A ideia de regeneração é muito cara hoje a Brumadinho, tanto no sentido do meio ambiente, físico, como também emocional, em uma cidade que foi atingida por essa tragédia”, afirma Bittencourt. “E além do nosso compromisso com a arte contemporânea, existe esse Inhotim que é símbolo de regeneração do meio ambiente, especialmente lembrando que toda essa área que é hoje um jardim botânico era área desmatada, de pasto ou usada para transporte de minérios”. Deste modo, afirma Bittencourt, além de espaço cultural, Inhotim também se consolida cada vez mais como “local de encontro, de paz e de cura”.

Inaugurações

Maior destaque entre as novidades, a obra permanente de Robert Irwin, hoje aos 91 anos, dá sequência ao trabalho de um dos artistas pioneiros na criação de ambientes imersivos que proporcionam experiências multissensoriais. No ponto mais alto do parque, a escultura octogonal de concreto, aço e vidro – com 6,3 metros de altura por 14,6 de diâmetro – cria, a partir da luz do sol que transpassa o vidro esverdeado, uma espécie de pintura que se desloca pelo chão e paredes. Ao lado da também grandiosa Bean Drop, de Chris Burden, trata-se de mais um trabalho que revela um Inhotim de realizações ambiciosas. “É uma obra muito sensível e que também fala desse instituto que viabiliza, que materializa projetos que são audaciosos, por vezes sonhados por décadas pelos artistas e que aqui encontram condições para serem realizadas”, diz Bittencourt.

A nova exposição temporária, na Galeria Mata, partiu da circunstância da inauguração do trabalho de Irwin para debater questões sobre a escultura contemporânea, tais como abstração e tridimensionalidade, uso das matérias primas e ressignificação de objetos cotidianos. Fazem parte da mostra os artistas brasileiros Alexandre da Cunha, Iran do Espírito Santo, José Damasceno, Laura Vinci, Marcius Galan e Sara Ramo.

Trabalho de Alexandre da Cunha na exposição “Visão Geral”. Foto: Leo Lara/ Divulgação

No pavilhão dedicado à obra de Claudia Andujar, com suas marcantes séries de fotografias feitas entre os povos Yanomami na Amazônia, uma nova videoinstalação feita por Gisela Motta e Leandro Lima inserem o trabalho de Andujar em um campo ainda não explorado pela artista. Em uma sala escura, uma foto de 1976 de uma maloca pegando fogo parece ganhar cor e vida com a projeção feita através de um filtro vermelho e uma camada de água em movimento. Com a chama em permanente movimento, a obra, intitulada Yano-a, transmite uma ideia de suspensão no tempo, de algo que queima eternamente, e acende o sempre atual debate sobre a causa indígena.

O novo jardim, por sua vez, intitulado Sombra e Água Fresca e com mais de 3 hectares de área, é o maior dos jardins do parque e tem paisagismo assinado por Pedro Nehring. Com cerca de 700 espécies de plantas nativas e exóticas – entre elas 100 espécies de árvores frutíferas – e um trecho de mata fechada ao lado de um riacho, o espaço também dialoga com a ideia de cura, segundo Bittencourt.

Assim, um trabalho de reestruturação financeira e fortalecimento de vínculos com a comunidade local, associado às ideias de regeneração e cura, pautam o trabalho de Inhotim em um ano difícil não só pelo desastre em Brumadinho, mas também pelos constantes ataques à cultura por parte do governo federal – incluindo casos de censura que voltam a assombrar o país. Como ressalta Grassi, “nossa instituição preza e foca seu trabalho na defesa da liberdade de expressão. Isso é um bem do qual não se pode abrir mão. E claro, como OSCIP (organização da sociedade civil de interesse público), nós temos a obrigação de estar abertos e dispostos a dialogar”.

Por fim, após listar com otimismo uma série de shows e novos projetos planejados para o ano de 2020 (incluindo a abertura de uma galeria dedicada à obra da japonesa Yayoi Kusama), Grassi conclui ressaltando sua preocupação com o cenário: “A gente acompanha o panorama com muita atenção, e com certa tensão, e torce para que as coisas possam se desenvolver cumprindo os ritos constitucionais, da liberdade de expressão, da valorização da arte. É claro que esse quadro todo é muito preocupante, e que não é uma coisa só do Brasil. Por isso, afirmar o papel fundamental da cultura e da arte, num momento de muita incompreensão, é para nós uma missão”.

*O jornalista viajou a convite do Instituto Inhotim

Celebrações de centenário de León Ferrari têm início em Berlim

León Ferrari, obra da série "Brailles y relecturas de la Biblia"

“Uma das grandes vozes internacionais do continente latino-americano”, assim diz o texto de apresentação da exposição TOASTED ANGELS, SOUNDS OF STEEL (Anjos Torrados, Som de Aço, em tradução livre), individual de León Ferrari na KOW Galerie, em Berlim. A exposição que tem abertura em 23 de novembro marca o começo das homenagens ao artista argentino que completaria 100 anos em 2020.

Falecido em 2013, em Buenos Aires, aos 93 anos, Ferrari foi um artista provocador, que iniciou sua carreira em 1955, considerando “a história da civilização ocidental como uma história de violência institucional globalizada”. Apesar de aclamado na Bienal de Veneza de 2007, na qual recebeu o Leão de Ouro, o artista ainda é pouco conhecido na Alemanha. Desta forma, a KOW Galerie recebe um panorama significativo da produção do artista, um dos nomes mais importantes das artes visuais na Argentina.

Serão apresentadas obras como La Civilización Occidental y Cristiana (1965), que faz uma reflexão crítica à Guerra do Vietnã e as relações de poder em um vínculo entre política e religião. A mostra abarca esculturas, litografias e desenhos, formatos nos quais León trabalhou uma linguagem também abstrata e conceitual. Inclui-se também uma escultura sonora.

A exposição em Berlim se estende até o dia 3 de fevereiro. Também em solo paulistano, onde Ferrari se exilou entre as décadas de 70 e 80, há uma exposição do artista: Nós não sabíamos, na Pinacoteca de São Paulo, estará aberta ao público até 16 de fevereiro e reúne 94 obras do artista que pertencem ao acervo do museu.

Vendo e entrevendo Cildo Meireles

"Missão/Missões (Como Construir Catedrais)", (1987/2019). Foto: Carol Mendonça/ Divulgação
À frente, “Olvido” (1987-1989). Ao fundo, “Entrevendo” (1970/1994). Foto: Everton Ballardin/ Divulgação

Na vasta e diversa obra de Cildo Meireles, se há construção, há também desconstrução; se há realidade, há ilusão; se há visibilidade, há o que está oculto; se há razão, há loucura; se há o afeto, existe o trauma; se há afirmações, existe o mistério; se há ordem, ela mesma pode gerar o caos; se há formalismo, há abstração; onde há caminho, há o desvio; no circuito, curto-circuito; se há vastidão, há também o gueto; se há versão, há subversão; se há equilíbrio, ele é tenso; e se há violência, há resistência. Não se trata necessariamente de oposições, muito menos de incompatibilidades, mas de perceber que na contundente produção do artista carioca não há verdades fáceis e únicas, e que os caminhos óbvios e mais usuais estão sempre sendo desafiados – as coisas nem sempre são o que parecem.

Deste modo, quem visitar Entrevendo, no Sesc Pompeia, uma das maiores mostras já realizadas de Cildo Meireles, 71, vai se deparar com paradoxos, ambiguidades, ironias, contrastes e inquietações que percorrem as cerca de 150 obras da exposição, curada por Júlia Rebouças e Diego Matos. Nos trabalhos em variados suportes, linguagens e escalas, espalhados pelos vastos espaços desenhados por Lina Bo Bardi, o artista apresenta uma produção que ativa, amplia e embaralha os sentidos, como explica Rebouças. “É um projeto que trata da ideia de sentido a partir de suas múltiplas definições. Pensando não só nessas capacidades perceptivas ligadas ao tato, audição, visão, olfato etc., mas também pensando em sentido como medida, como direção, como equilíbrio, como tino. E é muito importante entender que na obra do Cildo essas formas de percepção do mundo estão aí se afirmando, mas estão também se contradizendo, se desafiando”, diz ela.

Entrevendo, obra que dá título à mostra, propõe que o público coloque na boca duas pedras de gelo, uma doce e uma salgada, adentre uma grande instalação cilíndrica e caminhe em direção a uma fonte de ar quente. O trabalho, projetado em 1970 e realizado pela primeira vez em 1994, aciona no próprio corpo do visitante diferentes sensações e formas de compreensão ao lidar com os contrastes entre doce e salgado, quente e frio, claro e escuro. “E curiosamente é um trabalho que exige muito pouco da visão. A ideia de que a visão é o sentido primordial da experiência artística é muito desafiada na obra do Cildo”, afirma Rebouças. O artista concorda: “No início do século passado, Marcel Duchamp já falava da intenção de libertar a arte apenas do domínio retiniano. Aqui no Brasil, a partir dos anos 1950, sobretudo a partir do neoconcretismo, isso se tornou uma coisa muito importante. Exercitar essa plurisensorialidade passou a ser uma especificidade da produção brasileira a partir do Oiticica, da Lygia Clark… E algumas das minhas peças também lidam com isso”.

“Eureka/Blindhotland” (1970-1975). Foto Carol Mendonça/ Divulgação

Os contrastes, ambiguidades, paradoxos ou subversões, que se mostram também convites à imaginação, são notáveis ainda em outras obras que, por vezes, explicitam em seus próprios títulos essas características. Seja em Espelho Cego (1970), feito de uma massa cinza e disforme sem reflexo; Descala (2003), com escadas disfuncionais; Volumes Virtuais (1968-969), em desenhos que apresentam volumes sem fisicalidade; Esfera Invisível (2012), com uma caixa de alumínio que, quando aberta, sugere uma esfera pela ausência interna de material; Obscura Luz (1982), em que uma sombra forma o desenho de uma lâmpada; na série de notas ou moedas de zero, que questionam a relação entre valor real e simbólico e explicitam que o valor estampado no dinheiro é uma abstração; ou ainda em obras como A Menor Distância entre Dois Pontos é uma Curva (1976) e nos trabalhos da série Arte Física (1969).

A série Blindhotland (“terraquentecega” em tradução livre), por sua vez, com três trabalhos na mostra, confunde o visitante quando sua visão é “traída” pela aparência dos objetos. Na célebre Eureka/Blindhotland (1970-1975), por exemplo, dezenas de bolas de mesmo tamanho, cor e forma – espalhadas para serem manipuladas pelo público – apresentam pesos sensivelmente diferentes; em Blindhotland/Gueto, de outro modo, bolas de tamanhos diferentes apresentam o mesmo peso, outra vez criando uma espécie de confusão cognitiva que desafia os sentidos. Assim como elas, várias outras obras da mostra convidam o visitante à interação, à uma vivência que vem por meio da participação, dialogando com o que o Cildo chama de “caráter de sedução” das artes visuais.    

“Eu acho que tem duas características que as artes plásticas deveriam preservar, dois aspectos que não deveriam nunca ser negligenciados. Primeiro é o caráter de sedução. Acho que de certa maneira a arte conceitual, num primeiro momento, tentou limpar isso, tornar asséptico, e você perde a chance de lidar com o teor de sedução que um trabalho pode ter”, diz o artista. “E a outra coisa é que as artes plásticas são uma atividade que permite para cada ideia nova você começar do zero. Você quer fazer um filme, pode ter mil ideias e caminhos, mas aquilo sempre acaba no fotograma. Em artes plásticas não existe isso, você pode pegar qualquer coisa, de qualquer natureza, com qualquer material, usando qualquer procedimento, e você chega ao trabalho final”, afirma, explicando também que nunca teve um método definido de produção.

“Para Ser Curvada com os Olhos” (1970-1975). Foto: Carol Mendonça/ Divulgação

Veia poética e política

Tanto a sedução quanto a variedade de materiais e linguagens estão presentes também nas obras que tratam mais explicitamente de questões sociopolíticas e econômicas, e que lidam com memórias que se repetem na história brasileira. Em Missão/Missões (Como Construir Catedrais), milhares de moedas espalhadas pelo chão se conectam, por meio de uma coluna de hóstias empilhadas, aos ossos pendurados no teto, criando uma “anticatedral” que denuncia as violências da exploração colonial e sua sede por acumulação financeira. “O extermínio indígena, essa história truculenta, isso é uma questão que persiste ao longo do tempo. Quando fiz esse trabalho, em 1987, pensando nos Sete Povos das Missões do século 17, eu estava falando genericamente sobre esse processo de aniquilamento. Mas isso acaba caindo como uma luva para a situação atual”, afirma o artista, sem perder, no entanto, a esperança de que ainda possa haver justiça. “Mas cedo ou tarde a responsabilidade por esses crimes vai cair no colo dos autores.”   

O sentimento de contemporaneidade que percorre a exposição, segundo Rebouças, é consequência não só da escolha de obras que dialogam com “questões absolutamente não solucionadas”, mas é “resultado de uma produção muito complexa e contundente, dessa capacidade do Cildo de agenciar os afetos, mais do que responder a eventos específicos. Ele está respondendo a um sentimento que se compartilhou em outro momento e que se compartilha ainda hoje”. E isso não se refere apenas à história brasileira. No conjunto de obras que lidam com a estrutura colonial estão também Olvido (1987-1989), em que milhares de velas e ossos de bois cercam uma tenda indígena – ao estilo de povos norte-americanos – forrada de cédulas de dinheiro, e Amérikkka (1991/2013). Com referência já no título à organização terrorista e supremacista de extrema-direita Ku Klux Klan, a instalação cria um ambiente tenso ao colocar o público sobre ovos de madeira, no chão, e sob a mira de projéteis de armas de fogo presas ao teto.

Assim como Amérikka, a mostra apresenta uma série de outros trabalhos nunca expostos no Brasil, ou que apenas foram apresentados no país há muito tempo. Segundo Rebouças, ao menos duas gerações não tiveram contato com um recorte amplo da obra de Cildo, já que a última grande mostra do artista no Brasil percorreu o MAM do Rio e de São Paulo em 2000. Pouco afeito a montar exposições – ao menos atualmente –, Cildo diz que um dos motivos que o atraiu na proposta foi a localização da mostra no Sesc Pompeia, onde há grande circulação de pessoas de todas as classes e idades e entrada gratuita. “Essa característica do Sesc, que é um profundo respeito e interação com o entorno, com a comunidade, traz também um público que não é aquele especializado, específico das artes plásticas. E essa expansão me interessava”, ressalta.

“Missão/Missões (Como Construir Catedrais)”, (1987/2019). Foto: Carol Mendonça/ Divulgação

Paralelos com a ditadura

Não é apenas entre os dias atuais e a história colonial que Entrevendo traça paralelos. Artista de forte atuação durante os anos da ditadura militar (1964-1985), Cildo é enfático ao denunciar os abusos do atual governo federal e as semelhanças com o período militar. “Mas esse de hoje é ainda mais sinistro e mais ridículo, porque é de uma ingenuidade paradigmática”, dispara. A repetição da história nas mortes do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e da vereadora Marielle Franco, em 2018, ambos frutos de perseguições políticas, aparece nas célebres Inserções em Circuitos Ideológicos, série iniciada pelo artista em 1970 e desenvolvida até os dias de hoje.

Ao carimbar, durante a ditadura, cédulas de cruzeiro com a pergunta “Quem matou Herzog?” e, nos dias atuais, notas de real com o rosto de Marielle, Cildo propõe colocar em giro símbolos, críticas sociais ou palavras de ordem em objetos do cotidiano (o projeto começou com garrafas de Coca-Cola retornáveis), criando uma espécie de rede de contrainformação em circuitos preexistentes. Como explica o próprio artista, as Inserções têm a capacidade de dar “voz ao indivíduo diante da macroestrutura”, além de levantar questionamentos sobre a autoria artística e sobre o lugar da obra de arte, fora de ambientes especializados.

Ainda que resistente à qualquer enquadramento de seu trabalho como “arte engajada” – “tenho ojeriza por arte panfletária”, já disse certa vez – Cildo não receia destacar a preocupação política presente em sua obra. E conta como ela surgiu. “Foi em 1969 que eu me senti impelido mesmo a tratar mais contundentemente de temas políticos”, afirma, sobre o ano em que participou de uma mostra de onde seria selecionada a representação brasileira para a Bienal de Jovens de Paris. “Três horas antes da inauguração, com a exposição já montada, os agentes do DOPS cercaram o prédio do MAM do Rio e exigiram o cancelamento da exposição. Inclusive houve o início de um inquérito policial militar envolvendo todos os artistas. E eu, que naquela exposição tinha trabalhos formais, sem cunho político, a partir dali me senti quase na obrigação de me referir a essas questões políticas na minha obra”, recorda.

Obras da série dos “Zeros”. Foto: Carol Mendonça/ Divulgação

Ao relacionar o contexto atual e o período ditatorial, o artista se diz indignado com os episódios recentes de censura e com o tipo de tratamento que a cultura tem recebido do governo. “A gente está testemunhando esse tipo de coisa, um idiota como esse cara que era da Funarte (o atual secretário de cultura Roberto Alvim) vir à público dizer que a Fernanda Montenegro é sórdida e mentirosa. Ela que é uma espécie de tesouro nacional. E vem um carinha qualquer e acha que pode defecar em público. Isso se tornou a característica desse governo”. E ele conclui: “Mas tem uma lei de física que diz que à toda compressão corresponde uma explosão. Então quanto mais você espremer uma coisa, vai provocar uma reação maior, isso é uma coisa básica”.

Cildo Meireles: Entrevendo
Sesc Pompeia – Rua Clélia, 93, São Paulo
Até 02 de fevereiro
Entrada gratuita

 

 

Berlim reduz radicalidade de Hubert Fichte

Público interage com obra na abertura da exposição.

Por Dereck Marouço, em Berlim*

 

A exposição Amor e Etnologia: A Dialética Colonial da Sensibilidade (segundo Hubert Fichte) foi realizada em homenagem à série de 19 livros do autor alemão que, juntos, formam um significativo corpo de trabalho sobre suas experiências de viagem, envoltas entre sexo e espiritualidade. A importância de sua narrativa está, além do caráter documental e em prosa, na força autobiográfica. O projeto contou com o apoio do Instituto Goethe e ocorre após edições prévias em Lisboa, Salvador, Rio de Janeiro, Santiago e Dakar. Em Berlim, o projeto tem curadoria assinada por Diedrich Diederichsen e Anselm Franke, que mesclaram obras exibidas nas exposições anteriores com novas adições.

Hubert Fichte (1935 – 1986) viveu de forma radical em uma época crucial da história recente alemã. Filho de pai judeu, quando criança teve que se esconder em um abrigo antibombas para escapar da ameaça nazista. Ele esteve no Brasil três vezes, entre 1969 e 1972, tendo vivenciado nesse período as práticas espirituais afro-brasileiras, além de muitas relações homossexuais, mesmo vivendo com uma mulher, a fotógrafa Leonore Mau. É neste contexto que ele começa a constituir a sua História da Sensibilidade, baseada na viagem como método investigativo, quando experiências e impressões são chave para um conhecimento aprofundado de outras culturas. Fichte era um marginal à medida em que ser gay ainda era crime na Alemanha dos anos 1960. Porém, ao viajar para países com regimes ditatoriais, na década de 1970, como o Brasil, Portugal e Chile, ele percebe o real antagonista de sua História da Sensibilidade: a tortura e a negligência dos direitos humanos.

Vista da exposição na ocasião de sua abertura em outubro passado.

Para a mostra em Berlim, mais de 170 trabalhos foram agrupados de maneira densa, dentre os quais encontram-se desde pintores como André Pierre (Port-Au-Prince) e Canute Caliste (Trinidad) e artistas representativos do Harlem Renaissance como Camille Billops, Owen Dodson & James Van Der Zee à artistas alemães de mídias contemporâneas como Michael Buthe. Conta-se ainda um bom número de artistas brasileiros na exposição: Virgínia de Medeiros, Ayrson Heráclito, Miguel Rio Branco, Alair Gomes e o Coletivo Bonobando, expostos de forma agrupada, tendo ao fundo obras de artistas americanos como Alvin Baltropp e Tione Nekkia McClodden. Essas duas partes são permeadas tanto por entrevistas e publicações de Fichte e outros escritores em parceria com fotógrafos como Pierre Verger e a companheira Leonore Mau. Outra sessão é dedicada às influências literárias de Fichte, com livros de Jean Genet, Isabelle Eberhardt, James Baldwin, Pier Paolo Pasolini e William S. Borrough, roteiro literário que constitui uma genealogia queer.

A abertura da exposição contou com a performance Preta Jardim / Omindarewa (2017) do grupo Bonobando, apresentada por Lívia Laso, Vanessa Rocha e Adriana Schneider. Nela, uma mulher negra cria uma narrativa a partir do ponto de vista da Casa das Minas do São Luís do Maranhão sobre o embate entre religiões e culturas, ao mesmo tempo em que manuseia um fantoche de homem branco. A obra subverte a dinâmica eurocêntrica que se impõe sobre outras vertentes culturais, em especial as afro-americanas.

Já Tione Nekkia McClodden expõem o trabalho an offering | six years | a conjecture (2017), sobre a realização de um ritual pessoal para Xangô, intercalado por um vídeo que evidencia a má percepção das massas das religiões afro-americanas.

Amor e o sexo, temas recorrentes em Fichte, são retratados de forma branda na exposição. As fotos de Alair Gomes, Alvin Baltrop e Isaac Julien explicitam a sensualidade e o desejo proscrito, mas nestes três casos as fotos selecionadas guardam sempre uma distância entre câmara e objeto de apreciação e não fazem alusão a um estudo íntimo quando se leva em consideração o nome da exposição.

As únicas obras que retratam o sexo de maneira próxima são Nada Levarei Quando Morrer, de Miguel Rio Branco (1980/1985) e Peep Show I-III (2017) também do Coletivo Bonobando, que narra as aventuras sexuais de Jäcki (personagem biográfica de Fichte) no Brasil com imagens fílmicas acessadas através de orifícios de borracha. Em meio ao grande número de obras, as únicas que fazem menção direta a complexidade social comum aos pontos do globo mencionados na exposição além da de Rio Branco é Baia de Todas as Santas (2017) de Ayrson Heráclito. Enquanto Rio Branco exibe os corpos marcados por cicatrizes do Pelourinho, Heráclito traz as sinistras ruas da maravilhosa Bahia durante a noite.

GRUPO BONOBANDO, Performance Preta Jardim / Omindarewa, 2017.

Amor e Etnologia: A História da Sensibilidade utiliza o corpo de obra composta pelo escritor alemão e critica o olhar europeu sobre as culturas pouco representadas com um esforço interessante de curadorias compartilhadas. No entanto, a exposição não investiga tanto o termo “etnologia” para além do sentido cultural religioso, que também é dissociado do seu contexto atual, no qual, muitas vezes, práticas espirituais são perseguidas.

Mesmo apresentando um conjunto significativo de obras, falta no projeto o sentido social que foi experienciado por Fichte em suas diversas viagens e que é indissociável tanto do desenvolvimento da cultura negra, quanto da cultura queer. A exposição não se aproveita das vivências do seu homenageado para se aprofundar nos tópicos eleitos e deixa uma impressão de que o mundo foi simplificado.


* Dereck Marouço é pesquisador de arte, graduado em Arte: História, Crítica e Curadoria pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Integrou como assistente as equipes de curadoria da Pinacoteca do Estado de São Paulo e do Museu de Arte de São Paulo, auxiliando em diversas exposições e pesquisas. Vive e trabalha em Berlim.

Istambul mira colapso da natureza

Instalação do coletivo Monster Chetwynd na ilha de Buyukuda na 16ª. Bienal de Istambul.

O que pode tornar relevante uma bienal? Ela não pode ser vista apenas como uma grande exposição e, especialmente pelos esforços e valores que costumam envolver, deve ir além disso. Entre as diferenças que uma bienal pode e deve fazer estão, e que tenho percebido como marcas que fazem a diferença: tratar de questões atuais de forma a ajudar a compreender o tempo presente; possuir uma relação com a cena local que provoque diálogos e aprofundamentos; envolver a cidade onde ela ocorre para além dos espaços convencionais; abarcar obras e debates que não se restrinjam à arte contemporânea e possibilitem tratar também da cultura em geral.

De certa forma, essas questões costumam estar presentes nas edições da Bienal de Istambul em maior ou menor grau, o que ocorre também em sua 16ª edição, a cargo do curador francês Nicolas Bourriaud.

No circuito da arte contemporânea, Bourriaud é das poucas vozes que assume um discurso mais denso, do ponto de vista conceitual, sendo responsável por textos e livros referenciais, como o dedicado à “estética relacional”, que pautou intenso debate no início do século 20. Tendo organizado várias outras bienais antes, como Lyon e Moscou — ambas em 2005 —, sua escolha representou pouco risco.

O Sétimo Continente, nome da edição em cartaz entre 14 de setembro e 10 de novembro desse ano, abordou uma temática que, em uma inteligente estratégia, escapou do difícil contexto político local para tratar de um problema universal: a imensa quantidade de lixo produzida pelo ser humano, tão grande que se transforma em uma área cinco vezes superior à Turquia, podendo ser considerada um novo continente.

O pano de fundo desse debate é justamente o conceito de Antropoceno, ou seja, a era que representa a transformação da natureza de forma tão drástica pela humanidade que sua ação passa a representar uma ameaça à sustentabilidade do próprio planeta.

Instalação de Gleen Ligon sobre o escritor norte-americano James Baldwin (1924–1987) na ilha de Buyukada, na 16ª Bienal de Istambul. FOTO: Sahir Ugur Eren

Para alívio de quem já vive um pesadelo, especialmente no país das queimadas, do óleo e das catástrofes das mineradoras, não se trata de uma bienal que olhe para o tema de forma ilustrativa ou militante, como se poderia imaginar. O onipresente O Peixe, de Jonathas de Andrade, que desde que participou da 32ª Bienal de São Paulo, em 2016, tem sido visto em dezenas de museus e espaços culturais pelo mundo e vista agora em Istambul, é um bom exemplo desse caráter metafórico do colapso da natureza. É só lembrar que o trabalho apresenta pescadores acariciando os peixes após pescá-los, um paradoxo que permite distintas leituras sobre a violência humana.

Jonathas está em exibição no Museu de Pintura e Escultura da Universidade de Belas Artes Mimar Sinan, uma das três sedes da 16ª Bienal de Istambul, escolhida, aliás, poucos meses antes da abertura, já que o espaço escolhido originalmente, o Estaleiro de Istambul, precisou ser descartado na última hora, após serem descobertos elementos tóxicos nele que inviabilizaram seu uso.

É lá que esteve também Circa (2006), da brasileira Anna Bella Geiger, uma instalação bastante complexa, que parte de um livro que mostra maquetes das pirâmides do Egito, que ela reconstrói no espaço com areia e tem no fundo uma projeção com imagens que abordam a ideia de representação.

O novo espaço, que antes da reforma serviu a outras edições da Bienal como Antrepo 5, agora é um museu com espaço expositivo de 11 mil m2, previsto para ser inaugurado em 2020, mas basicamente dividido em pequenas salas.

Esse caráter itinerante da Bienal de Istambul, onde a cada edição novos locais servem de sede, em uma cidade tão rica do ponto de vista histórico e arquitetônico, sempre foi um importante elemento em sua configuração. O novo museu, contudo, composto por essas pequenas salas, tirou parte do impacto da Bienal, que é o confronto entre obras, já que cada artista é visto individualmente. Para trabalhos como O peixe, foi a situação ideal, mas a falta de diálogo entre as obras tirou, definitivamente, a potência da mostra.

Por isso, as duas outras sedes, o Museu Pera e a ilha de Buyukada, ganharam relevância. O museu privado, que se dedica à história da cultura turca, tem três andares cedidos à Bienal, e boa parte do que é visto lá se dedica a refletir questões em torno da institucionalização da arte. Entre os destaques estão os desenhos do cientista alemão Ernst Haeckel (1834–1919), uma observação detalhada e microscópica da natureza, realizada no século 19, de impressionante sofisticação estética. É esse tipo de relação que torna uma bienal mais complexa, já que volta ao passado para apontar relações com o presente.

Outra obra nesse sentido é do educador norte-americano Norman Daly (1911–2008), que ao longo de décadas criou um museu ficcional de uma civilização denominada Llhuros a partir de materiais descartados como aparelhos de cozinha que, remontados de forma criativa, pareciam objetos pré-colombianos.

É no Pera que está também a pintura do brasileiro Glauco Rodrigues (1929-2004), Visão da Terra, de 1977, realizada durante a ditadura militar, que apresenta um homem branco como um líder populista.

Mas é em Buyukada que se revela outro dos pontos altos da mostra, por tratar de uma história real da cultura local, a presença do escritor negro gay norte-americano James Baldwin (1924–1987) na Turquia, em instalação de Gleen Ligon.

Sofrendo preconceitos em seu país, Baldwin saiu dos Estados Unidos no final dos anos 1940 e, na década de 1960, passou boa parte de seu tempo em Istambul, então um local acolhedor à diversidade cultural. Na instalação, Ligon exibe o filme From another place, de Sedat Pakay, realizado na Istambul, em 1970, com depoimentos de Baldwin, que pela primeira vez é visto lá com legendas em turco.

Em Buyukada estão outras quatro obras, entre elas a instalação do coletivo Monster Chetwynd, em um dos palacetes abandonados da ilha, que parece enfeite de Halloween, mas é um tanto adequando ao estilo decadente da ilha. Foi lá que Trotsky viveu exilado e sua casa, como tantas outras, parecem ruinas.

O Sétimo Continente não é a edição mais brilhante de Istambul, mas ao trazer um tema atual e importante, mantendo relações com a história local e ocupando espaços além dos tradicionais, segue mantendo-se como dos mais originais eventos do circuito.