Início Site Página 97

2016 | A arte de ser do contra

O artista Nelson Leirner – Foto: Marcos Pinto

Em meio a dezenas de imagens religiosas, um cortejo mais que sincrético destaca-se no Museu Afro-Brasil. Trata-se de O Cortejo (2009), instalação do artista Nelson Leirner, na qual bananas sobrevoam réplicas em miniatura de santos católicos e de figuras do candomblé e outras religiões, obra que faz parte do acervo permanente no núcleo Festas: o Sagrado e o Profano.

Essa versão é um desdobramento de O Grande Desfile, exibido pela primeira vez no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1983, a convite de Iole de Freitas, então diretora da Funarte. “Os objetos que eu usei eram colecionados como um hobby, o que aconteceu com a criação de muitos de meus trabalhos”, conta o artista.
Há 20 anos, Leirner, 84 anos, vive na capital carioca. Quando criou O Grande Desfile, contudo, residia em São Paulo, onde nasceu. “Eu gostava de ir à 25 de março ou às lojas da Liberdade comprar bugigangas. Sempre fui muito fascinado por esses objetos”, explica em seu apartamento no Jardim Botânico, no Rio, cercado de livros, obras de arte e algumas quinquilharias.

No MAM carioca, a obra era disposta em boa parte do museu: tinha início na portaria, com as menores peças, e ia estendendo-se até metade da escadaria central. Desde então, a instalação foi crescendo até alcançar três mil peças, há cinco anos, quando foi exposta e doada ao Museu de Arte Contemporânea de Niterói, passando a se chamar Terra à Vista.

Entre 1983 e 2010, a instalação foi crescendo e tendo nomes distintos. Exposta na galeria Luisa Strina, em 1985, chamou-se O Grande Combate, reunindo de baratas de plástico a réplicas da Vênus de Milo e do David, de Michelangelo. Vista na Pinacoteca, em 1986, chamou-se Grande Enterro. Em 1999, chegou a ser exibida na Bienal de Veneza, quando Leirner representou o Brasil.

Versões menores foram ainda criadas, como a que está em exibição no Museu Afro-Brasil. Em outubro, outra delas será exposta no Octógono da Pinacoteca do Estado, tendo sido recentemente doada por um colecionador ao museu paulista. “Agora não faço mais esse trabalho”, conta, como quem diz que não dá para ficar se repetindo ao infinito.

“Duchamp Bike II, 2011, fotografia, na qual o artista interfere na obra de Marcel Duchamp – Foto: Beatriz Cunha/ Cortesia Galeria Vermelho

Ao se apropriar de imagens da religião, da política, da história da arte ou mesmo do imaginário popular, Leirner segue uma operação que teve início nos anos 1960, quando desistiu dos pincéis. “A pintura era um processo muito lento para mim, e quando meu pai morreu, em 1962, eu percebi que tinha que mudar e comecei a me apropriar”, recorda-se.

Essa operação, contudo, não tinha inspiração em Duchamp, como se poderia supor. “Naquela época, a gente não tinha informação, eu só fui conhecer Duchamp nos anos 1970, quando comecei a dar aulas na Faap”, conta. Lá ele formou mais de cinco mil alunos, entre eles parte da Geração 80, como Leonilson e Leda Catunda.
Filho da artista Felícia Leirner (1904-1996), escultora de prestígio internacional com obras no acervo da Tate e do Centro Pompidou, com o empresário Isai Leirner (1903-1962), diretor do MAM-SP e conselheiro da Bienal, Leirner cresceu em um ambiente favorável à produção artística, cercado de figuras como o crítico Mário Pedrosa e o mecenas Ciccillo Matarazzo.

“Acho que meus pais queriam que eu fosse engenheiro ou artista. Primeiro, eles me mandaram para os Estados Unidos e lá entrei em um curso universitário de Engenharia Têxtil, mas acabei jubilado porque repeti três vezes o primeiro ano”, diz.

Com a carreira de engenheiro já encerrada mesmo sem ter começado de fato, a arte se tornou a opção. “Por influência dos meus pais, eu comecei a ganhar exposições e textos em catálogos sem que os galeristas e críticos sequer vissem minha obra.”

Leirner não vê uma ligação direta entre o sarcasmo de sua obra com o circuito da arte e as mediações de seus pais para o desenvolvimento de sua carreira. “Naquela época, toda nossa intensão era política e isso não se restringia aos artistas plásticos, mas a todos os artistas em geral”, diz ele, relembrando seus encontros com Ruth Escobar, Walmor Chagas, Cacilda Becker. “Minha relação com o teatro daria um livro”, afirma.

Após se livrar da engenharia e da pintura, Leirner radicalizou sua produção artística, sem influências do exterior, e sim do ambiente político dos anos 1960. É assim que deve ser vista sua mostra Playgrounds, realizada no MASP, em 1969, primeira exposição realizada nos 74 metros quadrados do vão livre projetado por Lina Bo Bardi. “O Pietro Maria Bardi (diretor do MASP) gostava muito de mim e me convidou para fazer essa mostra no vão”, conta.

“Sotheby´s, 2012, no qual Leirner subverte a obra da japonesa Yayoi Kusama – Foto: Beatriz Cunha/ Cortesia Galeria Vermelho

A mostra reunia 30 obras interativas, com objetos que o público podia manipular, em uma época que mesmo na cena internacional isso era raro. “Eu sempre trabalhei propondo a interatividade porque o princípio era a dessacralização da arte”, explica. Agora em março, em seu revisionismo às origens, o MASP organiza novamente Playgrounds, agora inspirada na mostra de Leirner, mas com outros artistas.

Transgressão era uma marca já na ação de Leirner quando da criação do Grupo Rex, há exatos 60 anos, com Wesley Duke Lee, Geraldo de Barros, José Resende, Carlos Fajardo e Frederico Nasser. Apesar de o grupo ter durado apenas dois anos, suas ações têm caráter histórico, como a introdução de happenings no País. Um dos mais famosos foi o que encerrou o grupo, no final de 1967, a Exposição-Não-Exposição. Organizada por Leirner, ela previa que os objetos podiam ser levados gratuitamente, o que esvaziou a galeria em poucos minutos, provavelmente a mostra mais curta da história.

Assim, bem-humoradas, as ações e obras de Leirner revelam uma carreira profícua em provocar o público e ampliar os limites da arte. Essas fronteiras se tornaram tão borradas que agora o próprio artista não vê muito sentido na produção contemporânea: “Para mim, arte hoje é como um jogo de xadrez com todas as peças da mesma cor”.
E isso é bom ou ruim, pergunto. “Não tem jogo”, responde enfaticamente.

Três exposições de artistas mulheres pelo mundo

Still do filme Colony, exposto em Land of Dreams
Still do filme Colony, exposto em Land of Dreams

Os retratos de Martine Franck e Nocturnes de Marie Bovo, em Paris

Inaugurada em 25 de fevereiro, a Fundação Cartier Bresson sedia até o dia 17 de maio mostras de Martine Franck e Marie Bovo, ambas sob curadoria da diretora artística Agnès Sire, que chegou a trabalhar com Franck antes de seu falecimento em 2012.

Anterior à atual mostra, a Fundação havia exposto um amplo acervo com as séries mais emblemáticas da fotógrafa belga vagando por seus registros de paisagens, fotorreportagens e retratos, estes últimos sendo o foco agora, “um retrato é sempre um encontro renovado” diria Franck, que não trabalhava em estúdio. A ela interessava saber por que certa coisa a incomodava ou atraía, e não “criar uma situação”. A ascensão de Franck se deu com seu retorno a Paris em 1964, quando tornou-se fotógrafa assistente da TIME/LIFE; em vida ela foi uma das membras-fundadoras da Agência Viva e uma das poucas mulheres a integrar a Magnum nos seus primórdios. De acordo com a Fundação “esses retratos face-a-face registram discretamente seu lugar no tempo e destilam a estética delicada de um olhar atento e penetrante”.

Já a artista visual espanhola Marie Bovo traz a série Nocturnes, que inclui uma seleção sem precedentes de imagens tiradas em Marselha e na África, durante o crepúsculo. “A fotografia noturna envolve longos períodos de exposição, e um dos efeitos de uma longa exposição é que, juntamente com a luz, o tempo se torna parte da equação”, justamente para enfatizar esse elemento as fotos são apresentadas em séries. Assim como a noite, é comum Bovo trabalhar na casa das pessoas, sem ser intrusiva, “no limiar da intimidade”.

Land of Dreams, em Londres

Até o dia 28 de março, a artista iraniana radicada em Nova Iorque Shirin Neshat apresenta sua primeira exibição solo em Londres em vinte anos, na Galeria Goodman. Land of Dreams engloba duas videoinstalações de Neshat e cerca retratos feitos através do Novo México onde a artista bateu porta-a-porta oferecendo 20 dólares para que pudesse capturar a imagem dos moradores. Seu locus foi escolhido pelo fato do Novo México – além de ser um dos estados mais pobres do país – conter uma população diversa que abarca tanto os estadunidenses brancos quanto os hispânicos, afro-americanos e descendentes de imigrantes e nativo-americanos.

Em uma narrativa ficcional, a estudante de arte Simin percorre o mesmo trajeto que sua criadora, tirando fotos e entrevistando os sujeitos sobre seus sonhos, para a Neshat, ao portal Artnet “os sonhos são muito parecidos, independentemente de onde você vem, nossos pesadelos e ansiedades são semelhantes. São medos sobre o envelhecimento, sobre a morte, guerra e deslocamento”.

A mudança de seu olhar para o seu lar adotivo é significante na trajetória de Neshat, marcada pela observação repleta de nuance de sua terra natal, levantando questões sobre a maneira como o Irã sofreu transformações ideológicas em tão curto tempo: tendo crescido no Irã, a artista testemunhou a ascensão do radicalismo nos anos seguintes à Revolução Iraniana de 1979. Na narrativa criada por Neshat, Os filmes em preto-e-branco altamente estilizados da artista seguem uma jovem estudante de arte iraniana, Simin, enquanto ela viaja pelos EUA tirando retratos e perguntando aos sujeitos sobre seus sonhos.

Políticas do desejo: para todes, tode, em Buenos Aires

Detalhe da obra de Elena Blasco, “Boceto apócrifo sobre La Libertad de Lola Mora”, 2016
Detalhe da obra de Elena Blasco, “Boceto apócrifo sobre La Libertad de Lola Mora”, 2016

Como parte das comemorações ao Dia Internacional da Mulher, em 5 de março o Centro Cultural Kirchner inaugura Políticas do desejo: para todes, tode, uma exposição coletiva que reúne obras de cerca de 250 artistas contemporâneas de todo a Argentina. A mostra abrange 3 andares do Centro Cultural e é dividida nas seções “Nós somos as filhas”, “Soberania corporal”, “Ética nos cuidados” e “Rematriado”  abrangendo as questões sócio políticas que geram demandas feministas relacionadas ao ambiente de trabalho, à violência contra a mulher, à igualdade entre gêneros, à saúde, à sexualidade ou maternidade, discutindo as práticas que relegaram as mulheres a um papel de “coadjuvante”. Mesmo com obras criadas a partir de meios distintos – entre pintura, escultura, instalação e artes performáticas – a mostra, sob curadoria da professora e escritora Kekena Corvalán, seu caráter diverso e heterogêneo não subjuga uma coerência conceitual e diálogo necessários para uma coletiva deste porte.

Veja também Maureen Bisilliat no IMS Paulista neste link.

Os desenhos de Tarsila em Itu e a jornada peculiar da artista

"Saci e três estudos de bichos", 1925. Grafite e aquarela sobre papel. Foto: Hugo Curti

A percepção de que o itinerário de Tarsila do Amaral foi bastante peculiar torna-se cristalina frente à coleção de seus desenhos, adquirida pela Fundação Marcos Amaro[1].

Afinal, dos 203 desenhos pertencentes à instituição, apenas sete foram produzidos após 1930, sendo que a artista, falecida em 1973, produziu até 1970[2]! Ou seja: de um percurso que se inicia “oficialmente” em 1923, apenas os primeiros anos estão ali regiamente contemplados, sendo que os quase quarenta anos seguintes se encontram praticamente fora da Coleção.

O que teria ocorrido com a produção de Tarsila a partir dos anos 1930? Teria seguido o mesmo padrão dos trabalhos da década anterior, ou caminharam para algum tipo de descarrilamento, rumo a algum desastre final?

Sabe-se que os desenhos que hoje integram a Coleção foram escolhidos por Aracy Amaral para a retrospectiva da artista no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1969. A discreta presença de desenhos realizados após 1930 pode ter tido dois motivos: Tarsila talvez não tivesse guardado obras daquele período ou então – o que parece mais provável – Aracy pode ter optado, acertadamente, exibir apenas o que considerava como sendo o melhor que a artista havia produzido.

Publicados no catálogo da mostra, tanto em texto da própria Aracy quanto em de Regina Teixeira de Barros, nota-se o quanto a produção das derradeiras décadas de atuação de Tarsila constrange as estudiosas, que lamentam – não sem razão, como será visto – que as produções da artista daquele período mal se comparam, em termos de qualidade e vigor àquelas dos primeiros anos. É como se o fim melancólico de Tarsila enquanto artista, contaminasse o final das reflexões das duas especialistas[3].

Essas constatações fazem aflorar de novo um problema que assombra a todos que se debruçam sobre a trajetória de Tarsila do Amaral: o que teria ocorrido com sua produção a partir dos anos 1930 que fez com que perdesse o vigor tão característico que demonstrava em seus trabalhos iniciais? A partir, portanto, das premissas surgidas tendo a Coleção adquirida pela Fundação Marcos Amaro como ponto inicial e dos textos escritos pelas curadoras, a proposta deste texto é chamar a atenção para algumas das obras consideradas mais significativas agora pertencentes à instituição e, por último, levantar algumas considerações que talvez contribuam para que, de fato, se inicie um enfrentamento direto desse problema que constrange a todos.

***

Entrar em contato com esses desenhos de Tarsila é mergulhar em algumas das produções mais instigantes da artista, desde sua iniciação com Pedro Alexandrino, no final dos anos 1910. São delicados os primeiros, onde ela anota as pessoas perdidas em momentos vagabundos do cotidiano. Seu traço é sutil, quase envergonhado por se aproximar de uma tradição em que ainda não se sente plenamente integrada. Passados poucos anos, no entanto, a timidez característica de muitos novatos parece ter sumido. Que Veneza deliciosa é aquela, captada por Tarsila, como se deslizasse numa gôndola? Desenho que, antes de registrar fielmente o local, atesta como a artista já percebia a importância do suporte bidimensional e o poder das linhas sobre ele.

Muitos falam que o desenho mais incisivo que Tarsila pratica a partir de 1923 estaria ligado a um gosto pela arte “primitiva”, que interessava a muitos naqueles anos. Creio que esse parâmetro foi importante para ela. Porém, existe neles uma nitidez, uma clareza impessoal nesses desenhos que me parecem informados pela fotografia e pela imagem publicitária dos cartazes, uma referência também presente em Léger – tão importante para Tarsila. Essa característica pode ser percebida, tanto numa obra realizada já em 1923 – vista de Veneza – quanto em produções posteriores, como uma paisagem com guindaste, de 1924 ou uma vista de Pireu, de 1926.

Reside justamente nessas possibilidades para um entendimento mais complexo do percurso de Tarsila a importância da Coleção. O autorretrato, produzido em 1923, por exemplo. Esse desenho é emblemático da capacidade da artista em transitar (ou oscilar?) entre a busca de uma grafia inaudita (fruto da miscigenação de procedimentos heterodoxos) – caso das paisagens citadas acima – e a ratificação dos valores do “bom desenho” tradicional, embora informado, é claro, por certas lições modernistas (convencionais, mas ainda assim, modernistas)[4].

“Autorretrato de cabelo curto”, 1923. Foto: Hugo Curti

Outro conjunto importante nesse contexto é aquele de estudos não-figurativos produzidos por ela em 1923 e 1925. Tarsila teria levado para a tela algum deles? Creio que não. O apoio da crítica brasileira tinha limites claros e para Mario de Andrade, por exemplo, nenhum artista brasileiro deveria “descambar” para a abstração[5]. Talvez esse tipo de posicionamento do crítico tenha refreado o interesse de Tarsila em levar adiante esse tipo de produção. No entanto, os projetos de pinturas estão ali na Coleção, à espera de alguém que tope enfrentá-los enquanto ideias/projetos frustrados ainda no nascedouro.

***

Essas questões levantadas acima a partir dessa coleção de obras de Tarsila são apenas algumas de um conjunto muito maior e repleto de potência, no sentido de um conhecimento mais aguçado sobre a produção da artista durante os anos 1920. No entanto, caberia a pergunta: o que nos resta de Tarsila, além dessa produção tão rica do início de carreira? Ora, a meu ver, nada nos sobra, mas o que a artista produziu durante aquele curto período de mais ou menos uma década, vale por uma obra inteira.

Circunscrever a obra de Tarsila entre 1923 e, mais ou menos, 1933, não significa querer instrumentalizar sua produção para que ela possa bem servir aos ditames de uma historiografia modernista já muito entrada nos anos. Trata-se de marcar os limites objetivos (e imensos, aliás) da sua contribuição para a arte produzida no Brasil, sem que nos preocupemos com questões exteriores à obra de arte e suas especificidades. É claro que suas produções, após Operários (1933), podem ser entendidas como “documentos históricos”, tornando-se fundamentais para historiadores e sociólogos, ou para historiadores da arte preocupados mais com a vida e o entorno dos artistas, do que com suas produções, de fato. Porém, não deveriam ser tidas como obras de arte dentro dos mesmos padrões de sua produção dos anos 1920. Tentar relativizar a distância imensa que separa esses dois grupos de produções, do ponto de vista artístico e estético, pode resultar em curiosas biografias, assim como em bons negócios financeiros, mas dificilmente será suficiente para que, num cotejo entre uma obra dos anos 1920 e outra dos anos 1950, por exemplo – mesmo que “pau-brasil” as duas – as diferenças não sobressaiam de maneira avassaladora.

As diferenças entre os mais importantes anos da carreira de Tarsila (entre 1923 e 1930) e o despencar de sua atitude perante a pintura moderna, (iniciado com sua fase “social”, do início dos anos 1930) é tão grande, mas tão imensa, que é até possível afirmar que sua obra, de fato, cumpre menos de uma década. Quando muito – se quisermos ser generosos –, poderiam ser acrescentados mais uns anos, para que se agregue ao corpus de suas pinturas “que contam”, a tela Operários – seu já combalido, mas definitivo, canto do cisne.

O que ocorreu com sua produção, do início dos anos 1930 em diante foi uma paulatina, mas fatal desagregação das qualidades que Tarsila conseguira juntar em suas pinturas e desenhos da década anterior. De Operários em diante só ocorreram tentativas sempre não exitosas de fazer reviver suas fases “antropofágica” (ver algumas de suas pinturas dos anos 1940) e “pau-brasil” (em que Tarsila insistirá até praticamente seu falecimento), entremeadas por pinturas em que, ora flertava com o realismo social portinaresco, ora com certo primitivismo, ou então com um franco apelo conservador, “acadêmico”.

Existem justificativas para essa dissolução: a partir dos anos 1930, Tarsila não teria sido mais tão incentivada como de início, em que sua pintura contou com o apoio de alguns dos mais importantes nomes do Modernismo; após aquela data, destituída de sua antiga situação financeira abastada, ela teria produzido o que produziu porque, afinal, precisava trabalhar para sobreviver e assim por diante. Muitas outras alegações poderiam ser levantadas aqui para explicar seu malogro, mas sejam quais forem os atenuantes, o fato é que nenhum deles será encontrado fora da condução que a artista deu para o encadeamento de seu trabalho. Após 1930 nota-se que Tarsila simplesmente não conseguiu manter a pertinência de suas fases anteriores, e nem mesmo as várias retomadas dessas fases foram capazes de fazerem reviver seu antigo vigor, porque foram revisões fracas, sem nenhuma autoconfiança.

Anita Malfatti também sofreu processo semelhante, mas com diferenças importantes. Embora muitos atestem que, após 1917, ela não alcançaria mais a potência que antecedeu as exposições que fez naquele ano, é importante lembrar que já no final daquela década e até os anos 1930, Anita pelejou para redirecionar sua poética para rumos distanciados das vanguardas históricas (com quem flertara entre 1910 e 1916/17), unindo-se ao retorno à ordem internacional, que angariou vários adeptos no Brasil. O “pecado” de Anita foi não ter alinhado sua produção realista e sintética do retorno à ordem, à temática nacionalista, tão cara ao meio intelectual brasileiro da época. Independente daqueles que a marginalizaram a partir de 1917, é forçoso afirmar que Malfatti seguiu fiel aos novos encaminhamentos pensados para sua produção, constituindo uma obra que – independente de gostarmos ou não – tem lá sua coerência.

“Original da ilustração Beatriz lendo IV”, 1945. Nanquim sobre papel. Foto: Hugo Curti

Com Tarsila isso não ocorreu. É interessante atentarmos para a sucessão de fases que ela atravessou, de 1923 ao início da década seguinte, filiando-se a vertentes opostas entre si, dentro do quadro da vanguarda internacional dos anos 1920. Vejamos: da fase “pau-brasil”, encantadora – e que soube responder às demandas por uma arte brasileira moderna, recebendo acolhida positiva junto à crítica –, Tarsila lançou-se à fase antropofágica, em que supostamente se esqueceu da rigorosa dimensão analítica da sua primeira fase para mergulhar nos ensinamentos da pintura metafísica de De Chirico e do surrealismo.  Ora, entre a pintura pau-brasil e a pintura antropofágica existe um abismo considerável. Enquanto a primeira enfatiza a necessidade da lógica e da razão para encetar a obra de arte, o segundo aposta no irracional, no subterrâneo da memória pessoal e coletiva para se articular. Felizmente Tarsila conseguiu pular entre uma margem e outra da arte moderna sem alterar a qualidade de sua produção. Porém, mesmo que suas obras da fase antropofágica se mostrem ainda tão significativas quanto aquela do período “pau-brasil”, a recepção que obteve da intelectualidade modernista parece não ter sido a mesma.

Porém, o pulo do racionalismo de Léger e cia. para a metafísica de De Chirico, não foi o único naqueles gloriosos anos de Tarsila. Na visita à União Soviética, de repente ela dá outro salto (estético/ideológico), jogando-se nos braços do realismo socialista, vertente que se opunha, tanto à racionalidade das vertentes construtivas, quanto aos mistérios do surrealismo, ambas emanações da arte “burguesa” para os parâmetros soviéticos. É claro que ela tentou atenuar o autoritarismo da vertente que abraçara, arriscando levar para ela certa “delicadeza” que já impregnara suas fases anteriores. Mas não foi feliz na empreitada. Cá entre nós: nenhuma de suas pinturas produzidas durante sua fase “realista socialista” e aquelas produzidas depois, se comparam, em termos de qualidade de concepção/realização, às suas duas fases anteriores.

Acima mencionei o fato de que Tarsila, após sua fase “realista”, teria tentado “copiar a si mesma”, produzindo trabalhos que repetiam temas e soluções plásticas já desenvolvidas nos anos 1920. Esse procedimento nos remete a Giorgio de Chirico (caro a Tarsila) que durante o período final de sua vida, levou adiante uma série de pinturas em que “pintava a si mesmo”. Antes de falecer, De Chirico, aparentemente como Tarsila, também produziu uma série de obras em que “refazia” pinturas metafísicas muito próximas daquelas por ele concebidas no início de carreira. No entanto, ao contrário dela, De Chirico encetou, durante sua longa trajetória, uma volta particular às origens. Somente após transitar por grande parte dos principais períodos da história da arte ocidental (De Chirico foi renascentista, barroco, neoclássico, romântico etc.), foi que ele retornou à pintura metafísica que ajudou a constituir no início do século passado.[6] Apreciando ou não sua obra, o fato é que essas produções dos últimos anos de vida de De Chirico guardam uma coerência que, se não foi fiel à busca da originalidade (desejada pelos modernos), jamais traiu sua radical busca da origem da própria pintura. O que, infelizmente, não ocorreu com Tarsila.

Finalizo estas considerações voltando à Coleção de desenhos de Tarsila que estão na Fundação Marcos Amaro e atentando para o quanto é fundamental que tenhamos abertas ao público coleções como essa. O contato direto com os desenhos da artista e a possibilidade de também ler os textos das curadoras, presentes no catálogo da exposição que acontece a partir de 14 de março em Itu, conseguiram mobilizar e, de alguma maneira, configurar uma série de questões que vinha acalentando sobre a produção da artista, mas que, até então, não tinha tido chance de elaborá-la e dar-lhe uma primeira e ainda tímida sistematização. Saio dessa experiência com outra compreensão do papel desempenhado por Tarsila do Amaral no cenário da arte brasileira da primeira metade do século passado e isso somente foi possível pela generosidade da Fundação Marcos Amaro, que tornou pública essa série de trabalhos, depois deles terem ficado trancafiados durante cinquenta anos, em uma coleção particular, e longe da vista de todos!

Espero que a Coleção não propicie apenas novos estudos sobre Tarsila, que aprofundem sua importância e singularidade, mas também que um novo público entre em contato com a produção dessa artista que, em tão poucos anos, fez tanto para a visualidade do país. E termino perguntando: e para que existem coleções como essa, a não ser para entreter, ensinar e, sobretudo, para colocar a cabeça das pessoas para funcionar?


Estudos e Anotações, de Tarsila do Amaral
Curadoria de Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros
Abertura: 14 de março, sábado, a partir das 14h
Fábrica de Arte Marcos Amaro (FAMA Museu): Rua Padre Bartolomeu Tadei, 9, Itu, São Paulo
Visitação: quarta-feira a domingo, das 10h às 17h


[1] – A Coleção em breve será disponibilizada ao público na mostra Tarsila. Estudos e Anotações, a ser inaugurada na Fábrica de Arte Marcos Amaro, em Itu, com curadoria de Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros.
[2] – Sobre a obra de Tarsila do Amaral, consultar: SARTUNI, Maria Eugenia (Dir.) / BARROS, Regina Teixeira de (org.Ed.) Catálogo Raisonné Tarsila do Amaral, São Paulo: Base 7 Projetos Culturais: Pinacoteca di Estado, 2008. Vol.1, 2, e 3.
[3] – Ler: “Tarsila. Desenhos”, de Aracy Amaral e “Sobre os desenhos de Tarsila”, de Regina T. de Barros. In AMARAL, Aracy; BARROS. Regina T. de (curadoras.). Tarsila. Desenhos. Itu: Fundação Marcos Amaro, 2020. Além dos textos citados e das imagens das obras, o catálogo conta também com importantes textos sobre conservação e restauro das obras da Coleção: “Conservação e restauro I”, de Ana Maria C. Scablianti (e outros); “Conservação e restauro II”, de Ana Nakanderkara e “Conservação nas obras de Tarsila do Amaral. Coleção Kogan Amaro”, de Isis Baldini.
[4] – Reparem que no Autorretrato, apesar de sua estruturação geométrica “moderna”, persistem valores muito afeitos à celebração da “mão” da artista, edulcorando a imagem – procedimento, aliás, que Tarsila tenderá a suprimir em seus reconhecidos autorretratos daquela mesma década.
[5] – Sobre as relações de Mario de Andrade com a arte moderna, consultar, entre outros: CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza. A crítica de arte de Mario de Andrade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007.
[6] – Como bem lembrou o crítico italiano Renato Barilli em diversas ocasiões (Ver, entre outros, BARILLI, Renato. L’arte contemporanea. Da Cézanne alle ultime tendenze. Seconda edizione. Milano: Feltrinelli Editore, 1985.

Retrospectiva celebrará Ulay no Museu Stedelijk

Ulay, "S’he", 1973. IMAGEM: Courtesy of Ulay Foundation

“Leva muito tempo, talvez uma vida inteira, para entender Ulay”, disse Marina Abramović certa vez sobre Frank Uwe Laysiepen, com quem ela compartilhou uma das mais famosas relações artísticas. Ulay, falecido na última segunda-feira aos 76 anos, nasceu em Solingen, na Alemanha, num bunker do período militar. Em 1969, insatisfeito com cenário burguês de seu país natal e tendo começado a estudar fotografia, ele deixou a Alemanha com destino a Amsterdã, onde seria contratado no ano seguinte como consultor para a Polaroid.

Graças aos equipamentos fornecidos pela companhia, Ulay deu início à série Resnais Sense, sendo essa uma exploração da identidade e das diferenças de gênero através da fotocolagem. Um pioneiro na fotografia, na performance e na arte corporal, ele ganhou notoriedade durante sua colaboração de longo prazo com sua então parceira Marina Abramovic, iniciada em 1976. Antes disso, no mesmo ano, Ulay realizou a singular performance There Is a Criminal Touch to Art, na qual ele roubou a pintura favorita de Adolf Hitler de um museu em Berlim, pendurando-a na parede de uma família de imigrantes turcos empobrecidos e chamando a polícia logo em seguida para virem prendê-lo.

Até 1988, já com Abramovic, conduziu os chamados Relation Works, 14 peças intensamente físicas e seminais para a arte performática. Seu último trabalho em conjunto foi o intitulado The Lovers, uma jornada de meses suportada por ambos – ela partindo do Mar Amarelo, ele do Deserto de Gobi – com fim comum no intermédio da Grande Muralha da China concomitando em seu último adeus até que o antigo casal se encontrasse novamente com uma aparição surpresa de Ulay durante a realização de The Artist is Present, na retrospectiva de Abramović no Museu de Arte Moderna de Nova York, em 2010. O reencontro foi emocionalmente pivotal para os artistas e a gravação do momento já bate milhões de visualizadores no YouTube.

Em novembro de 2020, uma grande retrospectiva de seu trabalho será organizada no Museu Stedelijk, em Amsterdã. Seu legado será mantido pela Fundação ULAY, inaugurada no ano passado em Ljubljana.

Prêmio EDP nas Artes tem inscrições abertas para jovens artistas

Trabalho de Iagor Peres, vencedor na edição de 2018. Foto: Divulgação

Com o objetivo de estimular a arte contemporânea brasileira produzida por jovens entre 18 e 29 anos, o 7° Prêmio EDP nas Artes tem suas inscrições abertas entre os dias 3 de março e 3 de abril (clique aqui para acessas inscrições e edital). Serão selecionados dez participantes que receberão em seus ateliês o acompanhamento crítico da equipe de jurados e, ao final do processo, participarão de uma mostra coletiva no Instituto Tomie Ohtake.

Além de apoiar o percurso artístico destes selecionados no processo de realização das obras, este acompanhamento implementa os critérios para a escolha dos três premiados finais, anunciados no dia da abertura da exposição, em 1o de outubro. Estes três artistas receberão bolsas para residências artísticas no exterior.

O prêmio é voltado a jovens artistas de todo o Brasil, nascidos ou residentes no país há pelo menos dois anos e, além da premiação, contempla uma série de atividades ao longo do ano, como debates e oficinas, inclusive em regiões brasileiras onde o acesso à arte contemporânea é mais restrito. A primeira, o debate “Carreira de Artista”, acontece no dia 10 de março, às 19h30, no Instituto Tomie Ohtake, quando o público poderá interagir com as artistas Ana Almeida, Carla Chaim e Leda Catunda.

“O prêmio EDP nas Artes é uma das principais ações da Companhia nessa frente, estimulando o desenvolvimento da arte contemporânea e ajudando a revelar novas gerações de grandes artistas”, afirma Luis Carlos Gouveia Pereira, diretor do IEDP, em texto de divulgação do prêmio. Na edição anterior, em 2018, os premiados com residências artísticas internacionais foram Marie Carangi (Recife); Elilson Gomes Do Nascimento (Recife) e Iagor João Barbosa Peres (Rio De Janeiro).

 

Projeto Documenta Pantanal terá espaço na SP-Arte

Foto de uma tempestade sobre o Rio Touro Morto no Mato Grosso do Sul, durante o período de das chuvas no Pantanal. Por Luciano Candisani
Foto de uma tempestade sobre o Rio Touro Morto no Mato Grosso do Sul, durante o período de das chuvas no Pantanal. Por Luciano Candisani

Projeto Documenta Pantanal trará o trabalho de 3 dos seus integrantes, Araquém Alcântara, João Farkas e Luciano Candisani, para a SP Arte – feira de arte que reúne mais de 2 mil artistas brasileiros e internacionais todos os anos, sediada no Pavilhão da Bienal durante os dias 1º e 5 de abril em 2020.

Alcântara está em atuação desde 1970 e foi o primeiro fotógrafo a documentar todos os parques do Brasil, também se destacando por ter realizado um ensaio sistemático sobre os ecossistemas e as unidades de conservação do país. Farkas codirigiu, ao lado do diretor Jorge Bodanzky, o filme Ruivaldo, O Homem que Salvou a Terra e lançará em abril deste ano o livro Pantanal, com imagens realizadas ao longo de 6 expedições no bioma. Candisani, depois de ter produzido por duas décadas narrativas imagética que interpretam culturas tradicionais e ecossistemas ao redor do mundo, se dedica atualmente à produção de um ensaio sobre a beleza e a importância da dinâmica da água no Pantanal.

Onça fotografada no Pantanal por Araquém Alcantara
Foto de Araquém Alcantara

De acordo com a organizadora do Documenta, a produtora cultural Mônica Guimarães, a participação desses três profissionais contribui para ilustrar como a fotografia é importante na criação de um pensamento que estimule a preservação do Pantanal: “O olhar sensível de cada um deles para as variadas facetas da região pantaneira expõe, além da exuberante natureza desse ecossistema, sua fragilidade e chama a atenção para a necessidade de sua urgente conservação”.

Sobre Documenta Pantanal

O projeto prevê o desenvolvimento de ações multimídia (exposições, livros e vídeos) como chamado à sociedade para a urgência em conhecer e preservar este patrimônio, com intuito de falar com um público amplo – procurando aproximar pesquisadores, acadêmicos, produtores ligados ao agronegócio, grupos com interesses em conservação, turismo, jornalistas e educadores – para colocar o Pantanal na agenda da opinião brasileira.

Nove galerias brasileiras participam da ARCOmadrid 2020

Valeska Soares E Mauro Restiffe, “Proscenium”, 2018. No estande da Fortes, D'Aloia & Gabriel.

A feira ARCOmadrid 2020 reúne, entre 26 de fevereiro e 1 de março, um total de 209 galerias de 30 países em seus setores principais. Realizada pelo IFEMA (Institución Ferial de Madrid), entidade responsável por organização de eventos, a feira tem como foco o Programa Geral, composto por 171 galerias selecionadas pelo Comitê Organizador.

É apenas uma questão de tempo é uma proposta especial para uma seção desta ARCOmadrid. Esta seção é comissariada por Alejandro Cesarco e Mason Leaver-Yap e é composta por 16 artistas de 13 galerias. Esse projeto propõe observar a  prática artística a partir da obra do artista cubano-americano Felix Gonzalez-Torres. O setor Diálogos, que inclui 10 galerias selecionadas por Agustín Pérez Rubio e Lucía Sanromán, oferece uma análise da criatividade contemporânea focada no diálogo entre duas criadoras, prestando atenção especial à maneira como as mulheres praticam arte na América Latina e aos pontos em comum na obra de artistas de diferentes gerações.

Já o programa Opening é novamente um espaço para descobrir novos trabalhos na feira, com 21 galerias selecionadas pelo brasileiro Tiago de Abreu Pinto e pelo turco Övül Ö. Durmusoglu, que representará o compromisso com jovens galerias internacionais.

As representantes brasileiras na ARCOmadrid deste ano são as galerias Anita Schwartz Galeria De Arte, Baró Galeria, Casa Triângulo, Fortes D’aloia & Gabriel, Jaqueline Martins, Luisa Strina, Sé, Superfície e Vermelho, que levam artistas brasileiros e também internacionais para seus estandes.

Confira toda a programação no site do evento.


ARCOmadrid 2020
de 26 de fevereiro a 1 de março
Avenida del Partenón, 5 28042, Madrid, Espanha

Onde nós estávamos quando não estávamos aqui?

Cena do filme "Você Não Estava Aqui", de Ken Loach. Foto: Divulgação.
Cena do filme "Você Não Estava Aqui", de Ken Loach. Foto: Divulgação.

“No último sábado à noite eu me casei. Eu e minha esposa nos estabelecemos. Agora, eu e minha esposa estamos separados. Vou dar um passeio pela cidade”. Canta uma senhora, Rosie, ao pentear o cabelo de Abby (Debbie Honeywood), que está sentada na frente dela com as pernas e os braços juntos e organizados de forma harmoniosa, disfarçando em partes – com sua postura e a rapidez de enxugar seus olhos – o estado emocional fragilizado. Não é uma cena crucial, nem pivotal, mas é dotada da gentileza e candura habilmente injetadas em conjunto no novo filme do cineasta britânico Ken Loach, aos 83 anos de idade — vigoroso, ainda. 

Sorry We Missed You, traduzido no Brasil para Você Não Estava Aqui, diz respeito a Abby e sua família, em Newcastle, no nordeste da Inglaterra. Ela é uma enfermeira e cuidadora de idosos e pessoas com mobilidade reduzida que trabalha em um “esquema de sem garantias”, recebendo apenas pelos serviços prestados e trabalhando apenas quando é chamada pelo patrão. Seu marido, Ricky (Kris Hitchen), perdeu o emprego na área da construção civil e a chance de obter uma hipoteca após o colapso econômico de 2008. Sob indicação de um amigo ele começa a trabalhar como motorista autônomo, conceito que nos é explicado logo no começo do filme pelo supervisor da frota, Maloney (Ross Brewster): “Você não é contratado aqui, [você] entra a bordo. Algo que gostamos de chamar de integração. Você não trabalha para nós, [você] trabalha conosco. Você não dirige para nós, [você] realiza serviços”

 

Mesmo perdendo o temperamento algumas horas, Ricky é um pai afetuoso, como também é Abby, cuja convivência com pessoas prejudicadas por questões da velhice e do abandono talvez faça com que ela invista de forma profunda na união da sua família — uma tarefa difícil tendo em mente as longas jornadas do casal. “Estou vendo aqui. Das 7h30 da manhã até as 21h? E as jornadas de oito horas?”, pergunta Molly, outra das senhoras sob cuidado de Abby. Como consequência, há um peso imbuído por ambos, uma culpa parental por não passarem tempo suficiente com as crianças Seb (Rhys Stone) e Liza Jane (Katie Proctor). “Ele está crescendo todo dia diante dos nossos olhos. Quer dizer, isso quando o vejo”. O maior (cuja observação empática do autor pode lembrar O Garoto da Bicicleta dos Dardenne, ou até De Cabeça Erguida, primogênito de Emmanuelle Bercot na direção) tem talento para o Grafitti, mas começa a perder aulas e acaba por se encrencar com a polícia, enquanto a menor é inteligente a ponto de surpreender o próprio pai, contudo, preocupa Abby e Ricky quando rompe a ter problemas para dormir.

Onde nós estávamos quando não estávamos aqui?

As questões que entremeiam Você Não Estava Aqui são trazidas por Loach em tempo hábil, principalmente o que pode ser relacionado com a “Sociedade do Cansaço” (conceito pelo filósofo sul coreano Byung-Chul Han) e a lógica “24/7” (destrinchada pelo crítico de arte e ensaísta Jonathan Crary). Chegamos a uma fórmula de sociedade onde não existem intervalos de calma, descanso ou aposentadoria. Há, em seu lugar, um cansaço coletivo, uma “implacável tradução para o valor monetário de qualquer intervalo de tempo possível ou de qualquer relação social concebível, de tornar todos os elementos de nossas vidas conversíveis aos valores do mercado”, como afirma Crary, complementando que o tempo para o descanso ou o bem-estar é simplesmente caro demais na visão da atual economia global, a mensagem transmitida? É a que, assim, a sobrevivência a longo prazo do indivíduo torna-se cada vez mais dispensável. 

A exemplo disso, tanto Maloney quanto seus “companheiros de frota” obedecem com medo quase ozymandiano ao aparelho que registra as entregas, no qual, os motoristas — dentro de uma cadeia macro — não passam de registros digitais passíveis de monitoramento: “o digital não pesa, não tem cheiro, não opõe resistência”, comentaria Han. O autor da Sociedade do Cansaço, para o jornal El País, coloca que “precisamos de um tempo próprio que o sistema produtivo não nos deixa ter; necessitamos de um tempo livre, que significa ficar parado, sem nada produtivo a fazer, mas que não deve ser confundido com um tempo de recuperação para continuar trabalhando”.

Ainda que o longa não quebre barreiras dentro da filmografia de Loach, ele ecoa um lamento — compartilhado por Paul Laverty, roteirista da obra e colaborador de longa data do cineasta — que importa mais que nunca vide o movimento de “uberização da economia” que é causa e agravante dos fenômenos descritos acima. “Eu pensei que fosse meu negócio”, argumenta Ricky, recebendo de Maloney a resposta: “Sim, mas é minha franquia”

Uma pesquisa do IBGE apontou que 38,8 milhões dos 93,8 milhões de pessoas que compõem a força de trabalho no Brasil atuavam na informalidade no terceiro trimestre do ano passado. Assim como para Ricky, não há salário fixo, benefícios ou folgas. Enquanto isso, ficam para o trabalhador praticamente todos os custos do serviço, da manutenção ao transporte, da internet ao seguro. A liberdade vai se rarefazendo ao contrário da imagem inicial vendida por aplicativos como o que nomeia esse movimento.

Apesar da rispidez do assunto, Loach consegue trazer certo humor à questão através de algumas derrapadas cômicas de Ricky — incluindo uma tentativa absurda de fugir de uma fiscal de rua e um toma lá dá cá com um cliente que se mostra torcedor do time rival — e utilizando da figura de Maloney, cujo positivismo estilo “coaching” é por si só uma chacota.  

Últimos pensamentos

Às vezes o longa-metragem é didático demais, com uma aproximação um tanto formulaica, algo que podemos relevar tendo em vista o caráter de diálogo com o público britânico que Laverty consegue estabelecer por essa aproximação. É uma história carregada a oito mãos: a família – passando pelos desgastes do mercado livre, pelo encerramento do estado de bem estar e pelas atribulações demonstradas pelos criadores – ainda é o foco do filme, é seu objeto, o avatar de todas as questões macro da história e quem permite que o roteiro de Laverty tome formato. Seria difícil pensar a execução de Você Não Estava Aqui sem esse conjunto de atores. Aliás, o cineasta mantém sua tendência a encontrar novos rostos que parecem ter nascido para suas histórias, encarando a progressão narrativa com sinceridade. Essa espécie de protagonismo coletivo nos permite também examinar o impacto, reverberado em escala familiar e através dessas duas gerações, da série de frustrações sofridas por Abby e Ricky em seus trabalhos.

Em cena de "Você Não Estava Aqui", Ricky (Kris Hitchen) e Liza Jane (Katie Proctor) sentam juntos para comer durante o intervalo de entregas.
Ricky (Kris Hitchen) e Liza Jane (Katie Proctor) sentam juntos para comer durante o intervalo de entregas.

Para Ken Loach — em entrevista ao El País —, ainda há motivos para esperança: “O primeiro é que os povos sempre resistirão e alguém sempre lutará. O segundo é que vivemos em um sistema que não pode continuar por mais tempo. Pensemos, por exemplo, no trabalho dos entregadores que utilizam gasolina para fazer suas entregas, quando o petróleo tem os dias contados. Estamos destruindo os pequenos comércios nos centros das cidades e dos povoados, encomendando e comprando tudo pela Amazon. Queremos continuar assim?”. 

A Gentil Carioca inaugura a 16ª edição do projeto Abre Alas

Obra de Darks Miranda.

A galeria A Gentil Carioca apresenta exposição coletiva que traz obras de artistas selecionados no edital Abre Alas 16, tendo nesta edição  Keyna Eleison, Pablo León de la Barra e Yhuri Cruz na comissão de seleção e curadoria.

Os artistas selecionados são Andre Niemeyer, Andréa Hygino, Darks Miranda, Fátima Aguiar, Gilson Andrade, Juliana dos Santos, Leka Mendes, m. morani, max wíllà morais, Mulambo, Nathalia Favaro, Reitchel Komch, Val Souza e Yan Copelli.

Além disso, a galeria traz A Porta na Parede, de Ana Linnemann, para integrar a 35ª Parede Gentil e convidou o artista de Marcos Abreu para realizar a arte da 86ª Camisa Educação, que traz a estampa de uma bandeira geométrica escura com a imagem do livro Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire.

A exposição, primeiramente programada para terminar em março, foi prorrogada até o dia 9 de abril.

Três seleções artísticas para aproveitar o carnaval

Foto do ensaio sobre a Estação Primeira de Mangueira, realizado por Maureen Bisilliat em 1969.
Foto do ensaio sobre a Estação Primeira de Mangueira, realizado por Maureen Bisilliat em 1969.

Agora ou Nunca – devolução: paisagens audiovisuais de Maureen Bisilliat

Em Agora ou Nunca – devolução: paisagens audiovisuais de Maureen Bisilliat, a fotógrafa inglesa Maureen Bisilliat, radicada desde 1957 no Brasil, reúne pela primeira vez em uma exposição parte de sua produção audiovisual, com extratos de 12 vídeos. 

Bisilliat começa a traçar um percurso relevante em vídeo a partir dos anos 1980, quando já era consagrada no campo da fotografia. A mostra busca seus registros, apresentando um panorama de sua produção mais recente como também uma resposta àqueles que foram retratados por ela antes em suas fotografias. Há entrevistas com Darcy Ribeiro, Roberto Burle Marx, Pietro Maria Bardi e Alberto Korda. Destaque para o vídeo Morro da Mangueira, onde ela reencontra personagens fotografados por ela na década de 1960, quando em trabalho para a Revista Quatro Rodas.

Suas imagens dos mangueirenses em trajes verde e rosa (as cores da Estação Primeira de Mangueira), incluindo um retrato do compositor Cartola, foram feitas no próprio morro onde fica a escola e compuseram as matérias É sempre verão nesta baía e A batucada dos bambas. Alguns destes registros e outros feitos por Bisilliat na Banda de Ipanema nas décadas de 1960/70 podem ser consultados no seu próprio acervo no Instituto Moreira Salles

QUANDO: A visitação vai até o dia 5 de abril às 20h
ONDE: Galeria 1 do Instituto Moreira Salles Avenida – Avenida Paulista, 2424, São Paulo/SP

Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia

A foto mostra a escultura "Cristo Mendigo" que foi o carro abre-alas do desfile Ratos e Urubus. Na imagem, a escultura é coberta por sacos de lixo como uma censura, e carrega a faixa que diz "Mesmo proibido olhai por nós!"
Abre-alas “Cristo Mendigo” no desfile Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia. Foto: Sebastião Marinho (Agência O Globo)

Com título homônimo ao emblemático desfile da escola de samba Beija-Flor de Nilópolis – ocorrido há alguns carnavais, mais especificamente no amanhecer de 7 de fevereiro de 1989 – a exposição que ocupa a Galeria Tarsila do Amaral, no Centro Cultural São Paulo (CCSP), presta homenagem ao desfile e ao carnavalesco Joãosinho Trinta, que se referia ao evento como uma “Ópera de Rua”. 

Na mostra, Ratos e Urubus entra como mais que inspiração ou referência, o samba enredo é trazido como uma das obras componentes da exposição, através de um trabalho curatorial com os registros imagéticos e em vídeo do desfile, os esboços dos carros alegóricos e o “por trás das cenas” do seu processo de construção. Raphael Escobar, Barbara Wagner e Benjamin de Burca, Nuno Ramos e Márcia X integram a exposição com trabalhos selecionados e também obras comissionadas. Confira nossa matéria na íntegra clicando neste link.

QUANDO: A visitação vai até o dia primeiro de março às 20h30
ONDE: Galeria Tarsila do Amaral, no Centro Cultural São Paulo (CCSP) – Rua Vergueiro, 1000, São Paulo/SP

FAZ QUE VAI 

Still da videoinstalação "FAZ QUE VAI" de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca mostrando o dançarino Edson Vogue
Still da videoinstalação “FAZ QUE VAI” de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca

“Faz que vai”, passo do frevo que simula um momento de instabilidade, nomeia o curta de 12 minutos da dupla de artistas audiovisuais Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Para a obra, eles retratam quatro bailarinos em seus respectivos modos de articular uma forma dessa tradição popular do estado do Pernambuco. Aliás, este é um dos pontos de maior interesse da dupla ao desenvolver o projeto: a atualização da tradição – um lugar de instabilidade para os artistas, que se relaciona metaforicamente com o próprio movimento do faz que vai. 

O frevo surge logo após o fim da escravidão no Brasil, quando as tropas no carnaval das bandas militares contratavam grupos de capoeiristas para liderar a procissão e afastar as gangues de rua da cidade ao abrir suas sombrinhas em frente à multidão como um movimento de controle de multidões improvisado. Quando as sombrinhas diminuíram e os movimentos dos capoeiristas começaram a ficar cada vez mais estilizados o frevo apareceu. Ao longo da nossa história, pessoas de diversas origens encontraram meios de expressão coletiva em oposição ao colonialismo. Hoje, o frevo se tornou patrimônio da UNESCO e é ensinado em escolas. 

No caminho de atualizar a tradição, os capoeiristas de Wagner e de Burca não são guarda-costas masculinos, mas em sua maioria homens afeminados e uma mulher trans. Em seu trabalho, a manifestação dessa dança de rua, num espaço tridimensional, se transforma completamente diante da câmera tecendo uma série de anotações entre ela, o corpo registrado e a dança típica que o movimenta, sem perder de vista a música como cerne da questão já que para a dupla “a música é o elemento que constitui uma espécie de fundamento para as práticas que pesquisamos. Seja de dança, dos videoclipes, da canção”.

Confira o trabalho completo no site de Wagner e de Burca, acessando este link.