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Exposição em Nova Iorque aborda tempos autoritários no Brasil

Capa edição 43 - Sem Título - Moisés Patrício
Obra Sem Título da série "Aceita?", de Moisés Patrício. A obra foi capa da nossa edição 43.

A exposição Against, Again: Art Under Attack in Brazil aborda a presente onda transnacional de autoritarismo, apresentando diversas práticas artísticas que respondem à opressão no Brasil. Desde a ascensão de um movimento político conservador nos últimos anos, que resultou na eleição de um presidente de extrema direita em 2018, até as posteriores ameaças e ataques contra políticos, ativistas, intelectuais e artistas.

A exposição desenvolve um breve diagnóstico desses tempos e também analisa as condições históricas do autoritarismo no Brasil, mostrando como os artistas prosperaram e criaram novos imaginários para lidar com a opressão.

A mostra tem curadoria de Tatiane Schilaro e Nathalia Lavigne e foi organizada pela AnnexB, se estendendo entre 14 de fevereiro até 3 de abril de 2020 na Anya and Andrew Shiva Gallery, que fica dentro do John Jay College of Criminal Justice. Estão presentes na exposição obras dos artistas Sonia Andrade, Maria Thereza Alves, Marcelo Amorim, Giselle Beiguelman, Rafael BQueer, Nino Cais, #CóleraAlegria, Jonathas de Andrade, Anna Bella Geiger, Hudinilson Jr., Clara Ianni, Eduardo Kac, Randolpho Lamonier, Jaime Lauriano, Antonio Manuel, Arjan Martins, Virginia de Medeiros, Cildo Meireles, Ismael Monticelli, Rafael Pagatini, Anna Parisi, Regina Parra, Moisés Patrício, Dalton Paula, Aretha Sadick e João Simões, Berna Reale, Sallisa Rosa, Aleta Valente, Regina Vater, Igor Vidor.

De Geiger a Sidney Amaral: o colapso do autorretrato continua

Felipe Cama, "Notícias de lugar nenhum (made in China)".

Por que uma pessoa se retrata hoje em dia? Não falo do selfie, essa praga a que todos nós estamos sujeitos a olhar (e a produzir, muitas vezes), mas ao autorretrato supostamente artístico e presumivelmente fruto de uma necessidade de se mostrar ao mundo como um sujeito autônomo.

Será possível que esse tipo de autorretrato ainda seja viável, após as produções de Anna Bella Geiger, comentadas no último artigo aqui publicado[1]? Afinal, ainda nos anos 1970, ela usou a própria imagem para discutir a posição da mulher (branca, latino-americana e artista) em plena ditadura civil-militar brasileira. Por outro lado, Cindy Sherman, artista norte-americana, naquela mesma década também apresentou a si mesma desdobrada em inúmeros estereótipos femininos criados pelo cinema norte-americano.

Anna Bella, no Brasil e Cindy Sherman, nos Estados Unidos, no entanto, não estavam sós nesse processo de ressignificação do autorretrato. Concomitante às duas, outras e outras profissionais desenvolveram trabalhos usando a própria imagem não mais explorando os paradigmas revelhos do autorretrato convencional (quando o artista se desnuda para o mundo, de forma literal ou metafórica), enquanto subjetividade única e autossuficiente.

Na cena brasileira, durante aquela mesma década, mais artistas também se dedicaram a produções em que a própria imagem não era usada para explorar uma subjetividade incontaminada (como se isso fosse possível), mas como um alerta sobre a certeza de que o eu se constitui em luta contra fatores externos, contra as normas preestabelecidas pela família, pela sociedade, pela tradição, pela indústria cultural, etc. Os trabalhos de Lenora de Barros, por exemplo, emergem mais ou menos durante aquele período e, até hoje, a artista lança mão da própria imagem para a produção de trabalhos em que seu corpo aparece sempre como instrumento de luta contra a precessão dos clichês que nos envolvem a todos.

Para não deixar a impressão de que o uso da própria imagem como ferramenta crítica tenha sido uma estratégia usada exclusivamente por mulheres, vale relembrar trabalhos de alguns homens que também usaram a imagem do próprio corpo para a produção de trabalhos de endereçamento claro: Para um jovem de brilhante futuro (1973/74), de Carlos Zilio (acervo MAC-USP) – uma valise com pregos e fotos em formato de postais com o artista retratado como um jovem executivo de “brilhante futuro” –; o álbum Trama, de 1975, em que Gabriel Borba incluiu uma foto em que aparece como se estivesse sendo torturado (acervo MAC-USP). Em meados da mesma década, Gastão de Magalhães, por sua vez, fundiu a própria imagem a fotos icônicas de Brasília, estabelecendo uma relação pouco usual entre o “eu”, o estado e a religião (acervo MAM-SP).  No final daquela década e início da seguinte, impossível não registrar os trabalhos de Mario Ishikawa, em xerox, em que pedaços de seu corpo eram representados como símbolos da impotência frente o estado repressivo de então.

Os anos 1990 também estão repletos de obras concebidas para discutirem a subjetividade como efeito, não de uma singularidade sem conflito, mas como luta/construção social e política. Em 1994, na mostra Fotografia contaminada, com minha curadoria (Centro Cultural São Paulo), reuni obras que tratavam desta questão, desde aquelas dos “pioneiros”, Militão Azevedo e Valério Vieira, até os então novos artistas Rubens Mano, Nazareth Pacheco e Rosana Paulino, passando por Geraldo de Barros (com autorretratos produzidos a partir de clichês imagéticos hollywoodianos), Anna Bella Geiger (desde sempre!), Iole de Freitas, entre outras e outros.

Os closes fotográficos em suportes circulares, de tão próximos do rosto de Rubens Mano, eram incapazes de descrever suas características físicas, enfatizando o clima de estranhamento da instalação do artista naquela mostra. Já no arquivo apresentado por Nazareth Pacheco em pequenas colagens emolduradas (1993/94, acervo MAM-SP) –, por sua vez, ficava registrada a tentativa de adequação do corpo da artista – desde bebê até a fase adulta – aos paradigmas “ideais” do corpo da mulher, socialmente construídos. Rosana Paulino, por outro lado, ali apresentava Parede da memória (1994, acervo Pinacoteca de São Paulo), um autorretrato especial, já que sua identidade como mulher negra não se constituía a partir de índices de seu corpo material, mas daqueles de sua ancestralidade e parentes próximos. Um autorretrato que fala de si, sem mostrar-se de fato.

O trabalho de Rochelle Costi que também figurou em “A Fotografia contaminada”, igualmente refletia sobre a complexidade do assunto. Em 50 horas: Autorretrato roubado (1992/93, acervo MAM-SP), a artista se apropriava de fotografias de pinturas produzidas por diversos estudantes de arte, tendo a si mesma como modelo. Ao contrapor essas fotos às que a mostravam posando, Rochelle desorganizava qualquer possibilidade de manter o conceito tradicional de autorretrato como baliza para a análise de 50 horas. Ainda sobre a exposição, caberia relembrar as cópias de polaroids ampliadas, apresentadas por Márcia Xavier. Nelas, a artista transformava o ato de fotografar-se em uma ação mecânica, registrando partes anônimas de seu próprio corpo (pernas, pescoço etc.). Marcia dispunha esses “retalhos de si ou de qualquer outra” em uma estrutura em grade, remetendo o visitante a uma ordem de fundo construtivo que solapava qualquer possibilidade de fruir aquelas imagens como portadoras apenas de uma expressão do “eu” da artista.

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Gustavo Rezende produziu dois trabalhos que problematizavam o “eu” do artista, quando construído a partir de clichês diversos. O primeiro, Retrato do artista quando jovem (1999), um pequeno backlight que, aceso, mostrava seu retrato usando um gorro azul. Além da referência ao livro de James Joyce no título, a peça ajustava a autoimagem de Gustavo à tipologia de retratos e autorretratos, típica do renascimento. Ele, assim, adequava-se aos estereótipos criados pela história das imagens, atentando para o fato de que ser artista era também moldar-se às imagens socialmente aceitas para descrevê-lo. Dois anos depois, com Hero, Gustavo voltará à auto representação (que, depois tomará outros rumos no decorrer do seu percurso), moldando-se não mais como jovem artista resoluto do primeiro renascimento, mas associando a figura do artista àquela do atleta – um dos principais tipos de celebridades dos dias de hoje.

Albano Afonso é outro artista que relacionou a própria imagem àquelas dos autorretratos sancionados pela história da arte. Ele produziu vários trabalhos dentro deste viés, dentre eles, Autorretrato com modernos latino-americanos e europeus (2005/2010 MAC-USP). A obra é formada por dois conjuntos: uma série de autorretratos de artistas consagrados, justapostas a autorretratos de Albano. Esses últimos, por sua vez, são “cegados” pela luz do flash, impedindo sua identificação plena. Montada também em forma de grade, Autorretrato com modernos demonstra duas impossibilidades: aquela de, hoje em dia, o autorretrato poder constituir-se alheio aos clichês da história das imagens e, como corolário, a dificuldade do artista, hoje, poder identificar-se com essa mesma série de clichês.

Sofia Borges, no início de seu percurso, também usou a própria imagem para pensar, não a si mesma ou à sua intimidade, mas a própria fotografia em suas relações com a pintura e o cinema. Em algumas daquelas fotos, seu corpo parece servir apenas como modulador preferencial para a exploração da cor, da luz, e para as sutis gradações de claro-escuro, elementos que, na sequência, seriam esquadrinhados por ela já sem a instrumentalização da própria imagem.

Por sua vez, nas fotografias em que usa o próprio corpo, Nino Cais indaga sobre a imagem, sem enfatizar qualquer necessidade de reivindicar o substrato de um eu incontaminado. Pelo contrário, nas fotos, seu corpo se converte em mais um dispositivo entre outros para auxiliar na principal preocupação do artista, que é discutir os limites e possibilidades da representação do mundo hoje em dia.

Felipe Cama, por sua vez, com Notícias de lugar nenhum (Made in China), 2010 (acervo MAC-USP), também deve ser elencado como um profissional que trouxe outras questões para o autorretrato contemporâneo. Durante determinado período Cama printou do computador selfies produzidos por turistas das mais variadas partes do mundo, na Praça da Paz Celestial, em Pequim. Na sequência, ele viajou para aquela cidade e se retratou no mesmo lugar. Já no Brasil, de posse de todos aqueles selfies (inclusive o seu), Felipe enviou as fotos a uma manufatura chinesa para que as imagens fossem reproduzidas em pinturas hiper-realistas. Quando essas chegaram, o artista as justapôs formando uma grade de selfies, dentre os quais, o público pode encontrar aquele feito por ele próprio. Onde está Felipe; onde está Wally? Onde estamos nós, nesses dias de tantos selfies, em que a individualidade parece para sempre perdida frente à repetição incessante de um mesmo procedimento, de um mesmo esquema de representação?

Sidney Amaral, por sua vez, em sua curta trajetória, inoculou uma dimensão trágica ao esfacelamento do conceito tradicional de autorretrato no país ao retratar-se numa espécie de performance foto/pictórica (Imolação e Estudos para Imolação I, II, III e IV, acervo Pinacoteca de São Paulo). Na série, em que o artista aparece prestes a se suicidar, a imagem do seu corpo opera como índice e símbolo de uma questão que o ultrapassa: no conjunto, Sidney não trata de si, mas de todos os homens de sua etnia que se revoltam contra a situação de seus iguais em uma sociedade tão injusta quanto a brasileira[2].

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O arrolamento acima poderia ser ampliado de maneira substancial, acrescentando obras de outros artistas brasileiros que, dos anos 1970 até o presente solapam o conceito tradicional do autorretrato[3]. Muito poderia e deveria ser escrito sobre cada uma das produções desses artistas que se utilizam da imagem do próprio corpo (ou não) para falar de um eu totalmente fundido em questões que extrapolam a mera exploração da subjetividade burguesa. São artistas que, para lá do “selfie artístico”, buscam outros encaminhamentos para a prática da arte nos dias de hoje.

[1] – Tadeu Chiarelli, “A obra de Anna Bella Geiger e o colapso do autorretrato tradicional”. Conversa de Bar(r). ARTE!Brasileiros, 29 de janeiro de 2020.

[2] – Sobre o artista, consultar, entre outros: Tadeu Chiarelli, “Sidney Amaral: entre a afirmação e a imolação”, publicado em ARTE!Brasileiros, dia8 de outubro de 2018.

[3] – Para citar apenas mais alguns, como não lembrar dos trabalhos de Gretta Sarfaty, Alex Flemming, Hudinilson Jr., Amilcar Packer, Lia Chaia e, mais recentemente, Junior Sucy, Moisés Patrício e Renata Felinto?

Memória latino-americana na obra de Ximena Garrido-Lecca

Ximena Garrido-Lecca, "Insurgências Botânicas: Phascolus lunatus".

Insurgências Botânicas: Phascolus lunatus, da artista peruana Ximena Garrido-Lecca, é obra que está na primeira exposição do projeto Faz escuro mas eu canto que abre o ciclo de apresentações da 34ª Bienal de São Paulo, no Pavilhão Ciccillo Matarazzo do Parque do Ibirapuera.

A obra de Garrido-Lecca busca nos grafismos naturais de sementes do feijão “phascolus lunatus” a atribuição de uma lógica de ideogramas com o objetivo de traduzir um capítulo do livro Extirpación de la idolatria del Piru, de 1621, no qual o padre Pablo José Arriaga aborda cultos da tradição peruana a serem eliminados no processo de colonização. Segundo Garrido-Lecca, para o site da Bienal, “o gesto de cultivar as favas representa uma espécie de re-ativação simbólica do suposto sistema de comunicação da cultura Moche” que “valia-se das manchas presentes nessas favas como signos para uma escrita ideogramática.

Seu trabalho funciona como um recuperador de memória tendo em vista que uma das variedades peruanas dessa planta foi utilizada pela civilização pré-incaica moche em seu sistema de comunicação escrita (algo registrado nas cerâmicas deste povo). Essa mesma civilização desenvolveu entre os anos 100 e 850 um avançado sistema de irrigação, ao qual a obra também se relaciona com elaboração de um sistema de cultivo hidropônico que permite que as plantas cresçam ao longo do ano, oferecendo ao público a oportunidade de acompanhar os diferentes momentos da transformação da instalação e conferindo longevidade ao trabalho lembrando que a Bienal em si poderá ser vista em completude apenas em setembro de 2020.


Ximena Garrido-Lecca na 34ª Bienal de São Paulo
De 8 de fevereiro até 15 de março
Pavilhão da Bienal: Avenida Pedro Álvares Cabral, s/ nº, portão 3, Parque Ibirapuera
Mais informações: (11) 5576-7600

Exposição itinerante leva arte contemporânea brasileira para cidades nos EUA

Vanderlei Lopes, "O passado é um belo presente!", 2018

O The55Project abriu, no último dia 30 de janeiro, a exposição coletiva What I really want to tell you… no Mana Contemporary Chicago. A mostra havia ficado durante três meses na na Fundação Pablo Atchugarry em Miami no ano passado e tem curadoria de Jennifer Inacio, curadora assistente no Pérez Art Museum Miami (PAMM).

What I really want to tell you… reúne obras de treze artista contemporâneos brasileiros que evocam histórias culturais, sociais e políticas do Brasil. São eles Almandrade, Liene Bosquê, Paulo Bruscky, Anna Bella Geiger, Rubens Gerchman, Ivan Grilo, Randolpho Lamonier, Vanderlei Lopes, Gabriela Mutti, Paulo Nazareth, Regina Parra, Rosana Paulino e Mano Penalva.

A itinerância é fruto do objetivo do The55Project, criado para promover a arte brasileira contemporânea ao redor dos Estados Unidos, tendo realizado outras exposições em Nova Iorque, Miami e agora desembarcando em Chicago. Além de exposições, o projeto faz projetos públicos de arte, programas públicos e conversas para criar diálogo com as comunidades locais.

Fábrica de Arte Marcos Amaro abre edital no setor educativo

O Edital Meios e Processos realizado pelo Educativo da Fábrica de Arte Marcos Amaro representa o desejo da FAMA de estruturar um ambiente propício para a orientação, a partilha e a pesquisa em criação artística bem como promover o reconhecimento, projeção e inserção de artistas do interior paulista no circuito da arte. Pretende-se possibilitar o aprofundamento na experimentação em arte dentro de um contexto de produção e reflexão alinhados com a arte contemporânea. O foco no artista e em seus processos de criação coincide com o desejo do Educativo FAMA de gerar espaços de compartilhamento de saberes tendo em vista a aproximação com metodologias e práticas poéticas de criação.

Em 2020 o edital envolverá a orientação em processos artísticos com a artista Kátia Salvany e com o acompanhamento curatorial de Andrés I. M. Hernández. O grupo de 30 (trinta) artistas será formado através de um processo de seleção e envolverá 12 (doze) encontros realizados na FAMA na cidade de Itu/SP. O grupo se reunirá quinzenalmente, aos sábados das 10h às 12h e das 14h às 16h nos períodos de abril a junho e de agosto a outubro de 2020. O grupo acompanhará a programação da FAMA e participará dos encontros e palestras com os artistas do acervo da fundação.

Os resultados que se pretendem com essa atividade envolvem a possibilidade de ampliação do repertório visual e conceitual dos artistas participantes, a expansão de suas manifestações artísticas com a utilização de  suportes e meios variados e a contribuição para o fortalecimento da formação de artistas.

As inscrições podem ser feitas até 10 de março.

Clique aqui e saiba mais informações.

 


*Texto: Site do FAMA Museu

Lixo, luxo e a roga pelos proibidos

A foto mostra a escultura "Cristo Mendigo" que foi o carro abre-alas do desfile Ratos e Urubus. Na imagem, a escultura é coberta por sacos de lixo como uma censura, e carrega a faixa que diz "Mesmo proibido olhai por nós!"
Abre-alas "Cristo Mendigo" no desfile Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia. Foto: Sebastião Marinho (Agência O Globo)

“Xepa de lá pra cá xepei. Sou na vida um mendigo, da folia eu sou rei”, canta a legião que desfilava pela escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, há alguns carnavais, mais especificamente no amanhecer do dia 7 de fevereiro de 1989. O coro entoava a composição de Joãozinho Trinta chamada de Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia, que empresta seu nome ao conjunto de obras expostas na Galeria Tarsila do Amaral, no Centro Cultural São Paulo (CCSP). Mais do que inspiração ou referência, no entanto, o samba enredo é trazido como uma das obras componentes da exposição. Nada mais justo, retomando que o próprio Joãozinho Trinta se referia ao desfile das escolas de samba como uma “Ópera de Rua” – sendo uma forma de arte que reúne música, enredo, um pensamento plástico dos cenários: uma obra de arte que abrange diversas linguagens.

Duas transmissões do desfile compõem a abertura da exposição, embora o público seja recebido por uma reinterpretação do Cristo Mendigo, o elemento de um dos carros alegóricos que tornou o desfile tão emblemático. Na ocasião, durante a retomada democrática, o abre-alas da Beija-Flor seria o Cristo Redentor vestido como mendigo, porém a Arquidiocese do Rio conseguiu proibir a ação levando Joãozinho Trinta a cobrí-lo com um saco preto incluindo a mensagem: “Mesmo proibido olhai por nós”. Segundo Thais Rivitti, uma das curadoras da exposição junto com Carlos Eduardo Riccioppo, o episódio “ganhou página de jornal, as revistas semanais, criou um grande debate estético, político e trouxe questões que ainda hoje encontramos no cenário da arte contemporânea”. Ela comenta ainda que a imagem do Cristo Mendigo “repercute muito, principalmente com os episódios recentes de censura; ela volta à tona e ganha uma ‘nova atualidade’”.

A releitura do abre-alas, para a exposição, foi realizada por Raphael Escobar e o coletivo Os Cupins das Artes, cujos membros são conhecidos pelo público através dos retratos de João Leoci, ao lado da escultura. Vale destacar também as três duplas fotográficas trazidas do projeto Swinguerra, de Barbara Wagner e Benjamin de Burca, cujo trabalho em vídeo representou o Brasil na 58ª Bienal de Arte de Veneza. As imagens de Wagner e Burca são potencialmente as que dialogam mais diretamente com o aspecto de identidade e pertencimento tão presentes nos desfiles das escolas de samba. Em especial no Rio de Janeiro, onde elas – as escolas – “são nações mesmo, muita gente trabalha voluntariamente porque eles estão levando o desfile para a avenida para serem reconhecidos”, como comenta a idealizadora da exposição, Alayde Alves. 

Além das obras comissionadas houve um trabalho curatorial em cima do projeto de criação do desfile, resgatando a memória dos passos para a construção de Ratos e Urubus com os registros fotográficos de Valtemir Miranda e os esboços dos carros alegóricos desenhados por Cláudio Urbano. Essas peças alargam nossa percepção do desfile passando a sensação de quem o estava fazendo e fornecendo um contraponto às transmissões da Globo e TV Manchete.

Por fim, uma pintura não entitulada de Nuno Ramos e um poema visual de Augusto de Campos questionam a tênue dualidade entre “luxo” e “lixo”. Enquanto isso, a exposição é finalizada com duas instalações – Desenhando com terços e Pancake – da artista performatica brasileira Márcia X com provocações acerca do desejo e as restrições religiosas – bem pontual em uma época que vemos mais constantemente adultos em um estado quase infantil de gozo não medicado. 

Museu Afro apresenta grande mostra sobre arte e cultura indígenas

"O Guerreiro" (Série Mehrere Mex – Gente que estende sua beleza). Foto: Guta Galli

Uma grande mostra sobre cultura e arte indígenas completa a trilogia do Museu Afro Brasil sobre os povos responsáveis pela formação do país – Africa Africans (2015) e Portugal, Portugueses (2016). Intitulada Heranças de um Brasil profundo, a mostra ocupa uma grande área do museu paulistano, localizado no Parque Ibirapuera, com objetos diversos, obras de arte e fotografias de diferentes períodos e regiões do país.

Com curadoria de Emanoel Araujo, a exposição reúne cerca de 500 peças entre arte plumária, adornos, cestaria, máscaras, esculturas, utensílios e arte contemporânea de várias etnias indígenas. Entre eles os Karajá, Marubo, Kayapó, Mehinako, Yanomami, Rikbaktsa, Tapirapé, Waurá, Tapayuna, Baniwa, Ashaninka, Parakanã, Panará e Juruna. Um dos desta destaques da mostra é a Casa dos Homens, construída por um grupo de quatro indígenas do povo Mehinako.

Segundo texto do curador, “essa exposição celebra a vida desses povos das florestas que através de séculos vivem e sobrevivem sendo achacados pelos homens brancos, sedentos em mostrar para o mundo, dito civilizado, as muitas culturas das etnias dos povos da floresta”. Deste modo, além da produção dos povos originários, a mostra expõe também a visão que o homem branco apresentou ao longo dos séculos sobre os nativos, seja em pinturas, documentos ou fotografias.

apresenta um premiado grupo de fotógrafos e fotógrafas que se dedicaram (ou ainda se dedicam) a documentação de populações indígenas brasileiras, como Claudia Andujar, Rosa Gauditano, Maureen Bisiliat, Nair Benedicto, Manuel Rodrigues Ferreira, Rodrigo Pretella, Jamie Stewart-Granger, entre outros. Entre os artistas indígenas contemporâneos presentes na exposição está o jovem Denilson Baniwa, vencedor do prêmio PIPA Online 2019. Completam a mostra artistas como Gilberto Salvador, Claudio Tozzi, Rubens Ianelli, João Camara Filho e João Pedro Vale, entre outros.

“Essa exposição tem muitas vertentes, como não poderia deixar de ser diante de tanta complexidade da vida e da arte desse nosso povo que ainda resiste aos ataques e à inoperância nacional (…) Aqui também reside um brado, um alerta – um grito mesmo – em defesa desse nosso povo, que aqui estava e que continua estando em terras onde sempre foi o dono, para sempre!”

Heranças de um Brasil profundo
Até 26 de julho
Museu Afro Brasil – Parque Ibirapuera
Entrada gratuita

 

*Leia em nossa próxima edição reportagem completa sobre a mostra

 

A palavra como troca e a partilha do sensível

Ana Teixeira, “Bandeira”, 2019.

Entre a falação de estudantes do Mackenzie que passam seu tempo livre sentados no vão em frente ao Centro Cultural Maria Antônia, na Vila Buarque, ouve-se um alto-falante proferir palavras no imperativo: “Impressione, seja, garanta…”, ecoa uma voz masculina facilmente associada a vozes de vendedores que passam com carros pelas ruas de bairros. A intervenção sonora é uma obra da exposição É tarde, mas ainda temos tempo, uma individual da artista Ana Teixeira com curadoria de Galciani Neves que se encerra no dia 2 de fevereiro.

Crescida em uma família onde a literatura e o cinema eram essenciais, a construção de uma relação forte com o objeto ‘palavra’ foi, para Ana, inevitável e progressiva. “O que é pra ser são as palavras”. A frase anterior, que a artista atribui a Guimarães Rosa, é para ela muito significativa. “Jogar com as palavras é uma coisa que me atrai. Eu acho que as palavras geram desdobramentos que me interessam muito, porque elas geram provocações”, conta.

Em todas as obras que a artista apresenta nesta exposição, e em outras tantas ao longo de sua carreira, a palavra tem funcionado como uma espécie de troca, sejam trocas de experiências, de sentimentos/emoções ou de momentos, dentre outras. A obra Em Contato, por exemplo, que é constituída por boias com um advérbio escrito em cada uma delas, foi criada para ocupar piscinas e fazer com que as pessoas que as utilizem se aproximem para formar frases. A aproximação pelo “jogo” com as palavras faz com que essas pessoas troquem um momento entre si.

No Maria Antônia, as boias se encontram no chão, mas prontas para serem vestidas pelo público que desejar explorar suas possibilidades de criação. “São inúmeras possibilidades de frases que podem ser formadas com apenas 14 advérbios”, Ana explica, mostrando o advérbio “ainda” tatuado em seu pulso. Ela conta que foi a partir dali, em meados de 2010, que começou a sua relação com essa classe de palavras: “Me interessou essa ideia de que podemos formar frases sem o verbo”.

Contornando as escadas que levam à sala de exposição e parte das paredes que a circundam está Linha de sonhos, que resulta de alguns depoimentos da performance Troco Sonhos, obra que também ilustra muito bem a questão do câmbio como ponto no trabalho da artista. Se engana quem pensa que a palavra é apenas uma forma de entrar em contato com algo ou alguém. O contato é, afinal, um meio para que uma troca ocorra.

Troco Sonhos, por sua vez, é intervenção que a artista monta na rua, onde distribui sonhos (o doce) solicitando em contrapartida que as pessoas que se aproximem confidenciem para ela algum sonho (os que estão à mente). Ao mesmo tempo que isso ocorre, outra troca acontece: em troca do interesse de quem se aproxima, Ana apresenta a percepção de que o dinheiro não é a única moeda.

 

Entramos nesse universo também na inédita Cala a boca já morreu. Uma outra versão desta obra foi apresentada na coletiva referente ao 7º Prêmio Indústria Nacional Marcantonio Vilaça — do qual a artista foi uma das 30 finalistas –, sediada no MAB-FAAP entre setembro e outubro do ano passado. Para a sua individual, ela passou dez dias desenhando mais de 40 mulheres em uma das paredes do espaço expositivo, mulheres essas que seguravam cartazes com falas como “Chega de padrões”, “Eu não sou louca, eu tenho opinião”e “Sua opinião sobre meu corpo é sua”.

As voluntárias que escolheram suas frases e posaram para a artistas ganharam, em troca, sua representação em desenho. Nesta obra, porém, o “escambo” também passa pela sororidade, o princípio feminista da união entre as mulheres que exige uma relação de identificação e retorno entre duas ou mais. Uma evidente partilha do sensível.

Os trabalhos Outra Identidade, que troca impressões digitais por um carteira de identidade fictícia com uma frase com qual a pessoa se identifica, e Empresto meus olhos aos seus, que troca uma lembrança por um registro visual do local onde ela ocorreu, — e mesmo Escuto histórias de amor, que troca um depoimento por um ombro amigo — também se desdobram por essa trilha.

Esse conjunto remete a uma percepção levantada por Lévi-Strauss (em cima da “dádiva” de Mauss) de que a palavra seria um caminho para compreender a sociedade, quando usada numa troca. É visível que nessa busca de Ana por uma forma de se comunicar e se relacionar através delas está presente o desejo de entender o outro.

“Não sou eu o foco, o foco é o outro. Me interessa o outro, a minha matéria prima é o outro”, ela diz. É desta forma, portanto, que é possível observar que o entendimento que ela busca não passa exatamente por um cultivo de erudição mesquinha, mas por um movimento fluido de empatia em relação ao outro, até quando o outro está dentro de si mesma.


Slam Cala a Boca Já Morreu e encerramento da exposição
2 de fevereiro, das 15h às 17h
Centro Universitário Maria Antonia – USP: R. Maria Antônia, 258/294 – Vila Buarque, São Paulo – SP
Mais infos: 11 3123-5202

Anita Schwartz Galeria realiza intensa programação de verão

A Anita Schwartz Galeria de Arte, no Rio de Janeiro, tem apresentado uma grande programação gratuita com arte, música, poesia, instalações sonoras, performances acrobáticas, teatrais, cinema, aula de modelo vivo e um bar temático.

Trata-se do Projeto Verão #1, com a presença de mais de 20 artistas, como Alexandre Vogler e Cadu, representados pela galeria, Botika, Paulo Tiefenthaler, Amora Pera, Guga Ferraz e outros artistas visuais, bailarinos, músicos, poetas e cineastas. O escritor Nilton Bonder fará uma conversa aberta após a exibição do documentário A Alma Imoral, de Silvio Tendler, e durante todas as noites do período funcionará no terraço o Bar Pinkontolgy, de Gabriela Davies, curadora da Vila Aymoré, com drinques criados especialmente para o Projeto Verão #1.

Semanalmente, às quartas-feiras, o “cubão branco” no térreo, com seus sete metros de altura, será ocupado por performances. No segundo andar do prédio no Baixo Gávea, zona sul carioca, estarão duas exposições: Bebendo Água no Saara, com trabalhos de Laís Amaral, e Milanesa, de Felipe Barsuglia.

Confira datas e horários dos eventos, que ocorrem entre janeiro e março, no site da galeria. Clique aqui.

A obra de Anna Bella Geiger e o colapso do autorretrato tradicional

Autorretrato, década de 1960. Impressão em papel de imagem computadorizada. 36x36 cm. Coleção da artista, Rio de Janeiro.

O mérito da mostra Brasil nativo, Brasil Alienígena, de Anna Bella Geiger, simultaneamente no MASP e no Sesc Avenida Paulista, é recolocar no debate público a obra de uma das mais importantes artistas brasileiras, explicitando a coerência e a pertinência de seu percurso voltado sempre para a questão identitária.

De fato, é a problemática identitária (em sua acepção mais alargada) o que, a meu ver, caracteriza melhor a obra da artista que, embora tenha sido vista por muitos como fragmentária, a mostra do MASP/Sesc acertadamente a configura (de forma consciente ou não) como um território único, mesmo que conflagrado. Nele, as questões ligadas à identidade se digladiam e se superam para ressurgirem mais tarde em novas batalhas, convulsionando o próprio território criado pela artista (as metáforas bélicas aqui usadas estão de acordo com parte da iconografia de Anna Bella).

Gostei da maneira sóbria com que as obras foram dispostas por salas, deixando claro para o público a permanência dessa questão em todos os encaminhamentos que a artista concedeu ao seu trabalho, mostrando, inclusive, momentos em que ela, de fato, marcou a arte brasileira, afirmando um caminho distante da herança concreta/neoconcreta — sem dúvida um norte, mas não o único — a ser considerado como legítimo. Anna Bella é uma das poucas artistas brasileiras com reconhecimento local e internacional, cuja poética não se constituiu como continuidade daquelas correntes e cujas características tão destacadas, dificultam mesmo aqueles que querem alinhar sua obra à “continuidade” do neoconcretismo durante a década de 1960.

O interesse da obra de Anna Bella é que ela se desenvolve autônoma, dialogando aqui e ali com produções de alguns de seus colegas (sobretudo nos anos 1960), porém, mais a partir de influxos exteriores[1] do que locais. Com origem na abstração lírica (ou “expressiva”), a singularidade de sua obra se dá sobretudo por sua inadequação a grupos e mesmo a demandas de mercado.

 

Acima me utilizei de metáforas ligadas à localização (“um território”, “um norte”) e essa atitude não foi gratuita, pois se adequa ao aspecto peculiar da produção de Anna que marca, desde os anos 1970, um lugar específico de onde ela fala: ela é uma artista branca, descendente europeus, vivendo e trabalhando no Rio de Janeiro, Brasil.

Visitando a mostra, percebe-se a artista trabalhando com a sua localização e seu lugar de ação e, para isso, fazendo uso de uma série de meios, como a fotografia, a gravura, o vídeo, a instalação, entre outros e, como método, em grande parte dos trabalhos, a cartografia.

É desestruturando essa linguagem técnica e científica que Anna representará a si e a sua circunstância como instrumento para a sua própria localização no espaço (e no tempo) na busca contínua do entendimento sobre aquele lugar que pode ser (ou vir a ser) seu local de ação perante a realidade e a realidade da arte.

Mas não é apenas por meio da desestruturação da cartografia que Anna Bella desenvolve a afirmação de seu lugar no mundo, como artista e mulher latino-americana. Ela se vale também de determinados procedimentos para minar outros discursos também já firmados pela tradição, utilizando-os para dar continuidade ao trabalho de demarcar o seu lugar de luta.

Ante a abrangência de todos esses aspectos que a retrospectiva de Geiger nos traz, optei por me deter em alguns poucos trabalhos em que ela desestrutura o conceito tradicional do autorretrato a partir de procedimentos paródicos e/ou alegóricos. O interesse por esse setor de sua obra surgiu, por um lado, pela pertinência dessa sua produção que, a partir sobretudo dos anos 1970, dialoga com trabalhos de outras artistas que discutem a identidade da mulher a partir não mais, ou não mais apenas, de trabalhos voltados para a “expressão” de um sujeito autocentrado, mas de um ser que se forma a partir do embate com o mundo (como exemplo, a norte-americana Cindy Sherman que, naqueles anos apresentava a si mesma desdobrada em estereótipos de mulher vindos do cinema norte-americano). Por outro lado, os autorretratos de Anna Bella, junto daqueles de outros poucos artistas que também naquele período desenvolveram trabalhos do mesmo tipo no Brasil (refiro-me aqui a Carlos Zilio e Gabriel Borba, entre outros), darão início a um tipo de produção local, em que os artistas passarão a usar o próprio corpo não mais como marca de uma individualidade intransponível, mas como elemento para a discussão sobre a subjetividade contemporânea, marcada pelo embate com a sociedade, a tradição, a indústria cultural etc.

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Foi uma ideia feliz a dos curadores da mostra apresentarem, junto a trabalhos mais conhecidos de Anna Bella, obras menos conhecidas, porém não menos importantes, dada sua significação no quadro da arte brasileira. Me detenho aqui em uma parede da exposição onde se encontram três autorretratos de Anna Bella, um de 1951 (Col. G.Chatteaubriand/MAM-Rio), os outros, respectivamente dos anos 1960 e  2003 (ambos da coleção da artista).

Na primeira, um grafite e carvão sobre papel, é notório o desejo da artista em adequar sua imagem à tradição do autorretrato: o tronco e o rosto são descritos de maneira sintética, com ênfase nos olhos, com as pupilas voltadas para a direita, meio inquietas e desconfortáveis. Essa adaptação do próprio corpo às estruturas da retratística tradicional, a ênfase à “expressividade” do olhar (olhos, as “janelas da alma”), atestam que, ainda em seu processo de formação, Anna Bella encarnava a visão que a sociedade ocidental construiu para a autoimagem do artista. Na obra, não se percebe apenas uma adequação, mas uma crença nesse constructo (apesar do desconforto aparente da modelo).

Anna Bella dá sinais de deslocar-se dessa tradição, quando, cerca de uma década depois, propõe um autorretrato que, na verdade, já se assume como um readymade modificado: originariamente uma fotografia analógica de seu rosto, agora processada via computador. Nada nessa peça exala a aura do artista: nada da expressividade do gesto autoral, do olhar denso. Esse autorretrato é manipulação e deslocamento puros.

Já em Monalisa, um backlight, a imagem da artista é apresentada como paródia e como alegoria. Simula, em termos jocosos, a Mona Lisa de Leonardo (e a paródia dessa obra, realizada por Marcel Duchamp no início do século passado) e, ao mesmo tempo, funciona como um complexo comentário sobre o sistema de arte no Brasil. Ao emparedar a própria imagem entre um cartaz (onde se lê, “Anna Bella Geiger” e mais abaixo, “Photo Rubber”) e, no último plano, uma foto da favela de Santo Amaro, no Rio de Janeiro[2], Anna Bella ironiza a si mesma, tomando-se como uma “photo rubber stamp” do circuito de arte, sobrepondo-se à realidade social de sua cidade natal.

Com o conjunto formado por essas três obras, o visitante é levado a entender o percurso de Anna Bella, tanto dentro da tradição dos autorretratos quanto da própria história da arte recente: o respeito inicial à tradição se abre para as novas tecnologias e a instrumentalização irônica da própria imagem para a produção de obras que desmentem aquele respeito inicial.

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Brasil nativo/Brasil alienígena – obra de 1976/77 que empresta o título à exposição – é formado por nove pares de cartões-postais. Cada par, por sua vez, conta com um cartão-postal representando indígenas brasileiros em diversas ações, e por um segundo cartão em que a artista reproduz a cena presente no primeiro, usando a sua própria imagem e, em alguns casos, também figuras do seu convívio.

Não é à toa que essa obra marcou um ponto de desvio na arte brasileira. Em primeiro lugar, porque ela se configura como uma ação de apropriação, no caso, de cartões-postais industrializados representando indígenas em situações estereotipadas. Raras vezes, no país, um/a artista teria se apropriado de objetos reais como elemento constitutivo do trabalho[3].

Por sua vez, os cartões produzidos pela artista para acompanharem aqueles apropriados representavam Anna Bella tentando canhestramente se adequar aos estereótipos dos indígenas, construídos há décadas, e reforçados pela indústria cultural local, alinhada à ditadura civil-militar que então governava o país. Ou seja, Anna Bella não se apresentava mais como um sujeito que cria a realidade, no sentido romântico do artista como demiurgo, mas como um indivíduo que edita o próprio real existente, conferindo-lhe outros significados. E, para tanto, não se vexa em usar a própria imagem para alcançar seus propósitos que estão longe de buscar a expressão de seu “eu profundo”.

Daí, então, a ressonância de sentidos possíveis de Brasil nativo/Brasil alienígena: o que significa ser brasileira ou brasileiro? Como se adequar às simulações de brasilidade, tendo como parâmetros as figuras idealizadas dos indígenas que, naquele tempo (como hoje) sofrem as agruras do extermínio? Por outro lado, o conceito de autorretrato que, se por ventura, ainda pudesse existir naqueles cartões-postais produzidos por Anna Bella apresenta-se totalmente corrompido ou colapsado, dado que ela, criticamente, simulava se adequar a um conjunto iconográfico (e comportamental) que não fazia parte de sua experiência imediata.

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A dimensão crítica de Brasil nativo/Brasil alienígena, ao ironizar os estereótipos de brasilidade muito divulgados naquele período pesado da história do país, funcionava como uma pá de cal jogada sobre eles. A partir de Brasil nativo/Brasil alienígena, pensar a questão identitária no Brasil ganhava outra complexidade, ao mesmo tempo em que o próprio conceito de autorretrato dava sinais de que deveria ser repensado e refeito.

Ao mesmo tempo, é interessante sublinhar como Brasil nativo/Brasil alienígena pode ser entendida como a busca de Anna Bella por uma localização física e simbólica, a partir da constatação do que a artista não era, em relação à sociedade em que estava inserida.

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Ainda naquela década, mas pouco antes da obra tratada acima, entre vídeos, gravuras e fotografias expostas no MASP, encontram-se duas séries de fotomontagens em xerox, ambas de 1975. Em Diário de um artista brasileiro[4], Anna Bella atesta sua inadaptabilidade como mulher e artista dentro de um determinado segmento, o circuito de arte dominado por homens brancos. Ela insere retratos seus em fotos de artistas plásticos célebres, apropriadas de revistas.

Diário de um artista brasileiro, 1975.

Registre-se como a inadequação simbólica de uma artista latino-americana àquele universo, explicita-se na própria inadequação proposital de seus retratos inseridos nas fotos protagonizadas por Matisse e outros, numa conjugação perfeita (diga-se) entre a formalização dos trabalhos da série e a intenção que a motivou[5].

Na série Arte e decoração, retratos recortados de Anna Bella, sempre vestida de preto (apenas suas sandálias eram brancas, em contrastes com as meias, também pretas), foram colados em fotos retratando ambientes glamurosos, em que as obras de arte eram apresentadas como símbolos de prestígio, como mercadorias de luxo. Esta série enfatiza também a inadequação da artista àquele tipo de lugar proposto para a arte pelos meios de comunicação de massa, lugar que ela demonstrava também não querer pertencer.

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O visitante que se dispuser a percorrer a exposição com certeza encontrará vários outros trabalhos de Anna Bella, em que ela demonstra ser a desestruturação do conceito tradicional de autorretrato, uma de suas estratégias principais para a constituição de sua obra que, como mencionado no início desses comentários, configura-se como um território de conflagração de temas identitários.

A exposição traz outros segmentos desse mesmo território, também fundamentais para a compreensão geral da obra dessa artista? É claro que traz. Para satisfazer a curiosidade, é preciso visitá-la, entrando em contato direto com a obra dessa que é uma das mais importantes artistas brasileiras.


[1] – A pop art, o happening, a performance, a arte conceitual etc.

[2] – Sobre o assunto, ler “Anna Bella Geiger: vísceras, mapas e retratos”, de Tomás Toledo. In Museu de Arte de São Paulo e Serviço Social do Comércio. Anna Bella Geiger: Brasil nativo/Brasil alienígena. São Paulo: MASP, Edições Sesc, 2019, pág. 26.

[3] – Na mesma época, outros artistas no Brasil também realizavam operações ligadas à apropriação, ao deslocamento de imagens e à construção de cenas. Além de Anna Bella e dos já citados Carlos Zilio e Gabriel Borba, seria interessante ter em mente também algumas das produções de Aloísio Magalhães, Regina Silveira e Nelson Leirner.

[4] – Interessante Anna Bella nomear a série reforçando o gênero masculino da palavra “artista”. Uma alusão irônica ao fato de que ser artista naquela época significava ser homem, ou um ato falho? Uma questão a ser analisada em outra oportunidade.

[5] – As fotocolagens que deram origens às fotomontagens foram produzidas em uma máquina reprogrática cujos resultados eram muito discutíveis do ponto de vista técnico, fazendo com que as imagens resultantes não primassem pela boa visualização. Junte-se a este fato, aquele da proposital inadequação dos retratos da artista inseridos nas fotografias dos artistas célebres.