Durante a pandemia do novo coronavírus, enquanto as unidades do Sesc São Paulo se encontram fechadas, seguindo as indicações das leis governamentais e sanitárias, a instituição segue ativa. Seja ao promover shows online, cursos à distancia ou ao captar e distribuir alimentos, o Sesc segue promovendo atividades voltadas à cultura, educação e saúde. Aqui, relembramos mostras de artes visuais organizadas em 2019, que refletem a busca pela diversidade de temas e diferentes linguagens. Assista ao vídeo:
"Desabamento do Céu/ Fim do Mundo" [Série Sonhos Yanomami], de Claudia Andujar. Foto: Divulgação.
“Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos.”
Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo, 2019.
Essa epígrafe de Ailton Krenak, retirada de uma fala sua publicada em 2019, como que indica uma janela, desenha uma brecha no confinamento a que fomos obrigados a vivenciar em 2020, para tentar superar a crise produzida pela pandemia da covid-19. Lendo a passagem, pensamos: vamos sair do espaço confinado com a potência de nossa mente, expandindo-o para a dimensão do cosmos onde voaremos em nossos “paraquedas coloridos”! Essa formulação, que permite se estabelecer uma ponte que vai do terrível ao maravilhoso, rompe com a clausura, rachando as paredes de nossos “claustros”. Podemos dizer que ela é autoperformática, na medida em que Krenak, ao formular a sua tese, já está produzindo em nossas mentes aberturas, expansões para além de nosso confinamento. Mas não se trata, é claro, apenas do confinamento produzido pela pandemia de Sars-CoV-2. Krenak formulou essa ideia antes da pandemia e a partir de uma poderosa reflexão sobre os caminhos e acidentes da história da humanidade. O espaço confinado a que ele se refere nessa passagem é o confinamento dentro da razão instrumental de origem humanista e Iluminista. Essa razão elegeu um modo de progresso que entroniza uma técnica destruidora que se alimenta da terra e das pessoas e está nos levando ao “fim do mundo” a que se refere o título de seu livro, Ideias para adiar o fim do mundo.
A razão instrumental nos lançou em uma aporia, em um impasse, numa incerteza profunda que nos paralisa. Fechou as portas e estamos sem saída. Aporia vem do grego áporos e deriva, conforme o dicionário Houaiss, “de a- ‘privação, negação’ […], + grego póros, ou ‘passagem’”. Em meio a essa clausura produzida por esse modelo de desenvolvimento e que agora gerou uma gigantesca e avassaladora pandemia, as palavras de Krenak, um líder indígena que vem de uma cultura que vive há milênios nas Américas sem nunca ter chegado à situação semelhante, sugerem a necessidade de uma pausa para reflexão: vamos construir saídas criativas, façamos os nossos “paraquedas coloridos”.
Krenak descreve essa aporia vivida pela sociedade contemporânea, mas ao mesmo tempo se separa dessa sociedade, mostra que vem de outra tradição, de uma história multicentenária de sobrevivência:
Em 2018, quando estávamos na iminência de ser assaltados por uma situação nova no Brasil, me perguntaram: “Como os índios vão fazer diante disso tudo?”. Eu falei: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa”. A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos.[1]
Ao invés de cair na posição melancólica, na prostração paralisante, Krenak nos fala de um outro registro de pensamento, para além de nossos parâmetros cartesianos, que veem no raciocínio lógico o ápice do saber. E motivos para a melancolia é que não faltam, quando observamos a história da destruição e da violência contra os indígenas no Brasil. Claude Lévi-Strauss, no livro Saudades do Brasil, apresentou suscintamente essa história como a de um fantástico acúmulo de barbáries. É a extensão do massacre indígena que o antropólogo destacou nessa obra. Em fazendo isto, ele apontou ao mesmo tempo para a grandeza das culturas indígenas que vivem em terras brasileiras, revertendo a hierarquia tradicionalmente atribuída aos povos originários nas Américas: a “Amazônia”, ele escreve, “poderia ser o berço de onde saíram as civilizações andinas.”[2] Lévi-Strauss surge como uma testemunha de populações que sobreviveram a “um monstruoso genocídio” que se estende desde a chegada dos europeus até hoje. Ele viu “os últimos sobreviventes desse cataclismo que foi para seus antepassados [sc. dos índios] o descobrimento e as invasões que se seguiram.”[3] Calcula-se que entre 5 a 9 milhões de indígenas foram assassinados graças à empresa colonial, seja por meio de epidemias, de massacres ou da escravização. Trata-se de um dos maiores genocídios da história da humanidade. Essa empresa colonial está ainda em curso e recuperou fôlego em 2018.
Krenak, partindo dessa gigantesca e pesada herança de genocídios, etnocídios e de lutas pela sobrevivência, dá uma virada e propõe a resistência pela imaginação. Ela é uma poderosa “esburacadora” de brechas, que permite o abrir de caminhos, de inúmeros “poros”, que facultam sairmos de nossa “aporia”. Esse comutador que nos lançaria para fora do buraco em que nos encontramos tem como uma de suas faces os sonhos:
Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade, é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos quais pode buscar os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir, cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão abertas como possibilidades.[4]
Esses sonhos são locais privilegiados que descortinam um novo olhar sobre nossas vidas. Além dessa abertura que permite estruturarmos uma outra leitura do real e construir outras subjetividades, os sonhos são em si mesmo locais de moradia sem paredes. Krenak nos fala: “De que lugar se projetam os paraquedas? Do lugar onde são possíveis as visões e o sonho. Um outro lugar que a gente pode habitar além dessa terra dura: o lugar do sonho.”[5] Habitar os sonhos, viver para além “dessa terra dura”, na suavidade multiforme dos sonhos, abrir poros entre o mundo onírico e nossa vigília, quebrar as paredes da “instituição total” e totalitária em que o sistema converte e reduz a terra inteira. Antes que a terra toda fique dura e seca, Krenak propõe, com toda a leveza do mundo, sem gritos revolucionários, sem clamores a derramamento de sangue, que reconheçamos nos sonhos um lugar de expansão de nossas vidas, um espaço para sairmos da aporia.
Durante o mês de abril, ou seja, poucos meses após o início do surto da pandemia de covid19, Krenak publicou outras falas em seu pequeno opúsculo O amanhã não está à venda. Novamente ele volta ao tema da falta de saída, agora radicalizada com a covid19, para aqueles que apostam no modelo de humanidade consagrado pela tradição Humanista, Iluminista e pela entronização da técnica como agente de dominação e destruição da natureza. A Modernidade na qual confluíram essas tendências, sempre foi marcada tanto por uma biopolítica que reduz grandes partes da humanidade à categoria de sub-humanos, pelo preconceito étnico-racial, por políticas de escravidão e de genocídio e, por fim, foi caracterizada por uma relação de espoliação com a natureza. Por outro lado, os povos ameríndios, como escreve Krenak apresentando a sua cosmovisão, não percebem “que exista algo que não seja natureza. Tudo é natureza.”[6] Assim, eles abandonaram o binarismo que marca ao menos desde a visão de mundo clássica, nascida na Grécia, a dualidade que reproduz a relação de objetificação com essa natureza dominada pela “cultura”. O antropocentrismo e o especismo são parte central do projeto que culminou no Antropoceno, ou seja, a era na qual a humanidade molda o planeta e constrói as bases para a eliminação de sua possibilidade de sobrevida. Não podemos esquecer que esta pandemia é resultado da destruição da biodiversidade. As “zoonoses emergentes” são fruto da invasão desses habitats ricos em biodiversidade. A biodiversidade é ao mesmo tempo o depositário de nosso futuro e a sua preservação a garantia de que essas zoonoses não se repetirão.[7] Nas Américas, as populações ameríndias são as grandes responsáveis pela conservação dos territórios da biodiversidade. As populações originárias no Brasil são guardiãs de um dos maiores patrimônios de biodiversidade do mundo, como também, como lemos acima com Krenak, elas detêm um dos mais ricos patrimônios culturais, com suas 250 etnias e cerca de 150 línguas e dialetos. Assim, Krenak aponta para o fato de que esse vírus coloca em xeque esse modelo de relação destruidora com a natureza:
Esse vírus está discriminando a humanidade. Basta olhar em volta. O melão-de-são-caetano continua a crescer aqui do lado de casa. A natureza segue. O vírus não mata pássaros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos. Quem está em pânico são os povos humanos e seu mundo artificial, seu modo de funcionamento que entrou em crise. […]
Somos piores que a Covid-19. Esse pacote chamado de humanidade vai sendo descolado de maneira absoluta desse organismo que é a Terra, vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos.[8]
No livro, Ideias para adiar o fim do mundo, Krenak ironizava um certo alarmismo acerca do “fim do mundo” e lembrava que os povos indígenas convivem com mais de cinco séculos de epidemias introduzidas pelos “brancos”. Ele apresenta um modo de vida que escapa às nossas visões de mundo judaico-cristãs (marxistas ou não) que apostam em um “fim do mundo”, em uma revolução, em uma redenção pontual. A sabedoria cultivada nos sonhos e, nas danças e no diálogo com os espíritos do passado ensina que a “revolução” está na capacidade de frearmos e sairmos do caminho aporético. Devemos aprender a perfurar nossos muros, a cavar pontes e túneis, encher de poros uma sociedade e as mentes fechadas e programadas para um projeto em si entrópico, posto que aposta na exploração infinita dos recursos naturais. Aposta também no fim da pluralidade da biodiversidade e das formas de vida e cultura, as verdadeiras bases da vida na Terra. Em seu O amanhã não está à venda Krenak justamente vai destacar a importância de não lutarmos, agora, por uma “volta à normalidade”, ou seja, ao mesmo caminho que vínhamos trilhando e que produziu essa pandemia.
Tomara que não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. […] Não podemos voltar àquele ritmo, ligar todos os carros, todas as máquinas ao mesmo tempo. Seria como se converter ao negacionismo, aceitar que a Terra é plana e que devemos seguir nos devorando. Aí, sim, teremos provado que a humanidade é uma mentira.[9]
Outra grande voz vinda do mundo ameríndio que tem trazido uma série de preciosos e urgentes ensinamentos é a de Davi Kopenawa. Em seu livro A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami (coescrito com o antropólogo Bruce Albert) ele descreve em centenas de páginas o martirológio dos yanomamis provocado pelos contatos com os brancos, sejam militares em missões de demarcação das fronteiras, ou operários construindo estradas, mas sobretudo garimpeiros em busca dos minérios sob a terra yanomami. Kopenawa tem uma clareza total com relação ao fato de que essas explorações dos minérios em si produzem epidemias. Ou seja, não só o contato com esses brancos traz as doenças, mas a destruição da floresta, dos rios e do solo produz epidemias.
As coisas que os brancos extraem das profundezas da terra com tanta avidez, os minérios e o petróleo, não são alimentos. São coisas maléficas e perigosas, impregnadas de tosses e febres, que só Omama [o deus criador] conhecia. Ele porém decidiu, no começo, escondê-los sob o chão da floresta para que não nos deixassem doentes. Quis que ninguém pudesse tirá-las da terra, para nos proteger. Por isso devem ser mantidas onde ele as deixou enterradas desde sempre. A floresta é a carne e a pele de nossa terra, que é o dorso do antigo Hutukara [nome xamânico do antigo céu] caído no primeiro tempo. O metal que Omama ocultou nela é seu esqueleto, que ela envolve de frescor úmido. São essas as palavras dos nossos espíritos que os brancos desconhecem. Eles já possuem mercadorias mais do que suficientes. Apesar disso, continuam cavando o solo sem trégua, como tatus-canastra. Não acham que, fazendo isso, serão tão contaminados quanto nós. Estão enganados.[10]
Segundo narra Davi Kopenawa, recordando o saber que lhe foi passado em conversas com os antigos xamãs, em sonhos e nos transes xamânicos, os metais foram criados não por Omama, mas sim por seu malévolo irmão Yoasi, o deus que também introduziu a morte. Omama enterrou os metais para proteger-nos e debaixo da terra eles devem ficar. Esses metais, ademais, seguram os esteios que sustentam o céu, eles mantém “a terra no seu lugar”. Ou seja, retirar esses metais do solo, destruir a floresta que os isola, implica em liberar epidemias fatais:
Agora sabemos de onde provém essa fumaça maléfica. É a fumaça do metal, que também chamamos de fumaça dos minérios. São todas a mesma fumaça de epidemias xawara [11] que é nossa verdadeira inimiga. Omama enterrou os minérios para que ficassem debaixo da terra e não pudessem nunca nos contaminar. Foi uma decisão sábia e nenhum de nós [yanomami] jamais teve a ideia de cavar o solo para tirá-los da escuridão! […] O sopro vital dos habitantes da floresta é frágil diante dessas fumaças xawara. […] Quando essas fumaças sugiram, não tiveram forças para se defender. Todos arderam em febre e logo ficaram como fantasmas. Faleceram rapidamente, em grande número, como peixes na pesca com timbó. Foi assim que os primeiros brancos fizeram desaparecer quase todos os nossos antigos.[12]
Kopenawa afirma também que apesar de nossas cidades estarem infestadas dessa fumaça mortal, não desistimos, continuamos destruindo a floresta, criando cidades gigantescas. Nosso pensamento, ele afirma, “está todo fechado”, em uma expressão que lembra a imagem do “lugar confinado” da fala de Krenak que lemos na abertura deste texto. Kopenawa estabelece uma relação entre essas epidemias e as mercadorias trazidas pelos brancos: “a doença e a morte golpeiam os habitantes da floresta assim que estes começaram a desejar as mercadorias. […] De modo que, para nós, as mercadorias têm valor de epidemia xawara.”[13] Esse raciocínio é fundamental e parte central da contra-antropologia de Kopenawa: os brancos, que ele denomina de “povo da mercadoria”, são também de certo modo o povo que traz e produz as epidemias, com sua sanha de arrancar os metais, que seguram os esteios do céu sobre nossas cabeças, e gana de produzir mercadorias, com o que esgotam os metais da terra. “Hoje, os seres maléficos xawarari não param de aumentar”, ele escreve de modo quase profético, mas que na verdade explicita simplesmente a percepção dos povos que vivem nas florestas e são a vítimas mais fáceis dessas epidemias há séculos. E ele continua: “Mas as orelhas dos brancos não escutam as palavras dos espíritos! Eles só prestam atenção no seu próprio discurso e nunca se dão conta de que é a mesma fumaça de epidemia que envenena e devora suas próprias crianças.”[14] Assim como Krenak fala da necessidade de despertarmos, antes que seja tarde demais, para o que está acontecendo com a Terra[15], aqui Davi Kopenawa fala dessa necessidade de ouvirmos os clamores da Terra. Temos que sair de nossa “zona de conforto” que se tornou uma “zona de desconforto”, pois estamos sim cavando o chão sob os nossos próprios pés.
Foto de Claudia Andujar da série “Catrimani”. Foto: Divulgação.
O Brasil da pandemia de covid-19 em abril de 2020 é também um país assolado pela praga de uma política fascista de caráter abertamente genocida. É importante retomar uma fala do atual presidente feita em 29/06/2017 em Porto Alegre: “Minha especialidade é matar”. Naquela ocasião ele também recordou que o maior feito de sua atividade como deputado teria sido a aprovação da “pílula do câncer” (a fosfoetanolamina), um embuste, o que não deixa de recordar a sua atual insistência na suposta capacidade milagrosa da cloroquina contra a covid-19. Sua tanatopolítica contra as populações indígenas, quilombolas, negras, LGBTQ+, sua misoginia e ataque às liberdades fundamentais, fazem com que a pandemia surja como um aliado da política de morte desse governo, sendo que já está claro que as populações mais pobres e desprotegidas pelo sistema de saúde serão as mais vitimadas. Agora, não só tem aumentado as invasões de garimpeiros e madeireros aos territórios indígenas, levando a pandemia às populações originárias, como o desmatamento da Amazônia tem se intensificado. Segundo o Instituto Socioambiental, “o desmatamento no primeiro trimestre deste ano [2020] foi 51% maior que o mesmo período do ano passado.”[16] Essas árvores derrubadas são potencial combustível para queimadas que provavelmente serão ainda mais avassaladoras do que as de 2019. Como assumido cavaleiro da morte esse presidente se recusa a ver de frente a pandemia, ele a nega, como nega as questões socioambientais ou a destruição e violência associadas ao período da ditadura de 1964-1985, que ele prefere enxergar como uma fase heroica e modelar. Seu negacionismo de raiz se associa a uma incapacidade patológica de empatia e de solidariedade. O “outro”, nesta visão de mundo, merece apenas o seu apagamento. O monolinguismo fundamentalista nega a pluralidade e a diferença. O “outricídio” se dá tanto em termos culturais, extinguindo tentativamente toda produção cultural e destruindo etnias, sobretudo as culturas indígenas e quilombolas, seus alvos prediletos, o que indica também a sua covardia intrínseca. Os povos da megadiversidade, indígenas e quilombolas, são os antípodas do modelo de pensamento fascista “outricida”. Necropolítica e ultraliberalismo, nesse sentido, andam de mãos dadas, vide o desmonte dos direitos trabalhistas que está sendo realizado desde o governo Temer, que continuou em 2019 e agora, durante a pandemia, procurando-se extirpar os poucos direitos que sobraram, reduzindo o trabalhador a uma situação de total desamparo. O ultraliberalismo é apenas a expressão contemporânea da empresa colonial que sempre quis reduzir a terra à commodity e o trabalhador à escravo.
A pandemia de corona além de tornar a morte onipresente, obriga-nos a uma reclusão que impede que enterremos nossos parentes e amigos. O próprio luto fica barrado. Trata-se de uma morte que vem com a morte da própria morte, o que destrói nossos quadros de referência e barra a simbolização. Para piorar a situação no Brasil, acrescenta-se a isso tudo um governo que assume a morte como seu mote. Aproveita-se o período conturbado e caótico, sem um ministro que lidere o combate à doença (uma vez que o ex ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta foi demitido em plena pandemia e substituído por um administrador empenhado em minimizar a gravidade da crise) para realizar um desmonte do país. Por exemplo, o ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, assinou recentemente (06/04/2020) um despacho que anistia terras desmatadas até 2008 em Áreas de Conservação Permanente da Mata Atlântica, facultando o uso “produtivo” desses locais. Essa autorização da destruição ratifica o ecocídio praticado freneticamente. Tudo que propicie a máxima exploração dos trabalhadores e da natureza é validado pelo governo Bolsonaro. No dia 23 de abril, Bolsonaro baixou uma portaria que autoriza civis a adquirir 550 unidades de munição por mês. Ao invés do combate à pandemia, o incentivo aos armamentos, a construção de um exército de milicianos com potencial inimaginável de morte e destruição.
Existe um descompasso evidente entre a radicalidade dessa política da destruição e da morte e, por outro lado, o movimento de cuidado e de proteção da população, exigido em um momento de pandemia. O presidente, nas poucas vezes que se dignou a falar do tema, adere, como mencionei, a soluções mágicas, como medicamentos comprovadamente pouco eficazes e até perigosos para o combate ao covid-19. Outro ponto que mobiliza este governo, que depois de demitir o Ministro da Justiça, está colocando a Polícia Federal a serviço da família do presidente e de seus novos aliados no chamado Centrão, é a expansão do controle da população, por meio de acesso a dados dos celulares e computadores, como a sua localização. O panóptico digital alimenta um presidente ávido de informações da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) e da PF.
Nesse contexto, a saída proposta por Krenak e sustentada pelas palavras de Kopenawa, que temos que nos abrir para as demandas da Terra, sem dúvida são difíceis de se traduzirem em prática. Mas o império da morte, com seus dois cavaleiros do apocalipse Bolsonaro e Corona servindo de escudeiros momentâneos, não há de triunfar tão rapidamente ou sem resistência. A própria publicação do texto de Krenak, composto a partir de 3 falas ministradas em abril deste ano, é uma prova disso. Ele mesmo nos lança seus paraquedas coloridos, indicando a necessidade de revermos nossa ideia de “normalidade” diante da crise da pandemia e do desgoverno Bolsonaro. Krenak nos faz lembrar também de outros pensadores que, no século XX, vivendo situações limite, aporias e encurralamentos, quando a morte também se estendia sob boa parte do mundo. É o caso de Walter Benjamin, que foi vítima do nazifascismo e que também refletiu profundamente sobre a necessidade de frearmos o modelo de sociedade que associou o capitalismo a um modelo destruidor de técnica.[17] Benjamin resumiu a sua crítica ao progresso no modelo industrializante europeu com essa forte imagem: “Marx afirma que as revoluções são as locomotivas da história do mundo. Mas talvez isso seja totalmente diferente. Talvez as revoluções sejam o acionar do freio de emergência pela humanidade que viaja neste trem.”[18] Benjamin, desde seu importante ensaio sobre o surrealismo, de 1929, também esteve ocupado com um projeto que nos lembra muito a apologia e a centralidade dos sonhos e do transe xamânico nas culturas ameríndias: “Mobilizar para a revolução as forças da embriaguez”.[19] Evidentemente, a ideia de “revolução”, como vimos, não é parte do arcabouço ameríndio e sim um fruto de nosso pensamento judaico-cristão (e a seu modo marxista no caso de Benjamin). Mas isso não implica que não possamos encontrar afinidades aqui, pois Benjamin era um pensador do “tempo do agora” (Jetztzeit), que valorizava a ideia de curtos-circuitos temporais na produção de mudanças vitais. O mesmo se dá no xamanismo e no mundo dos sonhos, onde tampouco existe a fronteira entre passado, presente e futuro.
Para Benjamin, essa conquista das forças da embriaguez para a revolução estava associada também ao que ele denominou de “organização do pessimismo”.[20] Nada mais atual. A tarefa que ele se colocava era a de alterar radicalmente a relação entre a política e a moral a partir dessa mobilização das forças da embriaguez. Benjamin adere ao que ele acredita ser a alternativa dada pelos surrealistas. Nessa visão, em oposição ao otimismo burguês da socialdemocracia e ao “arcabouço imagético” dos seus poetas, prega-se um pessimismode princípio como guia para a mudança. E sobretudo: trata-se de uma clara consciência de que o único “avanço” alcançável no atual modelo capitalista (seja nos anos 1930, seja nos 2020) é o da técnica que leva à destruição. Também essa ideia é luminar hoje, nesses tempos de nuvens negras, rios de dejeto, de oceanos de piche, destruição de florestas e de pandemias. Para organizar o pessimismo seria necessário “simplesmente extirpar a metáfora moral da esfera da política, e descobrir no espaço da ação política o espaço completo da imagem.”[21] Ou seja, tratava-se e trata-se, ontem como hoje, de reconhecer na política voltada para o moralismo, para a “luta contra os corruptos”, para a higiene que eliminaria os “esquerdistas”, a mais clara expressão do fascismo. A luta política se dá como uma batalha de imagens e pensadores como Kopenawa e Krenak, assim como artistas, poetas, trabalhadores e intelectuais, produzem a cada dia novas imagens que se opõem à pretensa verdade monológica que os donos do poder procuram impor. Essas outras imagens mobilizam nossas paixões e sustentam novas e robustas subjetividades, formam outras coletividades e amparam a resistência.
Benjamin também se dedicou à “embriaguez” do haxixe, que ele consumiu para estudar os seus efeitos na nossa mente, e foi alguém que procurou trazer para sua teoria a força do sonho. Como ele anotou no seu livro sobre as passagens de Paris: “No sonho, em que diante dos olhos de cada época surge em imagens a época seguinte, esta aparece associada a elementos da história primeva, ou seja, de uma sociedade sem classes. As experiências desta sociedade, que têm seu deposito no inconsciente do coletivo, geram, em interação com o novo, a utopia que deixou seu rastro em mil configurações da vida, das construções duradouras até as modas passageiras.”[22] Saber sentir e perceber esses fragmentos de utopia dispersos na superfície da sociedade e na sua história é um primeiro passo para se iniciar a sua concretização. Benjamin, em suma, também nos presenteou com uma série de paraquedas coloridos para enfrentarmos os tempos sombrios e aprendermos a romper com nossos muros e paredes, saltar com paraquedas coloridos e a cair de modo mais suave.
Por fim, concluo essas reflexões, desencadeadas pelo isolamento e pela pandemia da covid-19 que agora se espalha por todo o mundo e já vitimou mais de 200 mil pessoas (25/04/2020), sendo 4 mil no Brasil, recordando um poeta, portanto um outro criador de paraquedas, que sobreviveu a campos de concentração nazistas onde perdeu seus pais. Refiro-me a Paul Celan. Ele possui um poema que tenho relido nestes dias. Seu título é “Corona”. “Corona” (coroa) em italiano é também o nome da indicação que se coloca sobre uma nota para aumentar o seu valor e que em português se denomina suspensão ou fermata. Esta última expressão também vem do italiano e significa “parada”. Ela pode indicar tanto a extensão de uma nota como de uma parada, do silêncio. O poema de Celan “Corona” trata do tempo e do dar-se do próprio tempo. Na primeira estrofe lemos, na tradução de Mauricio Cardozo:
O outono come suas folhas na minha mão: somos amigos.
Descascamos das nozes a hora e a ensinamos a ir:
a hora volta de novo pra casca.
Esta “hora”, ou “tempo” (“Zeit”), que volta à casca é um tempo tanto do ciclo da natureza, quanto o tempo das relações humanas. O poema, como acontece muito na poética de Celan, dirige-se a um “tu” e fala de um “nós”, de um encontro. Trata-se da construção de uma epifania, marcada pelo encontro de duas pessoas, que rompe a continuidade temporal, “é domingo”, instaurando tanto o esquecimento (papoula) quanto a memória. O poema continua:
No espelho é domingo,
no sonho se dorme,
na boca, a verdade.
Meu olho desce até o sexo dos amantes:
nós nos vemos,
nós nos dizemos coisas obscuras,
nós nos amamos como papoula e memória,
dormimos como vinho nas conchas,
como o mar no sangue que raia da lua.
Nós juntos na janela, eles nos olham da rua:
tá na hora de saber!
Tá na hora de a pedra se acostumar a florir,
de a inquietude fazer bater um coração.
Tá na hora de estar na hora.
Tá na hora.
Esse tempo instaurado, o tempo do tempo, pode ser lido como um renascimento a partir da onipresença da morte. Dos corpos que se encontram, renasce a vida. As pedras na poética de Celan quase sempre remetem à morte e à necessidade de se fazer o luto. Depois da morte, no reencontro com o “outro”, a vida volta a fluir: “Tá na hora de a pedra se acostumar a florir”. O que mais me interessa em “Corona” no nosso contexto é essa sua estrofe final. A imagem desse casal à janela e de um saber que subitamente é instaurado e rompe com a linearidade do tempo. Ele rompe também com o “lugar confinado”, para retomarmos a epígrafe de Krenak. A pedra que vai florir é associada ao coração que bate. O tempo que nasce é um tempo puro, sem passado ou futuro, simples instância do devir, do dar-se, para além do apocalipse e da redenção. Sem o medo do fim e sem a esperança vã da revolução messiânica. “A hora volta de novo pra casca”, “die Zeit kehrt zurück in die Schale”. “Tá na hora de estar na hora”, “Es ist Zeit, daß es Zeit wird”: já é tempo que o tempo se concretize.
Não seria essa temporalidade irmã daquela que permite que construamos nossos paraquedas coloridos? Caminhemos da corona para a fermata, em direção ao tempo da suspensão. O tempo reinstaurado abre espaço para que despenquemos, em rede, mediatizados e unidos pelos nossos poros eletrônicos, mas não só, “em paraquedas coloridos”, rompendo com as aporias. Não seria essa consciência da “fermata”, da suspensão do tempo, o primeiro passo para que agarremos no freio de emergência de que nos fala Benjamin? Já é mais do que tempo.
* Márcio Seligmann-Silva é doutor pela Universidade Livre de Berlim, pós-doutor por Yale, professor titular de Teoria Literária na UNICAMP e pesquisador do CNPq. É autor de, entre outras obras, “Ler o Livro do Mundo” (Iluminuras,1999, vencedor do Prêmio Mario de Andrade de Ensaio Literário da Biblioteca Nacional em 2000), “Adorno” (PubliFolha, 2003), “O Local da Diferença” (Editora 34, 2005 vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro de Teoria/Crítica Literária 2006), “Para uma crítica da compaixão” (Lumme Editor, 2009) e “A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno” (Editora Civilização Brasileira, 2009). Foi professor visitante em Universidades no Brasil, Argentina, Alemanha, Inglaterra e México.
[10] Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami, São Paulo: Companhia da Letras, 2015, p. 357.
[11] Mais adiante Kopenawa define: “O que chamamos de xawara são o sarampo, a gripe, a malária, a tuberculose e todas as doenças de brancos que nos matam para devorar nossa carne.” Id., p. 366.
[15] “O que aprendi ao longo dessas décadas é que todos precisam despertar, porque, se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda.” Krenak, 2019, cit., p. 45.
[17] Remeto sobre essa teoria da técnica em Benjamin ao meu artigo recente: “Filosofia da Técnica: Arte como um novo campo de ação lúdico (Spielraum) em Benjamin e Flusser”, in: ARTEFILOSOFIA, No. 26, julho de 2019, p. 52-85. (Também disponível online)
[18] Walter Benjamin, Gesammelte Schriften, Vol. II: Essays, Vorträge, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1980, p. 1232.
[19] Benjamin, Obras escolhidas, v. I, Magia e técnica, arte e política, trad. S.P. Rouanet, revisão técnica Márcio Seligmann-Silva, São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 33.
[22] Benjamin, Passagens, org. Willi Bolle e Olgária Matos, tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão, São Paulo/Belo Horizonte:Ed.UFMG/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p. 41.
Andrey Zignnatto, "Sobre a pele #11". Galeria Janaina Torres
Com o isolamento social decorrente da pandemia do coronavírus, museus, instituições culturais e os agentes do mercado tiveram que repensar seu modo organizacional às pressas, mesmo que as alternativas encontradas agora sejam temporárias. Tendo em vista esse cenário – e também considerando o cancelamento da SP-Arte, principal feira do país -, um grupo de galeristas e artistas se reuniu para criar a p.art.ilha.
A iniciativa é online, indo de encontro a outro projeto dos últimos tempos, o Quarentine. Sua primeira ação ocorre no dia 1˚ de maio, quando as galerias lançarão simultaneamente em seus sites e redes sociais uma criteriosa seleção de obras à venda.
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Willian Santos, "Anywhere". SOMA Galeria
Andrey Zignnatto, "Sobre a pele #11". Galeria Janaina Torres
Cada compra feita durante o mês de maio implica no recebimento de um crédito pelo colecionador para compras futuras na mesma galeria; assim a p.art.ilha enxerga também mais à frente da crise atual, fermentando estímulos que podem provocar crescimento. A iniciativa não perde de vista, de qualquer modo, questões mais urgentes, como manter ativos os profissionais que atuam na cadeia criativa do setor artístico (artistas, galeristas, produtores, curadores, pesquisadores, fotógrafos, montadores e técnicos).
Em comunicado à imprensa, o grupo afirma ser “aberto a todas as galerias que se identifiquem com o nosso objetivo” e que deseja “arejar o mercado e recepcionar negócios inovadores, startups e projetos artísticos que não tem vez no nosso mercado atual”.
Participam da p.art.ilha: Aura (SP), B_arco (SP), c.galeria (RJ), Carcara Photo (SP), Casanova (SP), Desapê (SP), Eduardo Fernandes (SP), Janaina Torres (SP), Karla Osório (DF), Mamute (RS), Mapa (SP), Lume (SP), Oma (SBC/SP), Periscópio (BH), Sé (SP), Soma (PR) e Ybakatu (PR).
Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, durante seminário organizado pela arte!brasileiros e pelo IC em 2019. Foto: Divulgação
Diretor do Instituto Itaú Cultural (IC) há dez anos, Eduardo Saron acredita que “a partir de agora, teremos de encontrar um novo normal, ou melhor, uma nova realidade”. Durante e após o período da crise com o novo coronavírus, em um ecossistema cultural e econômico extremamente afetado, ”as instituições que tiverem a capacidade de dar respostas e de correr riscos para ajudar a desenhar este novo real se destacarão.”
Em entrevista dada por e-mail à arte!brasileiros, Saron, que também é um dos diretores do MAM-SP desde 2019, afirma que “paradoxalmente, o pós-corona trará uma humanização da sociedade, o que, por sua vez, demandará o fortalecimento da ciência, o avanço da educação e a ampliação do fazer artístico. Nós, que estamos intimamente ligados ao mundo do conhecimento, precisaremos estar prontos para responder à altura este desejo”.
Com uma série de iniciativas em suas plataformas digitais (saiba mais), o IC lançou nas últimas semanas editais de emergência voltados à artistas de diversas áreas, de música, poesia, artes cênicas e visuais. Questionado se os editais não poderiam incentivar uma mentalidade competitiva prejudicial neste momento de crise, Saron defende que a iniciativa “se propõe a acolher parte dos artistas sujeitos a atuar isoladamente e sem remuneração neste período de supressão social”, ajudando “a oferecer liquidez para a economia da cultura nesse período crítico”.
O diretor do IC falou também sobre a necessidade de as instituições culturais darem um salto da ideia de democratização – “onde as métricas de sucesso se tornaram a catraca” – para a de participação, onde o tripé “formação, fomento e fruição” ganha espaço. Ele critica também a falta de uma política de Estado para a Cultura e destaca a importância de preservação da memória. Leia a seguir a íntegra da conversa:
ARTE!✱ – Estamos vivendo um momento sem precedentes na história, por conta da pandemia do coronavírus, então eu queria começar perguntando como vocês estão lidando com isso no Itaú Cultural? Como estão agindo e que tipo de planejamento estão fazendo?
Nesse período de pandemia, umas das nossas primeiras medidas foi garantir a suspensão social dos colaboradores do Itaú Cultural, que estão trabalhando remotamente. Em outra frente, deflagramos uma série de ações para ampliar nossa atuação digital, oferecendo mais arte e cultura para nossos diversos públicos no ambiente virtual.
Uma das nossas preocupações também foi a de manter ativa a economia da cultura. Nesse sentido, mais uma medida que adotamos imediatamente foi garantir, para já, a remuneração prevista nos contratos de todos os artistas que iriam se apresentar no Itaú Cultural e tiveram as suas atividades suspensas em virtude da quarentena. Posteriormente, eles voltarão a fazer parte da nossa agenda de programação. Dentro desse pensamento, ainda criamos editais emergenciais que acolhem a produção dos artistas hoje sujeitos a trabalhar nesta condição de supressão social.
Confesso que o planejamento não é uma tarefa fácil. Tenho conversado muito com a equipe e buscado orientações com o presidente do Itaú Cultural, Alfredo Setubal. Como todos, tivemos de nos reinventar e reorganizar os recursos, não somente financeiros, como também organizacionais e humanos, uma vez que, mesmo com a situação diferenciada que o Itaú Cultural tem, fazemos parte deste ecossistema cultural e econômico, hoje, extremamente afetado.
ARTE!✱ – O IC acaba de lançar o terceiro edital de emergência para produções culturais criadas durante a pandemia, relacionadas a esse período de isolamento social. Gostaria que você falasse um pouco sobre o intuito destes editais, mais especificamente o de artes visuais e fotografia, e qual a importância da iniciativa neste momento.
O Itaú Cultural tem uma forte tradição na realização de editais e chamamentos públicos para fomento. Por exemplo, o programa Rumos Itaú Cultural, que há mais de 20 anos promove o apoio à produção artística e a difusão da arte e da cultura entre os projetos inscritos vindos de todo o país e selecionados por comissões de excelência, ou a convocatória a_ponte: cena do teatro universitário, que lançamos em 2018, destinada a alunos de vários perfis de ensino. Essas experiências sempre nos surpreendem ao revelar novas produções e artistas.
Resolvemos lançar esses microeditais de emergência por essa razão, associada ao fato de que precisamos ajudar a oferecer liquidez para a economia da cultura nesse período crítico. Além de, naturalmente, oferecer oxigênio criativo afetivo para as pessoas que nos acompanham virtualmente nos nossos canais.
Começamos por artes cênicas, pelo desafio desta linguagem para gerar ações virtuais. Uma semana depois, avançamos sobre o campo da música e agora optamos pelas artes visuais. Não somente esta iniciativa provoca fazer um registro de como se está fazendo arte neste momento histórico, como também a instituição se propõe a acolher parte dos artistas sujeitos a atuar isoladamente e sem remuneração neste período de supressão social. Nosso intuito é lançar um edital por semana e abranger o maior número possível de áreas de expressão artística.
ARTE!✱ – Em um texto publicado na revista Select, intitulado “Parem a competição já”, os artistas e pesquisadores Flora Leite e Daniel Jablonski questionam o papel deste tipo de incentivo no atual contexto. Argumentam, entre outras coisas, que o estimulo à produção durante a quarentena aumenta a pressão sobre os artistas, como se fosse urgente criar um “imaginário da crise”; que ele pode resultar na criação de obras de qualidade duvidosa; e que incentiva uma mentalidade competitiva que recompensa a produtividade como única moeda de troca. Enfim, eles propõem que existem outros caminhos para apoiar o trabalho de artistas neste momento. O que você pensa sobre isso?
Como comentei no início, nós temos uma tradição na realização de editais nas múltiplas áreas de expressão, algo que se consolidou na gestão de Milu Villela. Associado a isso, temos percebido uma intensa difusão artística ocorrendo nas plataformas virtuais nesse momento. Nosso intuito é oferecer mais dignidade para a produção e o pensamento artístico em um período como este, mesmo sabendo que, naturalmente, temos escalas limitadas para podermos fazer esse tipo de apoio.
Os editais sempre foram bem-vindos no Brasil, se consolidando legitimamente ao longo dos anos como um mecanismo objetivo para apoiar projetos de arte e cultura realizados no país. Não temos como atender a todas as propostas em circulação. Neste momento de urgência, eles nos permitem estabelecer critérios para manter a economia da cultura funcionando.
Como em todo momento de crise, a produção artística e intelectual se intensifica naturalmente. Quando nos afastarmos desse momento histórico teremos, a meu ver, duas questões a serem observadas. A primeira é quais leituras, análises e provocações artísticas foram contundentes a ponto de transbordarem o próprio tempo da coronavírus. Na segunda, poderemos observar o que era frágil e não permaneceu, se tornando apenas um registro de uma pandemia.
ARTE!✱ – Em um texto publicado recentemente na Folha de S.Paulo, a artista e professora Giselle Beiguelman afirmou que após um mês de isolamento é possível perceber que as instituições culturais de modo geral estão ainda na “idade da pedra” da internet. Que foram pegas completamente despreparadas, sem bons conteúdos criados para a web. Queria saber como você vê essa questão de modo geral e no caso específico do Itaú Cultural.
A atividade artístico-cultural tem, por natureza, um modus operandi de agregação de pessoas. Aliás, é algo que se coaduna, ou que se coadunava, ao pré-corona. Porém, considero muito forte a afirmação de que as instituições brasileiras estão na idade da pedra da internet, afinal este período se limitava à propagação somente de textos. Vejo que muitas instituições culturais não apenas superaram esta fase, como também alcançaram espaços de interação com o seu público por meio de cursos, percursos educativos, difusão de programação; todos no campo virtual. A partir de agora, teremos de encontrar um novo normal, ou melhor, uma nova realidade. Nesse sentido, as instituições que tiverem a capacidade de dar respostas e de correr riscos para ajudar a desenhar este novo real se destacarão.
No nosso caso, estamos empenhados em buscar essas respostas. Não é fácil e talvez ainda erremos muito, até porque nada mais será como antes. Neste momento, estamos, mais do que nunca, nos reencontrando com o que originou o Itaú Cultural. A organização nasceu para ser uma base de dados de artes plásticas, que hoje é parte da Enciclopédia de Arte e Cultura Brasileira. Hoje somos muito mais do que isso, mas esta pandemia nos fez olhar com atenção para essa nossa missão de origem, apontada por Olavo Setubal há mais de 30 anos quando criou o Itaú Cultural. Vamos aprofundar nossa atuação no digital.
ARTE!✱ – Imagino que era algo planejado já muito antes da quarentena, mas vocês acabam de lançar o Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural, uma plataforma digital dedicada à análise de dados da cultura e da economia criativa. Gostaria que explicasse resumidamente o que é e qual a importância de um projeto como esse, inédito no Brasil.
Essa pergunta me permite continuar respondendo a anterior, pois, embora já estivéssemos desenvolvendo há mais de oito meses este Painel de Dados, ele reforça a nossa vocação de produzir material por meio digital. O Painel de Dados é uma ferramenta aberta e inédita, que permite pesquisar indicadores de emprego, empresas, financiamento público e comércio internacional de produtos e serviços criativos, para subsidiar pesquisas, agentes do mercado e a formulação de políticas públicas. Esta é a primeira plataforma digital do país inteiramente dedicada à análise de dados da cultura e da economia criativa. O projeto tem como objetivo fornecer aos visitantes um arsenal de dados sobre estes setores, em três grandes eixos: emprego/empresas, financiamento público e importação e exportação de produtos e serviços. Para a execução deste Painel de Dados, foram processados aproximadamente 10,4 milhões de dados, de várias fontes públicas, como IBGE, RAIS, do Ministério da Economia e a PNAD Contínua.
ARTE!✱ – Ainda sobre esse contexto da pandemia do coronavírus, nesses últimos tempos acompanhamos uma série de demissões em museus como Serralves, MoMA e outros. No Itaú Cultural há algum risco de isso acontecer?
As instituições, no Brasil e no mundo, vão passar por uma profunda reorganização, inclusive abrindo um debate sobre a sua missão e propósito. Certamente, isso não será percebido agora, imediatamente. Porém, mais adiante entenderemos e viveremos isso como um efeito desse novo normal, desse novo real. As demissões que algumas instituições realizam hoje, certamente, fazem parte de um programa que passa inclusive pela própria sobrevivência. No nosso caso, temos uma situação diferenciada, mas permanecemos atentos à conjuntura econômica e às novas modelagens que virão.
A sede do Itaú Cultural, na avenida Paulista, em São Paulo. Foto: Edouard Fraipont
ARTE!✱ – Em debate realizado recentemente pela arte!brasileiros e pelo Itaú Cultural você fez uma análise sobre a situação da gestão cultural no Brasil nas últimas duas décadas e falou na necessidade de se avançar da ideia de “democratização” do acesso à cultura para a ideia de “participação”. Gostaria que você explicasse um pouco o que seria este “salto” e o que exatamente significa essa ideia de participação de que você fala.
Nos últimos 30 anos, as políticas culturais foram pautadas com o grande propósito da democratização do acesso. Isso foi fundamental para que pudéssemos aumentar as escalas de público atingido, multiplicar palcos e ampliar a difusão artístico-cultural brasileira. Para dar uma ideia do que isso significa, em 1995, a relevante exposição que gerou grande público atraiu quase 200 mil pessoas. Foi a mostra de Rodin, naquela época promovida pela Pinacoteca de São Paulo, quando Emanuel Araújo dirigia a casa. O recorde de público foi aplaudido pela crítica e reconhecido pela mídia. Recentemente, o MASP trouxe uma artista brasileira, Tarsila do Amaral, e obteve um público de quase 500 mil pessoas.
A democratização do acesso veio para ficar, porém precisamos pensar em um novo propósito, no qual a democratização seja parte dele, mas não um fim em si mesmo.A minha crítica em relação a esse conceito é que, como centro da nossa orientação, ao longo desses anos, ele gerou uma distorção em nossa atuação. Passamos a nos orientar por uma localização analógica do CEP, onde as métricas de sucesso se tornaram a catraca, a espetacularização da arte e os novos prédios. Esses três fatores acabam empurrando a gestão cultural para um campo perigoso do entretenimento em que se usava o volume de pessoas, os fogos de artifício e novos equipamentos pararesponder, de maneira superficial, ao tema ao invés de pensarmos a cultura e a arte brasileiras como um todo.Isto tudo, legitimado pela distorção do que, de fato, é democratização do acesso. Obviamente que esses três itens são relevantes, mas, como disse, não podem ser a grande métrica.Em relação aos novos prédios, naturalmente, não sou contra o surgimento de equipamentos culturais, ao contrário, mas desde que sejam criados com uma necessidade institucional real e com um plano de sustentabilidade para a sua manutenção após a abertura.
A meu ver, o propósito maior de uma instituição cultural e de uma política cultural tem de alcançar outro patamar, no qual a democratização do acesso deve fazer parte, mas o propósito maior deve ser a participação dos sujeitos. Isso nos reposiciona como responsáveis, por meio da arte e da cultura, pela transformação da sociedade e para contribuir para o seu desenvolvimento econômico. Por exemplo, temos de ter, de forma mais consistente, uma programação de formação, fruição e fomento. Com isso, o público, a produção e os artistas se entrelaçam sob uma outra ótica, que é a da troca de repertórios, do diálogo entre conteúdos e da interação das pessoas. Esse conjunto passa a ter muito mais relevância do que a simples disponibilização de conteúdo.
ARTE!✱ – Agora, fiquei pensando também em como é possível lidar com essa ideia de participação neste momento de quarentena… Apesar da impossibilidade da presença física de visitantes, ainda é possível nortear o trabalho a partir desta ideia de participação?
Retomando a ideia do tripé formação, fomento e fruição, um conjunto importante dessas ações pode ser realizado de maneira virtual. Naturalmente, temos o desafio de ultrapassar uma internet de velocidade baixa e de custo alto para a população mais carente. Por outro lado, isso nos provoca a oferecer produtos e programas que não sejam simplesmente uma transferência de ações presenciais para o universo digital.
A mudança de paradigma, a resposta a dar em breve, é como fazer programação no digital para levar para o presencial e não o contrário. Aliás, essa minha crítica, em especial, sobre a catraca e a espetacularização ficará ainda mais contundente em tempos de pós-corona onde juntar multidões, infelizmente, deverá ser repensado. A meu ver, nada disso nos fragilizará. Paradoxalmente, o pós-corona trará uma humanização da sociedade, o que, por sua vez, demandará o fortalecimento da ciência, o avanço da educação e a ampliação do fazer artístico. Nós, que estamos intimamente ligados ao mundo do conhecimento, precisaremos estar prontos para responder à altura deste desejo.
ARTE!✱ – Falando sobre o trabalho do IC ao longo das décadas, alguns projetos são muito marcantes nessa trajetória da instituição. Um deles é o Rumos, que tem mais de 20 anos e é um projeto de apoio e fomento à cultura. Voltando um pouco ao assunto dos editais, até que ponto é papel de empresas privadas fomentar a cultura no país? Este caminho seria uma alternativa à ausência de apoios estatais na área?
A arte e a cultura não podem ser reféns de dirigismos culturais, seja de que fonte for. Na minha opinião, a multiplicidade de recursos e iniciativas públicas e privadas é essencial para se ter uma boa política de Estado. O Itaú Unibanco tem uma história de apoio à arte e à cultura, que se manifesta por meio do Itaú Cultural, do Espaço Itaú de Cinema, que recebem recursos diretos do grupo, assim como é direto o patrocínio a iniciativas como o Rock in Rio. Também de apoio a mais de 100 projetos de terceiros em todo o país, por meio do incentivo fiscal.
Além disso e do programa Rumos, que você mencionou, temos o maior acervo de obras de arte corporativo da América Latina. Ele circula por diversas instituições culturais dentro e fora do Brasil de forma gratuita, como o são todas as atividades que o Itaú Cultural oferece. Esse entendimento resulta da percepção de que o século XXI exige mais e mais pessoas criativas e com senso crítico para que o país possa se transformar e desenvolver. A arte e a cultura têm a força para fazer isso acontecer, do contrário sucumbiremos à automatização e aos algoritmos.
ARTE!✱ – Você já afirmou diversas vezes que o Brasil não tem uma política consistente para as artes, para a cultura. A classe artística, no entanto, não parece ter se sentido tão ameaçada em nenhum outro momento da história recente do país como no atual contexto, com o atual governo federal. Como enxerga este momento?
De fato, o Brasil não tem uma política de Estado para a nossa área. Não é de hoje. Há sete anos que o Fundo Nacional da Cultura, um instrumento importantíssimo na constituição de uma política cultural consistente tem visto, sucessivamente, o seu orçamento ser reduzido, mesmo tendo uma fonte segura de recursos advinda das loterias, o que geraria por ano por volta de R$ 350 milhões a R$ 400 milhões para o fundo.
Este ano vence o primeiro decênio do Plano Nacional de Cultura, que é um importante documento de referência para o nosso setor em virtude do seu ineditismo e olhar federativo, mas é frágil pelo aspecto de suas metas. Erroneamente, o PNC indica mais de 50 metas. Um plano com um número exagerado de metas nos faz imaginar que praticamente não tem meta nenhuma. A meu ver, este governo deveria priorizar a análise dessas metas e, em diálogo com a sociedade, propor novas e mais objetivas prioridades para a próxima década, na ótica da participação e do olhar sistêmico para o conjunto das iniciativas culturais e a garantia de liberdade de expressão.
Outro indicativo de vulnerabilidade nas políticas públicas é o fato de que em 30 anos de existência de um órgão dirigente de cultura tivemos, em média, um responsável a cada 10 meses, com exceção de Francisco Weffort, que permaneceu no cargo por oito anos, e de Gilberto Gil, por cinco anos e meio. Tudo isso sem contar, ainda, a histórica fragilidade da Funarte, em tese a instituição pública que deveria ser a responsável por fomentar a arte no Brasil.
ARTE!✱ – Mas falando sobre este governo atual, situações de censura, que de modo geral pareciam parte do passado da história do país, voltam à pauta do dia, criando situações de tensão para artistas e instituições culturais. Como diretor de uma instituição deste tipo, como trabalhar neste contexto? Há uma preocupação neste sentido por parte do IC?
Para nós, a liberdade de expressão é um pressuposto essencial para a criação artística, mas é sempre importante a busca do diálogo com outros instrumentos legais, como por exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Com isso, a obra e a arte ficam garantidas e preservadas, mas os pais e os responsáveis têm de ser informados adequadamente sobre os motivos da indicação da faixa etária, para que eles próprios decidam se as crianças podem, ou não, acessar aquele conteúdo.
ARTE!✱ – Por fim, um dos grandes focos do IC tem sido trabalhar com história e memória. Isso se relaciona não só com história da ditadura, mas da escravidão, das heranças indígenas e africanas e dos vários períodos da história do país. Qual a importância deste trabalho e como ele tem sido feito?
O país mal tem políticas para preservar a sua memória. Somos muito afeitos ao novo, ao imediato, mas não há inovação sem conservação. Por isso, tratar da nossa memória é determinante para que possamos nos entender e compreender nosso processo de desenvolvimento, de modo a ganharmos consciência das nossas várias trajetórias para, inclusive, propormos não só múltiplas narrativas, como também nos prepararmos para o ineditismo e o novo.
Com a programação suspensa desde o dia 17 de março em razão da pandemia do coronavírus, o Itaú Cultural tem intensificado e ampliado a produção de conteúdo para diversos públicos – como podcasts, cursos de EAD e vídeos – no site e redes sociais da instituição e na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
Edital para a Poesia Surda
No dia 27 de abril, a instituição deu abertura às inscrições de projetos para o Poesia Surda, continuando a série de lançamentos de Arte como respiro: múltiplos editais de emergência; editais de apoio aos produtores de arte e cultura, atualmente sujeitos a atuar isoladamente e sem remuneração. Antes da Poesia Surda, as áreas de artes cênicas, música e artes visuais foram contempladas. O novo edital é voltado exclusivamente para poetas surdos ou com deficiência auditiva. Os artistas podem efetuar suas inscrições, até o dia 1º de maio, através do link.
A poesia inscrita deve estar finalizada e ser uma criação individual do artista participante, sendo aceitos trabalhos produzidos anteriormente ou criados nesse período de recolhimento. Ela deve ser apresentada em formato de vídeo em libras, com legendas em português ou em visual vernacular, também conhecido no Brasil como Libras 3D.
Os cem trabalhos selecionados pela equipe de Educação e Relacionamento do Itaú Cultural receberão, cada um, um valor bruto de R$ 2,5 mil como remuneração pelo licenciamento dos direitos autorais da obra. O Itaú Cultural entrará em contato com os artistas selecionados por e-mail até o dia 25 de maio. Junto com a remuneração financeira, o edital garante a apresentação ao público, dos trabalhos contemplados, via plataforma virtual, seja por meio da grade de programação virtual da organização ou por suas redes sociais.
O projeto Arte como respiro: múltiplos editais de emergência pretende contemplar mais áreas de expressão artística, contando, para isso, com um novo lançamento a cada semana.
Mostra de Animação para Crianças
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Quando a chuva vem
Caminho dos Gigantes
Lipe, Vovô e o Monstro
Viagem na Chuva
Entre os dias 27 de abril e 27 de maio, o Itaú Cultural disponibiliza em seu site a Mostra de Animação para Crianças (e todos os públicos). O festival virtual reúne dez títulos da produção nacional de curtas-metragens, cada um vindo de um estado diferente do Brasil. São eles: Menina da Chuva, do Rio de Janeiro, Viagem na Chuva, de Goiás, Pra Ver Poesia, do Pará, Òrun Àiyé: a criação do mundo, da Bahia, Caminho dos Gigantes, de São Paulo, Lipe, vovô e o monstro, do Rio Grande do Sul, No caminho da escola, do Espírito Santo, Meu melhor amigo, de Minas Gerais, Vivi Lobo e o quarto mágico, do Paraná, e Quando a chuva vem?, de Pernambuco. Os filmes foram realizados na última década e permitem um vislumbre não só das temáticas diversas como também das diferentes técnicas de animação empregadas, das mais modernas às mais tradicionais.
Aprendizado virtual
No dia 21, a organização deu início as inscrições para o curso EAD de História da Arte: Um Possível Olhar sobre a Produção em Artes Visuais no Brasil. No início, a proposta eradisponibilizar 70 vagas, mas em razão do alto número de inscrições, o Itaú Cultural acabou ampliando a proposta tornando-a uma série de palestras com transmissão ao vivo e aberta ao público. O curso é dividido em 12 encontros, de uma hora e meia cada, feitos às segundas e terças-feiras. As palestras serão transmitidas às 19h no canal do YouTube da instituição, com início no dia 4 de maio e fim no dia 9 de junho. Ministradas pelo professor e curador Marcos Moraes, as palestras propõem um olhar panorâmico sobre a arte brasileira, do período colonial até a atualidade, analisando artistas, obras e o contexto em que se inserem.
Compartilhando olhares
Somando às iniciativas virtuais de incentivo aos artistas e à educação, o Itaú Cultural lançou o Olhares sobre a Covid-19, Marco Zero indo de encontro com alguns projetos já explorados na arte!brasileiros, como o Diários de uma Pandemia. Sua proposta é estabelecer um diálogo imagético com fotógrafos ao redor do mundo sobre os impactos, as transformações e o cotidiano durante a crise mundial da covid-19. Mediando essa conversa está o editor do blog About Light, Cassiano Viana. Para ele, “não é sobre técnica ou sobre o ato de fotografar em si. É muito mais uma correspondência com pessoas de diferentes realidades e que têm o olhar, a observação e o registro através de imagens como meio de expressão e forma de materializar os sentimentos nesses tempos de isolamento”.
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"No dia 4 de abril, Pequim parou. A China parou. Muitos se reuniram na Praça Tiananmen [a Praça da Paz Celestial] e permaneceram em silêncio por três minutos", conta o fotógrafo chinês Zeng Jia. Imagem: Zeng Jia
“Em todo o país, a bandeira nacional foi colocada a meio pau. Em todo o país, o povo chinês lamentou seus compatriotas mortos”, conta Zeng Jia. Imagem: Zeng Jia.
O primeiro relato fotográfico, À espera da primavera, é de Zeng Jia, em Pequim, na China, país onde o surto de coronavírus se originou. “Para ser sincero, fiquei um pouco assustado ao lembrar o Sars, em 2003. Pequim viveu um momento difícil na época. Eu tinha 9 anos, lembro que as escolas foram fechadas por quase dois meses. Agora, adulto, vendo que as pessoas não têm coragem de sair, mesmo quando as ruas estão vazias e é necessário usar máscaras realmente por todo o tempo, percebo que a situação é tão grave quanto 2003”, observa Zeng Jia.
Ailton Krenak na Flip de 2019. Foto: Walter Craveiro/ Divulgação
“O mundo está agora numa suspensão. E não sei se vamos sair dessa experiência da mesma maneira que entramos. É como um anzol nos puxando para a consciência. Um tranco para olharmos para o que realmente importa”, escreve Ailton Krenak em O Amanhã Não está à Venda (disponível para download gratuito). Um dos mais importantes líderes indígenas brasileiros da atualidade – famoso por sua marcante fala na Assembleia Constituinte de 1987 e por seu intenso ativismo socioambiental -, Krenak acaba de lançar pela Companhia das Letras este pequeno livro com reflexões sobre os tempos de pandemia da Covid-19 e o mundo que virá a seguir.
“O presidente da República disse outro dia que brasileiros mergulham no esgoto e não acontece nada. O que vemos nesse homem é o exercício da necropolítica, uma decisão de morte. É uma mentalidade doente que está dominando o mundo. E temos agora esse vírus, um organismo do planeta, respondendo a esse pensamento doentio dos humanos com um ataque à forma de vida insustentável que adotamos por livre escolha, essa fantástica liberdade que todos adoram reivindicar, mas ninguém se pergunta qual o seu preço”, afirma Krenak – autor também do livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo (2019) – em outro trecho do texto.
Capa do livro. Foto: Divulgação
O autor, que no momento está isolado na aldeia Krenak, em uma reserva de quatro hectares em Minas Gerais, questiona, portanto, a ideia de “volta à normalidade”, ressaltando que ela não é nem possível nem desejável. “O que estamos vivendo pode ser a obra de uma mãe amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por instante. Não porque não goste dele, mas por querer lhe ensinar alguma coisa. ‘Filho, silêncio’.” E, mais à frente, ele arremata: “Tomara que não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. (…) Seria como se converter ao negacionismo, aceitar que a Terra é plana e que devemos seguir nos devorando. Aí, sim, teremos provado que a humanidade é uma mentira”.
Thomas Dworzak. Paris. 20 de março. Legenda do autor: Uma família dentro e ao redor de Nova York celebra a primeira festa de aniversário de uma criança em uma chamada de Zoom.
Mesmo com as particularidades de cada nação no enfrentamento à Covid-19, é possível que estabeleçamos uma comunicação com o restante do mundo, que adentrou as medidas de quarentena há um tempo considerável, mesmo que psicologicamente estagnado.
Neste período, alguns fotógrafos continuam saindo à trabalho, se esgueirando pelas alas permitidas dos hospitais na tentativa de fornecer registros imagéticos do aqui/agora. No “por trás da cena”, eles estão cobertos da cabeça aos pés, usando máscaras, luvas e óculos protetores, tal qual Andrea Frazzetta, cujo trabalho será abordado abaixo.
Outros já viram seus movimentos inevitavelmente restritos ao lar, o que faz com que sua hiper-sensitividade se volte para suas próprias casas e, em uma realidade estendida, seus bairros e vizinhos – a uma distância recomendada. Tendo isso em vista, a Agência Magnum iniciou o projeto “Diários de uma Pandemia”, concentrando em uma página constantemente atualizada os novos trabalhos feitos pelos fotógrafos nesse tempo onde a consciência se altera, inquieta, entre expansão e repouso. A cada semana é apresentada uma edição dessas imagens, selecionadas pelo coordenador do projeto Peter van Agtmael, ao lado de notas e reflexões pessoais dos fotógrafos sobre como eles estão enfrentando a situação à medida que ela se desenrola.
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Jean Gaumy. Fecamp. 22 de março. Legenda do autor: Nossa filha Marie e seus filhos estavam confinados, infectados com o vírus por 12 dias. Doze dias difíceis. Viemos o mais rápido possível, mas não era para entrar na casa deles. Naquele dia, tivemos a surpresa de encontrá-los tocando violoncelo. Eles estavam finalmente melhorando
Lindokuhle Sobekwa. Thokoza. 28 de março. Legenda do autor: Família ser o lar, amor e estar juntos mudou para mim por causa da crise atual. Tivemos que nos separar porque a casa é pequena. Minha mãe mora com meus dois sobrinhos, irmão e duas irmãs. Atualmente, estou com minha namorada na casa dela. Estou pensando em uma família de cinco ou dez pessoas que vive em um barraco, e em como seria difícil para elas se distanciarem socialmente.
Sohrab Hura. Delhi. 28 de março. Legenda do autor: Eu moro em um apartamento de um quarto no terraço em cima de um prédio residencial. Esses apartamentos na cobertura são chamados Barsati (derivado da palavra Barsat, que significa chuva). É uma coisa muito Delhi, esse modo de vida, e está morrendo lentamente. Desde que as restrições foram postas em prática, as pessoas começaram a dedicar seu tempo no telhado como uma rotina diária.
Jean Gaumy. Fecamp. uma mulher levando comida para o vizinho idoso.
Larry Towell. Ontário. 13 de março. Legenda do autor: Decidi que agora era um bom momento para editar meu livro na Ucrânia, um projeto que eu comecei com a revolta de Maidan em 2014. A Ucrânia tem uma história longa e complicada que tenho lutado para resolver visualmente. É como montar um quebra-cabeça com uma dobra cega, e é por isso que meu estúdio parece que eu esvaziei um quebra-cabeça de 1.000 peças em todos os lugares
Thomas Dworzak. Paris. 20 de março. Legenda do autor: Uma família dentro e ao redor de Nova York celebra a primeira festa de aniversário de uma criança em uma chamada de Zoom.
Richard Kalvar. Paris. Legenda do autor: Preso em casa. Bebidas no final da tarde no beco, mantendo-se a uma distância segura. Um homem serve vinho a um vizinho, fingindo usar uma máscara.
Na Normandia (França), avós fazem uma surpresa no meio da aula de violoncelo de sua neta, mediados por uma janela de vidro; em Thokoza (África do Sul), com o retrato de sua mãe repousando só, o filho lamenta a distância social necessária e reflete sobre as famílias com cinco ou dez pessoas que vivem em um barraco – o quão difícil deve ser para elas manter a distância necessária; em Delhi (Índia), a moradora de um Barsati (apartamento pequeno na cobertura de prédios, geralmente de apenas um quarto) olha para seus vizinhos com curiosidade voyeurística à medida que as idas ao terraço tornam-se rotineiras.
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Antoine d'Agata para o jornal francês Libération. Legenda do autor: Paris. 18 de março de 2020. Rive Droite. Dia 1 do bloqueio em Paris durante a crise Covid-19.
Peter van Agtmael. Maryland. 26 de março. Legenda do autor: Eu conheci Christian na semana em que me mudei para Nova York em 2007, e ele é como um irmão para mim. Embora sejamos assintomáticos e tenhamos muito cuidado em Nova York, mantivemos um metro e meio de distância e superfícies esterilizadas nos dias em que estivemos juntos em Easton. A única exceção foi quando ele teve que me ajudar a cavar um grande pedaço de vidro que ficou preso no meu pé. Eu não queria visitar a sala de emergência e arriscar-me a contrair corona, então pesquisamos alguns remédios caseiros e, depois de algumas doses de uísque, consegui esfaquear algumas pinças profundamente no meu pé e extrair o pedaço de vidro.
Jean Gaumy. Paris. 18 de março. Legenda do autor: Annick é nossa vizinha há 25 anos. A maioria dos alunos em Fécamp a tinha como professora de francês. A pedido dela, deixei no muro baixo que separava nossos jardins, o pão que fui buscar na padaria, com minha "autorização de viagem depreciativa" no bolso, a um metro de cada cliente. Eu estava sozinho… Quando Annick saiu de casa, conversamos (a uma boa distância, é claro…)
Alessandra Sanguinetti. California. 6 de março. Legenda do autor: Minha filha Catalina sente muita falta de suas amigas, então fizemos as rondas em nosso carro e visitamos suas melhores amigas de longe. Aqui, ela está violando as regras e tocando as pontas dos dedos com sua melhor amiga Avery.
Cristina Garcia Rodero. Madri. 8 de abril. Legenda do autor: Todos os dias, às 8 da tarde, as varandas são preenchidas para aplaudir os profissionais de saúde por sua coragem, devoção e dedicação, para que haja esperança de salvar vidas.
Jonas Bendiksen. Nesoddtangeen. 2020. Legenda do autor: Em casa, com as filhas Boe e Billie, já que todas as escolas maternais estão fechadas durante o surto de coronavírus.
Robert Adams volta para casa
No período em que nós nos agarramos aos interiores e exploramos o exterior por janelas indiscretas, a Aperture lançou seu novo volume sob o mote “Casa & Lar”, por “previsão do futuro” ou timing inexplicável. Nele, um artigo por Lena Fritsch caminha pelas diferentes expressões na língua japonesa que poderiam ser equivalentes, em momentos distintos, ao nosso “lar” – palavra inexistente em japonês. Fritsch faz isso relacionando as expressões com trabalhos fotográficos de Daido Moriyama, Kazuo Kitai e Ishiuchi Miyako. Um lembrete da potência da fotografia japonesa. Já Pico Iyer traz de volta os lares de Robert Adams, fotógrafo estadunidense que começou a fotografar no meio da década de 1960, chegando à proeminência na década seguinte com sua série “As Planícies” (The Plains) onde retratava a vastidão do oeste estadunidense.
Seu trabalho o colocou como uma das figuras centrais no movimento dos “Novos Topógrafos” (New Topographers), um termo cunhado por William Jenkins para descrever a documentação visual de paisagens alteradas pelo homem. Nos registros selecionados por Iyer, ao invés de destacar os efeitos da industrialização sobre o que antes era um imponente deserto, o ensaísta se volta às fotos de interiores capturados por Adams. “Eu queria apenas mostrar o que havia nas casas que faziam parte do meu assunto principal, a nova paisagem do oeste. Eu também esperava, no entanto, encontrar evidências do cuidado humano”, relata Adams à Aperture.
Em seu texto, Iyer aponta para uma “fragilidade corajosa” que entra no lugar da “majestade da natureza” nesses trabalhos raramente vistos. “Um olho cruel pode ver as coisas que colecionamos como tolas, impróprias; um olho compreensivo vê que é tudo o que temos”, complementa o autor do texto. À parte da ótica “mais transcendental” escolhida por Iyer, o espírito do trabalho pode vir também de uma questão muito mais simples que abre espaço para identificação: é difícil enclausurar esses lares em um tempo-espaço muito específico. As casas de muitas pessoas podem estar espelhadas nessa série, se não as suas, então dos seus amigos, de suas avós, de um parente distante ou ex-namorado.
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Colorado, ca. 1973
Untitled, 1973–74
Lakewood, Colorado, 1973–74
A escolha estética de Adams, seu estilo quase imposto como assinatura, entrega, junto com a ternura dos lares, uma melancolia, um sentimento de solidão que podemos tão bem identificar no nosso cotidiano atual. Contudo, o “nós” nessa sentença é um “nós” seletivo: pessoas com casa; casas razoavelmente espaçosas. Quando escolhemos o lar como uma imagem, fotográfica e mental, simbólica da quarentena, um filtro já é colocado em quais pessoas são representadas por essas imagens. Enquanto decidimos passatempos na quarentena, os ansiosos por um refúgio não veem tão longe. O isolamento recomendado para uma população sem casa é um limbo entre dois países, onde um arde, o outro tem sede, e ambos precisam de água, como escreveria Warsan Shire.
Existe um rosto para a pandemia?
Em uma pandemia, é comum a busca por um “rosto”, uma imagem simbolizante, uma foto que represente o zeitgeist. Com isso, há o risco de cair em uma representação achatada e ignorar outros múltiplos protagonistas nessa narrativa, ao designar uma face para um acontecimento de tamanha proporção. Antes de nos voltarmos para a figura do lar surgiram as cidades fantasma, por exemplo, e precedendo as imagens de comprimidos e vacinas, temos a figura dos médicos.
Ao contrário de outras pandemias nas quais o termo peste foi empregado – com infortúnio – como metáfora, na construção incipiente das imagens desta crise a figura dos doentes não aparece ainda em volume considerável, talvez como uma lição aprendida em relação ao respeito aos retratados. Talvez porque, pelo que se observa até o momento, o Covid-19 não deixa sinais físicos suficientes para ter valor notícia pelo choque pela deformação; de todo modo, a busca por imagens mais dramáticas é “parte da normalidade de uma cultura em que o choque se tornou um estímulo de consumo e fonte de valor”, como escreveu Susan Sontag. Neste momento da crise, nós temos as pessoas que trabalham no front das epidemias nacionais, principalmente médicas e enfermeiros.
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Monica Falocchi. Enfermeira chefe da Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Civil de Brescia. Foto: Andrea Frazzetta
"Estou onde os pacientes chegam: há uma grande tenda em frente ao hospital que é como uma sala de espera. As pessoas não falam muito porque têm medo. Você tenta dar a eles um momento de apoio. Não posso dizer a eles: 'Não se preocupe, tudo ficará bem'. Mas posso tentar acalmá-los. Eu digo: 'Agora você está em boas mãos'. 'Cristian Roversi, voluntário técnico de emergência médica. Foto: Andrea Frazzetta
“Nenhuma palavra pode lhe dar uma idéia do que estamos vivendo aqui. Estamos arrasados." Anna Zanotti, enfermeira-chefe do Hospital Papa Giovanni XXIII, em Bergamo. Foto: Andrea Frazzetta
“O tráfego nas ruas é reduzido em cerca de 1 ou 2% do que era. Mas temos que manter a sirene ligada de qualquer maneira. Depois de estabilizar o paciente, pouco antes de carregá-lo em uma ambulância, pedimos aos parentes que se despedam da melhor maneira possível. ” Antonella Magili, enfermeira, serviço de emergência em Bergamo. Foto: Andrea Frazzetta
“Ver ambulâncias na fila na entrada e não saber onde e como colocar os doentes, dói. Tudo isso deixará uma marca. Marco Rizzi, diretor da unidade de doenças infecciosas no Hospital Papa Giovanni XXIII em Bergamo. Foto: Andrea Frazzetta
“Meu marido também é médico em outro hospital e, quando chego em casa, conversamos como duas pessoas conversando sobre o que aconteceu durante o dia. Fazemo-lo com calma, para ajudar um ao outro a enfrentar as coisas, a compartilhar o fardo. ” Anna Maria Brambilla, médica intensivista do Hospital Luigi Sacco em Milão. Foto: Andrea Frazzetta
Anna Maria Mentuni, mãe de Andrea Frazzetta
Na capa da revista dominical do The New York Times está Monica Falocchi, enfermeira chefe da Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Civil de Brescia. Para Andrea Frazzeta, ela posou com os olhos de alguém “que acabou de sair do campo de batalha”. Frazzeta foi o responsável pelos perfis fotográficos contidos na revista. Ele decidiu documentar o trabalho desses profissionais nas cidades de Brescia, Bergamo e Milão depois de ver as selfies tiradas por médicos e enfermeiras com os rostos machucados pelo uso da máscara por tanto tempo.
Muitos deles foram fotografados no final de seus turnos, capturando um momento em que o desgaste e a fadiga são evidentes em seus rostos. No processo, o fotógrafo ficava a um metro e meio de distância, vestido com roupa protetora, óculos, luvas e máscara.
No meio da reportagem, Anna Maria Mentuni, a mãe de Frazzeta, ficou doente com Covid-19 e acabou falecendo no dia 26 de março. O NYT Magazine publicou a última foto que ele tirou da mãe, logo após ter deixado suas compras de supermercado na porta dela; naquele dia, eles conversaram pelo telefone, embora estivessem no mesmo lugar, um atrás de sua máscara e a outra através da janela da frente, a alguns metros de distância.
Projeto do artista Thomaz Rosa, que inaugura o Four Flags São Paulo. Foto: Divulgação
Em uma iniciativa pensada para os tempos de isolamento social por conta da pandemia do novo coronavírus, a Galeria Jaqueline Martins apresenta a partir desta quarta-feira, 22 de abril, o projeto Four Flags 2020 São Paulo. Duas vezes por semana, bandeiras concebidas por artistas convidados serão hasteadas na fachada da galeria paulistana. Todas as bandeiras são produzidas em edição de 4 + 1 P.A e o valor de venda (R$ 800) será integralmente destinado aos artistas participantes.
Já em atividade em Amsterdam – em projeto capitaneado pelos curadores Julia Mullié e Nick Terra -, o Four Flags parte do desejo de desenvolver meios de estímulo à prática artística durante a quarentena, sendo também “uma oportunidade de gerar receita para que artistas do nosso circuito continuem produzindo”, segundo texto de apresentação do projeto.
Primeira bandeira hasteada na fachada da galeria. Foto: Divulgação.
O primeiro artista a expor sua bandeira na Jaqueline Martins é o paulista Thomaz Rosa. Os próximos confirmados são Ana Mazzei, Pedro França e Cibelle Cavalli Bastos. “Esperamos que iniciativas como esta possam ser encaradas não como soluções temporárias em decorrência do momento atual, mas como oportunidades para refletirmos mais profundamente sobre a maneira com que exposições e projetos culturais ocupam os espaços institucionais ao redor do mundo”, diz o texto.
O artista plástico Cildo Meireles em seu ateliê, no Rio de Janeiro/Marcos Pinto
A expressão “uma agulha perdida em um palheiro” está em mais de 17 mil páginas da internet, utilizada de forma comum para designar algo impossível de se encontrar. Foi a partir dessa expressão que Cildo Meireles criou Fio, fardos de palha envoltos por cem metros de fios de ouro, com uma agulha também de ouro na ponta. “Gosto quando as coisas são fundadas no imaginário do maior número de pessoas”, explica Cildo, em seu espaçoso ateliê, em Botafogo, no Rio.
Um dos artistas contemporâneos brasileiros de maior visibilidade no exterior, com retrospectivas recentes na Inglaterra, Espanha, Dinamarca, Itália e em Portugal, Cildo Meireles, 67 anos, é hoje também um dos mais populares no País, graças às suas instalações permanentes em Inhotim: Através e Desvio para o Vermelho. Versões de ambas, a propósito, estarão também em exibição permanente nos EUA, em Glenstone, um museu próximo a Washington, com características semelhantes às de Brumadinho.
Fio é uma das obras de Meireles em exibição no 34º Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna, na sala menor, em uma seção denominada Imersão, que busca contextualizar as obras da mostra.
“Criei essa obra a partir de uma mostra chamada Ouro e Paus, em 1990, quando eu usava dois materiais comuns, mas com valores muito distintos, como a madeira e o ouro”, conta. A exposição reunia desde uma cama de faquir com pregos de ouro a caixas montadas com o mesmo elemento nobre. “Em 1999, quando mostrei Fio no New Museum, em Nova York, ela foi roubada, mas não acho isso grave”, afirma, desprendido, num estilo que parece acompanhar sua vida. Afinal, apesar de ser um dos mais badalados artistas nacionais, ele se veste sempre de forma casual e com um boné surrado, que chama de “minha peruca”.
Uma das obras mais recentes de Meireles, Aquarum, dois copos, um cheio de água com tensão superficial, ou seja, com o líquido um pouco acima das bordas, e outro cheio de ouro, está em exibição em sua galeria italiana, a Continua, até janeiro de 2016. “O ouro é tão denso que, para encher um copo, foram precisos 8,5 kg”, diz, como se o material não tivesse muito valor, quando na verdade só o custo da obra ultrapassou R$ 1 milhão. “Mas o copo com ouro é o brinde para quem levar o copo com água”, ironiza.
Por que usar materiais como ouro? “Primeiro, porque desde os anos 1970 realizei trabalhos que tinham tanto o material mais barato quanto o mais caro. Depois, o que me interessa como artista é quando o tema passa a ser matéria-prima”, afirma.
De fato, muitas de suas obras partem da matéria como primeiro produtor de significado, caso de Missão/Missões (Como Construir Catedrais), de 1987, exibida na antológica Magiciens de la Terre, em Paris. Nela, um chão de 600 mil moedas se une por um fio de 800 hóstias a um céu de dois mil ossos, uma obra com leitura marcadamente crítica sobre a ação dos missionários no Sul do País.
A política, contudo, entrou na poética do artista por motivos alheios às suas primeiras intensões. Meireles nunca estudou arte formalmente. Aos 15 anos, em 1963, em Brasília, ele frequentou o Ateliê Livre da Fundação Cultural do Distrito Federal, coordenado pelo peruano Barreneschea, com quem seguiu estudando, mesmo após seu fechamento, pelos militares, no ano seguinte. Já em 1968, Meireles entrou na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio, mas desistiu dois meses depois: “Eles ensinavam o que eu já sabia, não tinha sentido”.
“Fio”, uma das obras de Cildo Meireles em exibição no 34º Panorama da Arte Brasileira, do Museu de Arte Moderna de São Paulo/Foto: Divulgação
A essa altura, no entanto, o artista já estava trabalhando em duas séries cujos projetos ele até hoje continua a realizar: os Volumes Virtuais e os Cantos. Esses últimos, quinas que desafiavam o sistema euclidiano, podiam ser adentrados pelos espectadores. Seria uma forma de criar penetráveis, como as propostas de Hélio Oiticica? “Naquele momento, era um caminho quase inverso. Ele buscava algo mais telúrico e ao mesmo tempo com participação popular, já eu queria simplificar o espaço, estava no caminho da abstração”, recorda-se.
Tanto os Volumes Virtuais como os Cantos acabaram selecionados para uma mostra no Museu de Arte Moderna do Rio, em 1969, a pré-Bienal de Paris, de onde sairiam representantes do País para a mostra francesa. Contudo, por conta da ditadura, a exposição foi fechada pelos militares antes mesmo de ser aberta, forçando Cildo a um desvio para um caráter político.
Sua primeira obra com tal faceta, logo em seguida, foi nada menos que Tiradentes: Totem Monumento ao Preso Político ou Introdução a uma Nova Crítica, em que queimava galinhas vivas no dia 21 de abril de 1970, parte da mostra Do Corpo à Terra, organizada por Frederico Morais, em Belo Horizonte.
Naquela época, com apenas 22 anos, Cildo já havia sido convidado pelo curador Kynaston McShine para a mostra Information, que seria realizada no MoMA, também em 1970, que teria ainda Artur Barrio, Hélio Oiticica e Guilherme Vaz. O convite veio por sua participação no Salão da Bússola, no MAM carioca, no ano anterior, quando McShine viu os Espaços Virtuais.
Foi no trem Vera Cruz, que fazia o trajeto BH-RJ, que o artista escreveu Cruzeiro do Sul, o manifesto que explicaria sua participação na mostra norte-americana, que começa com a frase clássica “Não estou aqui nesta exposição para defender uma carreira e nem uma nacionalidade.”
Contudo, a obra para Information, que veio a se tornar um de seus ícones, saiu de forma mais espontânea, no fim de semana seguinte. Após ir a uma praia afastada com amigos, no caminho de volta o grupo parou para almoçar em um boteco. Foi onde um dos amigos jogou um caroço de azeitona dentro de uma garrafa de Coca-Cola e contou que, por conta do processo de lavagem industrial, seria impossível tirar o caroço. Foi aí o Eureka! do artista: “Eu achava o texto Inserções um tanto obscuro e, com a possibilidade de intervir em uma garrafa, eu punha em prática minhas ideias. A partir daí também imprimi textos em notas, usando serigrafias em ambas”. Foi Oiticica quem acabou levando as garrafas de Coca-Cola, para a mostra no MoMA, todas impressas com a ajuda do artista Dionísio del Santo.
Naquele período, no Rio, Meireles vivia em Santa Teresa, pagando algo em torno de cem cruzeiros, por um pequeno quarto. Foi lá, há quase 50 anos, que a então jovem curadora Aracy Amaral o visitou pela primeira vez, e desde então acompanha seu trabalho de perto.
Encarregada do 34º Panorama da Arte Brasileira, Da Pedra Da Terra Daqui, Aracy resgatou um projeto do artista, que ela deve ter conhecido em 1969, a série Arte Física, composta por várias proposições, uma delas retirar do ponto mais alto do pico mais alto do Brasil cerca de um centímetro de matéria e, em seu lugar, colocar algo de dois centímetros do subsolo do País.
Para o Panorama, não foi o próprio artista que realizou o projeto, mas Edouard Fraipont e seu assistente Miguel Escobar, usando um pedaço do mineral kimberlito para aumentar em um centímetro a altura do País, colocando em prática outra regra da poética de Meireles, em sua própria definição: “A partir do mínimo possível, alterar o máximo possível”.
A performance "Homo", de Melania Olcina Yuguero. Foto: Juan Carlos Toledo
Há quarenta anos começamos a popularizar uma nova concepção sobre os transtornos mentais entendidos como síndromes (signos patológicos sobrepostos), que perturbam as funções psíquicas (como cognição, memória ou vontade), associados com disfuncionamentos sociais (prejuízos a esfera amor, trabalho e aprendizagem).Reações em acordo com expectativas culturais, por exemplo, diante de acontecimentos como perda e luto, assim como comportamentos políticos, religiosos e sexuais não são considerados transtornos mentais. O leitor deve ter notado que esta definição não faz nenhuma alusão à causalidade nem ao sofrimento como critérios para dizer que estamos diante de um transtorno. Esta ideia de que os transtornos são convenções estatísticas ajuda a entender por que entre 1968 e 2015 descobrimos 115 novos transtornos mentais. Tacitamente se infiltrou no discurso popular a ideia de que as doenças mentais são no fundo doenças cerebrais, derivadas da ausência ou redução de neurotransmissores, como a serotonina ou a dopamina, que podem ser repostos com a medicação correta. Gradualmente nos acostumamos com esta teoria do transtorno mental como uma espécie de diabete cerebral, uma doença crônica, que exige medicação permanente, que tem uma origem genética, que requer controle e uma certa educação ou disciplina alimentar ou corporal. Uma teoria irmã dizia que a dependência química requer uma guerra às drogas e a disciplina da abstinência, pois as substâncias psicoativas ilegais geram uma dependência cerebral.
Os achados das neurociências são incríveis e avançam no entendimento de determinações de comportamento e emoção. Não há nada de errado com eles e nenhuma teoria psicoterapêutica que se queria justificável deveria lhes ser indiferente. Ocorre que junto com a teoria da diabete mental veio um efeito colateral tremendamente pernicioso: a concepção de que o transtorno mental é indiferente ao modo como falamos sobre ele. Para esta teoria a forma como interpretamos e ligamos a aparição de sintomas com nossa vida, pregressa ou futura, não passa de um epifenômeno sem valor etiológico. A teoria das causas cerebrais, ideologicamente exagerada, passou gradualmente a ironizar tudo o que se relacionava com a forma de vida do sujeito, compreendida como unidade entre linguagem, desejo e trabalho, como uma herança freudiana, anti-científica, dependente da crença em conflitos interiores e outras disposições morais baseadas na boa fé e na força de vontade. O discurso que interpretava de forma diferencial certos sintomas em detrimento de outros (a depressão em vez da mania, por exemplo), as narrativas de sofrimento da comunidade ou dos familiares com quem se vive, a própria versão do paciente, o seu “lugar de fala” diante do transtorno, tornaram-se epifenômenos que não alteram a rota do que devemos fazer: correção educacional de pensamentos distorcidos e medicação exata.
Quarenta anos depois acordamos em meio a uma crise global de saúde mental, com elevação de índices de suicídio, medicalização massiva, receitadas por não psiquiatras e insuficiência de recursos humanos ou equipamentos teóricos e clínicos para enfrentar o problema. Este é o custo de desprezar a cultura como instância geradora de mediações de linguagem necessárias para enfrentemos o sofrimento antes que ele evolua para a formação de sintomas. Este é o desserviço dos que imaginam que teatro, literatura, cinema e dança são pelas de entretenimento ideológico e acessório, como a ampliação e diversidade de nossa experiência cultural não fosse o ponto central para desenvolver capacidade de escuta e habilidades protetivas em saúde mental. Como se eles não nos ensinassem como sofrer e reciprocamente como tratar o sofrimento no contexto coletivo e individual do cuidado de si. O empobrecimento da capacidade de contar sua própria história, de entender a lógica de seus conflitos, de nomear a recorrência de seu mal-estar não é apenas uma perda para a riqueza do espírito ou para a formação de personalidades mais sensíveis, é um desprezo arrogante e um desperdício descabido com os meios elementares de profilaxia básica em saúde mental.