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Tecendo outra história

Imagens da exposição Outros navios: uma coleção afro-atlântica: Máscara Gueledê, povo Nagô (Yoruba), República Popular do Benin, data de aquisição 1977

Há coincidências que revelam muito mais do que as aparências indicam, como a presença na agenda de exposições paulistanas de uma quantidade surpreendente de seleções que se debruçam sobre a cultura, a arte e a memória de culturas oprimidas e por longo tempo invisibilizadas. Elas representam o resultado de uma luta persistente de expansão dos horizontes de um circuito até poucos anos fechado sobre si mesmo. Essas exposições apontam para uma crescente compreensão de saberes e fazeres artísticos que se tornam cada vez mais fundamentais também para repensar o mundo contemporâneo e parecem mais um sinal de esgotamento dos modelos eurocêntricos, baseados em uma precária (e muitas vezes falsa) noção de autonomia da arte.

Exposições como Outros navios: uma coleção afro-atlântica, Entre a cabeça e a terra: arte têxtil tradicional africana, Defeito de cor e Línguas africanas que fazem o Brasil, que ocupam alguns dos mais importantes espaços culturais da cidade, têm em comum não apenas a centralidade africana, como também o fato de que todas propõem – em diferentes níveis e estratégias – rever a forma de pensar, exibir e fazer arte a partir de uma visão diversa desta cultura, pensada em movimento e não como algo congelado no passado, considerada em sua diversidade e não de maneira monolítica e isolada. “Perdemos muito tempo tendo que provar que a gente existia. Agora a gente tem que mostrar como a gente existe”, afirma Tiganá Santana, parafraseando o pensador moçambicano Severino Ngoenha. “Esse é um movimento irrefreável, incontível”, acredita o curador responsável pela curadoria desta que é a primeira exposição sobre línguas africanas feita no Brasil, que pode ser vista até 31 de janeiro no Museu da Língua Portuguesa

A mostra tem por ponto de partida algumas palavras de diferentes origens do continente africano que estão totalmente incorporadas ao léxico corrente. Termos como “minhoca” e “bunda” representam, metonimicamente, essa profunda e íntima relação com termos oriundos de línguas como o iorubá, fom, quimbundo e quicongo, que moldaram a língua hoje falada no país. Músico, poeta e pesquisador, Tiganá sublinha a força simbólica de falar dessa ancestralidade de dentro do Museu da Língua Portuguesa, aproveitando os recursos de alta tecnologia da instituição e buscando conciliar diferentes abordagens: plásticas, literárias, acadêmicas, sonoras a audiovisuais. Obras de artistas como Aline Motta, Rebeca Carapiá e J. Cunha convivem com mapas linguísticos, ricos registros da Missão de Pesquisas Folclóricas capitaneada por Mário de Andrade ou gravações feitas na década de 1940 quando da visita do linguista norte-americano Lorenzo Dow Turner ao país. “São muitos públicos, com repertórios diferentes. É preciso pensar no papel formativo ao lado de um compromisso estético”, pondera.

Tiganá reafirma a impossibilidade de segmentar a cultura africana em diferentes tipos de expressão artística como acontece na cultura ocidental. E enfatiza que a arte contemporânea é terreno fundamental para essa virada de entendimento das manifestações culturais africanas – com suas distintas implicações epistemológicas, artísticas, éticas – exatamente por causa da não-separação entre vida e obra. Cita, por exemplo, a impossibilidade de pensar isoladamente a música, a dança ou os trajes do candomblé. Essa confluência entre rito e arte está na base da performance “Bori”, que Ayrson Heráclito apresentou na Pinacoteca em 2022, com música do próprio Tiganá, e que agora pode ser revista no filme Irawo Bori: oferenda para cabeça cósmica, em exibição na sala de vídeo do mesmo museu.

Bori performance-arte oferenda à cabeça

Cotejar passado e presente, combinando elementos formadores dessa cultura com produções que investigam poética e formalmente os desdobramentos dessa história de violência e dominação, mas também de luta e esperança, parece ser estratégia fundamental dessas investigações expositivas. A mostra Defeito de cor, em cartaz no Sesc Pinheiros, parte da obra literária de mesmo nome para reunir sugestões visuais muito potentes, criando uma trama que coloca lado a lado um conjunto diverso de criações, que se conectam quer pela relação com temas e personagens do romance de Ana Maria Gonçalves – que também integra a equipe curatorial –, quer por uma história e um desafio em comum.

A mostra Outros Navios, que pode ser visitada até fevereiro do ano que vem no Centro Cultural Fiesp, também procurou uma interlocução com a produção mais recente, apesar de sua base eminentemente histórica. São cerca de 300 peças – algumas delas nunca mostradas anteriormente –, provenientes da coleção africana do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-USP), acervo que começou a ganhar forma por iniciativa do arqueólogo Marianno Carneiro da Cunha no final dos anos 1960. Com diferentes núcleos temáticos – como De São Paulo a Ifé ou Ventos do Oeste Africano, a exposição optou por uma expografia em tom mais imersivo, sensorial, deixando um pouco de lado o caráter didático normalmente associado a instituições universitárias. Segundo Rosa Vieira, pesquisadora do MAE e uma das curadoras, o conceito da mostra é o de “caixa aberta”, interligando diferentes questões, promovendo a circulação das obras para fora da reserva técnica e num espaço de ampla circulação, diálogo e reflexão com diferentes agentes, reagindo assim à crítica cada vez mais frequente aos museus etnográficos como meros depósitos de despojos de uma lógica colonizadora. A exposição propõe interconexões com 11 poéticas contemporâneas, como a imagem em deslocamento criada por Denis Moreira, que transita da máscara africana à imagem Manoel Querino ou diálogo entre o olhar histórico de Pierre Verger e a fotografia de Denise Camargo, um autorretrato de sua sombra, “buscando problematizar o lugar no não-sujeito”, acrescenta Rosa. 

Entre a Cabeça e a terra, exposição que reúne aproximadamente 130 peças têxteis africanas, resulta de uma parceria entre a Pinacoteca, a Maison Gacha (Paris/França) e a Fundação Jean-Félicien Gacha (Bangoulap/Cameroun), e traz à tona um conjunto complexo de técnicas, conhecimentos ancestrais e tradições coletivas ainda presentes em território africano. A mostra se organiza em torno de sete núcleos, combinando aspectos técnicos, temáticos e sociais a mostra lida com aspectos como a presença marcante da geometria animal, o uso do azul proveniente do índigo, a riqueza das miçangas, num percurso marcado por deslumbramentos. Não se trata, entretanto, de enfatizar a riqueza dessa produção, mas de considerar esses tecidos como objetos de arte, de cultura e de conexão entre povos. 

Imagens da exposição Entre a cabeça e a terra: arte têxtil tradicional africana: Máscara Gueledê, povo Nagô (Yoruba), República Popular do Benin, data de aquisição 1977

O que está em questão não é uma arte enquadrada nos padrões de modernidade inventados pela Europa, ligados a exploração e acúmulo, em que aspectos como valor e singularidade são a regra. Noções como a ideia de autoria, por exemplo, não fazem sentido aqui. Trata-se de uma transmissão de conhecimento e técnicas intergeracionais, que estão carregadas de significados que vão muito além das noções de uso, apreciação estética ou reserva e intercâmbio de valores. São, sim, elementos que fazem parte de “uma cadeia muito longa, de produção de sociabilidade e conhecimento”, uma “amálgama de saberes”, explica o curador da Pinacoteca Renato Menezes, autor – em parceria com Danilo Losivi (Fundação Gacha) – da concepção e desenvolvimento da exposição. 

Durante muito tempo a cultura ocidental negou, desconfiou ou se apropriou da arte africana – ou indígena –, rotulou essa produção como arte popular ou artesanato, desconsiderando sua riqueza e especificidade e esvaziando-a de significado. Diluir essas generalizações, divulgar essas produções – em suas complexidades geográficas, históricas e culturais – são algumas das premissas que ganham corpo recentemente nos estudos e pesquisas curatoriais. “O público de hoje está muito preparado, curioso, com perguntas muito concretas e nosso papel é alargar esse debate”, conta Menezes. Ou, como afirma Lovisi no catálogo da exposição, “a ideia não é refazer a história, mas completá-la ou tecê-la de outra forma”. Como diz a estrofe de “Diáspora Negra”, composição de Nei Lopes e Rogê que ele adota como epígrafe, “carregando o passado na mente, olhando de frente o que ficou para trás”. ✱

Dandara: entre a lenda e a resistência

Dandara
Dandara, Renata Felinto, Aquarela, Ceará, 2019. Esta aquarela faz parte da série Ex-Votos e da instalação As que me Habitam. Coleção: Secretaria de Cultura de Anápolis/GO
Por Vanicleia Silva Santos (University of Pennsylvania)
Renata Felinto (Universidade Regional do Cariri)

Escrevi este ensaio em novembro de 2023 para um jornal brasileiro que solicitou uma análise sobre Dandara, abordando as seguintes questões: 1. Qual é a importância de Dandara para Zumbi? E para o Quilombo dos Palmares? 2. Dandara teve algum papel no rompimento de Zumbi com seu tio Ganga Zumba? 

O texto seria publicado no Mês da Consciência Negra, mas, por alguma razão, não foi. Suspeito que minha análise não tenha correspondido ao que o editor esperava – uma narrativa que confirmasse uma ideia previamente estabelecida sobre Dandara. 

Posteriormente, aproveitei essa oportunidade para expandir a discussão sobre a construção de personagens na luta pela liberdade da população negra no Brasil. Meu argumento é que a criação de narrativas e representações visuais é um mecanismo essencial que a comunidade negra brasileira tem utilizado para preencher o silêncio sobre a participação negra nos movimentos históricos do Brasil. Este ensaio foca em Dandara, mas a análise pode ser estendida a outras personagens que fazem parte dessa contranarrativa, como Maria Felipa, Zacimba Gaba e outras.

A origem da construção de Dandara

A comunidade negra abraçou Dandara como a esposa de Zumbi e uma mulher que teria lutado pela liberdade no Quilombo dos Palmares. A transformação de uma criação literária em uma figura quase histórica reflete a necessidade de quebrar o silêncio sobre a falta de referências nas fontes históricas sobre a participação das mulheres na luta contra a opressão, violência e o racismo praticados pelos portugueses no Brasil. Embora as fontes militares da guerra contra o Quilombo dos Palmares mencionem pouco as mulheres, sabemos que o quilombo era composto por homens e mulheres que lutaram juntos pela liberdade. A guerra contra o Quilombo dos Palmares ocorreu principalmente na segunda metade do século 17, quando várias expedições militares portuguesas tentaram destruir o quilombo, localizado na Serra da Barriga, em Alagoas. Apesar da resistência, o quilombo foi destruído em 1694, e Zumbi, seu líder, foi capturado e morto em 20 de novembro de 1695, data que hoje é celebrada como o Dia da Consciência Negra.

A pergunta sobre a importância de Dandara para Zumbi não pode ser respondida com base em sua existência histórica. No entanto, havia outras mulheres próximas a Zumbi que certamente desempenharam papéis decisivos em Palmares. Pesquisas históricas mostram que a ideia de uma mulher chamada Dandara surgiu como personagem literária no romance Ganga-Zumba de João Felício dos Santos, publicado em 1962. O escritor mineiro branco criou Dandara, e como Nei Lopes destaca em sua Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, Dandara é uma “personagem lendária da história de Palmares… Celebrada como a grande liderança feminina da epopeia quilombola, teria morrido quando da destruição da cidadela de Macaco. Contudo, sua real existência ainda está envolta em uma aura de lenda.” 

Para responder à pergunta “Dandara teve algum papel no rompimento de Zumbi com seu tio Ganga Zumba?”, seria necessário igualmente ter fontes históricas que comprovassem sua existência. Porém, como já mencionado, Dandara emergiu como um personagem literário em 1962. Portanto, a narrativa de que Dandara teve um papel nesse rompimento baseia-se em narrativas orais que surgiram após sua divulgação na literatura e no cinema. Isso não diminui a importância simbólica que “Dandara” adquiriu nos últimos anos. É significativo que os movimentos sociais tenham transformado uma personagem fictícia em um símbolo de resistência contra a escravidão e a opressão, revelando o poder da comunidade negra de criar narrativas que questionam o silêncio das fontes históricas sobre as mulheres negras na luta contra a escravidão. 

No Brasil, a galeria de heróis nacionais é dominada por homens brancos, algumas mulheres brancas e poucos homens negros. A ideia de Dandara reflete a necessidade de heroínas afrodescendentes que se destacaram na luta pela comunidade negra. Essa construção de Dandara deve nos inspirar a estudar mulheres negras reais que lutaram para transformar a dura vida da população negra no Brasil. 

Recentemente, escrevi sobre Maria Firmina dos Reis, abolicionista e a primeira pessoa negra a publicar um livro no Brasil. Firmina dos Reis foi deliberadamente esquecida pela elite brasileira por denunciar os horrores da escravidão na obra Úrsula. Como ela, há muitas outras mulheres cujas histórias merecem ser pesquisadas e divulgadas. Embora não tenham lutado com armas, muitas mulheres negras, como Esperança Garcia, que viveu no Piauí, escreveu uma carta ao governador, em 1770, para denunciar as brutais e humilhantes condições de vida das mulheres que viviam na fazenda Algodões. Ela e outras mulheres comuns tiveram um papel fundamental na luta contra a escravidão. Além deste exemplo, jornais brasileiros do século 19 estão repletos de histórias de mulheres que fugiram da casa de seus escravizadores, confrontando diretamente o sistema da escravidão. A nossa ideia de heroínas deve ir além dos arquétipos de heróis criados pela ficção e pela história oficial.

Sobre o apelo das heroínas guerreiras, uma boa comparação pode ser feita com os filmes Mulher-Rei (2022), Queen Amina (2017), Rainha Jinga (2023) e outros sobre rainhas e guerreiras africanas que se tornaram populares nos últimos anos no cinema internacional. No cinema, figuras de rainhas e guerreiras negras servem como uma forma de dialogar com o público jovem sobre mulheres inteligentes, fortes, corajosas e valentes que lutaram para defender suas comunidades. Estas produções realizadas na África e em países da diáspora africana desafiam a narrativa dominante centrada em heróis masculinos brancos, destemidos e violentos. O resultado é que muitas pessoas são educadas ou informadas sobre as histórias de diversas sociedades pelo que assistem em produções audiovisuais, que, não, necessariamente, correspondem às evidências históricas. Logo, a nossa necessidade de heroínas negras, mesmo que ficcionais, faz parte da urgência em construir contranarrativas, pois as narrativas existentes até então silenciam as histórias das mulheres negras. De todo modo, precisamos ir além da ficção e pesquisar histórias de mulheres reais, como nós, que tiveram um papel essencial na defesa da liberdade no período da escravidão.

A produção artística sobre Dandara no Brasil

Como resultado do processo de construção histórica de Dandara como uma figura central para o Movimento Negro, diversas artistas brasileiras têm produzido obras significativas que celebram sua trajetória e de outras personalidades. Elas abandonaram a estratégia de apropriação de retratos fotográficos feitos no século 19 em estúdios de fotógrafos consagrados por registrar a população escravizada e passaram a criar novas representações. Um exemplo é a aquarela de Renata Felinto, que retrata Dandara como uma guerreira imponente e que faz parte da instalação As que me habitam, 2019, na qual a artista se autorretrata como heroínas negras subrepresentadas visualmente e historicamente no Brasil. Na obra de Renata Felinto, Dandara segura uma lança em uma das mãos e ostenta no pescoço um colar, do qual descem duas fileiras de contas que passam por baixo dos seios. Em um dos braços, ela usa um bracelete adornado com fitas esvoaçantes. Além de sua representação como guerreira, Dandara também é retratada como uma mulher sensual, evidenciada pelo saiote com aberturas laterais, o rosto ricamente decorado, os cílios longos e as pálpebras pintadas de lilás. Estes dois detalhes marcam as representações femininas da artista que enfatiza tais atributos lembrando-nos que mulheres negras podem ser aguerridas e destemidas e, ao mesmo tempo, ter feminilidade e autocuidado.

Dandara
As que me habitam, 2019, instalação de Renata Felinto com ex-votos em aquarela, cartas e fotografias

Renata Felinto pintou Dandara como um ex-voto para expressar a reverência e o respeito que esta mulher representa na luta pela liberdade dos povos afro-brasileiros e na resistência contra a escravidão. Ao mesmo tempo, para Felinto, este exemplo, sendo fictício ou verídico, fortalece a autoestima de meninas e mulheres negras Brasil afora. Ao retratar Dandara como um ex-voto, a artista conecta a figura histórica a uma tradição religiosa popular que envolve gratidão e devoção, elevando-a à condição de uma figura quase sagrada para o Movimento Negro. Por isso, Felinto adicionou esta frase à pintura: “Agradecemos a Dandara por sua coragem na defesa do Quilombo dos Palmares, no século 17.” (Figura 1)

Ex-voto é uma oferenda ou objeto que simboliza a gratidão de uma pessoa por uma graça alcançada. As pessoas agraciadas geralmente colocam tais objetos em santuários ou igrejas. No contexto religioso popular, especialmente no Brasil, ex-votos são uma maneira de materializar a fé e a devoção. Por exemplo, uma pessoa que acredita ter sido curada de uma enfermidade pode oferecer um ex-voto representando a parte do corpo curada, como uma perna ou um coração, como forma de agradecimento a um santo ou entidade religiosa. Esses objetos podem assumir várias formas, como pinturas, esculturas, placas de agradecimento, ou representações em cera ou madeira de partes do corpo que foram curadas. Neste caso, Renata Felinto ofereceu essa pintura para Dandara, como uma forma de agradecer pela luta pela liberdade do povo negro no Brasil.

O termo “ex-voto” vem do latim ex-voto, que significa “de acordo com o voto” ou “em cumprimento de uma promessa”. Para Renata Felinto, a imagem de Dandara como um ex-voto reforça a ideia de que ela não é apenas uma heroína histórica, mas também um símbolo de força, coragem e resistência para as comunidades afro-brasileiras. Ex-votos são normalmente oferecidos como forma de agradecer por um milagre ou uma bênção, e ao representar Dandara assim, Renata Felinto sugere que a memória dessa figura é uma “graça” concedida ao povo, uma fonte contínua de inspiração e empoderamento. Além disso, essa escolha artística ressignifica o conceito de ex-voto ao ligá-lo a uma narrativa de resistência, em vez de limitar-se à devoção religiosa tradicional. É uma forma de afirmar que Dandara é uma figura venerada não apenas no sentido espiritual, mas também político e cultural, sendo um exemplo eterno para a luta negra no Brasil.

Conclusão

Em suma, a construção da figura de Dandara, na literatura, nas artes plásticas, no cinema e nos movimentos sociais reflete a busca da comunidade negra brasileira por contranarrativas que desafiem a historiografia tradicional, muitas vezes marcada pela ausência ou distorção das contribuições das mulheres negras. Ao examinar a origem e a construção de Dandara, vemos que essa figura não apenas se tornou um ícone cultural, mas também serviu como um catalisador para a criação de narrativas que rompem com a supremacia branca no panteão dos heróis nacionais. A adoção de Dandara pelos movimentos sociais ilustra o poder da narrativa na construção de identidades e na reivindicação de espaços históricos para grupos tradicionalmente marginalizados. Além disso, a produção artística contemporânea, exemplificada pela obra de Renata Felinto, reinterpreta Dandara como uma figura de devoção e resistência, reforçando a conexão entre arte, memória e identidade. Essas representações artísticas não só homenageiam a luta das mulheres negras, mas também ressignificam conceitos religiosos, como o ex-voto, para incluir dimensões políticas e culturais da resistência negra no Brasil. Em última análise, a construção de Dandara como heroína, seja ela histórica ou simbólica, reflete uma estratégia poderosa da comunidade negra para desafiar e reescrever a história, garantindo que as vozes e experiências das mulheres negras sejam reconhecidas e celebradas. Essa construção não só fortalece a identidade e a autoestima das comunidades afro-brasileiras, mas também contribui para uma narrativa mais inclusiva e justa, que reconhece o papel central das mulheres negras na história do Brasil. ✱

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¹ Na obra Black Women in the Global Diaspora in the  XIX Century, que estou organizando com Vanessa Oliveira, coletamos mais de cem fontes de mulheres escravizadas que desafiaram a escravidão e a opressão em todos os continentes. Elas não se enquadram no arquétipo da heroína dos cinemas, mas foram essenciais para desmantelar o sistema escravista ao redor do mundo.

Desaprender o imperialismo e reparar

Fotografias que não podem ser mostradas: Diferentes maneiras de não dizer deportação, Evacuação de seu próprio “livre arbítrio”

A artista e acadêmica Ariella Aïsha Azoulay consegue personificar o conceito que ela criou de história potencial, que dá nome ao seu monumental livro: nascida em Israel (1962) de pais judeus, ela incorporou o nome árabe de sua avó Aïsha como um manifesto de que o passado pode ser também o presente.

Isso porque seu pai, um judeu árabe argelino, buscou apagar da família o legado pré-colonial para ser aceito primeiro como cidadão francês e, logo depois, como israelense, quando se muda com a família para o estado recém-criado em 1949. “Ele não perdeu a oportunidade de se passar por imigrante francês, e não pelo judeu argelino de pele escura que ele era”, conta ela em História potencial, lançado pela editora Ubu, com três dos sete capítulos da publicação original em inglês, que saiu em 2019, com quase 700 páginas.

O exemplo de seu pai é simbólico para apontar como os dominados se identificam com os dominadores, ou nas palavras dela sobre “o mundo de espelhos criado pelo imperialismo, em que as vítimas se tornam agressores e os agressores se tornam vítimas”. Ao resgatar o Aïsha apagado da avó, ela conta ter comemorado “a presença desse nome recalcitrante como uma relíquia inestimável de um mundo pré-colonial diferente, que inspirou este livro desde quando o descobri”.

Ariella Aïsha Azoulay
Radicada nos Estados Unidos dessde 2013, Ariella Aïsha Azoulay atua como professora no departamento de Cultura e Mídias Modernas na Universidade Brown

Assim, como defende o curador Benjamin Seroussi na introdução do livro, ela põe “em prática uma história potencial: desenterrar o que vive no presente, nos escombros do desastre (da colonização, da escravidão, da ocupação) e assim reduzir a tal história imperial apenas a uma história plausível – entre outras possíveis”.

Radicada nos Estados Unidos desde 2013, Azoulay atua como professora no departamento de Cultura e Mídias Modernas na Universidade Brown. História potencial pode ser visto como um guia ou mesmo um manifesto dentro das atuais reflexões decoloniais. Sua meta, afinal, é a mesma, já que se concentra em defender que é preciso desaprender o imperialismo. E isso “significa desaprender a dissociação que desencadeou um movimento incessável de migração (forçada) de objetos e pessoas em diferentes circuitos e a destruição dos mundos de quem eram parte”. 

Dessa forma, boa parte de sua análise se detém sobre as consequências do tráfico de escravizados da África, especialmente nos Estados Unidos, e da ocupação na Palestina, por conta de sua própria trajetória pessoal. “Este livro foi escrito como parte de minha recusa em ser ‘israelense’, a pensar como israelense, a me identificar como israelense, a ser reconhecida como israelense. Eu me recuso em parte porque ser israelense significa ter direito a terras roubadas e à propriedade alheia”. Se, quando o livro foi publicado em 2019, essas considerações já eram contundentes, hoje elas ganham impressionante atualidade.

História potencial

Arquivos

Como artista, Azoulay é reconhecida por trabalhar com arquivos. É o caso de sua publicação Unshowable Photographs – Different Ways Not to Say Deportation (fotografias que não podem ser mostradas – diferentes maneiras de não dizer deportação), de 2013, realizado a partir de fotografias tiradas na Palestina entre 1947 e 1950, reunidas nos arquivos do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICR), em Genebra. Esse período compreende o Nakba (desastre), quando ao menos 700 mil palestinos foram expulsos de suas terras. Como ela não podia reproduzir essa imagens, simplesmente desenhou copiando algumas delas para a publicação, revertendo assim a invisibilidade do arquivo.

“Meu entendimento da história potencial derivou de meu trabalho de criar arquivos contra os arquivos existentes, mas também estimulou tal trabalho. Os arquivos fotográficos que comecei a reunir após ter escrito O contrato civil da fotografia me ajudaram a compreender que a discussão sobre fotografia e cidadania que faço neste livro constitui as histórias potenciais da fotografia e da cidadania que imaginam e atualizam diferentes formações políticas”, explica a artista, no livro publicado no Brasil.

O primeiro arquivo fotográfico que ela se debruçou foi justamente sobre os territórios ocupados de 1967 a 2007, e o segundo, sobre a ruína da Palestina e a constituição do Estado de Israel, entre 1947 e 1950. Ambos os arquivos do mesmo desastre causado pelo regime deram origem a uma história potencial do próprio arquivo.

Ao analisar O contrato civil da fotografia (2008), ainda não publicado no Brasil, Judith Butler afirma que “Azoulay argumenta que a fotografia é um conjunto particular de relações entre indivíduos com o poder que os governa e, ao mesmo tempo, uma forma de relações entre indivíduos iguais que restringe esse poder”. Ainda segundo Butler, o livro “mostra como qualquer pessoa, mesmo um apátrida, que se dirige a outros através de fotografias ou ocupa a posição de destinatário de uma fotografia, é ou pode tornar-se um cidadão na cidadania da fotografia. O contrato civil de fotografia permite-lhe partilhar com terceiros a reclamação feita ou abordada pela fotografia”.

Outro arquivo que Azoulay tratou foi um não-arquivo em verdade, mas ela trabalha muito com essa noção de (des)apagamento. É o caso de A História natural do estupro, que foi exibido na 12ª Bienal de Berlim, em 2022, uma investigação sobre os milhares de estupros que mulheres alemãs sofreram após a Segunda Guerra Mundial e que foram praticamente apagados dos livros da época. Em milhares de fotos realizadas em abril e maio de 1945, não há nenhuma com menção a estupro e, em 9.558 páginas sobre o período, apenas 161 abordam os estupros massivos de mulheres. 

Na bienal alemã, Azoulay apresentou uma mesa com os livros que tratam do assunto, mas as imagens estavam recobertas com uma tarja negra, como a proteger as vítimas. A artista exibiu ainda uma complexa documentação sobre o tema em uma parede. É simbólico aqui como ela revê a história dos aliados vencedores – ingleses, russos, franceses e norte-americanos – que ocuparam a Alemanha e os marca como estupradores, um exemplo da história potencial.

Contra o progresso

Pelo que se percebe, portanto, Azoulay sempre foi uma defensora de estratégias que permitem se contrapor aos dispositivos imperialistas, que em geral se baseiam na história como uma narrativa fechada e nas disciplinas acadêmicas isoladas, especialmente a História e a Política, como suporte da opressão. 

O livro História potencial, nesse sentido, busca propor métodos que se afastem do padrão. “A história potencial deve recusar o uso de ferramentas imperiais”, defende ela. Nem os museus escapam desse contexto: “A museificação da tradição e a exposição de alguns objetos sob o manto de tradição é uma tentativa de nos fazer esquecer que a tradição não diz respeito ao que é transmitido – objetos, imagens ou costumes –, mas à própria transmissão”. Assim, percebe ela, o museu muitas vezes se torna o fim em si, uma entidade legitimadora dela mesmo, mais do que uma reflexão de seus acervos.

Para Azoulay, há dois momentos históricos que definiram boa parte das narrativas imperiais: “Foi com a Revolução Francesa e a Revolução Americana e por meio delas que a história foi institucionalizada como um estudo do passado, baseado, por sua vez, na institucionalização do arquivo como o locus da “matéria-prima” do passado”. Ainda segunda ela, “é essa separação entre passado e presente que permite que quaisquer reivindicações e aspirações não imperiais sejam transformadas em algo de importância secundária para a narrativa do progresso”.

Para nós que, especialmente após à pandemia, estamos atentos às falas de lideranças indígenas e quilombolas, como Ailton Krenak e Nêgo Bispo (1959 – 2023), a crítica ao progresso não é novidade, mas como o livro é originalmente de 2019, portanto antes da pandemia da covid-19, ela ganha tom premonitório. 

“Este livro restaura uma promessa diferente na forma de uma barricada – a promessa de dizer não ao progresso. Não, isso não é possível é o grito que as pessoas emitem por toda parte contra aqueles que agiram como se nada pudesse limitá-los”, brada Azoulay, que antes explicava que a máquina imperialista sempre busca forçar impondo que “tudo é possível”.

Especialista em fotografia, no ano passado ela lançou com Susan Meiselas e outras três autoras o livro Collaboration, a potencial history of photography (colaboração, uma história potencial da fotografia), no qual inclui Rosângela Rennó, Claudia Andujar e o Zumví Arquivo Afro Fotográfico, Azoulay também aponta como a produção de imagens de escravizados foi feita por um obturador imperial. 

“Essas imagens muitas vezes são reproduzidas como ilustrações, sem informação alguma ou apenas com informação superficial sobre o contexto da imagem, de  maneira que fica fácil atribuir a penúria, pobreza e a subjugação dos afro-americanos à responsabilidade das pessoas fotografadas e dissociá-las da riqueza produzida com seu trabalho, sua obra e sua ação”. Como exemplo de história potencial ela lembra do abolicionista Frederick Douglass (1818-1895), que estava representado na 34ª Bienal de São Paulo, em 2021, e que se utilizava da fotografia como instrumento político capaz de contrapor estereótipos de raça.

Azoulay, por isso mesmo, é defensora de políticas de reparação e de grupos que defendem a derrubada de monumentos imperialistas: “As reivindicações de reparações não são uma contra-história, mas são contra a história. Elas se opõem à transformação dos crimes contra os quais recorrem, em ‘passado’, e, da mesma forma, procuram enfatizar a violência petrificada nas instituições.”

Ainda segundo ela, “as reparações não têm nada a ver com o progresso, nem o dos agressores nem o das vítimas; ao contrário, representam uma rejeição do princípio imperial e a recuperação de uma condição humana mundana, uma soberania mundana”. Essas reparações, que são abordadas no último capítulo do livro, são urgentes e não podem demorar a acontecer. “O tempo do adiamento terminou”, sentencia a acadêmica, no necessário tom ativista que o tema impõe. ✱

Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes: projeto de futuro no centro do Brasil

Sertão Negro
Alimentos Sertão Verde
Por Luciara Ribeiro, Ceiça Ferreira e Vitória Soares 
Sertão Negro
Alimentos Sertão Verde

Idealizado e criado pelo artista visual Dalton Paula e pela pesquisadora Ceiça Ferreira em Goiânia, no ano de 2021, o Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes tem princípios alicerçados nos fundamentos dos terreiros, subúrbios e quilombos, por meio dos quais propõe uma formação artística conectada com a paisagem cerratense, seus saberes e tradições negras.

O espaço possui uma estrutura que contempla desde equipamentos e matérias primas para a produção artística, como forno para cerâmica, prensa de gravura, cavaletes e espaços para a prática da pintura, com disponibilidade de tintas e aquarelas, até o foco em sustentabilidade, bioconstrução e ecologia encontradas na sua própria formação e construção. 

No fomento à pesquisa e educação, o Sertão Negro atua na formação de artistas, com um programa de residência local, nacional e internacional, que promove o diálogo entre as artes visuais, o bioma Cerrado e os saberes ditos “tradicionais” das populações afro-brasilerias, sertanejas e indígenas. No espaço também são realizadas exposições, aulas de cerâmica, gravura e capoeira angola, além de sessões do Cineclube Maria Grampinho, cuja proposta curatorial destaca os cinemas negros. Vale destacar ainda uma biblioteca com mais de cinco mil títulos centrados no pensamento afro-brasileiro, africano, afro-diaspórico e indígena e suas relações com as artes, ciências sociais, filosofia, botânica e literatura.

Compreendendo o centro-oeste como um lugar de potência e um centro de criação, o Sertão Negro tece diálogos entre artistas nascidos em Goiás ou que aqui estão construindo suas trajetórias profissionais e assim se firma como um projeto que – parafraseando a artista Rosana Paulino – visa criar estratégias de consolidação, fomento, formação e manutenção da produção negra contemporânea brasileira. 

O ateliê-Escola se expande para um projeto de agroecologia, o Sertão Verde, de onde são colhidos vegetais e folhagens orgânicas para a alimentação de residentes e frequentadores. Recentemente também foi inaugurado o Sertão Vermelho, um novo espaço destinado à produção de proteína (peixe), visando, assim, a sustentabilidade e a soberania alimentar.

A partir da relação indissociável entre a poética artística de Dalton Paula, que reverencia pessoas e espacialidades negras historicamente invisibilizadas e a construção do Sertão Negro, ateliê-escola e centro cultural, no qual, juntamente com artistas e profissionais de diversas áreas, é que tem-se edificado uma ação política no contexto da arte contemporânea nacional.  

Isso significa pensar a formação artística de maneira mais ampliada, articulada à terra, à ancestralidade, a uma forma social negro-brasileira que, por meio do jogo da capoeira angola e dos saberes tradicionais de cultivo da terra ensina sobre tempo e sobre capacidade de negociação no mundo das artes e no cotidiano. 

Tais princípios orientam atividades individuais, como a elaboração do caderno de artista, do portfólio e do entendimento de sua poética por parte de cada artista; e também atividades coletivas, como por exemplo, as propostas curatoriais que o Sertão Negro levou a diversos lugares, entre eles, a SP-Arte Rotas Brasileiras: em 2023 e 2024, para onde o grupo utilizou na primeira participação tinta produzida a base de terras de Goiânia para transformar o “cubo branco” do estande da Feira; e na segunda, fomentou a partir da serrapilheira, processo da natureza que acomoda as folhas caídas e garante fertilidade ao solo, o tecer de um mosaico orgânico e dinâmico com os trabalhos de artistas residentes e assistentes.  

Este desejo de emancipação, de construção de futuro se consolida com a “Associação Jatobá Nascente”, projeto de ateliê-casa e centro de arte-educação, que visa a autonomia financeira, o desenvolvimento artístico e o comprometimento socioambiental de seis artistas residentes e assistentes do Sertão Negro. Trata-se de uma iniciativa pioneira que cria condições para que os artistas trilhem seus próprios caminhos e possam ser multiplicadores desse sonho de transformação social. 

Sertão Negro tem possibilitado a circulação de artistas e a elaboração crítica a respeito deles, tendo sido destaque em análises de importantes agentes das artes, que revelam as contribuições do projeto também para a relaboração dos pensamentos teóricos e conceituais das artes, na reelaboração dos modelos hegêmonicos de leitura, narrativa e olhares para as produções de autorias negras, indígenas e do centro do Brasil. ✱

Sobre as autoras:


Luciara Ribeiro – Educadora, pesquisadora e curadora. Nascida em Xique-xique/Bahia, reside entre São Paulo e Goiânia. É mestre em História da Arte e Diretora artística no Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes


Ceiça Ferreira
– Fundadora e diretora do Cineclube Maria Grampinho, no Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes, projeto de vida que compartilha com o artista Dalton Paula. É Doutora em Comunicação pela UnB e professora e pesquisadora do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás (UEG).


Vitória Soares
– graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Desenvolve pesquisa com enfoque em sociologia e antropologia, ancorando-se no pensamento negro radical para estudo da cultura, artes e movimentos sociais. É pesquisadora em Educação no Sertão Negro.

Novas derivas

Nesta edição da arte!brasileiros, damos a conhecer no Brasil, em língua portuguesa, dois capítulos de um texto do curador e crítico de arte espanhol Agustin Pérez Rubio, ex-diretor do MALBA (Argentina) e cocurador da 11ª Bienal de Berlim, realizada em 2020. Fizemos esta escolha a partir do trabalho excepcional que ele e a artista Sandra Gamarra realizaram como representantes do Pavilhão da Espanha na Bienal de Veneza de 2025, Estrangeiros por toda parte, que se encerra em 24 de novembro deste ano.O projeto da peruana Gamarra, residente na Espanha, traduz de maneira contundente o debate sobre a colonização e o seu papel na América, onde milhares de indígenas, aqui nascidos, e afrodescendentes, trazidos sob regime escravo da África, de Portugal e outras colônias, foram mortos ao longo dos séculos de presença europeia.

Fabio Cypriano resenha e critica o livro de Ariella Aïsha Azoulay que, em História Potencial, propõe “desaprender a violência original do imperialismo”. Cypriano também faz uma crítica do 38º Panorama do MAM, hoje albergado no MAC USP por questões de reformas. A exposição reflete um excelente trabalho de jovens curadores e artistas, que traz para os museus a voz das ruas.

Tudo o que se diga, hoje, sobre povos originários, racismo estrutural e dominação econômica cultural será pouco para entender a dificuldade de traçar um novo caminho para nossos países, carentes de uma revolução burguesa, e onde a desigualdade econômica e social atingiu raças, culturas e religiões.

Não por acaso há mais de dez anos a arte!brasileiros escolheu uma estética e didática interdisciplinar para falar de arte. Impossível falar de arte sem acompanhar sua época. A arte não escapou nem escaparia às tradições escravocratas, nem à sua denúncia. A arte, como as vezes digo, é um pretexto.

As bienais, exposições e os simpósios, nascidos no começo do Século XX, estão, cada vez mais, buscando novos formatos para abrigar movimentos culturais que possam dar conta das novas narrativas contra-hegemônicas por um lado, assim como das manifestações sociais em constante movimento.

Maria Hirszman visitou e compilou quatro exposições em cartaz, que propõem, a partir de diferentes perspectivas, preencher apagamentos da história sobre a importância da presença africana no Brasil.

Eduardo Simões esteve presente no seminário Ensaios para o Museu das Origens: políticas da memória, organizado pelo Instituto Tomie Ohtake, e escreve sobre a conferência Museo del Barro e Museu das Origens: crítica instituinte e políticas da memória na América Latina, com Ana Roman, Izabela Pucu, Lia Colombino e Paulo Miyada, e de que também participaram Gleyce Kelly Heitor e José Eduardo Ferreira Santos.

Uma experiência muito animadora deste segundo semestre foi o Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes, iniciativa idealizada pelo artista Dalton Paula e pela pesquisadora Ceiça Ferreira, em Goiânia, no ano de 2021. Ceiça, Luciara Ribeiro e Vitória Soares, integrantes do espaço artístico e cultural, escrevem sobre as propostas do lugar, que envolvem “diálogos entre as artes visuais, sertões e o cerrado a partir dos saberes tradicionais de base afro-brasileira e africana”.

Com pesquisa e olhar atento buscamos colaborar com a reflexão e divulgar um cotidiano da arte e da cultura – nacional e internacional – sempre preocupados em pensar seu tempo e seu entorno. Os que prezamos pela civilização estamos sempre à procura de novas equações de convivência e, fundamentalmente, novas derivas e possibilidades de intervenção. Boa leitura!

Trienal de Tijuana expõe arte como resistência

Trienal de Tijuana
Série: É salvo és alvo, 2021. Márcio Almeida Brasil

A segunda edição da Trienal de Tijuana 2: Internacional Pictórica (México), inaugurada em 6 de setembro, tem como eixo conceitual o pictórico que, em sua forma disruptiva, é tomado como ponto de partida, ressaltando a capacidade da pintura de se expandir e dialogar com outras formas de expressão. Tal escolha remonta ao projeto inaugural da Trienal de Tijuana Internacional Pictórica (2019), idealizado pelo Centro Cultural Tijuana (Cecut) e proposto pelo crítico mexicano Heriberto Yépez, que via no pictórico a possibilidade explorar novas poéticas da pintura.

Tijuana, cidade atravessada pela fronteira considerada uma das mais visitadas e violentas das Américas, simboliza divisões políticas e sociais profundas. Esse ambiente complexo torna-se cenário ideal para a sediar essa efervescência artística que atraiu mais de 500 artistas de 14 países. Foram selecionados 88 trabalhos, com equidade de gênero, para compor uma trienal pensada a partir de uma convocatória, sem tema pré-definido e somente trabalhos inéditos. As obras abarcam uma diversidade de questões, desde a poética ao trash, passando pelo discurso político, ecologia, questões de escolha de gênero e espaço ancestral de violência e tortura. Como curadora geral da Trienal, após longas leituras e avaliações, eu consegui reunir um conjunto representativo da produção artística contemporânea.

As novas formas de ver e fazer arte inserem-se em um campo expandido, cuja evolução é histórica e contínua. Há um esforço deliberado entre os criadores da Trienal de Tijuana em distinguir o “pictórico” e a “pintura”. No contexto teórico, Hal Foster, crítico e teórico norte-americano, falou em um seminário de 1988 sobre Visibilidade, que o pictórico na pintura ocorre através da ótica: “A visão é também social e histórica, e a visualidade envolve corpo e psique. Essa diferença entre ver e ser levado a ver aponta para as formas em que somos conduzidos a perceber o mundo”. Em resumo, o pictórico é a imagem que expressa transformação. Para Foster, trata-se de uma visualidade “pré-ocular”, que emana do olho interior, o “olho antes do olho”.

As obras selecionadas para esta edição da Trienal, que vai até 28 de fevereiro de 2025, refletem um momento de transcendências, negações, inovações e contrastes geracionais. Regina Silveira, aos 85 anos é hoje uma das artistas latino-americanas mais importantes, segundo a crítica Mari Carmen Ramírez. Sua vídeo-animação “Trampa” é uma execução virtual de um bordado que muda de cor sobre uma parede, evocando a ideia de uma pintura expandida que inclui a dimensão temporal. Na outra ponta, a jovem mexicana Solis Apollon, de 21 anos, apresenta “Pés sobre areia”, uma obra que comunica a impermanência do ser humano tanto em seus territórios de origem quanto fora deles.

A trienal se move em meio a questões sociais e políticas. O fotógrafo norte-americano Scott Henry Hopkins realiza uma intervenção crítica no famoso muro que divide Tijuana e San Diego, restaurado e expandido durante o governo de Donald Trump. Sua obra reflete sobre a dualidade patológica que caracteriza a política de imigração nos Estados Unidos. Com uma pintura exemplar, o equatoriano David Santillán Caicedo usa seu trabalho como ferramenta de crítica social, apresentando uma paródia de autodefesa, em que “vestido” com estravagante e elegante pano, que sugere uma saia, aponta a espingarda para o espectador, em alusão ao armamento generalizado. Geoneide Brandão, a jovem artista brasileira, discute a binaridade de gênero e a heteronormatividade em sua obra, retratando corpos queer em um momento de toque íntimo, enquanto Patrícia Gerber, também do Brasil, faz referência ao corpo feminino com uma pintura indagadora, sobre um corpo feminino pintado de azul, sem cabeça, destacando a objetificação da mulher pelo machismo ao longo da história. A performance presente na Trienal também é notável por seu caráter transgressor. Renato Pera, brasileiro, cria uma instalação impactante em que divide seu espaço expositivo em dois ambientes contrastantes, um rosa pink metalizado e outro vermelho forrado de pelúcia, convidando o visitante a participar de uma narrativa visual que flerta com a estética do terror tendo como protagonista um “morto-vivo”.

A produção latino-americana encontra, nesta Trienal, um território fértil para o diálogo entre linguagens artísticas e culturais. Claudia Casarino, do Paraguai, trabalha “nuvens” diáfanas de tule que sugerem corpos em movimento de balé. A obra surge a partir de leituras com um grupo de mulheres latino-americanas. A instalação, ¿ijerga? de Marilá Dardot, brasileira que vive no México, é um resgate de um dos objetos mais presentes nas casas mexicanas: um pano com padrão nacional de tecelagem que, tanto pode servir para limpeza quanto para cobrir móveis. Marilá trabalha com os sinais de interrogação e exclamação, usados em espanhol no início de uma frase, desencadeando experiências pictóricas com pinturas carregadas de percepção poética. Jerga é ainda um linguajar, no sentido de gíria, que foi criado para driblar o colonizador.

Em ação contínua, o artista argentino TEC, radicado em São Paulo, irrompe seu trabalho pelas cidades criando pontes, invadindo territórios, reinterpretando o homem em conexão com o mundo, com um grafismo inconfundível. São tantas verdades acobertadas pelo tempo, uma delas é revelada pelo artista mexicano Othón Castañeda que reconstrói El Palácio Negro de Lecumberri, datado de 1885 que foi um centro de detenção, cárcere de artistas e cidadãos indesejados, que funcionou de 1990 até 1976. Com esta obra, Othón tenta gerar atributos “geométrico-espaciais”, como ele diz, numa clara referência à Crujía J, nome do lugar destinado a confinar homossexuais. O termo derivou a expressão “joto” reconhecida pela Real Academia Española para se referir a um homossexual, expressão corrente até hoje no México e Honduras.

Com vocação internacional, Tijuana é a cidade dos destemidos, dos sonhos, da esperança. O coletivo Ediciones Caradura, formado por artistas mulheres de cidade, captou muito bem a realidade local ao homenagear as trabalhadoras da indústria maquiladora, aludindo à exploração econômica e social dessas operárias, a maioria vinda de outras cidades ou países esperando o momento de realizar seu desejo: atravessar a fronteira para os Estados Unidos. Com a instalação “Siete Negros”, o mexicano Hector Zamorra, que vive parte no México, parte no Brasil, expõe um novo trabalho em que “instala” tijolos verticalmente sobre a parede conferindo a esses elementos o estatuto de uma criação artística. Reorganizada em novas composições, as peças se aproximam dos mesmos mecanismos de leituras de uma pintura e fluem para uma partitura musical. 

O coletivo brasileiro Duas Marias exibe “Pandora”, uma videoinstalação poética projetada por quatro munitores que registram um andar contínuo dos pés de uma mulher. Este foi um dos dez trabalhos escolhidos para a premiação, mas que não chegou a ser agraciado. O México conquistou os três prêmios atribuídos pela Trienal, em primeiro lugar ficou Samara Collina, que se destacou com uma pintura expressionista, “Apesar de tudo, a alegria do encontro” em que captura a tensão da multidão em um ato político. Já a primeira menção honrosa coube a María Orozco, com uma pintura não concluída pelo seu pai, também pintor e que ela a retoma depois de dez anos, em homenagem a ele. A segunda menção honrosa obteve Enrique Rubio, com a obra “Woolander” em que trabalha a questão de gênero e manualidades em um bordado com lã, empregando a técnica needle felting, feltragem com agulha.

Como ato de resistência R. Trompaz, pintor, performer, videomaker, reinterpreta criticamente a bandeira do Estado de São Paulo para denunciar o abismo social latente na cidade mais rica da América Latina, com uma pintura aliada ao expressionismo abstrato. Diversidade é a marca os videomakers nesta exposição. Yuan Gong (China/Inglaterra) aparece com um vídeo em que atua interpretando uma performance entre a teoria culta e a prática popular. Por meio de danças públicas em praças das cidades, ele coloca em cena o conceito de Beuys em que aconselha: “cada indivíduo deve se ver como artista”.  Com um trabalho intimista, Meneghetti, cineasta e videomaker brasileiro, reinterpreta em vídeo fragmentos da vida de seus ancestrais, imigrantes vindos da Itália e Áustria para trabalhar no Brasil nas plantações cafeeiras de São Paulo, entre 1897 e 1924. Seu trabalho resulta em uma obra quase abstrata, em que a história familiar se mistura a um experimento artístico e visual intrigante.

Trienal de Tijuana
El peso de la desigualdad, 2023. Luis Fitch Estados Unidos

Outro destaque do conjunto é a obra do artista norte- americano Luis Flitch, que traz à tona a memória de George Floyd, homem negro morto por um policial branco em Minneapolis. Com carvão recolhido das ruas após as manifestações, Flitch desenha dezenas de crânios humanos, criando um retrato sombrio da injustiça social estruturada nos Estados Unidos. A morte também está presente em alguns outros trabalhos. Márcio Almeida na série “Es salvo es alvo”, se apropria de placas de madeira com perfurações de balas que, descontextualizadas de seus usos nos clubes de tiro, são ressignificadas como arte em trabalhos multidisciplinares. O artista brasileiro faz uma reflexão sobre a violência simbólica e física, com uma abordagem antropológica/investigativa. A exposição também inclui o trabalho de José Patrício, cujo projeto “Momento Mori” explora o conceito das vanitas, expressões artísticas ligadas à efemeridade da vida e à morte. A obra foi executada com mais de mil pequenos quadrados pintados de azul e negro, que formam uma grande caveira pixelada, que evocam a fragmentação dos momentos da existência humana.

Em meio às tensões políticas e sociais que definem a cidade, a arte aqui exposta reflete tanto o espírito do tempo quanto o desejo de paz, neste momento em que o México se renova ao eleger Claudia Sheinbaum, a primeira mulher a presidir o país. ✱

Colaboradores da edição #68

Agustín Pérez Rubio é historiador, crítico de arte e curador. Foi diretor artístico do MALBA (Argentina) e do MUSAC (Espanha), entre outros. Graduado em História da Arte pela Universidade de Valência, foi curador da Bienal de Berlín e aqui escreve sobre o Pavilhão da Espanha na Bienal de Veneza. formado em Ciências Sociais pela USP, trabalhou na Folha de S.Paulo, nas revistas Brasileiros e arte!brasileiros. Nesta edição, divide com Patricia Rousseaux a autoria da matéria sobre a artista-cientista Leticia Ramos

Renata Felinto é artista Visual, professora adjunta de Teoria da Arte do Centro de Artes da Universidade Regional do Cariri (URCA, CE) e líder do Grupo de Pesquisa NZINGA. É também integrante do Colegiado do Observatório da Violência da URCA. Ambas, Vanicleia e Renata, escreveram o ensaio de Dandara.

Vanicleia Silva Santos é curadora da Coleção Africana no Penn Museum e professora no Departamento de Estudos Africanos da University of Pennsilvania. Especialista em História da África, Diáspora Africana, Cultura Material e Estudos Museológicos. Autora de diversos livros.

Fabio Cypriano é crítico de arte e jornalista, é diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP e faz parte do conselho editorial da arte!brasileiros. Neste número, colabora com a crítica ao 38º Panorama do MAM 2024 e com a resenha do livro História Potencial de Ariella Aisha Azoulay.

Coil Lopes é desenvolvedor multimídia e programador. Trabalha na arte!brasileiros desde sua fundação, auxiliando nas produções de fotografias, vídeos, newsletters. Nesta edição colaborou especialmente com a montagem gráfica da revista impressa e digital.

Fotos: arquivo pessoal

Museu Oscar Niemeyer abriga festa de casamento e gera polêmica

Casamento no Museu Oscar Niemeyer
Foto: Midori Kobiyama

Um dos maiores museus da América Latina, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, com um acervo de 14 mil obras e 35 mil metros quadrados de área construída, o Museu Oscar Niemeyer (MON), de Curitiba (PR), é patrimônio público, vinculado à Secretaria de Estado da Cultura do governo do Estado. A secretaria destinou R$ 3.129.379,00 ao MON em 2024. Por causa disso, causou polêmica essa semana a celebração, pela primeira vez, de um casamento privado no espaço museológico do MON – tombado pelos órgãos do patrimônio paranaense e em estudo de tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

O casamento foi no sábado, 12/10, unindo Yasmin Bonilha, filha de um conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE) do Paraná (Ivan Lelis Bonilha), com Gregorio Nissel. Isso suscitou também uma crítica de suposto conflito de interesses. Os convidados eram recepcionados na parte da frente do museu. O espaço recebeu algumas interferências cenográficas para a festa, como adesivagem do piso da rampa e fechamento das paredes do salão com tecido que imitava estampas de tecidos tradicionais árabes (reproduzindo um cenário das Mil e Uma Noites, com colunatas e portais). As mesas centrais continham réplicas de faisões. A cerimônia foi organizada pela produtora de eventos Ilze Lambach.

A instituição abriga referenciais importantes da produção artística nacional e internacional nas áreas de artes visuais, arquitetura e design, além de manter coleções de arte asiática e africana. No total, o acervo conta com aproximadamente 14 mil obras de arte (entre elas, peças de Andy Warhol, Tarsila do Amaral, Candido Portinari, Caribé e Tomie Ohtake). É visitado por mais de 200 mil pessoas por ano. O Museu Oscar Niemeyer (MON) divulgou uma nota, no final da tarde desta segunda-feira, a respeito da permissão dada à realização de um casamento em suas dependências.

Segundo a direção do museu, a Associação de Amigos do MON (AAMON) possui autorização expressa da Secretaria de Estado da Cultura para locação de espaços para eventos privados, incluindo eventos de natureza social. “Esta é uma fonte de recursos que viabiliza as atividades do Museu, incluindo melhorias em sua infraestrutura, produção de exposições, atividades educativas, entre outros. O objetivo principal é oferecer sempre a melhor experiência ao visitante, democratizando o acesso”. Não foi informado o valor cobrado pela cessão do espaço para a festa de casamento.

Conforme a nota, como o espaço está sendo preparado para receber nova exposição após o encerramento e desmontagem da mostra “Extravagâncias”, de Joana Vasconcelos, a visitação ao museu estava suspensa, o que evitou algum prejuízo ao visitante normal. “Além disso, no espaço Olho foi realizada apenas cerimônia de casamento breve, com todas as restrições para preservação do espaço e com aproximadamente uma hora de duração, e a festa de casamento ocorreu fora das dependências do museu, no Salão de Eventos e Vão Livre”, prossegue a nota.

Uma postagem em uma rede social, com registros da festa, incendiou a controvérsia. Os registros mostram equipamento extra para iluminação e sonorização, o que suscitou dúvidas acerca da segurança. O museu sustenta que a locação ocorreu com autorização dos órgãos competentes, com emissão de alvará temporário específico para o evento e licença perante o corpo de bombeiros. A instituição também informou que esse tipo de atividade é comum em diferentes museus públicos e privados, nacionais e internacionais, citando os casos do Instituto Inhotim, Museu Histórico Nacional, Museu do Amanhã, MAC Niterói, MAM-RJ, MUBE-SP, National Gallery (Londres), Art Institute Chicago, Museu de História Natural de Nova York, Museum of the City (New York), Asian
Art Museum (San Francisco) e o Brooklin Museum de Nova York.

Na direção do MAC USP, José Lira e Esther Hamburger querem um museu cada vez mais transdisciplinar

José Lira e Esther Hamburger - MAC USP
José Lira e Esther Hamburger

Pouco mais de dois meses após assumirem o comando do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP) para uma gestão de quatro anos, José Lira (diretor) e Esther Hamburguer (vice-diretora) deixam claro que pretendem dar continuidade ao trabalho construído ao longo dos últimos anos pela gestão de Ana Magalhães e Marta Bogéa (leia mais aqui). Lira ressalta que, na verdade, se trata de entender a gestão como continuidade de um trabalho até mais antigo de “construção institucional e acadêmica” deste museu paulistano que possui uma das mais importantes coleções de arte moderna e contemporânea do país – com mais de 10 mil obras.

Ao mesmo tempo, é claro que toda nova direção traz suas ideias próprias e lida com novas realidades, sejam elas na estrutura do museu (que se mudou da Cidade Universitária para o Ibirapuera em 2012), nas dinâmicas de trabalho e, especialmente, nos modos de atualizar seus discursos e linhas curatoriais, “em função das transformações que a sociedade e a mentalidade contemporânea estão impondo”, diz Lira. Para falar sobre os planos e visões da nova gestão, a arte!brasileiros conversou com Lira e Hamburger, que falaram sobre estes e outros temas.

O principal conceito que norteia a dupla é o que intitulam Colégio das Artes, um projeto de transformar o MAC USP em um museu cada vez mais transdisciplinar, que dialogue com os mais diferentes departamentos da universidade e com organizações e atores de diferentes áreas também de fora dela. As próprias áreas de atuação de Lira, vindo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), e de Esther, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) – mais especificamente da área do audiovisual – reforçam este desejo.

O Colégio das Artes não deixa de ser, também, um caminho para lidar com um mundo complexo, em crise, e com uma produção artística contemporânea que reflete este contexto. “Temos uma crise ambiental, crise política, crise cultural e o mundo está em guerra. (…) Então eu acho que as artes e as ciências humanas estão no cerne dos desafios que o mundo enfrenta. E o MAC tem potencial de ser um laboratório incrível”, afirma Esther.

Outro importante eixo de trabalho destacado por Lira será a gestão de um “centro de ciências do patrimônio”, um sofisticado laboratório de preservação e restauro de obras de arte, com tecnologia de ponta, que está sendo instalado no museu. O local, ligado também à pesquisa acadêmica, deve não só cuidar do acervo do museu, mas formar profissionais que atuem no MAC e também em outras instituições.

Criado em 1963, quando foi transferido aos cuidados da USP o acervo do antigo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM SP), formado inicialmente a partir das doações do casal Ciccillo Matarazzo e Yolanda Penteado, o MAC USP apresenta no momento tanto exposições montadas a partir de seu acervo (como Tempos fraturados e Acervo aberto) quanto uma mostra em parceria com a Terra Foundation for American Art (EUA), uma do artista Luiz Sacilotto e uma grande instalação de Anna Bella Geiger (Circumambulatio). Além disso, o museu recebe o 38º Panorama da Arte Brasileira, realizado tradicionalmente no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM SP), que passa atualmente por reforma. 

Leia abaixo a íntegra da entrevista.

arte!brasileiros – José e Esther, vocês assumiram a direção do MAC USP há menos de três meses. A proposta não é de rompimento ou mudança de rumo em relação à gestão anterior, mas há algumas novidades, como aquilo que intitulam Colégio das Artes. Podemos começar falando um pouco desta transição de gestões e, a partir disso, dos principais eixos de trabalho que vocês propõem a partir de agora?

José Lira – Sim, você tem razão, acho que a nossa proposta não se propõe a uma ruptura ou um desvio de rota. Um museu dessa importância, dessa dimensão que tem o MAC USP, envolve um trabalho de gerações, tanto de construção institucional quanto de construção acadêmica – afinal se trata de um museu de arte universitário. Então entendemos que se trata de contribuir nesse processo em uma instituição que, desde que foi criada em 1963, passou por mudanças muito significativas, mas dentro do processo de consolidação desse museu de arte no interior da USP. Então, em 1963 a coleção tinha uma certa identidade que era dada pelo Ciccillo Matarazzo, muito marcada de um lado pela revisão do modernismo e atualização no nível internacional do modernismo brasileiro e, por mais importantes e singulares que tenham sido as gestões do MAM, por parte de figuras como Lourival Gomes Machado, lá atrás, essa identidade da coleção foi muito decisiva para o que viria a ser o museu.

Além disso, envolvido com a Fundação Bienal, Matarazzo tornou a coleção também próxima dessa outra instituição, por volta dos anos 1950. As obras premiadas dentro da Bienal iam enriquecendo e atualizando esse acervo. E com a vinda para a USP, o grande esforço do Walter Zanini, que foi o primeiro diretor do MAC, por cerca de 15 anos, foi de estabelecer de fato um lugar do museu dentro da universidade. Zanini era professor da Escola de Comunicação e Artes (ECA) e antes havia sido da Filosofia e foi, sem dúvida, uma figura muito importante para a introdução da pesquisa dentro da instituição. Pesquisa que ele desenvolvia, mas também que ele fomentou em torno da coleção. Pesquisa que era acadêmica, mas também que era estética.

Enfim, há várias revisões dessa longa história do MAC USP disponíveis. Vários diretores se preocuparam em recontar essa história, em estabelecer esses grandes marcos temporais. Mas o museu, recentemente, passou por duas transformações muito significativas, uma já no século 21. E o MAC atual é filho dessas transformações. Uma é a autonomia do museu dentro do estatuto da universidade, há cerca de 15 anos, quando ele se equipara com uma unidade de ensino. O museu já tinha um corpo de pesquisadores, inclusive no quadro de funcionários, mas ainda não tinha uma atuação plena dentro da universidade através de carreiras docentes próprias, dessa figura do docente do museu. O surgimento dos quatro museus estatutários da USP, entre eles o MAC, permitiu que ele se entrosasse com as políticas de graduação, de pós, de extensão e de pesquisa que são a rotina de qualquer unidade de ensino. Isso deu uma autonomia e uma complexidade nova ao museu.

A segunda mudança foi a transferência para a sede do Ibirapuera, que é uma transferência que veio se desenvolvendo desde 2012 e praticamente se completou na gestão anterior. O acervo está quase inteiramente reunido aqui na sede, que comporta os laboratórios, as reservas, as áreas acadêmicas, as áreas de programação e um espaço de exibição da coleção e do trabalho curatorial que é dez vezes maior do que o espaço anterior. Resumindo, o que eu queria dizer com esse retrospecto é que por mais que tenha tido contribuições singulares de uma gestão específica ou outra – O MAC teve grandes diretores e, claro, algumas inflexões de rumo, algumas ênfases –, a construção institucional de um museu dessa escala não é uma coisa rápida, nem trabalho de uma geração. Então não se trata de romper o nosso passado, mas de desenvolver, aprofundar, se apoiar nas realizações anteriores para fazer as novas realizações. 

Sigamos então para as realizações que vocês pretendem deixar.  

José Lira – Eu diria que tem duas coisas importantes, além da continuidade, que talvez não estivessem tão claramente presentes nos programas anteriores. De um lado, a presença da Esther, vinda do audiovisual, e a minha, vindo da arquitetura e do urbanismo, tem também o significado de apontar para um diálogo maior entre as artes visuais e esses campos. Um diálogo e uma presença maior do audiovisual, da arquitetura, do urbanismo e do design no interior da programação, das curadorias e mesmo do acervo do museu. O MAC já tem algumas coleções e itens, alguns fundos de audiovisual e de design, mesmo alguma coisa mínima de arquitetura, mas isso sem dúvida pode ser incrementado. Qualquer grande museu de arte contemporânea tem os seus departamentos e as suas curadorias de cinema, de filme, de arquitetura, de design.

E a ideia de Colégio das Artes tem a ver com essa multidisciplinariedade? Em entrevista ao Jornal da USP, você falou do MAC USP como “um lugar neutro, que não pertence a nenhuma disciplina específica, mas tem um interesse transdisciplinar congênito”. A ideia, portanto, é a de que o museu possa ser um centro aglutinador de iniciativas, tanto de diferentes departamentos da USP quanto de projetos externos a ela? 

Esther Hamburger – Sim, o MAC já vem trabalhando numa linha bem transdisciplinar, inclusive nas exibições. Se você observar a exposição Experimentações gráficas, da Coleção Ivani e Jorge Yunes, que explora as relações entre esse acervo que está entrando no museu e o acervo que já existe, ela cruza fronteiras disciplinares. Porque é uma coleção de desenhos gráficos. Então você tem na mostra capas de revistas do Di Cavalcanti colocadas em diálogo com outras obras dele que são do acervo do MAC, por exemplo. Enfim, o museu já tem um conceito curatorial que procura extravasar as bordas disciplinares.

Da minha parte, inclusive, eu tenho uma formação bem transdisciplinar, desde sempre. E eu acho que nós vivemos em tempos especialmente desafiadores, né? Quer dizer, temos uma revolução técnica acontecendo e as ciências duras e as universidades têm muito a ver com essas modificações. E, ao mesmo tempo, temos uma crise ambiental, crise política, crise cultural. Assim, o mundo está em guerra. E não tem nada mais quente, digamos, que a guerra, o aquecimento global… Então eu acho que as artes e as ciências humanas estão no cerne dos desafios que o mundo enfrenta, embora nem sempre se reconheça assim, e o MAC USP tem potencial de ser um laboratório incrível. Ele já é, na verdade, então trata-se sempre de incrementá-lo, de abri-lo mais para colegas de outras unidades da USP, para estudantes das mais diversas áreas terem contato com o acervo, terem oportunidade de fazer cursos, workshops, etc. 

Atualmente o predomínio nos cursos do MAC USP é de alunos da ECA (unidade da USP que inclui o departamento de Artes Plásticas) ou é variado?  

Esther Hamburger – É bastante diverso, porque o museu oferece cursos abertos. Eu acho até que esse é o modelo que a universidade deveria estimular, que as grades curriculares fossem mais abertas para os estudantes poderem optar. Eu acho que precisamos muito disso e os alunos querem isso. Nesse sentido, o MAC tem um modelo muito interessante. Ele não tem um curso de graduação próprio, ele oferece disciplinas optativas abertas a vários cursos. Então tem alunos da ECA (comunicações e artes), da FAU (arquitetura e urbanismo), da FFLCH (cursos de humanas) e creio que devemos ter de outras unidades, até da POLI (engenharia). 

José Lira – O MAC tem esse potencial de aglutinação, que a Esther acabou de dizer, de aglutinação entre disciplinas e entre colaborações de áreas do conhecimento muito diferentes. Esse potencial é do próprio DNA do museu. Ele não é uma unidade de ensino e pesquisa, não tem um curso de graduação específica, mas ele contribui, colabora, através de seu corpo docente, com o ensino de graduação na forma de disciplinas eletivas, acessíveis a alunos de qualquer área.

A realidade que enxergamos hoje, não só na USP, mas na universidade, no ensino superior em geral, é de uma atomização muito grande, né? Das escolas, das áreas de conhecimento e das disciplinas. A marcha da especialização, que durante um certo momento parecia inevitável, hoje está pedindo atitudes, formações ou intervenções mais plurais, mais abertas do ponto de vista da disciplina, mais híbridas mesmo. Eu diria, até, mais ecléticas. Aquela ortodoxia científica, disciplinar, epistemológica, já faz algum tempo que está em crise. É uma crise da educação em geral, da universidade, é uma crise da cultura ocidental, desse modelo de civilização e de ciência também, de tecnologia, de desenvolvimento, que gerou esses problemas de ordem ambiental, humanitária e política. Então abordagens mais transdisciplinares, sem dúvida, são muito bem-vindas.

Agora, essa atomização, por outro lado, eu não diria que ela deu as costas às artes. Pelo contrário, muitas vezes nós vemos, espalhados pela universidade, docentes, discentes, grupos de pesquisa e laboratórios que, de dentro de suas disciplinas – seja história, arquitetura, jornalismo, cinema, psicologia, sociologia ou antropologia –, estão trabalhando com as artes. Só que dentro de seus nichos. O que é um paradoxo, porque muitas vezes esses grupos, essas carreiras que perseguiram a reflexão sobre a arte, são dissidentes já dentro de suas áreas de conhecimento, desafiando a própria fronteira de campos que têm os seus objetos duros, que têm as suas linhas de pesquisa clássicas e que raramente passavam pelas artes. E hoje, nós temos um universo imenso de gente trabalhando na USP, em todas as áreas de conhecimento, com uma quantidade de trabalho acumulado que nem sempre chega fora dessas redomas.

Agora, saindo um pouco dos muros da universidade, queria perguntar sobre o diálogo também com possíveis instituições parceiras, com a comunidade artística, com outros projetos de fora da USP. Esse trabalho já vem sendo feito pelo MAC, mas qual a ideia de vocês neste sentido?

José Lira – É importante salientar isso, porque não se trata simplesmente de reunir a USP num lócus excêntrico, digamos assim. Se trata também de atrair e dialogar com a produção artística espalhada na sociedade, inclusive fora de São Paulo. Então estamos em uma fase de estruturação, começando um pouco por essa dinâmica extensionista, cultural que o museu já tem, para ir constituindo um modus operandi diferente. Encarando esses eventos, esses cursos, essas oficinas que muitas vezes aconteciam dentro do museu de maneira mais solta, agora dentro de um projeto comum de publicização do debate artístico, da produção artística. Então, estamos tentando fazer as iniciativas que já acontecem convergirem para esse projeto.

Outra coisa é se valer desses recursos mais imediatos, que são de nossos colegas, de nossos alunos, de nossos programas de pós-graduação, que estão convidados a colaborar nesse processo de expansão do debate artístico, não só interdisciplinar, mas também interinstitucional e com a sociedade civil, com os produtores de arte, as pessoas que estão pensando a arte e outros lócus de conhecimento que não a universidade.

Esther Hamburger – Só para dar um exemplo, o museu tradicionalmente faz atividades com o Instituto Moreira Salles, com quem temos um convênio. Eu estou também em uma comissão na FAPESP que organiza uma escola interdisciplinar, e ela vai trazer o Takumã Kuikuro, que é um cineasta indígena, para participar de uma atividade em dezembro. E aí, logo depois, ele vai dar um workshop no IMS com o apoio do MAC. Quer dizer, queremos congregar os esforços que já estão em curso. Outro exemplo, nós vamos ter um workshop da Rita Duffy, que é uma artista irlandesa, que está vindo para São Paulo a convite da Cátedra de Estúdios Irlandeses da USP, financiada pelo consulado da Irlanda. E ela vai fazer uma exposição na Maria Antônia e um workshop aqui no museu. 

Enfim, eu acho que isso tudo parte de uma vocação natural do museu, que já existe, e que se desenvolve hoje nos eventos que o corpo docente e o corpo técnico do museu estimulam – e que são equipes de uma qualidade impressionante, gente muito bem formada, de uma dedicação incrível ao museu, uma coisa que salta aos olhos. E são equipes acostumadas a promover coisas, estão voltadas a isso e nós pretendemos incrementar esse caldo de cultura.

E só pra concluir, o museu também participa de dois programas de pós-graduação que são interdisciplinares e inter-unidades. Você vê que a vocação está aí. Um é o de museologia, que é sediado no Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-USP) e o outro é o programa em História e Estética da Arte.

Já falamos então dessa relação do MAC com a universidade, um pouco da relação com instituições de fora, agora eu queria saber mais sobre o grande público, digamos assim (foram 410 mil visitantes ao museu em 2023). Enfim, como pretendem trabalhar esse diálogo com a sociedade como um todo, para atrair as pessoas, dialogar com elas, intensificar essa relação? 

José Lira – Vimos recentemente um mapeamento sobre isso e percebe-se como a vinda para o Ibirapuera já representou, em 2013, uma expansão imensa de público. A saída da cidade universitária para cá já representou uma guinada importante no fluxo mensal de visitantes. No início do funcionamento do museu aqui a visitação era da ordem de 10, 12 mil visitantes por mês. Isso veio crescendo desde então, chegando a quase 40 mil. Excluindo os anos da pandemia, claro. E precisamos estudar melhor quem é esse público, como é que ele está visitando o museu, quais os seus interesses. 

Enfim, há uma parcela que é o público do museu propriamente dito, outra que é público do edifício, inclusive do terraço panorâmico que nós temos lá em cima. Lembrando que esse é um edifício tombado, projetado por Oscar Niemeyer, um espaço público acessível, como não era em outras épocas. E ele se tornou um marco turístico, principalmente com a abertura do terraço para a visitação pública. Então também há um público leigo, que não é de frequentadores da cena artística, que muitas vezes está chegando pela primeira vez em uma exposição. Tem gente, inclusive, que às vezes nem entra, vai ver a vista e fica fora. Então precisamos mapear, conhecer melhor esse público e trabalhá-lo, enfim, formá-lo. Fazer um trabalho formacional. E eu acho que um dos impactos que a gente espera do Colégio de Artes não é simplesmente a dinamização, mas é também a expansão do público, sempre com qualificação.

Um outro aspecto que acho fundamental para essa conversa é falar sobre o acervo do MAC USP, de mais de 10 mil obras, e o trabalho que tem sido feito com ele – que inclusive foi premiado pela Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) em 2023. Nesse sentido, desde que vocês assumiram foram abertas duas exposições: Acervo aberto e Experimentações gráficas: Doação Coleção Ivani e Jorge Yunes. Uma apresenta uma coleção doada recentemente ao museu e a outra discute justamente a ideia de reserva técnica, mostrando também obras que nunca antes foram expostas. Vocês poderiam falar sobre esse trabalho constante de ativação do vasto acervo do MAC?

O acervo é um acervo histórico. Apesar de ser um museu de arte contemporânea, ele já tem uma identidade. Muitas pessoas vêm ao MAC para ver o Modigliani, o Boccioni, a Tarsila do Amaral, uma Anitta Malfatti específica etc. E isso é um trunfo do museu. Agora, é um museu de arte contemporânea e que está, desde a sua criação, a partir desse núcleo histórico precioso, se ressignificando, se atualizando. E eu tenho impressão que o trabalho da Tempos Fraturadas ou da Lugar Comum, que foram duas exposições da gestão anterior, foi um trabalho muito fino de intervenção no acervo curatorialmente. Quando nós recebemos o prêmio da ABCA não foi apenas o acervo, mas o trabalho em torno dele. Então, por exemplo, essas mostras recolocaram as obras-primas, digamos assim, as grandes peças, em diálogo com produções menos conhecidas no desenho. Tempos diferentes, com técnicas diferentes, com gêneros diferentes, materialidades diferentes.

E esse cruzamento se deu a partir de recortes curatoriais altamente relevantes no presente. Então, são questões que foram aparecendo que não eram as mesmas que se faziam presentes nos anos 1960, nos 1980, nos anos 2000, mas que estão brotando na sociedade e na cultura de maneira latente… Questões de violência, de sexualidade, de corpo, de raça, de classe, crise ambiental, enfim, assuntos que estão permeando o debate público foram absorvidos aqui dentro.

Esther Hamburger – E sempre a ideia de relacionar o acervo com coisas contemporâneas e outros também históricas. Quer dizer, é o acervo como um arquivo vivo. 

José Lira – E há outra coisa muito importante: recentemente o museu foi selecionado para sediar um equipamento multiusuário diretamente ligado ao acervo. Esse equipamento multiusuário, EMU, foi aprovado pela FAPESP na forma de um centro de ciências do patrimônio. Um laboratório, um equipamento ligado à preservação, conservação, restauro de obras de arte, pesquisa físico-química, pesquisa do estado de conservação, da composição original, das camadas de degradação ou de confecção do trabalho artístico… Está sendo instalado, nesse momento, aqui no museu. A instalação não está completa, os equipamentos ainda estão chegando, mas é incrível.

Esther Hamburger – Sim, até porque é uma coisa que um museu universitário faz e que um museu que não é universitário dificilmente tem a mesma condição de fazer. Porque nós somos uma unidade de pesquisa também. Nosso quadro técnico e docente é de pesquisadores. E a pesquisa entendida em um sentido amplo, desde a pesquisa técnica necessária à preservação e restauro das obras, que é o que esse laboratório pretende fazer. Ele é chefiado pela professora Ana Magalhães e pela professora Márcia Rizzuto, que é professora titular do Instituto de Física e tem uma vinculação subsidiária aqui no MAC. Isso é uma semente de um Colégio das Artes incrível.

Posso estar enganado, mas acho que algo assim é raro, ou mesmo inexistente, em museus no Brasil… 

Esther Hamburger – No Brasil vai ser o primeiro do tipo. E ele é um centro que envolve parcerias com outros museus e outras universidades, ele pretende atuar em rede. Então, com isso, o MAC está valorizando o seu acervo, assim como a pesquisa de técnicas de restauro e preservação, além da formação de gente. Tanto pessoal ligado a outros museus, como alunos de pós-graduação…

José Lira – É um equipamento sofisticadíssimo que está chegando. De microscopia eletrônica, radiografia de última geração, digitalização de grande escala, peças tridimensionais, mapeamento, scanners e por aí vai.

Vocês acham que isso pode até ajudar a mais gente querer doar obras ou coleções para o museu?

Esther Hamburger – Sim, porque é isso, é saber que o acervo está sendo bem cuidado. E exibido! Então o acervo está sendo cuidado de maneira inovadora e exibido de maneira inovadora. Por exemplo, a doação da coleção Yunes chegou e já tem uma exposição, que é um tipo de celebração. Isso também é um diferencial. E assim o MAC USP mostra como esse material novo se relaciona com aquilo que você tem. Por vezes, com coisas que você não tem, mas que outras pessoas têm e que nós podemos ir atrás. Experimentações Gráficas, nesse sentido, trabalha com o acervo do museu e com outros acervos também.

José Lira – Isso que você falou é importante, do incentivo a doações. Porque não é mesmo qualquer museu no Brasil que oferece a um artista, a seus herdeiros, a um colecionador, as condições de preservação, estudo, perpetuação e conservação das obras de arte como o MAC oferece. 

Por fim, eu queria falar um pouco da conexão do MAC USP com os debates políticos contemporâneos, especialmente em relação a algumas pautas que são hoje incontornáveis no meio cultural e artístico, como violência contra minorias, desigualdade social, racismo, questões de gênero, destruição do meio ambiente e assim por diante… Estes temas são foco para essa nova gestão do MAC? 

Esther Hamburger – Essas são as questões contemporâneas, são as questões que os artistas estão trazendo. Eu mesma, no meu trabalho como pesquisadora, lido com as várias maneiras pelas quais o audiovisual capta e expressa as desigualdades e às vezes transforma. Enfim, eu acho que nós estamos muito voltados para isso, nossa agenda está permeada por essas questões e a arte contemporânea está lidando com isso, está enfrentando os desafios. Então, por exemplo, uma das instalações em Tempos Fraturados é um jardim, que está na área externa do museu e plantou plantas típicas do Ibirapuera – afinal, o museu é uma extensão do Parque Ibirapuera que foi atravessado pela cidade, pelas vias expressas. E a gente pensa com muito carinho nessa área externa do museu, para trabalhar essas questões ambientais. Se pensarmos a questão ambiental de uma maneira ampla, ela inclui os humanos no ambiente, com os seus corpos e as discriminações, então podemos pensar nesse conceito de ambiente como um conceito que abarca essas tensões todas. O próprio título da exposição de longa duração, Tempos Fraturados, já sinaliza a atenção às maneiras pelas quais as tensões sociais e políticas se expressam na arte. Não existe arte fora dessas implicações, pois ela é como o ambiente todo, ela é fruto dessas tensões. 

José Lira – Eu complementaria chamando a atenção para uma transformação que a universidade como um todo, e não só a MAC, está vivendo, também em função das transformações que a sociedade e a mentalidade contemporânea estão impondo. A universidade hoje é um lugar onde as questões da desigualdade, do acesso ao ensino superior, do acesso à cultura, do acesso ao trabalho, às oportunidades profissionais, estão muito presentes. Então o MAC vem procurando acompanhar essa reflexão e ajustar também as suas políticas institucionais a essa dimensão. Quero salientar, por exemplo, como a agenda das artes indígenas está hoje presente dentro da agenda do museu. A professora Fernanda Pitta tem sido uma grande incentivadora e estudiosa, dentro do corpo docente, a respeito dos desafios que essas produções culturais, artísticas e filosóficas desses povos ameríndios colocam para instituições como “museu”, “arte”, “arte visual”, “belas artes”. Enfim, todo um conjunto de desafios que são políticos, que estão sendo trazidos por esse aprofundamento do diálogo com as culturas indígenas. 

Dentro do conselho deliberativo do MAC, por exemplo, nós temos hoje uma artista indígena [Tamikuã Txihi Gonçalves Rocha], do povo Pataxó, habitante de uma das aldeias da reserva do Jaraguá, que vem muitas vezes trazendo o seu estranhamento em relação aos nossos protocolos, às nossas condutas, às nossas rotinas. Coisas que são tradições também, e que a gente nem sempre se coloca nessa perspectiva de um outro radical, que é de uma indígena migrante, desterritorializada, confrontando permanentemente no seu corpo, na sua existência, na sua mentalidade, na sua espiritualidade, no seu ambiente, a exclusão. Então, essas questões também estão sendo muito valorizadas, e elas têm se mostrado do interesse de nosso corpo discente, do nosso corpo docente, e que o museu tem procurado fortalecer.

Por fim, vocês estão agora recebendo o 38º Panorama da Arte Brasileira (linkar matéria Edu), realizado tradicionalmente no MAM, que este ano está em reforma. O MAC entra com o espaço expositivo, mas eu queria saber se o museu se envolveu também de outros modos na exposição? 

José Lira – Bom, quando fomos procurados pelo MAM, em função da circunstância de reforma da marquise do Ibirapuera e o desalojamento temporário do museu, justamente nesse momento tão importante do calendário artístico deles, que é o Panorama, obviamente a acolhida foi imediata. Foi discutida, foi refletida, um termo de acordo foi selado entre as duas instituições, porque também não é simplesmente ceder o espaço. Não é tão simples. É um espaço sensível, porque envolve uma infraestrutura que não é a mesma com que eles estão acostumados, envolve uma coabitação de times de funcionários, envolve demandas que são específicas, envolve muitas vezes o mesmo público. O público do MAM é vizinho do público do MAC, um está interessado também nas exposições do outro, então há toda uma preocupação de construir uma sintonia cotidiana entre essas dimensões de conservação, infraestrutura, cotidiano de trabalho. 

Esther Hamburger – São museus irmãos e a ideia é que possam trabalhar juntos.

O Grande e o pequeno, ou quando Del Picchia conheceu Grande Othelo*

Othelo, O Grande
Othelo, O Grande

Faz alguns dias assisti a um dos documentários mais interessantes lançados recentemente no Brasil com direção de Lucas H. Rossi dos Santos, Othelo, o grande que trata da vida e obra do ator brasileiro Grande Othelo.

Durante todo o filme, o único depoimento sobre o ator foi o do poeta Carlos Drumond de Andrade pois, para Othelo, o grande o que contou foram os vários depoimentos filmados do próprio artista, intercalados por fotos de épocas distintas e trechos icônicos de sua participação no teatro, cinema e na televisão. Creio que o tecido formado pela voz de Grande Othelo e suas imagens de tantas épocas constituiu a força do filme. Mais do que a obediência à cronologia, o propósito do documentário foi a coerência entre as falas do ator e as imagens sugeridas a partir delas.

Saí do filme com meus sentimentos revigorados em relação a Grande Othelo e satisfeito pela maneira respeitosa, carinhosa e esteticamente convincente com que ele e seu legado foram tratados.

Grande Othelo, além do talento peculiar que sempre manifestou (ou justamente por tal motivo), parece ter conseguido imprimir naqueles com quem cruzava uma impressão forte o bastante para romper qualquer dificuldade. E isso fica claro no documentário, por exemplo, quando somos levados a refletir sobre como ele, de alguma maneira, conseguiu ganhar o interesse de dois dos nomes mais importantes do cinema internacional do século passado: os diretores Orson Welles e Werner Herzog.

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Menotti Del Picchia (1892-1988). Foto de Menotti del Picchia, por M. Nogueira da Silva, em 1913.
Menotti Del Picchia (1892-1988). Foto de Menotti del Picchia, por M. Nogueira da Silva, em 1913.

O filme de Lucas H. Rossi dos Santos me fez recordar um texto intitulado Otelo [sic], publicado em 26 de outubro de 1926 pelo escritor paulistano Menotti Del Picchia, no Correio Paulistano, quando, em 2018, iniciei o levantamento e análise da produção jornalística do intelectual. Muito me impressionou a leitura daquele artigo porque nele, Menotti – então com 34 anos – relatava seu encontro com o então garoto de 11 anos – Grande Othelo – na época trabalhando como ator da Companhia Negra de Revista, do Rio de Janeiro, em turnê por São Paulo.

Como procurarei demonstrar aqui, Del Picchia parece impactado com a figura do cantor/ator-mirim, percebendo estar frente a um talento genuíno, uma visão que é imediatamente turvada por um olhar preconceituoso a respeito da negritude do garoto, o que, para o autor, parecia inviabilizar a manutenção de sua potência como artista. Contraditória, essa atitude de Menotti – acreditar no talento do garoto e, ao mesmo tempo, desacreditar na possibilidade do desenvolvimento de suas capacidades profissionais – trouxe-me duas questões para refletir: em primeiro lugar, ela nos permite inferir como a vocação e a espontaneidade de Grande Othelo, juntas, conseguiam cativar o interesse de quem podia observar seu talento; em segundo, dá-nos a dimensão do quanto o racismo borrava (e ainda borra) as possibilidades de real integração entre  brancos e pretos.

Quando Del Picchia escreveu sobre o jovem Grande Othelo, ele deixou explícito como o racismo estruturava o senso comum da maioria da população branca no Brasil, mesmo entre intelectuais bem-pensantes e supostamente a par do debate social e político local e internacional. Como será visto, parece que para Del Picchia não havia outra possibilidade de refletir sobre o talento de um jovem negro como Grande Othelo fora dos parâmetros que sustentavam sua visão de mundo.

Antes de adentrar propriamente nos comentários de Del Picchia sobre Otelo, considero importante trazer suas preocupações relativas à questão racial no Brasil.

***

Naquele meio dos anos 1920, Del Picchia era um dos mais profícuos intelectuais com atuação em São Paulo: além da coluna que mantinha no jornal Correio Paulistano, intitulada “Crônica social”, colaborava com outros periódicos da cidade e do Rio de Janeiro, publicando igualmente coletâneas de textos, contos, poemas etc. Em “Crônica Social”, Menotti publicava artigos sobre o ambiente cultural de São Paulo, (sobre literatura, artes plásticas, música, cinema e uma série de outros assuntos).

Outro tema que lhe interessava era a questão racial e o quanto ela influíra e ainda poderia influir no futuro do Brasil. Filho de imigrantes italianos, chegados em São Paulo no final do século 19, Menotti, como vários outros intelectuais surgidos antes, durante e depois de sua atuação mais efetiva, acreditava que os brasileiros descendiam da assim chamada raça latina, de origem europeia – clássica e pagã – e que, naquele continente, se contrapunha à raça dita germânica – romântica e cristã. Para ele o ramo ibérico dos latinos teria imigrado para as Américas, com ampla presença portuguesa no Brasil, mais tarde ampliada por outros povos latinos europeus.

Por sua vez, os portugueses tiveram que se haver com os indígenas aqui presentes quando de sua chegada, e com os negros escravizados, vindos da África. Para Menotti, o primeiro grupo praticamente já não mais existia em território brasileiro, uma vez que teria sido dizimado ou misturado ao branco e ao negro, sendo que seus remanescentes haviam sido expulsos para os recônditos mais distantes. 

Em 1921, quando Menotti se posicionou contra “Peri” – o personagem de José de Alencar, principal mito indianista da literatura brasileira, – confundiu, propositadamente ou não, o personagem com o indígena real, negando a relevância de ambos para a cultura e para a sociedade brasileiras:

(…) Peri é um inimigo falso: nunca existiu. Nunca acreditei na real existência dos índios, de que os europeus julgam andar cheios nossas [sic] praças e avenidas. As notícias que deles tenho, em tratados etnográficos e em documentações de museus, fazem-me pensar neles como na vaga legenda dos primatas, dos antropotecos [sic], dos megatérios e outras coisas crepusculares. Às vezes chego a imaginar que Peri – emprestado a Chateaubriand, portanto francês legítimo – nunca passou de uma ficção literária de Alencar.

O que nos custou, porém, essa blague (…). Peri foi uma mancha nua e bronzeada a sujar a dignidade nacional. Essa mentira lírica, transformada em função social pela inacionada [sic] admiração fetichista dos zoilos, chegou a perturbar nossos etnólogos. Admitiu-se essa hipótese romântica como elemento formador da raça, atribuindo-se ao índio vadio, estúpido e inútil, uma função alta no caldeamento do nosso tipo nacional (…).

Nada mais falso! Nunca vi índios, mas o que li de sério – … – sobre a índole dessa gente de tez acapetada [sic], nariz chato, higiene discutível, foi apenas um depoimento psicológico que reverte em séria acusação contra a sua inferioridade étnica e absoluta inadaptabilidade social (…)

Transformados em abstração literária e, ao mesmo tempo, configurados como emanações do demônio (“tez acapetada”), os indígenas não eram problema para Menotti. Para ele, a questão era como lidar com a população de origem africana no Brasil, um entrave a ser levado em conta nos debates sobre os projetos para a nação.

Desde pelo menos 1917 – quando lançou seu primeiro grande sucesso editorial, o poema Juca mulato – Del Picchia oscilava entre perceber o afrodescendente como um ser que se sabia inferior ao branco (o personagem Juca mulato seria aqui o melhor exemplo), ao mesmo tempo em que comungava com o sentimento-padrão que grande parte dos católicos minimamente letrados pareciam então adotar  em relação à população afrodescendente: um sentimento que mesclava gratidão e culpa, matizado pela arrogância de crer-se superior. Ou seja: Menotti reconhecia a humanidade do negro e sua importância para a transformação do Brasil. Mas, por outro lado, como latino “legítimo” (não esquecer sua ascendência italiana), não abdicava de entender a população brasileira como fundamentalmente branca, eurodescendente.

É, portanto, com esse posicionamento em relação aos negros brasileiros que Menotti conhece o jovem Grande Othelo, quando o ator visita a redação do jornal Correio Paulistano, para divulgar as apresentações em São Paulo da Companhia da qual fazia parte.

                                                                ***

De início, Menotti faz questão de afirmar que o Othelo ao qual se refere não era o personagem da peça de Shakespeare, Othelo, o mouro de Veneza, do começo do século 17, transformada em ópera dois séculos depois por Verdi. Assim afirmou ele:

Este [Othelo] não ringe os dentes, não salta como um símio de ébano, não amordaça com suas mãos uxorcidas [sic] a alva Desdêmona (…). Não veste o veludo plateal [sic] e mirabolante dos cantores de ribalta, nem pinta a cara com fumaça de fundo de panela. É preto mesmo. Tem pouco mais de meio metro. Azougado como um saci…

Nota-se Menotti impressionado com aquele jovem Othelo que, ao contrário dos atores que interpretavam o personagem de Shakespeare, não usava do artifício da black-face. O jovem Othelo que descrevia era um ator negro, tão negro que, para ele, lembraria o saci. Enfim, “um negrinho inteligente, encontrado por almas piedosas nos bancos do jardim público de Uberabinha”.

É importante reparar que, para Menotti, Grande Othelo não era uma criança inteligentíssima, mas sim um “negrinho inteligentíssimo”. Como era de se esperar, a racialização da criança foi imediata porque, para o intelectual, o fato de Grande Othelo ser uma criança talentosíssima ganha outro componente – um componente que traz um grau de surpresa à sua escrita – quando é sublinhada que ele era “um negrinho”. “Um negrinho” que, se não fossem as almas caridosas (e brancas) que o acolheram, “teria sido um vagabundo ou gavroche. Teria furtado rapadura e dado nós nas caudas dos cavalos amarrados nos mourões junto das vendas da cidadezinha pequena”. O que significa que, para Menotti, o jovem Grande Othelo não teria seguido seu destino – ou seja, seu destino como qualquer “negrinho”, como um saci – porque contou com a bondade e a boa vontade da gente que o “acolheu” e o levou para o Rio de Janeiro.

É após essa apresentação, que o intelectual informa o leitor que o jovem cantor/ator teria ido até à redação do jornal divulgar o trabalho da Companhia que integrava. Após descrever a elegância das vestimentas do garoto, Menotti arremata: “Uns olhos móveis, vivos sagazes, um narizinho esborrachado, uma cabeça de pepinos, eriçada de pixaim. Mas que vivacidade! Que inteligência!”

O autor parecia impressionado com aquela criança que, segundo ele, a despeito de ser negra, era vivaz e inteligente. A realidade se impunha ao preconceito de Menotti sobre a criança. O intelectual não mede elogios para se referir à apresentação de Grande Othelo, elogios surgidos no meio de uma estrutura de pensamento eivado de elementos racistas:

[Othelo] ontem à noite […] nos deu uns instantes de alegria. Aquele meio metro de cútis negra, com dois olhos prematuramente velhacos, com sua beiçorra tátil e aberta em tudo [sic] de gramofone, canta o “Ciondolo d´oro” com a emotividade que o faria um grande artista. Isso em italiano. Depois, mostrou que sabia espanhol. E disse a mágoa sonora de um tango […] depois recitou versos de Campoamor. Depois um monólogo…

Emotividade “que o faria um grande artista”. Interessante o uso de “faria”, e não de “fará”. É como se Menotti, mesmo reconhecendo o talento de Grande Othelo, não confiasse na possibilidade daquela criança vir a ser um grande astro. A razão o intelectual não explica. Porém, quando descreve a saída do palco do jovem artista, é como se Grande Othelo voltasse para o anonimato e para a marginalidade de onde viera:

Demônio de pretinho! Todos ficamos gostando dele. Saiu como um salta-martim, aos pulinhos, consciente do seu êxito, sentindo-se um “astro” que por certo há de acabar fazendo virar a cabeça à mais bela e mais preta estrela da Companhia Negra, que anda fazendo diabrururas por aí…

Para Menotti, Grande Othelo não passava de uma curiosidade sem importância real para a arte e para a cultura do Brasil. Era um fenômeno circunstancial. Impossível qualquer tipo de investimento nele, uma vez que sua condição de “demônio” lhe retirava qualquer possibilidade de angariar um futuro. O mesmo, com certeza, pensava Menotti sobre a Companhia Negra de Revista que, segundo suas palavras, ao invés de fazer arte, fazia “diabruras por aí…”. 

                                                         ***

Como mencionado, a maioria das opiniões emitidas por Menotti Del Picchia não era original. Pelo contrário, dava prosseguimento (e ampliava) ideias preconcebidas que há muito habitavam o imaginário da maioria dos brasileiros brancos, de classe média, intelectual ou não. Como supostos herdeiros e continuadores, nas Américas, do legado racial e cultural latino, não devia haver cabimento reconhecer como legítima, e/ou acolher qualquer tentativa de partilhar com os afrodescendentes o palco da cultura, mesmo em uma produção ligada não propriamente à erudição, mas à cultura de massa que então se fortalecia (afinal, a Companhia Negra era uma companhia de teatro de revista).

Ao negro poderia caber manifestar-se por meio da música e da dança de origem africana, desde que devidamente afastadas de qualquer insinuação de práticas fora da ordem branca burguesa, e cristalizada como manifestação pretensamente pura e sem contradições.

Assim, o jovem e talentoso Grande Othelo não passava – e não podia e não devia passar – de uma curiosidade cativante, mais um elemento exótico daquele grupo de pessoas que ficava e devia permanecer do outro lado da “verdadeira” sociedade brasileira: branca e herdeira da tradição europeia.

                                                                 ***

Aqui se encontra a importância do filme Othelo, o grande: nele, o ator é revelado e definido por si mesmo, sem intermediários, sem ninguém que o enquadre em qualquer tipo de rótulo. Em seus depoimentos percebemos um indivíduo que se jogou inteiramente na vida e na vida profissional, e enfrentou as adversidades que apareceram em seu caminho como homem e como ator.

Não encontramos no filme o “grande ator negro”. O roteiro e a direção do documentário nos levam a nos deparar, isso sim, com um profissional (e um indivíduo) que reflete sobre a própria vida e carreira no teatro, no cinema e na televisão, sem, em nenhum momento, ser atropelado por visadas sobre a pretensa excepcionalidade de ser um artista, que “mesmo sendo negro”, conseguiu furar a bolha branca. Othelo, o grande não traz essa armadilha da excepcionalidade. O filme parece lidar com a consciência de que, se assim procedesse, estaria reafirmando a marginalidade da população negra no país, em que apenas um ou outro sujeito conseguiria escapar da sina de viver sob a exclusão.

                                                            ***

Finalizando, registro que, a meu ver, os posicionamentos preconceituosos de Menotti e de outros intelectuais locais não deveriam servir para o cancelamento de todos eles. Se assim agirmos, corremos o risco de que, no final, restem poucos, pouquíssimos nomes sobre os quais possamos constituir uma compreensão menos rasa da sociedade brasileira, deixando de lado um debate que dê conta de toda as nuanças que o racismo assumiu e continua assumindo em nossa coletividade. O caso da recepção do talento de Grande Othelo por um intelectual brasileiro branco como Menotti Del Picchia, é apenas um dos inúmeros exemplos da rejeição efetiva que, por trás, sustentava a benevolente (e falsa) comiseração branca em relação aos negros.

E esta questão precisa ser mais explorada por brancos e negros, porque diz respeito a todos nós brasileiros.

***

Agradeço às leituras atentas do texto realizadas pelo amigo Fabio D´Almeida e da amiga Eliane Pinheiro.

²Grande Othelo, nascido Sebastião Bernardes de Souza Prata em Uberabinha (atual Uberlândia, MG) descendia de escravizados. Com dotes de ator, foi levado para o Rio de Janeiro onde começou a trabalhar no teatro ainda criança. Transformou-se num dos principais atores brasileiros. Faleceu em Paris em 1993.

³Filho de um casal de imigrantes italianos nascido em S. Paulo em 1892, Paulo Menotti Del Picchia se notabilizou como poeta e romancista. Foi crítico e publicista. Participou da Semana de Arte Moderna de S. Paulo, em 1922, e foi um dos protagonistas da ala mais conservadora/reacionária do movimento modernista de S. Paulo. Formado em advocacia, foi deputado por São Paulo. Morreu em sua cidade natal em 1988.

⁴Com tal estudo, informalmente dava prosseguimento ao trabalho realizado pela pesquisadora Yoshie S. Barreirinhas que, em 1983 publicou um livro (nomeado em seguida) contendo significativa amostra dos textos publicados por Del Picchia, entre os anos 1917 e 1922. Meu levantamento busca ampliar o período abarcado pela colega incluindo a produção do autor, entre 1922 e 1932. BARREIRINHAS, Yoshie Sakiyama (org.). Menotti Del Picchia. O Gedeão do Modernismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.

⁵No texto, Menotti Del Picchia afirma que Grande Othelo, em 1926 estava com 7 anos, o que não é correto. O artista contava com 11 anos quando veio para São Paulo.

⁶Em seu livro de memórias, Del Picchia assim se pronuncia sobre seus pais, nascidos na região da Toscana, Itália: “[Minha mãe] nascera (…) perto de Pisa (…). Era de estirpe rural (…) Era uma aguda inteligência inculta, servida por uma severa energia que lhe dava dignidade (…)
Pouco sei dos meus antecedentes paternos. Papai sempre foi displicente e discreto para as coisas tradicionais do mundo. Socialista que era (…) escolheu o Brasil que adotou como sua nova pátria.
Pintor, arquiteto, jornalista, poeta satírico, a multiplicidade das suas aptidões e o amor que tinha por todas elas não o deixaram optar profissionalmente por determinada arte. Era um eclético lançando mão de todas como líder de artistas tão diversos que ele capitaneava mais como companheiro que como empreiteiro e que reunia em casa como amigos”. DEL PICCHIA, Menotti. A longa viagem. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1970, vol. 1, p. 26.
Por tais informações fica-se sabendo que os pais de Del Picchia formavam um casal que, a princípio, fugia dos padrões dos imigrantes de origem agrária. Embora sua mãe tivesse nascido em uma aldeia, dedicando-se ao trabalho doméstico, seu pai, além de exercer uma atividade notadamente urbana – era empreiteiro –, era ligado também às artes e à cultura em geral.

Na antevéspera do início da Semana de Arte Moderna, Menotti, para justificar porque o movimento modernista de 1922 começava em São Paulo, publica um artigo em que compara o paulista ao “nortista”, atentando para o seguinte fato: foi para São Paulo que veio uma nova leva de europeus que, ao transplantarem novamente a cultura latina, rejuvenescida, para cá, transformaram a cidade e o estado no mais pujante e inovador do Brasil: “O sentido do termo [futurista] – que necessita ser bem compreendido – exprime a modalidade própria, […] do povo paulista, antípoda completo dos cismarentos patrícios do norte, os quais ainda descansam, pacíficos, nas velhas normas ancestrais, sem as perturbações criadoras da concorrência, do industrialismo insone, da batalha financeira americana.
Com tal origem, o paulista devia sentir, em todas as manifestações de sua atividade, o reflexo da ambiência em que se agita. Irrequieto, bandeirante, trabalhador, libertou-se do fatalismo. À obra maravilhosa e histórica da fixação da nacionalidade […] seguiu-se o natural desnervamento [sic] que alquebrou a raça formadora do primeiro extrato étnico da nação brasileira. As novas levas latinas, vindas de outras bandas do mar a tonificar esse enervamento, encontraram bem adubada a terra bendita […].
Confluindo para S. Paulo esse rebojo de sangue novo, S. Paulo criou, antes de qualquer outra unidade de federação, um pujante surto de vida atualizada nos seus limites, uma civilização integral, incorporada dia a dia pelos últimos paquetes, como se um pedaço do mundo se deslocasse, geograficamente, para a América brasileira” DEL PICCHIA, Menotti. “Semana de Arte Moderna”. Correio Paulistano. São Paulo, n. 21.052, 11 de fevereiro de 1922, p. 5. Republicado em BARREIRINHAS, Yoshie, op. cit. p. 317.

⁸Logo em seguida, a partir dos protestos surgidos contra virulência do artigo – dentre esses, aquele de Mário de Andrade –, Menotti irá recuar de seu posicionamento tão radicalmente preconceituoso, tentando separar o personagem de Alencar, do indígena real. DEL PICCHIA, Menotti. “Matemos Peri!”. São Paulo: Jornal do Commercio, n.83, 23 de janeiro, 1921, p.3. Republicado em BARREIRINHAS, Yoshie, op. cit. p. 194. Além deste, outros artigos sobre o assunto foram publicados na coletânea.

Em agosto de 1922, em artigo sobre a suposta tristeza do brasileiro, o crítico propõe uma curiosa definição das três “raças” que teriam formado o Brasil. Ignorando os indígenas, ele os substitui pelos imigrantes europeus que então chegavam. Assim, os portugueses e os demais imigrantes vindos da Europa formariam a maioria da “raça” brasileira. Nessa definição é reconhecido o papel da população de origem africana, embora como um elemento minoritário e de pouca força. No texto, o autor assim se refere ao povo vindo escravizado da África: “O negro, arrancado como uma árvore, abruptamente, ao solo do seu berço, vinha estiolar-se aqui, doente de banzo, enchendo o ar com as nênias que avozeava no samba…”. Ou seja, uma população triste, fraca e saudosa, sem o vigor dos imigrantes que vinham do continente europeus. DEL PICCHIA, Menotti. “Rir! Rir! É preciso rir!”. Correio Paulistano. São Paulo n. 21.232, 16 de agosto, 1922, p. 3 Republicado em BARREIRINHAS, Yoshie, op. cit. p. 357