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Para além da Semana de 22

John Graz
Sem Título, 1935, de John Graz, grafite e guache sobre papel. Foto: Divulgação

*Por Maria Hirszman e Marcos Grinspum Ferraz

Além da tradicional exaltação que costuma marcar as celebrações de grandes datas, a movimentação em torno do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 – que promete agitar o calendário do ano que vem – parece estimular a ampliação e aprofundamento dos estudos e investigações acerca da modernidade no Brasil. Ao menos é o que indicam as várias exposições abertas recentemente em diferentes museus, como a Pinacoteca do Estado, o Museu de Arte Moderna (MAM-SP) e o Museu de Arte Contemporânea (MAC USP). Para além de suas características particulares, as mostras realizadas por essas três instituições compõem em seu conjunto um interessante painel, que reafirma em seu conjunto questões, muitas vezes mantidas em segundo plano: o papel das artes decorativas na constituição desse pensamento moderno; a importância fundamental de artistas menos consagrados, mas não por isso menos relevantes, como John Graz e os irmãos Gomide; a necessidade de se atentar para informações preciosas presentes em materiais menos valorizados, como desenhos, estudos e correspondências, com presença significativa e crescente nas coleções museológicas.

“Nosso interesse é justamente olhar para outras matrizes e configurações da modernidade e do moderno que a historiografia até hoje não deu tanta atenção. Não se debruçou como deveria”, afirma Fernanda Pitta, curadora da mostra John Graz: idílio tropical e moderno, em cartaz na Estação Pinacoteca. “Muito já se disse a respeito de artistas como Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Lasar Segall – que se consagraram com uma repercussão até internacional -, enquanto John Graz, Regina Gomide Graz e Antonio Gomide ficaram meio escanteados. Porque demorou muito para se entender que eles trabalharam com um ramo da arte que é extremamente importante para a própria modernidade, que tem a ver com o modo de morar e o modo de viver”, complementa Maria Alice Milliet, responsável pela exposição Desafios da modernidade – Família Gomide-Graz nas décadas de 1920 e 1930, em cartaz até agosto passado no MAM-SP.

"Índia", de Cássio M’Boy
“Índia”, de Cássio M’Boy, década 1930. Foto: Divulgação

Movimento semelhante, de investigação mais profunda das motivações e produções desenvolvidas por distintos autores nesses anos chave do modernismo no país, norteia a investigação levada à cabo na mostra Projetos para um Cotidiano Moderno no Brasil: 1920-1960, que pode ser vista até julho de 2022 no MAC. Fruto de um projeto desenvolvido no âmbito do projeto de pesquisa CNPq Narrativas da Arte do Século 20, a exposição reúne uma seleção de obras pertencentes à coleção do museu. E que mereciam um olhar mais sistematizado. Aliás, a presença importante desse modernismo ampliado na coleção do museu deve-se à ação ativa de Walter Zanini. “Todo mundo fala do Zanini como um historiador da arte, que se dedicou a essa chave nova de pesquisar as novas práticas contemporâneas, as práticas processuais dos anos 1960 e 1970, mas ele teve um papel muito importante no resgate de determinados nomes do modernismo brasileiro”, lembra Ana Magalhães, diretora do MAC e coordenadora da equipe de curadoria da mostra.

“O que importa é justamente essa visão mais ampla, de um projeto que não se preocupa apenas com formas modernistas, com a arte com A maiúsculo, mas que envolvia o engajamento desses artistas com várias outras frentes, como ilustradores, artistas gráficos, decoradores, designers, arquitetos e cenógrafos”, explica Ana. “Ou seja, isso também faz parte, é um valor para esse projeto modernista, que essas coisas sejam da convivência do dia a dia das pessoas”, complementa, apontando que a exposição contempla de cardápios e leques para bailes de carnaval desenhados por Gomide a desenhos de Flávio de Carvalho para o balé A Cangaceira.

"Índios", de Regina Gomide Graz
“Índios”, de Regina Gomide Graz, década de 1930, tecido. Foto: Divulgação

Alguns dos destaques da seleção atualmente à mostra, como o conjunto para sala de estar projetado por Graz (que também esteve presente na exposição do MAM) é um motivo de celebração à parte para o museu, pois representa uma das mais importantes doações recentes recebidas pelo MAC: a da Coleção Fulvia e Adolpho Leirner de Art Déco no Brasil. “Do ponto de vista da história institucional do MAC não tenho a menor dúvida, essa é – depois da coleção que o Ciccillo constituiu para a criação do MAM-SP, que foi transferido para o MAC, e talvez a doação Theon Spanudis – a mais importante doação que o museu recebeu nos últimos tempos. Até porque é mais difícil para o museu hoje encontrar colecionadores que se disponham a doar obras dessa qualidade e dessa importância”, afirma a curadora.

“Universidades são instituições duráveis. Esse acervo será estudado, conservado e divulgado em um ambiente acadêmico. Além do mais, normalmente a universidade não tem verba para compra de obras raras e únicas”, afirma Adolpho Leirner ao explicar a razão dele e Fulvia terem decidido legar as obras ao museu. Segundo ele, a realização da mostra Projetos para um Cotidiano Moderno já sinaliza esse interesse. Além dos móveis de Graz e do conjunto de mobiliário da Casa Modernista de Gregori Warchavchik, uma série de outras preciosidades dessa coleção, garimpadas ao longo de décadas, vem se somar à coleção do museu. Dentre elas é possível citar a escultura Índia, de Cássio M´Boi, um relevo em gesso de Antelo Del Debbio (encontrado por acaso pelo casal numa casa de demolições na Av. Rebouças), duas cadeiras de Flávio de Carvalho e o estudo para cartaz da exposição de Tarsila do Amaral em Moscou. A doação inclui também o arquivo com dados de todo esse material, que constitui importante material de pesquisa e que serviu de base para o livro Art Déco no Brasil – Coleção Fulvia e Adolpho Leirner, lançado ano passado pela Editora Olhares.

Abstração 2
“Abstração 2”, de Antônio Gomide. Foto: Divulgação

Essa maior abertura ao estudo e exposição do design e das artes aplicadas é celebrada por Leirner, que sublinha a importância – inclusive histórica – da coleção que montou no último meio século. O panneau Mulher com Galgo de Regina Gomide Graz estava, por exemplo, na exposição organizada por Pietro Maria Bardi em 1972 para celebrar os 50 anos da Semana de Arte Moderna e agora volta a integrar um evento em torno do centenário do evento. Aliás, foi das mãos de Bardi que o casal adquiriu a peça.

Um artista completo

Diferentemente da mostra do MAC, que reúne trabalhos de um número maior de artistas, as exposições John Graz: idílio tropical e moderno, até janeiro na Estação Pinacoteca, e Desafios da modernidade – Família Gomide-Graz nas décadas de 1920 e 1930 (que esteve em cartaz no MAM) se dedicam mais especificamente ao núcleo artístico formado pelos irmãos Gomide e por John Graz, com destaque especial para este último. Vale ressaltar que os três estão presentes também na ampla mostra Moderno onde? Moderno quando? A Semana de 22 como motivação, com curadoria de Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros, em cartaz no MAM.

Nascido na Suíça em 1891, Graz estudou na Escola de Belas Artes de Genebra, onde conheceu os brasileiros Regina e Antonio Gomide. Para além de frequentar um curso que abrangia desenho, decoração e arquitetura, Graz logo passou a fazer também cartazes publicitários e vitrais, aperfeiçoando suas técnicas em um período na cidade de Munique, na Alemanha, e em viagens à França e Espanha. Segundo Maria Alice Milliet, o artista teve, portanto, “uma formação muito completa”, baseada numa ideia de “arte total”. “E impressiona, ao longo de sua vida, a qualidade com que faz isso tudo: a pintura, o desenho, ou o projeto do chão, do teto, da parede, até o objeto, a pia, as fechaduras, móveis, o tapete, a luminária, os painéis em gesso, vitrais… nada escapava ao desenho do Graz. É uma concepção total do espaço.”

Mobiliário de sala de estar
Mobiliário de sala de estar projetado por John Graz. Foto: Divulgação

Pouco depois de chegar ao Brasil, em 1920, onde se casa com Regina e se estabelece até o fim da vida, Graz expõe no Salão do Cinema Central em São Paulo. Conta-se que ali Oswald de Andrade se encantou por seu trabalho e comprou uma de suas telas, oferecendo para a transação um terreno em Pinheiros – onde posteriormente Graz construiria sua casa. Foi também Oswald que o convidou, dois anos depois, para participar da Semana de Arte Moderna, onde Graz viria a apresentar sete telas. Apesar de se aproximar do movimento dos artistas modernistas neste período – ele colabora, ainda, com a célebre revista Klaxon -, Graz rapidamente passou a se dedicar mais às artes aplicadas e à arquitetura de interiores.

Se bebeu no ideário racionalista da Bauhaus, foi especialmente na explosão internacional do Art Déco – que permitia ornamentações e decorações rejeitadas pela escola alemã – que Graz se inspirou. É considerado, portanto, um dos principais nomes a trazer o estilo europeu para o Brasil, notadamente após visitar ao lado de Regina, em Paris, a Exposição internacional de artes decorativas e industriais modernas, em 1925. De sua dedicação a este universo resultou a abertura da loja John Graz Decorações, em 1930, com a qual decorou casas projetadas por célebres arquitetos modernos como Warchavchik e Rino Levi. Mas é desta atuação, também, que decorre certa rejeição ao seu nome – e dos irmãos Gomide – no panteão dos grandes artistas modernistas do país.

Regina Gomide Graz
Composição com figuras, Regina Gomide Graz, 1925, panneau em seda, feltro e lã

“Houve uma incompreensão da própria classe artística. O John Graz cria ambientes absolutamente modernos, mas isso cai na categoria ‘decoração’, não é arte. Eles não entenderam a importância que teria essa união entre a criação intelectual e a indústria, a produção de objetos para uso cotidiano. Ainda estavam muito ligados aos gêneros tradicionais da arte: a pintura, a escultura, a gravura, o desenho”, afirma Milliet. Fernanda Pitta segue a mesma linha: “Tanto naquele momento quanto na historiografia que vem posteriormente há uma tendência de diminuir o aspecto experimental e transformador do Art Déco, sem perceber o caráter de ruptura e de experimentação que essa escola apresentava naquele contexto histórico”.

O fato de olhar para as matrizes europeias do Art Déco e da Bauhaus não impediram Graz de adentrar o universo cultural brasileiro, pelo qual logo se encantou, por mais que sua visão seja considerada por vezes idealizada ou idílica. Se a exposição dos Gomide-Graz no Mam-SP deu maior destaque à essa produção decorativa dos três artistas, a mostra na Pinacoteca, que inclui 42 obras recém-doadas pelo Instituto John Graz ao museu, põe em evidência uma série de desenhos e pinturas onde Graz retrata indígenas, afrodescendentes e aspectos da cultura popular brasileira – festas de Carnaval ou do Bumba meu boi, pescadores em jangadas ou baianas carregando frutas.

Pintura de John Graz
Pintura de John Graz exposta em “Idílio tropical e moderno”, na Pinacoteca. Foto: Marcos Ferraz

“É preciso entender que faz parte de um processo mais amplo que dialoga com o que outros artistas modernos também fizeram, de apropriação e de uma relação distante, às vezes romantizada, com culturas afrodescendentes e indígenas do Brasil”, diz Pitta, sobre este aparente paradoxo. “Não é uma limitação somente do Graz. E temos que reconhecer que nesse processo de valorização há também uma apropriação e uma apagamento desses agentes.”

Com exposições, análises críticas e até mesmo o redescobrimento de obras perdidas de Graz e dos irmãos Gomide, o que se celebra é a ampliação de um debate que já poderia ter sido feito e que “refina e complexifica”, nas palavras Pitta, o entendimento sobre a arte moderna no Brasil. Até porque, como afirma Milliet, “São Paulo é uma cidade que não guarda memória, é uma cidade voraz. Então muito daquilo que estava dentro das casas, quando passou a moda do Art Déco, foi descartado pelas famílias. Além do que muitas dessas casas foram demolidas, e nelas haviam painéis em gesso, pinturas e vitrais do Graz. Até por isso essa atuação do Adolpho e da Fulvia Leirner é tão importante, de resgatar isso. E com esse reconhecimento, muitas coisas tem aparecido, por vezes de pessoas que relembram de obras e mobiliário que eram de seus avós e estavam perdidos por aí”.

Prêmio PIPA 2021: da ancestralidade às novas tecnologias

Construção
"Construção", fotografia de Marcela Bonfim feita no Quilombo de Pedras Negras em 2016. Foto: Cortesia da artista

“Ser o termômetro do que há de mais potente em cada momento histórico é o compromisso dos prêmios de arte. Mais do que apontar um único caminho das expressões contemporâneas, devemos revelar as várias bifurcações que estão constantemente sendo abertas nas rotas e narrativas hegemônicas”, defende Luiz Camillo Osorio, curador do PIPA. Foi com isso em vista que o tradicional prêmio de arte contemporânea decidiu alterar suas regras. Ao invés de concentrar-se em um só nome, selecionou cinco ganhadores em sua 12ª edição: a capixaba Castiel Vitorino Brasileiro, o amazonense Denilson Baniwa, os paulistas Ilê Sartuzi e Marcela Bonfim e a baiana Ventura Profana.

Essa não foi a única alteração do PIPA, que a partir deste ano assume um caráter mais claro de fomento – focando em profissionais com trajetórias recentes que ao serem selecionados recebem uma doação de R$ 10 mil cada, sem a contrapartida de doação de uma obra ao Instituto – e dá fim (ao menos temporário) às mostras presenciais do prêmio. De 9 de setembro a 20 de novembro, o Paço Imperial, no Rio de Janeiro, recebe os trabalhos dos vencedores de 2020, ao lado de aquisições e comissionamentos recentes do PIPA. Já os ganhadores desta edição farão uma ocupação digital. “Resolvemos que a partir de 2021 as exposições presenciais serão só da coleção do instituto e a mostra dos premiados acontecerá em ambiente virtual. A ideia é fortalecer a instituição, dar-lhe mais visibilidade e poder assim desenvolver outros projetos curatoriais”, explica Luiz Camillo. E completa: “Caso percebamos no futuro que as coletivas presenciais dos artistas selecionados são importantes, voltaremos a fazê-las. No momento, estamos convencidos que as mudanças foram positivas”.

Em sua 11ª edição, no ano passado, pela primeira vez desde sua criação o Prêmio PIPA teve mais de um ganhador, nomeando Gê Viana, Maxwell Alexandre, Randolpho Lamonier e Renata Felinto. Em 2021, a organização optou por adotar este modelo como norma. “Mais do que concentrar em um único nome, percebemos que dividir o prêmio é mais justo, tendo em vista um cenário tão plural e continental como o brasileiro, com tantas micro-cenas relevantes de norte a sul do país”, explica o curador. A premiação geral, decidida a partir da análise de portfólios e trajetórias feita por um conselho de profissionais renomados da área, passa a contar anualmente com cinco vencedores; já o PIPA Online, categoria cuja decisão reside em uma votação popular, gratifica os dois artistas mais votados – neste ano, Daiara Tukano e Ruth Albernaz.

“A seleção de mais de um artista também ajuda a descentralizar essa figura do ‘vencedor’, assim como ameniza um pouco a competitividade que assola a sociedade capitalista e neoliberal como um todo e o meio artístico em específico”, compartilha Ilê Sartuzi sobre o prêmio geral. O artista porém, acredita que a categoria ligada ao voto popular caminha na direção oposta. “Se por um lado poderia, idealmente, selecionar uma produção completamente diferente do aval do conselho de premiação, por outro, reitera a selvageria competitiva somado à promoção da autoimagem e a propaganda gratuita e massiva do prêmio.” Para Denilson Baniwa, a escolha por mais de um vencedor também soa necessária neste momento do Brasil. “Me sinto desconfortável em estar em uma disputa de território num lugar que já é super violento e desleal como a arte. Então, acho legal uma escolha na qual cabem mais corpos, e que ainda assim tem uma visão do júri.”

Vencedores do PIPA 2021

Esse crivo do júri tem um peso especial para o amazonense que há dois anos vencia o PIPA Online e agora é um dos selecionados ao prêmio geral. Se a vitória em 2019 permitiu que mais pessoas entrassem em contato com a obra de Denilson Baniwa e que ele tivesse outro olhar para seu trabalho – levando-o mais a sério e gerando uma evolução dos pontos de vista conceitual e formal -, o anúncio deste ano traz outros ecos pessoais e profissionais. “Um grupo de pessoas especializadas em artes disse que meu trabalho tem uma coisa boa, e isso era algo que eu me cobrava bastante: o que será que os críticos e curadores pensam do meu trabalho?”. Artista-jaguar e antropófago, como define a si mesmo, Denilson é considerado um dos expoentes da arte indígena contemporânea. Em seus trabalhos, envolve questões ambientais e de luta dos povos originários, ao que explora uma poética indígena ancestral e futurista. Nos últimos anos, percebe uma alteração no cenário artístico e em sua relação com o mesmo. “Acho que [em 2019] eu estava bem mais exposto a quebrar a fechadura da porta a chutes para mostrar meu trabalho e ver meus amigos e parentes indígenas junto. O Denilson de agora encontrou uma chave que abre algumas portas e consegue trazer bem mais gente.” Em suas pesquisas mais recentes, tem se debruçado sobre os deslocamentos forçados que amputam a memória de várias pessoas indígenas no Brasil, tratando dos processo de afirmação e reafirmação, da busca pela identidade perdida e das violências contra esses corpos. É nesse sentido que pretende trabalhar na exposição do Prêmio PIPA 2021, enxergando na opção pelo virtual uma outra possibilidade de investigação do formato: “Isso me desafia a pensar trabalhos que nasçam a partir do digital. Não gosto de pensar o meu trabalho sendo digitalizado, gosto de pensar a partir de onde ele é nativo”.

É também atravessado pela ideia de recuperação da identidade que o trabalho de Marcela Bonfim se configura. Formada em economia, foi apenas ao se mudar para Porto Velho, Rondônia, que a paulista se entendeu de fato como mulher negra. Se nas ruas de São Paulo buscava os discursos de meritocracia e via sua imagem como empecilho, ao fotografar na cidade amazônica encontrou um espelho. “Começo a me reconhecer nessas imagens e vê-las tão possíveis aqui neste lugar – e eu tão impossível em São Paulo.” A artista pontua que ao chegar na Amazônia pensava apenas na imagem indígena, “mas a imagem negra é parte do contexto e acaba sendo tão essencial quanto”. Hoje, afirma, “eu e a Amazônia estamos nos reconhecendo”. Nos últimos anos, Marcela tem se dedicado a um trabalho de retomada da Amazônia negra, retratando populações que vivem em lugares mais afastados da cidade: ribeirinhos, povos tradicionais, quilombolas. “É muito importante dizer que são populações, no plural, porque a palavra ‘negro’ parece uma coisa enxuta, né? Antes de ser negro, eram identidades. Mais de 500 anos depois [da chegada dos portugueses], estamos aqui, pegando essa palavra, essa redução e ampliando-a em multiplicidade.” Por isso, para a fotógrafa faz pouco sentido tratar dessas questões sem se colocar dentro da discussão. “A ideia é ressignificar esse processo, sendo como camada dessa fotografia. É nessas linhas paralelas que eu me coloco de frente pro espelho nessa Amazônia negra.”

Enquanto Marcela parte das comunidades para compreender a sua identidade, Ventura Profana parte de sua vivência particular para expressar uma outra reflexão. Criada em meio a uma tradição batista, ela busca investigar as implicações do evangelicalismo no Brasil e seus impactos nas relações coloniais. “Tento, através dessas investigações do cristianismo, entender como o processo colonial se impregnou” e como é sustentado nos dias de hoje, explica em vídeo gravado para o PIPA. Se, em sua visão, o cristianismo atua como braço missionário de implantação das dinâmicas coloniais, em sua prática pessoal e artística Ventura profetiza a abundante vida negra, indígena e travesti, buscando estratégias de cura. O faz através de colagens, música, instalações, performances e textos. “Sempre tento trazer uma mensagem de vida para corpos e sujeitos que têm isso negado – seja pelo governo, seja pelo sistema, seja pelas implicações desse colonialismo”, completa.

Castiel Vitorino Brasileiro também busca a libertação dos gestos coloniais, ao mostrar que algumas mitologias construídas para pessoas racializadas e travestis não passam de falácias. “O que faço são convites e lembretes de que nós podemos viver outra história que não essa racial e de gênero”, explica em vídeo gravado ao PIPA. Artista visual, escritora e psicóloga, Castiel constrói suas produções a partir dos diálogos entre saberes da arte, macumbaria, psicologia, feitiçaria, curandeirismo e “o que julgar ser necessário para produzir sobrevivência”. Não se definindo em uma técnica artística específica, em seus últimos trabalhos opta por experiências instalativas. “A minha produção artística tem precisado ser uma experiência de incorporação, onde compreendo o meu corpo negro, testiculado e feminino como um local de memória e utilizo dessa organicidade para produzir aquilo que venho chamando de liberdades perecíveis – que são experiências tanto no meu território existencial, em forma de cura, mas também experiências de reterritorialização dessas geografias que eu coabito”, declara.

“Quarto de Cura”, instalação de Castiel Vitorino Brasileiro na mostra da 3a edição de Frestas – Trienal de Artes. Foto: Matheus José Maria / Cortesia artista e Sesc Sorocaba

É abordando a ausência do corpo ou a sua imagem idealizada – muitas vezes fragmentado ou construído a partir de diferentes partes – que Ilê Sartuzi constrói suas obras, frequentemente permeadas pelo uso de tecnologias não convencionais. A imagem idealizada vem principalmente da presença significativa de manequins em sua produção, muitas vezes montados de formas improváveis. “Esse corpo montável e reproduzível indefinidamente dá lugar – material e conceitualmente – à uma construção em partes modulares. Sendo essa uma condição da fabricação em massa desses corpos, me parecia coerente que eles pudessem ser reproduzidos e combinados de formas distintas, o que me aproximou da figura do Frankenstein”, explica. Por vezes, esses objetos são ainda movimentados a partir de automações e acompanhados de videomapping, conferindo-lhes teatralidade. Porém, é importante pontuar que não se trata de uma pesquisa monotemática e linear, como o próprio artista explica. Em seu corpo de obras nos deparamos frequentemente com a ausência total de corpo, em especial nos vídeos realizados através da fotogrametria – processo de construção de um espaço virtual através de fotografias. Sobre esse uso frequente das novas tecnologias, ele destaca: “O uso de qualquer tecnologia não deve ser ingênuo, inclusive das tradicionais do campo artístico. Cada ferramenta carrega consigo características únicas que abrem possibilidades para a elaboração de ideias distintas. O uso, por exemplo, do videomapping, da mecânica e da automação vieram do interesse específico de animar objetos. Talvez nunca teria explorado essas técnicas não fosse a necessidade dos próprios trabalhos”.

Um retrato possível da cena atual

Para Luiz Camillo Osorio, a escolha de Castiel, Denilson, Ilê, Marcela e Ventura na edição deste ano demonstra o momento de grande ebulição política e de forte desenvolvimento de poéticas experimentais que presenciamos no Brasil atual. “Cada um deles evidencia obras em processo, em que o performativo, as novas tecnologias, a ancestralidade, a experimentação, a política, está tudo embaralhado, fertilmente misturado, apontando para o desconhecido e com muita contundência poética.”

Essas propostas poderão ser melhor entendidas pelo público na mostra online, prevista para acontecer entre setembro e outubro de 2021. Cada artista ocupará o site e as redes sociais do PIPA por uma semana, disponibilizará um trabalho original para circular virtualmente e participará de uma série de outras atividades. Além disso, ao final deste ano o novo catálogo bilíngue a ser lançado pelo instituto reunirá obras dos cinco vencedores, bem como de Daiara Tukano e Ruth Albernaz – vencedoras do PIPA Online -, e dos demais 58 indicados.

A seda e ferro: delicadeza e força na Verve Galeria

"Zeitnot" (2021).
"Zeitnot" (2021). Foto: Cortesia da galeria.

*Por Mateus Nunes

Em São Paulo, a Verve Galeria finca seu espaço como a raiz de árvore que brota e estoura o concreto das calçadas da cidade. Dirigida pelo artista Allan Seabra e pelo arquiteto Ian Duarte Lucas, celebra a possibilidade de um novo lugar vivo para a exposição artística no centro paulistano, relacionando-se com a história urbana da cidade e revitalizando espaços nostálgicos, como a galeria do Edifício Louvre, um dos ícones arquitetônicos da cidade, situado no bairro da República.

As duas últimas exposições da Verve, No mar com as estrelas, de Fran Chang (cujas obras foram exibidas até o final de agosto) e Pensione Seguso, de Gustavo Rezende (inaugurada em 4 de setembro), mostram a amplitude das poéticas possíveis no seu discurso curatorial, com uma matriz assertiva, entrelaçada e sensível. Por mais que Chang e Rezende habitem quase extremos, a Verve as concilia em uma narrativa coerente.

A delicadeza do ferro

Através de um personagem, no livro O quarto de Giovanni, de 1956, James Baldwin escreve: “Os americanos nunca deviam vir à Europa porque nunca mais vão ser felizes”. A Paris do início do século 20, construída por Baldwin, é embalada pela paixão caótica do estadunidense David e do italiano Giovanni: a atmosfera boêmia, a profusão de personagens e de pessoas interessantes e solitárias, a abertura – e a quase necessidade – ao diálogo. De certa forma, a recente exposição de Gustavo Rezende na Verve Galeria, intitulada Pensione Seguso, é uma ilustração d’O quarto de Giovanni. Por mais que a fagulha de Rezende tenha sido Veneza, e não Paris, são duas cidades de passagem, palco de flâneurs e de viajantes sonhadores.

Há cerca de trinta anos, Rezende morou por um período em Veneza, berço e sacrário da arte ocidental nos últimos séculos. Viveu próximo à Pensione Seguso, hotel no coração da cidade, cinco minutos a pé da Coleção Peggy Guggenheim e da Academia de Belas Artes de Veneza, com uma belíssima vista para o canal. Observa-se dali a fluidez da água, das pessoas, do tempo e dos sonhos. Em um restaurante vizinho ao hotel, Rezende fotografava com seu celular esses personagens espontâneos que o interessavam, como a construir um relicário da solidão.

Gustavo Rezende, "Pensione Seguso" (2021). Foto: Cortesia da Verve Galeria.
Gustavo Rezende, “Pensione Seguso” (2021). Foto: Cortesia da galeria.

Na série Pensione Seguso, composta por seis objetos tridimensionais, o artista representa, alegoricamente, os personagens que constituem essa densa atmosfera veneziana. Como apontado por Ana Carolina Ralston no texto curatorial da exposição, Veneza é, para Rezende, o “local do delito criativo”. Rouba imagens que não escolhe roubar: na verdade, deveria acusá-las por invadirem-no intimamente.

Essas imagens de solidão e de introspecção são gravadas em chapas metálicas verticais quase no formato 3×4. Os olhares desencontrados e a casualidade das posturas são cortados em ferro e pintados de preto. Habitam um espaço da lembrança entre daguerreótipos, estêncis, gravuras de alto contraste, as bases serigráficas de Andy Warhol e as pinturas de Claudio Tozzi, como A prisão e Repressão, de 1968. Rezende distancia essas placas metálicas da parede expositiva com parafusos soldados em seus versos, fazendo com que haja uma tridimensionalidade que proporciona uma penumbra da silhueta dos personagens na parede. A força do ferro a se enfraquecer na luz. Arremendando Marshall Berman, tudo que é sólido se dissolve na luz.

Ao observarmos os personagens retratados por Rezende, é inevitável imaginarmos seus nomes, o que fazem, quem amam e quem os ama. É como se fizéssemos o mesmo caminho feito pelo artista, não em busca dos detalhes formais dos retratados, mas de suas essiências. Vemos, nos rostos da série Pensione Seguso, todos aqueles que já vimos e os que chegaremos a ver.

A força da seda

Como num contraponto complementar, as pinturas de Fran Chang, expostas em sua individual No mar com as estrelas, mostram também como conciliar força e delicadeza, mas de forma inversa à exposição de Gustavo Rezende.

As obras, pintadas com tinta acrílica sobre seda, convidam ao toque, à tentação de manusear os quadros, de colocá-los contra a luz em vários ângulos, de ver seus versos e de analisar a engenhosidade do encaixe das madeiras que compõem os chassis sobre a qual a artista deita o véu. Chang, ao utilizar esse delicado e inusual suporte, promove uma curiosidade sobre a própria plataforma da pintura, interrogando sobre as possibilidades técnicas e vislumbrando até onde pode-se ir.

Sabe-se que um haikai é construído de duas partes sintéticas que, por mais que à primeira vista pareçam habitar mundos diferentes, são conectadas por um corte, o kiru. Esse corte, paradoxalmente, conecta esses dois universos e propõe a união entre duas imagens até então inconciliáveis. O corte nas chapas metálicas de Gustavo Rezende se torna o corte das afiadas palavras e imagens de Chang. É dessa forma que a artista integra o poder das suas pinturas com a vulnerabilidade dos seus títulos, dos quais suas obras não podem ser dissociadas. Ao pintar um ardente céu nublado com nuvens como ilhas, como visto pela janela de um avião, a artista batiza sua obra de Você é a menina que você sempre foi. Em uma praia plácida, de céu limpo e com a linha do horizonte formada por uma cordilheira, encimada por uma lua distante e solitária, somos acompanhados pelo título Receio ser arrastado longe demais. A integração entre a sutileza da pintura sobre seda e a assertividade dos títulos é arrebatadora.

Chang também se debruça sobre a astrofísica – campo ao qual também se dedicou academicamente – e o enxadrismo em suas obras. Analogicamente à pintura das imagens da nefologia – estudo das nuvens –, intitula obras como Zeitnot e J’adoube, ambas expressões dos jogos de xadrez que servem para se remeter às relações com o outro, como se o amor fosse um jogo. O primeiro termo, “Zeitnot”, caracteriza uma situação em que o jogador é pressionado pelo tempo, fazendo com que tome uma rápida decisão, como se as paredes que o cercam fossem rapidamente o asfixiando. A artista ilustra esse momento com uma vista superior de um claro céu azul repleto de nuvens com três grandes astros acima da linha do horizonte. Já, ao pintar um tórrido céu negro repleto de estrelas em uma profusa chuva de meteoros sobre o mar, com a lua no coroamento da composição, Chang traduz sua imagem com a segunda expressão do xadrez, “J’adoube”, utilizada quando um jogador anuncia que tocará nas peças dispostas no tabuleiro, sejam suas ou do adversário, para ajustá-las à melhor configuração. Talvez essa seja uma preciosa descrição, fornecida pela artista, de como é o amor. Aviso que vou mexer em suas peças para que possamos fazer tudo da melhor maneira. A partir desses contrastes obtidos pela sutileza, Chang cria uma atmosfera imagética e poética, elevando-nos à estratosfera, onde o ar é rarefeito, assim como no momento do apaixonamento.


*Mateus Nunes é arquiteto e pesquisador. Doutorando em História da Arte na Universidade de Lisboa, com período de intercâmbio na USP, onde é pesquisador e professor convidado. Arquiteto e urbanista pela Universidade Federal do Pará, em Belém. É professor do Museu de Arte de São Paulo (MASP) na ocasião do curso “Arte contemporânea paraense: Hibridismos, imagens e poéticas”.

Relatos de imersão num ‘agora’ pandêmico

Foto horizontal, colorida. Ao centro, os dois volumes de PANDEMIA CRÍTICA. Os livros estão em pé, lado a lado e levemente na diagonal. Tem capas pretas, na lombada lê-se o título em letras cinza. Ao fundo, uma estampa em preto e branco geométrica, meramente ilustrativa.
"Pandemia Crítica", coletânea de textos em dois volumes, coedição N1 e Edições Sesc SP. Foto: Reprodução

“Mais difícil do que prever o futuro é ler o presente a partir dele mesmo. Demasiado colados nele, atravessados pelas emoções, cativos das opiniões correntes, do jargão midiático, o presente não parece oferecer o mínimo indispensável para qualquer avaliação isenta – a distância”, assim escreve Peter Pál Pelbart no texto que abre Pandemia Crítica. Publicada em dois volumes, a coletânea reúne análises, relatos, registros e as mais variadas informações sobre a crise sanitária mundial, refletindo ideias e sentimentos que atravessaram importantes pensadores do Brasil e do mundo.

Lançada pela parceria entre n-1 e Edições Sesc SP, a publicação dá valor justamente à imersão no ‘agora’ pandêmico. Com a descoberta do primeiro caso de Covid-19 no Brasil, em março de 2020, a n-1 criou uma plataforma online destinada exclusivamente à circulação de textos vinculados à pandemia. Por quase cinco meses publicaram um escrito por dia. São eles que agora compõem os dois livros. De acordo com o organizador Peter Pál Pelbart, a intenção foi captar o que se pensou e sentiu no calor dos acontecimentos: “Tratava-se de explorar, ainda que intuitivamente, como esse evento mundial nos chegava, perturbava, atordoava e abria brechas”.

Portanto, Pandemia Crítica não pretende ser um registro objetivo da crise, mas um mergulho na mente coletiva frente a uma catástrofe em curso. Tudo isso, a partir de uma cronologia do colapso, ao que o sumário dos livros segue a ordem em que os textos apareceram na plataforma virtual – o primeiro tomo, Outono de 2020, reunindo escritos de março a junho do ano passado; o segundo, Inverno de 2020, os produzidos posteriormente.

Essa linha do tempo se constrói atravessada por textos de pensadores nacionais e internacionais, dentre desconhecidos e figuras renomadas, como os filósofos Achille Mbembe, Franco Bifo Berardi e Judith Butler; o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro; Davi Kopenawa e Ailton Krenak, ativistas e lideranças indígenas; curadores tais quais André Lepecki, Moacir dos Anjos e Tania Rivera; e artistas como Zé Celso. Essa polifonia confere às páginas de Pandemia Crítica uma variedade de estilos discursivos, visões de mundo, afetos e assuntos. 

As reflexões podem ser divididas em quatro eixos principais: observações sobre as vulnerabilidades e desigualdades evidenciadas pelos efeitos e mortandade da pandemia; análises das causas (imediatas e remotas) da crise sanitária – desde a lógica predatória do capitalismo, a monocultura industrial até a invasão pela agroindústria dos habitats animais; avaliações sobre as relações de poder entre governantes e governados em distintas regiões do mundo nesse momento de crise; e depoimentos pessoais de artistas, escritores, poetas e feministas, que retratam os paradoxos do isolamento, mas também as iniciativas de solidariedade.

 

Lygia Clark por Yve-Alain Bois

Lygia Clark. Performance "Arquiteturas biológicas II" (1969). Foto de Alécio de Andrade/ ADAGP.
Performance "Arquiteturas biológicas II" (1969). Foto de Alécio de Andrade/ ADAGP.

*Por Yve-Alain Bois

O curador e historiador da arte francês Yve-Alain Bois, atualmente professor em Princeton, nos Estados Unidos, confessa em Alguns latino-americanos em Paris que Lygia Clark foi uma de suas mentoras, ao lado do mexicano Mathias Goeritz. Neste texto, ele relata seu primeiro intenso encontro com a artista brasileira, quando tinha apenas 16 anos, na fervilhante Paris de 1968.

O ensaio foi elaborado para o livro que está sendo publicado pela Pinakotheke Cultural por ocasião da mostra Lygia Clark (1920-1988) 100 anos, em sua sede carioca até 9 de outubro de 2021 e no espaço paulistano até 15 de janeiro de 2022.

A arte!brasileiros publica aqui uma versão reduzida, mesmo assim bastante ampla, dessas impressões tão afetivas.

***

As anotações a seguir são descaradamente impressionistas – subjetivas, até – dado que se baseiam em grande parte nas minhas lembranças dos primeiros encontros com vários artistas latino-americanos em Paris. Em suma, não se trata de uma grande síntese – ainda não é o momento certo para isso, pelo menos de minha parte –, mas sim de algo mais parecido com um fragmento autobiográfico. Foi uma época, no final dos anos 1960, em que o pós-colonialismo ainda era um conceito nascente, embora as questões que ele abarca já tivessem se tornado prementes. O fato de tantos artistas abstratos geométricos da América Latina morarem em Paris não me pareceu peculiar na época, talvez porque eu ainda não soubesse que Nova York havia “roubado a ideia da arte moderna”, para usar o bordão de Serge Guilbaut [1].

(…)

Mas chega de generalidades. Sigamos agora, como prometido, para o modo autobiográfico – não que eu tenha alguma atração particular pelo gênero, mas porque simplesmente não consigo separar meus pensamentos sobre dois artistas e sua “ansiedade de influência” particular da minha interação pessoal com eles. Uma é Lygia Clark; o outro é Mathias Goeritz. Eu os conheci muito antes dos meus gostos intelectuais e artísticos estarem totalmente formados – na verdade, eles desempenharam um papel importante em minha formação e especialmente em minha consciência da arte moderna na América Latina. Encontrei muitos artistas em minha vida, mas apenas esses dois funcionaram para mim como mentores. Conheci os dois por meio de um jornal chamado Robho, publicado em Paris no final dos anos 1960 (o título é uma sigla; ninguém sabe o que significa). Era uma daquelas pequenas revistas de vanguarda que desaparecem rapidamente, e foi editada por Jean Clay, um homem que tinha uma influência considerável na época como crítico de arte. Anos depois, Jean e eu fundaríamos um jornal muito mais sério e aprofundado, chamado Macula (este também não durou muito), mas quando cruzei com Jean pela primeira vez, eu era um adolescente.

Aqui vai o episódio completo, apresentado como novela de época: era o ano de 1967 e eu estava no equivalente francês da décima série. Morava na bela cidade de Toulouse, no sudoeste da França, e ia a Paris sempre que ganhava nos meus vários pequenos empregos o suficiente para cobrir a viagem de trem – os alunos tiram muitas pequenas férias na França. Não sei bem de onde veio essa ideia, mas queria me tornar artista e passava o tempo todo sonhando com minha próxima viagem a Paris, onde visitava o máximo possível de galerias e museus. Eu ficava na casa de meu tio e tia, mas eles só me viam no jantar, depois do qual eu desmaiava, tendo batido perna o dia todo. Aí houve uma quebra nessa rotina: fui convidado a uma festa à noite, em comemoração à inauguração de uma galeria de arte – a nova filial da Galerie Denise René no Rive Gauche, Boulevard Saint Germain, para ser exato, bem ao lado da galeria de Alexandre Lolas (representantes de Magritte e Fontana) – e meu tio concedeu que eu fosse, contanto que Jean Clay, que ele conhecia superficialmente, estivesse lá para me acompanhar. Meu tio me levou até a galeria enquanto eu cruzava os dedos no carro: Jean me cumprimentou e, enquanto figura mais nova no pedaço, fui imediatamente acolhido por toda uma lista ilustre de artistas. Jean tornou-se meu amigo e muito aprendi com ele (ele também me colocou para trabalhar imediatamente: vendi dezenas de edições do Robho em meu colégio de província). Foi Jean quem me falou de Lygia Clark pela primeira vez, me mostrou fotos de seu trabalho. Também me passou alguns de seus textos para ler, que ele havia traduzido, em preparação de um perfil especial sobre ela em sua publicação (algo que só viria a sair no final de 1968). Fiquei tão intrigado com essa obra que fui movido a publicar meu primeiro artigo – um ensaio curto (e, como se pode imaginar, bem rudimentar) sobre Lygia, publicado na edição de março de 1968 de um semanário huguenote chamado Réforme, já que meu pai era pastor protestante. (Peço sua compreensão por usar apenas o primeiro nome de Lygia a partir de agora, já que esse tratamento familiar, para alguém que eu conhecia tão bem, me vem mais naturalmente).

O ano de 1968, lembrem-se, foi tumultuado na França. Os garotos do ensino médio eram tão envolvidos politicamente quanto os universitários, e eu acreditava, como todo mundo da minha geração, que íamos mudar o mundo. Claro que se falava muito sobre a possibilidade de uma “arte revolucionária”, mas graças ao pouco que já conhecia da concepção fenomenológica de arte de Lygia, não conseguia aceitar a ideia de uma arte engajada que deixasse o observador em um estado de consumo passivo. A arte política, para ser eficiente, tinha que permitir um papel diferente; isso eu sabia, mas não via bem para onde seguir a partir daí. Minhas próprias tentativas – algumas publicadas posteriormente por Jean Clay na Robho com o incentivo totalmente imerecido de Lygia – não me contentavam.

Foi depois do dramático verão de 1968, logo após a intervenção da Rússia na Tchecoslováquia, que conheci Lygia – no apartamento que ela acabara de obter na Cité des Arts, em um prédio horrendo às margens do Sena, onde a cidade de Paris hospeda artistas estrangeiros, de acordo com o sonho francês de antes da Segunda Guerra Mundial de uma Paris capital mundial da arte. Acabava de regressar da Bienal de Veneza, onde representou o Brasil com uma grande retrospectiva da sua obra que incluía desde os primeiros trabalhos até suas várias Máscaras sensoriais e Roupa-corpo-roupa, de 1967, bem como a grande instalação/ambiente A casa é o corpo [2]. O ateliê estava lotado de caixas de todos os tamanhos, e Lygia estava visivelmente deprimida (além de ter que processar uma retrospectiva, sempre um tanto traumática para uma artista em meio de carreira, ela havia ficado profundamente enojada com a badalação da Bienal. Para piorar, acabara de saber da morte do ex-marido). Ela concordou em me receber graças às amáveis ​​palavras de Jean Clay e de Camargo, e porque sabia que eu estava em Paris apenas de passagem e não a importunaria por muito tempo.

Quando ela começou a me mostrar suas coisas – deixando-me tocá-las, manipulá-las, habitá-las sob sua orientação – testemunhei uma espécie de transfiguração. Literalmente, vi sua melancolia sombria desaparecer, e sempre pensei, em retrospecto, que nossa amizade se selou durante aquela longa tarde: por puro acaso, ao estar lá na hora certa, a ajudei a se livrar de sua depressão.

Primeiro, havia algumas coisas espalhadas pelas mesas – pedras conectadas com pequenos elásticos amarrados, uma ou duas pedras em cada extremidade. Lygia me mostrou como usar aquelas montagens precárias: você puxa uma pedrinha ou um grupo de pedrinhas em sua direção e, em um determinado momento, sempre imprevisível, vai seguir a massa na outra ponta do elástico, seja com um salto, como movidas por uma mola, ou arrastando-se debilmente como uma lesma. Foi a interação entre diferentes forças que a moveu – sua própria tração, a extensibilidade do elástico e o peso das pedras – e o fato de que o ato imensurável gerado só pode ser percebido como uma metáfora fenomenológica para a relação de seu corpo com outros no mundo.

Então ela começou a desempacotar as caixas e a me entregar coisas mais velhas. Um dos “objetos” de que mais me recordo foi o seu Diálogo de mãos, de 1966, que ela mesma idealizou com sua alma gêmea, Hélio Oiticica. Essa obra, ou melhor, “proposição”, como ela já chamava suas obras, consiste em quase nada, como muitas de suas peças – isto é, realmente nada é se você não a utilizar: materialmente, consiste em uma pequena fita de Moebius feita de gaze médica elástica. Cada uma de nossas mãos direitas passou por uma volta da fita de Moebius em direções opostas e, ao juntar nossas mãos ou soltá-las, experimentamos a resistência da matéria (pois nossos gestos eram restringidos pela elasticidade limitada do tecido). Se o “diálogo” se prolongar por tempo suficiente, as sensações visuais e táteis parecem se separar, chegando um momento em que surge a impressão de que as mãos estão dançando sozinhas, separadas do corpo. Este momento pode ser extremamente perturbador, quase alucinógeno.

Lygia Clark "Bicho" (1960). Foto: Jaime Acioli.
“Bicho” (1960). Foto: Jaime Acioli.

Nessa altura da minha visita, Lygia começou a relembrar os primórdios do movimento neoconcreto no Brasil, e o ataque deliberado que ela havia tramado com Oiticica (que eu nunca viria a conhecer) contra a abstração geométrica, tradição em que ambos tinham se formado. Ela me revelou a importância de Max Bill para a arte brasileira do início dos anos 1950, principalmente após sua retrospectiva no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1950, depois da qual recebeu o prêmio internacional de escultura da primeira Bienal de São Paulo, em 1951: os entusiastas da “Arte Concreta” de Bill (como ele chamava sua produção, em que tudo tinha que ser planejado por cálculos aritméticos) inundaram repentinamente o minúsculo mundo da arte brasileira, até então bastante resistente à arte moderna. Gentilmente, ela me fez entender que seu Diálogo de 1966, esse pequeno pedaço de curativo que não parecia muita coisa, na verdade representava a conclusão de uma longa batalha contra o tipo de arte de Bill. Pois a fita de Moebius tinha sido uma das figuras geométricas favoritas do artista suíço, que plantou sua imagem de granito polido em muitos jardins de esculturas ao redor do mundo. Bill plasmou a fita de Moebius em ícone da autonomia do objeto de arte modernista; Lygia transformou-a em suporte para uma experiência que visa a abolir qualquer ideia de identidade definida e fechada. Em Diálogo, um objeto “escultural” não é mais sagrado enquanto peça autônoma e formalmente perfeita, mas as mãos dialogantes e falsamente simétricas tornam-se, por assim dizer, performers autônomas.

Como se há de imaginar, conversamos muito sobre arte abstrata naquela tarde (principalmente sobre Mondrian, meu primeiro amor na arte – e o que ela me disse então encerrou definitivamente minha leitura adolescente de sua arte, padrão na época, como uma espécie de hino neoplatônico para a forma pura). Aprendi muito sobre o envolvimento anterior de Lygia com a abstração geométrica, o suficiente para entender que foi sua condição de estrangeira à tradição europeia da arte abstrata que lhe permitiu interpretá-la erroneamente de forma criativa.

(…)

Uma das proposições de que mais me lembro daquela tarde inaugural é Pedra e ar (1966). Ela colocou na minha mão um pequeno saco plástico transparente que acabara de explodir e selar com um elástico. Estava quente com seu hálito (o plástico era muito fino). Ela botou uma pedra em um dos cantos, que se equilibrou precariamente e afundou no canto da bolsa. Ficou pendurada ali, quase caiu, mas a menor alteração na pressão de minhas mãos a fazia subir novamente, como uma boia de pesca. Minha sensação era de estar ajudando desajeitadamente a um animal muito delicado a dar à luz (sentimento certamente reforçado por eu ter acabado de fazer em mim mesmo a “cesariana” prescrita por um dos incômodos macacões de látex da sua série Roupa-corpo-roupa, Cesariana [1967]). O contraste entre o nada do suporte e a intensidade da minha percepção ao brincar de ioiô/esconde-esconde (reencenando vagamente a famosa brincadeira do Fort-da descrita por Freud em seu relato sobre a sexualidade infantil), essa lacuna entre a simplicidade do gesto real e do tipo de memória genérica do corpo que a obra despertou em mim é algo que nunca esqueci. É como se um corpo pré-humano tivesse sido resgatado de um banco arcaico de sensações armazenadas em algum lugar da memória da minha espécie, como se o trabalho de Lygia estivesse se opondo à evolução de Darwin. Há o aspecto tátil: a pele da mão, redobrada pela pele plástica que a molda, torna-se uma espécie de órgão autônomo. Depois, há o aspecto visual dissonante: o movimento de protensão/retenção da pedra (que Lygia relacionou especificamente às Constelações Estruturais de Albers), o inflar ou desinflar do saco plástico, o canto pontudo ou curvado – tudo isso remetendo claramente ao ato sexual, mas sem que sejamos capazes de, em nenhum momento, atribuir um papel (ou gênero) específico a qualquer dos elementos.

A seguinte “proposição” que recebi foi Respire comigo, cujo suporte é um tubo de borracha simples usado por mergulhadores subaquáticos para respirar. Cito Lygia aqui: “Ao juntar as duas extremidades do tubo – transformado, assim, em um anel circular – e ao esticá-lo, somos desestabilizados por um ruído de respiração sufocante: deste modo, a primeira vez que ouvi esse suspiro, a consciência da minha respiração deixou-me obcecado em razão de uma asfixia que se manteve durante várias horas” [3]. Como observa Guy Brett, temos “a sensação de tirar nosso próprio pulmão e trabalhá-lo como qualquer outro objeto” – o que pode ser aterrorizante ou inspirador [4].

Não percebi as implicações assustadoras na época. Fui fisgado, por assim dizer. Lygia se tornou a parte mais importante do meu “grupo de apoio” na adolescência, e estive com ela em cada uma das minhas viagens a Paris durante o ano letivo seguinte. Então, após me formar no ensino médio, vim para os Estados Unidos como estudante de intercâmbio por um ano, e iniciamos uma correspondência que durou até eu vir morar em Paris no outono de 1971 – quando parou pelo simples motivo de que eu a via quase todos os dias, até que ela voltasse ao Brasil em 1976 (para começar, seu psicanalista morava a apenas um quarteirão de minha minúscula sala de estudos).

Performance "Arquiteturas biológicas II" (1969). Foto de Alécio de Andrade / ADAGP.
Performance “Arquiteturas biológicas II” (1969). Foto de Alécio de Andrade / ADAGP.

Quando cheguei em Paris, ela havia se mudado para um apartamento/estúdio maior em um prédio igualmente horrendo, perto da Porte de Vanves – um ponto de encontro para todo artista, cantor ou cineasta brasileiro que passasse por Paris (havia muitos, especialmente durante os anos da ditadura militar). O músico e compositor Caetano Veloso, à época exilado em Londres, nunca deixou de aparecer se estivesse em turnê pela capital francesa (comemorou uma de suas visitas com uma canção – If You Hold a Stone – composta em homenagem a Pedra e ar). 

(…)


[1] Serge Guilbaut, How New York Stole the Idea of Modern Art: Abstract Expressionism, Freedom, and the Cold War (Chicago: University of Chicago Press, 1983). Pelo que me lembro, o mundo da arte francesa estava completamente alheio ao que estava acontecendo do outro lado do Atlântico – a arte americana estava praticamente ausente das paredes de galerias e museus. Uma exceção como a exposição A Arte do Real, em que o público francês descobriu o minimalismo, foi recebida com total incompreensão. É verdade que o momento foi infeliz, tendo ocorrido em novembro-dezembro de 1968, no auge do sentimento anti-EUA.
[2] O título completo dessa obra é A casa é o corpo. Penetração, ovulação, germinação, expulsão.
[3] Lygia Clark, “L’art, c’est le corps”, in Preuves 13 (1973): 142.
[4] Guy Brett, “Lygia Clark: The Borderline Between Art and Life,” Third Text, issue 1 (Outono de 1987): 84.

O que visitar no Rio de Janeiro na semana da ArtRio?

Vista da exposição "Brasilidade Pós-Modernismo" no CCBB Rio de Janeiro. Foto: Jaime Acioli

Entre os dias 8 e 12 de setembro, o Rio de Janeiro recebe a ArtRio. Considerada um dos grandes eventos de arte contemporânea na América Latina, a feira chega à sua 11ª edição reunindo galeristas, artistas, colecionadores e apreciadores de arte de diferentes cantos do país. Seguindo o modelo híbrido realizado no ano passado, a feira acontecerá de forma virtual, dentro da plataforma artrio.com, e também presencialmente, na Marina da Glória. De forma a garantir a segurança de todos, será necessário comprovante de vacinação contra a Covid-19 para entrada no evento e, no ato da compra do ingresso, deverá ser agendada a data da visita e o horário.

Os expositores estarão divididos em três programas: “PANORAMA”, no qual participam casas com atuação estabelecida no mercado de arte; “VISTA”, dedicado às galerias jovens, com até 10 anos de existência; e “SOLO”, dedicado a estandes de um único artista. A programação conta ainda com palestras, conversas entre artistas e curadores e visitas guiadas a coleções e ateliês, a serem transmitidas na plataforma online da ArtRio. 

Pensando em quem opta por visitar a feira presencialmente, montamos um roteiro de visitações com as principais mostras em cartaz na capital fluminense durante a semana do evento. 

À caminho do centro

A poucos minutos da ArtRio, no centro da cidade, o Paço Imperial recebe aquela que talvez seja a última exposição presencial do Prêmio PIPA. Com abertura marcada para o dia 9 de setembro, a mostra apresenta trabalhos de quatro ganhadores da premiação anual. Gê Viana, Maxwell Alexandre, Randolpho Lamonier e Renata Felinto, selecionados pelo comitê do júri, são foco da coletiva, que conta também com aquisições recentes do instituto. Para o curador Luiz Camillo Osório, a escolha de mais de um vencedor no último ano está ligada ao papel do PIPA como termômetro do que há de mais potente na produção artística atual. “Mais do que apontar um único caminho da arte contemporânea, é nosso papel revelar as várias bifurcações que estão constantemente sendo abertas nas rotas e narrativas hegemônicas.” A partir de 2021, pretende-se que as mostras presenciais sejam apenas da coleção do PIPA e a exposição dos premiados do ano aconteça em ambiente virtual. “A ideia é fortalecer o instituto, dar-lhe mais visibilidade e poder assim desenvolver outros projetos curatoriais junto aos artistas que fazem parte da coleção”, explica o curador. 

Por sua vez, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, a cerca de 10 minutos de caminhada da ArtRio, inaugura Vulcão, instalação em grande escala criada pela artista Carmela Gross especialmente para a fachada do museu. “Uma obra que vem para provocar erupções, respondendo ao desejo de refletir sobre um mundo em convulsão, que se rebela e manifesta com a força dos cataclismas da história brasileira”, analisa a curadora Beatriz Lemos. Já a nova exposição em cartaz se debruça sobre a construção dessa história brasileira a partir do patrimônio. A memória é uma invenção reúne mais de 300 obras provenientes do acervo do próprio MAM Rio e de outras duas instituições: o Museu de Arte Negra/IPEAFRO e o Acervo Laje. Com pinturas, gravuras, esculturas, fotografias e azulejos, a mostra propõe reflexões sobre os processos de construção de patrimônio, legado e cultura comum. Ao serem apresentadas no mesmo espaço expositivo, as coleções mostram repetições e semelhanças nas escolhas de categorias e formatos, nos entendimentos do que faz uma obra ser conservada como parte de um legado e nos métodos de compartilhamento dos trabalhos como parte de uma memória coletiva.

A revisão das narrativas legitimadas e invisibilizadas em nosso passado segue até o Museu de Arte do Rio (MAR), com Imagens que não se conformam. Ao reunir cerca de 200 itens da coleção do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), a coletiva interroga as visões sobre a história do país e lida com a reparação histórica associada aos discursos identitários. Já em YORÙBÁIANO, mostra individual de Ayrson Heráclito no MAR, a retomada da memória ganha um sentido de expurgação, de despacho. Em diversos dos trabalhos apresentados, o artista refaz a memória para secar feridas coloniais, abertas pela exploração dos corpos em busca de riquezas na cultura canavieira. Com trabalhos em diversos suportes, Heráclito evidencia a cultura Yorubá e busca representar a grande reinvenção poética e política de um Brasil Yorubano. Quem visita o Museu de Arte do Rio, também aproveita Paulo Werneck – murais para o Rio, que lança luz sobre a obra de um dos pioneiros da atividade mural no país.

Seguindo o mote histórico, mas mantendo olhar sobre a atualidade, Brasilidade Pós-Modernismo, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil celebra o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 focando não no passado propriamente dito, mas lançando luz aos traços, remanescências e conquistas que o movimento modernista trouxe, no decorrer dos últimos 100 anos, às artes plásticas do Brasil. Com curadoria de Tereza de Arruda, a mostra busca chamar atenção para as diversas características da arte contemporânea brasileira cuja existência se deve, em parte, ao legado da ousadia artística cultural proposta pelo Modernismo. O público poderá conferir obras de 51 artistas de diversas gerações, entre os quais Adriana Varejão, Anna Bella Geiger, Arnaldo Antunes, Cildo Meireles, Daniel Lie, Jaider Esbell, Rosana Paulino e Tunga. “Não é uma mostra elaborada como um ponto final, mas sim como um ponto de partida – assim como foi a Semana de Arte Moderna de 1922 – para uma discussão inovadora a atender a demanda de nosso tempo, conscientes do percurso futuro guiados por protagonistas criadores”, explica a curadora. 

Indo à Zona Sul

As comemorações centenárias também perpassam a Zona Sul. É o caso da Pinakotheke Cultural que, com Lygia Clark (1920-1988) 100 anos, celebra e homenageia aquela que foi considerada pela crítica de arte brasileira e internacional como uma das artistas mais importantes do século 20. Em cartaz na casa em Botafogo até 9 de outubro, a exposição conta com cerca de 100 obras, em sua maioria inéditas ao público brasileiro. Com pinturas, desenhos, gravuras, bichos, trepantes, obra mole, casulo, objetos relacionais, fotografias e documentos, a Pinakotheke organiza a mostra em 17 ordens conceituais que compõem a trajetória de Lygia como artista, e as complementa com textos de parede do crítico Paulo Herkenhoff. A galeria também apresenta um ensaio fotográfico feito por Alécio de Andrade (1938-2003) da performance Arquiteturas biológicas II, criada pela artista em 1969 no Hôtel d’Aumont, em Paris.

Em contraponto aos 100 anos da já renomada Lygia Clark, a Galeria Nara Roesler, em Ipanema, nos apresenta a primeira individual do jovem Elian Almeida, Antes – agora – o que há de vir. O artista se debruça sobre a experiência e a performatividade do corpo negro na sociedade brasileira contemporânea e constrói uma arqueologia da memória, recuperando elementos do passado, imagens, narrativas e personagens, de modo a contribuir para o fortalecimento e divulgação da historiografia afro-brasileira. Nesta exposição, Almeida apresenta 16 retratos de mulheres negras de diferentes períodos e importâncias para a cultura do país. Contudo, a ausência de face nas obras pode nos apontar tanto para o apagamento desses indivíduos pela narrativa oficial, quanto representar um corpo coletivo, uma miríade de rostos possíveis, de todos que sofreram e ainda sofrem os efeitos do racismo estrutural. Para o curador Luís Pérez-Oramas: “São, pois, os retratos que Elian Almeida nos apresenta, a rigor, imagens fúnebres, necroretratos, emergentes: nos olham, sem olhos, a partir do seu esconderijo, e de lá retornam à certeza melancólica de que o que não nos esquece não pode, por sua vez, voltar plenamente, na plenitude da presença da qual foi amputado”.

Enquanto isso, no Jardim Botânico, Ernesto Neto ocupa a Carpintaria – espaço da Fortes D’Aloia e Gabriel na cidade – com dois corpos de trabalho inéditos que tratam da inter-relação entre o céu e a terra, cerâmica e crochê, escultura e espaço. Juntas, essas novas obras se entrelaçam à arquitetura da casa, onde o chão, a parede e o teto foram transformados, propondo uma experiência imersiva. Outras obras expostas em O beijo Vi de Só e Té Água e Fô e outras tecelá, feitas de galhos secos envoltos por barbantes, exploram a relação de tensão e equilíbrio entre diferentes materiais do cotidiano e formas da natureza.

Lembre-se de verificar quais exposições pedem agendamento prévio para a visita e, caso opte por visitar as mostrar posteriormente neste mês, não se esqueça de fazer o cadastro online para ter seu passaporte de vacinação contra Covid-19. A partir do dia 15 de setembro, o Rio de Janeiro exigirá o comprovante de imunização para entrada em ambientes de uso coletivo no estado – o que inclui as instituições culturais.

34ª Bienal de São Paulo abre sua mostra principal com tônica política e forte presença indígena

"Paisagem", de Regina Silveira, obra comissionada para a Bienal. Foto: © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo
"Paisagem", de Regina Silveira, obra comissionada para a Bienal. Foto: © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

A abertura da 34a Bienal de São Paulo neste sábado, dia 4, mais de um ano depois do previsto, parece decretar de forma definitiva o fim da quarentena no circuito das artes, dando ainda mais fôlego à agenda agitada que vem movimentando museus e galerias nos últimos dias e que, estrategicamente, desconsidera que ainda estamos longe de debelar os riscos da pandemia. É preciso ressaltar que o acesso à bienal só é possível mediante apresentação de comprovante de vacinação. Com mais de mil obras espalhadas pelo gigantesco Pavilhão Ciccillo Matarazzo, de 35 mil metros quadrados, a mostra – tradicionalmente um evento de grande impacto que costuma atrair as atenções do público, da mídia e do setor especializado -, tem este ano um apelo extra: a forte tônica política presente em parte significativa dos trabalhos selecionados, que funcionam como um grito de resistência que se torna ainda mais agudo às vésperas da orquestrada manifestação do governo para solapar as instituições e reduzir o espaço democrático no país.

Em seu conjunto, a exposição parece corporificar a ideia expressa em seu título. Faz escuro mas eu canto, tirada de um poema escrito por Thiago de Mello escrito em 1963, é uma clara convocação de sobrevivência e desafio, de enfrentamento da corrosão de direitos duramente conquistados, por meio da arte e da cultura. Mas esse processo de resistência assume diferentes nuances, como gostam de ponderar os curadores – Jacopo Crivelli Visconti (geral) e Paulo Miyada (adjunto) – ao afirmarem que procuraram fugir das classificações, deixando tudo em um estado maior de indeterminação. Fica evidente, ao observar os trabalhos selecionados, uma convivência no mesmo espaço de tônicas distintas, com trabalhos de grande teor crítico, como o fascinante e assustador labirinto de vidros cravejados de balas de Regina Silveira, feita especialmente para essa edição da Bienal, convivendo com expressões mais sutis e históricas, como o delicado exercício pictórico de Giorgio Morandi (1890-1964) ou Eleonore Koch (1926-2018).

Além do título, a exposição foi concebida em função de alguns enunciados, elementos de forte peso simbólico, imantados de conteúdo poético e histórico, que o público vai encontrando ao longo do percurso. Um exemplo desses enunciados, que parece contaminar e iluminar de forma surpreendente os trabalhos a sua volta, é a série composta por dezenas de retratos do abolicionista norte-americano Frederick Douglass (1818-1895), que utilizou sua própria imagem como ferramenta na luta pela liberdade e contra o racismo. Diante desse potente painel se encontra uma gigantesca âncora, de mais de uma tonelada, que compõe a obra Complexo Atlântico – Cordas, de Arjan Martins, uma configuração apenas aparentemente abstrata, que toma o espaço central do Pavilhão e remete ao “triângulo do Atlântico”, comércio entre Europa, América e África responsável pela manutenção da economia escravagista. Os dois trabalhos tratam diretamente do nosso passado, com ecos no presente. E, em seu atrito no espaço expositivo, reverberam de forma muito mais intensa. O mesmo ocorre entre as monotipias feitas a partir de imagens de vulcões por Carmela Gross, reunidas na obra Boca do Inferno, e o meteoro Santa Luzia, uma das poucas peças que sobreviveram ao incêndio que destruiu um Museu Nacional, exatamente por ser feita da mesma matéria magmática e resistente a um fogo que nos ameaça intensamente.

Com uma montagem bastante arejada, sem acúmulos intensos de trabalho ao longo do pavilhão, a mostra parece ora aproveitar-se dos espaços vazios e generosos, ora lançar mão de nichos mais íntimos, criados por meio de estruturas que compartimentam os espaços. Feitas com três tipos de materiais – juta, polietileno e madeira -, essas divisórias quebram a monotonia do espaço vazio e criam texturas, espaços intermediários entre a escala do corpo e a escala urbana. “É como se fossem peles, camadas de memória no tempo e no espaço”, explicou Carla Zaccagnini, uma das curadoras convidadas, na coletiva de imprensa realizada nesta quinta-feira.

Com mais de 90 artistas e uma intencional busca de diversidade – englobando temas, gerações e linguagens distintas -, surpreende a presença especifica do retrato nas obras selecionadas. Como se essas questões de resistência à opressão se materializassem de forma contundente num esforço de constituição de identidades, sobretudo usando o próprio corpo, como o magistral Alma no Olho, de Zózimo Bulbul e as já citadas fotos de Douglass.

Uma das referências teóricas fundamentais da 34a edição é a obra do pensador Edouard Glissant, da Martinica. E, mais especificamente, seu conceito de direito à opacidade, que se opõe frontalmente à imposição da racionalidade ocidental – que tolhe, submete e descarta aquele não se enquadra nos paradigmas vigentes. “O racista recusa aquilo que ele não compreende”, pontua o escritor. Essa defesa da opacidade pode ser entendida de múltiplas maneiras na mostra, também em uma sintonia mais direta com a noção de escuro contida no título. Afinal, “um único modo de haver luz também pode ser opressivo”, lembra Miyada. Ou, como sintetiza Crivelli Visconti, “não preciso compreender inteiramente o outro para reconhecer sua humanidade”.

Tal aspecto adquire relevância quando se considera que esta edição da Bienal é, seguramente, aquela que conta com mais artistas indígenas, tanto brasileiros como de outras regiões do planeta. É intensa a presença de Jaider Esbell, por exemplo, que apresenta um enorme painel de desenhos e recortes no terceiro andar, no qual incorpora em imagens as fricções entre diferentes culturas. Destaca-se também na mostra um equilíbrio ainda pouco comum entre os diferentes gêneros e um olhar atento às opressões de caráter histórico ou contemporâneo. E também abre-se espaço para outras formas de expressão artística que vão na contramão das noções de progresso, exploração da natureza e incapacidade de diálogo entre diferentes sistemas de saber, lidando com questões como identidade, opressão e luta.

Serviço: 34ª Bienal de São Paulo – Faz escuro mas eu canto
Pavilhão Ciccillo Matarazzo – Parque Ibirapuera, São Paulo
De 4 de setembro a 5 de dezembro de 2021
Entrada gratuita
Acesso mediante apresentação de comprovante de vacinação contra Covid-19

Ideia, reflexo e imagem em Luiz Braga

"Barqueiro azul em Manaus", 1992. Foto: Luiz Braga. Cortesia Instituto Tomie Ohtake.
"Barqueiro azul em Manaus", 1992. Foto: Luiz Braga. Cortesia Instituto Tomie Ohtake.

*Por Mateus Nunes

Com um laborioso processo, Luiz Braga consegue criar uma atmosfera, o palco de um romance imagético. As narrativas que entrelaçam os bastidores de suas fotografias, com o contato constante que o artista belenense tem com seus retratados ao longo dos anos, preenchem esse espaço denso de matéria indócil entre o retratado, o fotógrafo e o observador da obra. Umberto Eco compartilhava que o mais árduo a se fazer quando da decisão de escrever um romance é precisamente criar uma atmosfera. Pensar o número de degraus das escadas das palafitas, as cores das letras abertas nos barcos, a curvatura das redes abertas, mesmo que vazias. Com a atmosfera constituída, não é mais tudo controlado pelo autor: as personagens e as palavras – no caso de Luiz Braga, as imagens – surgem por conta própria, em seu próprio ritmo. Após o dispendioso trabalho de domar as cores e as luzes, o fotógrafo fada-se a abrir-se ao acaso, ao diálogo. Ativamente espera e flana, e, com um conta-gotas, é agraciado com suas personagens ao longo de quatro décadas, que encontra e reencontra no porto, no barco, na rua, no rio e em casa. À Espera de Rosa, à la Beckett: na obra de Luiz Braga, a persistência e a paciência andam de mãos dadas.

"Rosa no arraial", 1990. Foto: Luiz Braga. Cortesia Luiz Braga.
“Rosa no arraial”, 1990. Foto: Luiz Braga. Cortesia do artista / MAM.

Nessa série de retratos em cor, reunidos pela primeira vez, o fotógrafo cria alegorias da vida cotidiana, onde o observador pode se identificar, no olhar do retratado, com figuras distantes de sua realidade. Dessa forma, transforma os retratados em ideia, em personagens idílicos, como as divindades da escultura tapajônica ou as gravuras bíblicas de Gustave Doré – traçando um caminho de matriz híbrida entre as tradições nativas e a cultura ocidental europeia. Ao ilustrar magicamente episódios do dia a dia, Luiz eleva a imagem dos seus retratados a um patamar imaterial, como se não pertencessem ao plano real – quase como visagens, entes fantasmagóricos da cultura paraense.

O projeto expográfico é consoante com os caminhos conceituais propostos e instigados pelas obras. Nele, as imagens elevam-se, numa espécie de suspensão ideológica, reafirmando que não estão nem afixadas na terra, nem alçadas aos céus, mas habitam esse campo fantasmagórico das imagens, num eterno “entre”: as noções de material e imaterial, realidade e ficção, materialidade e abstracionismo são desafiadas, negando os dualismos convencionais e transpassando-as como um dardo no exato momento em que rasga o véu – o clique fotográfico. O espaço da exposição é pensado de forma que o espectador veja uma imagem de cada vez, paulatinamente, construindo um labirinto de planos de madeira em que as fotografias são afixadas, que se assemelha à percepção labiríntica da floresta. Como a folhear um livro, vê-se uma imagem a cada vez, e isso não só basta como transborda: em cada uma há um universo. Ao adentrar a exposição, vislumbramos o sentimento do fotógrafo ao se abrir ao acaso da vida, à surpresa dos encontros, abertos à possibilidade de sermos arrebatados por uma imagem à próxima curva.

"Raylana", 2013. Foto: Luiz Braga. Cortesia Instituto Tomie Ohtake.
“Raylana”, 2013. Foto: Luiz Braga. Cortesia do artista / Galeria Leme.

O paralelismo à exposição de Pierre Verger, simultânea e vizinha à exposição de Luiz Braga, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, é assertivamente traçado pelos textos curatoriais de Paulo Miyada e Priscyla Gomes que narram a história de dois viajantes. Braga, o teimoso e curioso que busca viajar dentro de si, de sua terra e sua cultura; e Verger, o aventurista mundial ambicioso, digno de um romance de Jules Vernes. As analogias literárias poderiam seguir: o circum-navegador Phileas Fogg, protagonista de A Volta ao Mundo em 80 Dias, de Vernes, é acompanhado por seu criado, chamado de Passepartout. Elemento caro à fotografia, o passepartout, homônimo ao personagem, é algo que não é inerente à obra, mas também não está fora dela em determinados contextos: habita, novamente, esse misterioso “entre”.

"Barqueiro azul em Manaus", 1992. Foto: Luiz Braga. Cortesia Instituto Tomie Ohtake.
“Barqueiro azul em Manaus”, 1992. Foto: Luiz Braga. Cortesia do artista / Galeria Leme.

Intitulada Máscara, espelho e escudo, a exposição é batizada a partir de três signos de alto simbolismo que são análogos ao processo fotográfico do artista, como o próprio escreveu. Há, entretanto, uma forte carga híbrida vinda da matriz transcultural paraense que também pode ser relacionada a esses três símbolos.

As máscaras, caras à ritualística indígena, também foram hibridizadas – quando da recepção de tradições europeias trazidas pelos missionários católicos – pelos índios colonizados na Amazônia, que pintavam os admiráveis mascarões nos forros das igrejas em que se tornaram devotos. Nessas expressões artísticas, percebem-se diversas marcas de tradição indígena feitas por mãos nativas, pintadas com tintas da terra e tintas do reino. Essa força não era algo que podia ser domado pelos padres.

Do mesmo modo, instrumento de encantamento, o espelho acompanha as usuais narrativas de sedução por parte dos europeus na invasão do Brasil, utilizando-o como arma colonizatória camuflada de presente. No universo criado por Luiz Braga, essa mesma fascinação narcísica de quem se olha no reflexo da água ou do metal é presente nas casas interioranas, em espelhos defronte aos quais seus moradores se vestem com as melhores roupas e meticulosamente se penteiam para as festividades, eventos de alegria que Braga escolhe perpetuar.

Seu escudo, frágil e controverso, de nada o protege senão de si mesmo, pois carrega um alvo em seu centro, como a dizer “atire!”. Dessa forma, o olhar do retratado o atinge, subvertendo o escudo como instrumento de proteção e o transformando em um peito aberto à vida, ao acaso. Às vezes, o momento da decisão de fisgar a imagem não parece ser do fotógrafo, mas sim do retratado. Nesse instante, tudo clica.

"Perfil da senhora no círio", 1991. Foto: Luiz Braga. Cortesia Instituto Tomie Ohtake.
“Perfil da senhora no círio”, 1991. Foto: Luiz Braga. Cortesia do artista / Galeria Leme.

A exposição reitera a efervescente pluralidade cultural da região paraense, chamando a atenção para as desigualdades políticas existentes e para os estigmas estéticos que erroneamente são atrelados à sua heterogênea produção artística. Ao caírem as máscaras, ao ruírem os espelhos e ao fenderem-se os escudos, parece que uma flecha atravessa o plano da fotografia e lacera os retratados. Essa incisão nos corpos das imagens de Luiz Braga contestaria sua esperada visceralidade dionisíaca e atestaria sua abrupta fabulação apolínea: cortaria uma ferida aberta de cor onde se esperava carne, irrompendo luz de onde se esperava sangue.


*Mateus Nunes é arquiteto e pesquisador. Doutorando em História da Arte na Universidade de Lisboa, com período de intercâmbio na USP, onde é pesquisador e professor convidado. Arquiteto e urbanista pela Universidade Federal do Pará, em Belém. É professor do Museu de Arte de São Paulo (MASP) na ocasião do curso “Arte contemporânea paraense: Hibridismos, imagens e poéticas”.

As matrizes africanas e indígenas na obra de Regina Vater

Regina Vater. Foto: Reprodução Galeria Jaqueline Martins
Regina Vater. Foto: Reprodução Galeria Jaqueline Martins

A Celebration for the GOoD Time, de Regina Vater, em cartaz na galeria Jaqueline Martins até 30 de outubro, simboliza o desejo da artista tanto por mudanças do atual governo brasileiro quanto da política no combate à Covid-19. Torna-se evidente a relação simbólica entre a festa/performance/ritual que dá nome à exposição – realizada em 1983 no Central Park, em Nova York, onde Regina morava – e o momento em que estamos. “Os Estados Unidos viviam um clima político e social pesado com o governo de Ronald Reagan. Para piorar, havia a debacle da arte, quando a má pintura dominava o mercado. Qualquer pessoa que pintasse mal virava um grande artista.”

O evento nova-iorquino foi organizado por ela no início da primavera como um renascimento, logo após um inverno rigoroso. O tempo, no Candomblé, é um orixá cujo símbolo é uma bandeira branca que tremula no topo da árvore da vida e assim foi feito no Central Park. Regina convidou os amigos artistas Antoni Miralda, Alison Knowles, Anne Twitty, Bill Lundberg (seu marido), Catalina Parra, Coco Gordon, Karen Bacon e Marylin Wood, entre outros, para se apresentarem vestidos de branco e contribuírem com arte e comida igualmente brancas. “Algumas pessoas foram convidadas e outras se aproximaram espontaneamente. Foi uma espécie de depuração geral, limpeza de uma época muito ruim.” O vídeo que é exibido na galeria, durante toda a mostra, transparece a alegria e a suavidade do evento, com clima despojado e de esperança.

O arco que abrange essa exposição são os 40 anos de produção de uma artista que viveu em várias cidades e países realizando trabalhos colaborativos contaminados pelo entorno. Obras datadas de 1980 a 2020 tomam os três andares da galeria com instalações, vídeos, fotografias, desenhos e objetos. Toda uma zona de enigma toma conta da instalação Rama Dourada, ligada a um dos primeiros romances da humanidade, a epopeia de Gilgamesh, um antigo poema épico. “A história conta que para adentrar o mundo subterrâneo, a deusa dá a Gilgamesh uma rama dourada como passaporte. Na Eneida acontece a mesma coisa, uma deusa também oferece a rama dourada a Eneias para penetrar no mundo das almas e dos mortos, para encontrar e obter ajuda de seu pai. O rito da árvore da rama dourada tem a ver com a Amazônia e os ritmos regenerativos da natureza.”

Odorico Mendes, tataravô de Regina, traduziu Virgílio e Homero. Na década de 1840, se exilou em Paris, onde estava seu amigo e poeta Gonçalves Dias. Eles decidiram voltar juntos para o Brasil, mas ocorreu uma fatalidade. “Meu tataravô morreu de tuberculose num trem em Marselha e o navio de Gonçalves Dias naufragou nas costas do Maranhão. Os dois estavam fadados à morte. Haroldo de Campos considerava a tradução dele a melhor já publicada.” Com fortes certezas culturais, históricas e afetivas, nessa instalação Regina homenageia de uma só vez a tradição poética da humanidade, o romance gerado por Gilgamesh e o tataravô.

A utopia contida nos trabalhos da artista amplia os limites do possível, como na instalação Deus dá nozes a quem não tem dentes, apoiada num dito com timbres da cultura popular muito falado entre os que se sentiram rejeitados pela sorte, ou a tiveram e não souberam aproveitá-la. Dezenas de nozes pintadas de dourado, simbolizando a riqueza, instaladas no piso da galeria, formam um tapete diante da frase escrita na parede, como se fosse um altar, uma alegoria presente não como organização da totalidade, mas como sintaxe de fragmentos.

Em outra obra, trabalhando uma estrutura ficcional narrativa, Regina apresenta Golias, uma instalação que nasce de um desenho realizado em 1985, quando ela e o marido deixavam Nova York para Bill Lundberg assumir o convite para ensinar na Universidade do Texas, em Austin. “Nesse ínterim fiz esses desenhos sobre os mitos amazônicos e essa tartaruga que acabei materializando em uma instalação na galeria Woman in the World, no Texas, que só expunha mulheres.” A artista sempre investiu no que considera importante, desde o material utilizado até o deslocamento físico. Suas obras são potencializadas pelas descobertas e desejos pessoais. A tartaruga, vinda de uma tribo indígena, ganha potência de ninja, recebe o nome de Golias, puxa cordas, que são cordas de um estilingue gigante que atravessa a galeria. Do outro lado da peça, uma grande pedra é enlaçada por essas cordas. O que desloca esse espírito de um lugar do campo intelectual para o outro é a imaginação.

Sobre o cenário da tartaruga, o teto da galeria exibe um olho pintado por Picasso, que é o olho dele. Nessa ficção narrativa, a tartaruga Golias desafia o gigante Picasso que o pintor se tornou. “A exemplo da tela Les Demoiselles d’Avignon, ele só pegou o invólucro africano, quer dizer, as dançarinas, sem se interessar pelo significado, conteúdo e simbologia das imagens daquelas mulheres e das narrativas nelas contidas. Picasso é o próprio colonizador que se apropria de uma cultura nativa. A tela Les Demoiselles d’Avignon hoje daria para resolver muitas dívidas de alguns países africanos. A cultura ocidental é uma cultura muito oportunista, que começa pelo descobrimento – que não foi descobrimento, foi uma invasão e usurpação das terras dos povos originários para gerar lucro aos europeus.” O otimismo não é um ponto destacado do discurso da artista sobre a história oficial. “Hoje tentam se redimir e começam uma releitura de vários episódios históricos, mas nem por isso vejo melhoras na situação dos indígenas ou dos afrodescendentes.”

A artista passou a se interessar pelas culturas arcaicas desde criança, quando teve a curiosidade de entender o tempo. “Um tempo para você é uma coisa, para um astronauta é outra completamente diferente.” Com essa reflexão ela entrou nessa ancestralidade para perguntar a eles o significado do tempo. “A tartaruga tem tudo a ver com isso, ela é um ser cósmico, é um sol que corre com a lua, é o dia que corre com a noite. E, na cultura afro-brasileira tem o Deus Tempo, que Caetano cantou: ‘Tempo, tempo, tempo, tempo’, que é uma bandeira branca.” 

Regina pode mudar de territórios, cidades, continentes, mas sempre carrega dentro dela essa acumulação primitiva, a formação primeira de artista/ecologista, ativista/antropóloga afetada por uma humanidade em franca decadência. “Nossa vida é um repositório de experiências que depois se transmudam no trabalho que fazemos e se torna uma antena para o universo. Você também recebe as coisas, eterniza com o teu tempo, o chamado Zeitgeist (espírito da época) dos alemães. Quer dizer, tudo é divino e misterioso.”

“Encontros Ameríndios” no Sesc Vila Mariana; assista ao vídeo

Obra exposta em ENCONTROS AMERÍNDIOS

*Por Coil Lopes e Marcos Grinspum Ferraz

Em cartaz no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, a mostra Encontros Ameríndios reúne obras de povos dos mais diversos cantos do continente americano, da América do Norte à do Sul, passando pela Central. Na exposição, com curadoria de Aristoteles Barcelos Neto e coordenação de Sylvia Caiuby Novaes, estão expostas a produção dos povos Haida e Tahltan (Canadá), Guna (Panamá), Shipibo Konibo (Peru) e Huni Kuin (Brasil).

“Uma característica desses povos ameríndios é a de não diferenciar coisas que nós consideramos como esferas separadas: ética, estética e moral. Então aquilo que é esteticamente belo é porque é eticamente correto e moralmente é o certo”, ressalta Cauybi. Assista abaixo o vídeo completo:

Encontros Ameríndios no Sesc Vila Mariana
Coordenação: Sylvia Caiuby Novaes
Curadoria: Aristoteles Barcelos Neto
De 31 de julho de 2021 a 13 de fevereiro de 2022
Visitação gratuita com agendamento no portal do Sesc-SP (clique aqui)
Sesc Vila Mariana – Rua Pelotas, 141, São Paulo