“Discutir a arte e a cultura é missão árdua, ainda que a Constituição Federal brasileira, promulgada em 1988, traga em suas linhas a previsão de que se trata de direito garantido”, afirma a Comissão de Direito das Artes da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil Seção São Paulo) na introdução do seu novo livro O Direito das Artes, uma visão jurídica da cultura, disponibilizado online de forma gratuita.

Capa do e-book "O Direito das artes: uma visão jurídica da cultura"
Capa do e-book “O Direito das artes: uma visão jurídica da cultura”

Logo no primeiro capítulo do e-book, a presidente da comissão, Cindia Regina Moraca, observa: “O preconceito, o conservadorismo e o desconhecimento da importância da cultura e da arte como agentes de educação são os principais motivos que vêm dizimando a história cultural brasileira e, principalmente, o acesso às políticas públicas de fomento e incentivo à cultura e às artes”. É com o objetivo de combater a desinformação e com a intenção de ampliar o acesso a todo tipo de conhecimento que se origina na cultura e nas artes que surge a proposta deste livro. Antes disso, Cindia conta que a comissão se reúne para debater os temas da atualidade, promover encontros com grupos, órgãos e entidades que atuam nesse setor, no sentido de colaborar com o entendimento do papel da advocacia nas relações permeadas por cultura e artes.

Seguindo a introdução da presidente, a coletânea de artigos retoma cronologicamente à reabertura política e à Constituição Federal de 1988. Sobre ela, Rodrigo Guimarães Buchiniani destaca a inovação ao estabelecer o dever de garantir o pleno exercício por artistas e público dos direitos culturais de acesso às fontes da cultura, incentivo, valorização e difusão das manifestações de diversos grupos participantes do processo civilizatório nacional. “O texto normativo, ao conceituar o patrimônio cultural brasileiro, esclarece que pode ser constituído de bens de natureza material e imaterial desde que tombados por procedimento específico para serem reconhecidos como portadores de referência à identidade, à ação, à memória, às formas de expressão, aos modos de criar, fazer e viver e às criações artísticas”, aponta.

Mais à frente, no capítulo 4 do livro, Iago Camilo Fernandes de Sousa se desdobra justamente sobre o tema do patrimônio cultural, fornecendo uma breve explicação da relação entre a sua proteção e o direito internacional. Iago assinala que no artigo primeiro da Carta das Nações Unidas, entre os problemas internacionais que merecem atenção e cooperação internacional são listados aqueles de caráter cultural, junto aos econômicos, sociais e humanitários. “A cultura enquanto valor ganha tamanha relevância que um dos objetivos da entidade é que os Estados e demais organismos cooperem para lidar com questões culturais”, escreve. “E nesse sentido, um dos caminhos é a proteção do patrimônio como corolário do desenvolvimento, emancipação e preservação da identidade dos povos”, adiciona Iago. No mesmo capítulo, o advogado explica o papel da UNESCO nessa seara e lista alguns acontecimentos de relevância ao longo dos anos que ajudaram a reconhecer a gravidade da preservação cultural. Entre eles a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, adotada na Conferência Geral da UNESCO de 2003.

“A aprovação desta Convenção levou em conta os efeitos do processo de globalização e de transformação social e a consequente necessidade de se criarem condições, através de compromissos assumidos entre os Estados, de salvaguardar o patrimônio imaterial enquanto vontade universal”. Reconhecendo, por exemplo, que comunidades, grupos e indivíduos desempenham um importante papel na produção, salvaguarda, e manutenção desse patrimônio.

O capítulo seguinte complementa e expande a discussão sobre patrimônio imaterial iniciado na seção anterior do livro. Nele, Marjorie Prado Junqueira de Faria frisa que há instrumentos de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, leis que os resguardam, e questiona: “O que falta para evitar a estética do apagamento no território?”. Ela ressalta a urgência do debate sobre instrumentos processuais jurídicos de prevenção ao desaparecimento de manifestações culturais tradicionais “de modo a evitar atos lesivos a esta geração e às próximas”. Memória é a identidade em ação, como ela aponta.

Partindo para o campo comercial, Tais Capito e Luiz Guilherme Veiga Valente abordam o direito da propriedade intelectual e a aproximação entre o mundo da arte e das marcas comerciais, do qual eles fazem o alerta que é preciso observar determinados cuidados do ponto de vista jurídico. “Legalmente, marcas e obras artísticas (sejam pinturas, esculturas, livros ou filmes) são protegidas por tipos diferentes de Propriedade Intelectual: respectivamente, o Direito Marcário e os Direitos Autorais. Cada regime tem suas próprias regras, escopos e limitações”, afirmam. Desse modo, o artigo visa informar tanto empresas como artistas quanto aos direitos que lhes cabem sobre suas respectivas marcas e obras, bem como os cuidados para se evitarem violações aos direitos de terceiros.

“Considerando-se a possibilidade quase infinita de reprodução de exemplares de uma mesma obra (especialmente no cenário digital), os Direitos Autorais são um mecanismo para atribuir ao autor uma forma de controle, tanto do ponto de vista econômico, como do conteúdo, sobre sua criação”, explicam. E chamam atenção para o artigo 24 da Lei de Direitos Autorais: “Nesse sentido, ela assegura ao criador as prerrogativas de ter a autoria atribuída (ou omitida, se assim quiser) à obra; de opor-se à atribuição de autoria a terceiros que não o criador; de manter a integridade da criação; de modificá-la; de conservar seu ineditismo, de tirá-la de circulação e de ter acesso a exemplar único e raro”.

Ao considerar os direitos culturais dentro do mercado, o e-book não deixa de abordar a relação dos artistas com as galerias, a evicção e os riscos decorrentes da informalidade nessa associação. No capítulo 6, Gustavo do Abiahy Carneiro da Cunha Guerra indica que: “Quando há a iniciativa para a formalização da relação, ela costuma partir do galerista, o que não é de todo uma surpresa, por ser este o agente habituado ao ambiente negocial, e não o artista. Mas pela mesma razão, os galeristas menos organizados costumam manter relacionamentos com grande informalidade e até mesmo de maneira não transparente com alguns de seus artistas. Nesses casos, maior será a informalidade quanto menos famoso for o artista em questão”.

Para Gustavo, a não habituação do artista no ambiente negocial pode vir de uma certa imagem pejorativa do artista preocupado com a comercialização ou com os lucros das suas obras. “Parece haver muito mais valor naquela arte que não tem finalidade lucrativa ou comercial, como se fosse uma arte mais autêntica ou mais pura, talvez pela suposição de que se trate de uma expressão artística livre de influências.” O autor aponta que embora a obra artística não tenha como objetivo ser lucrativa, evitar o diálogo transforma o aspecto comercial das obras em um grande tabu. Para ele é indispensável que a natureza da relação entre artista e galerista seja delimitada: “O galerista se responsabilizará por algum dos custos do artista? Se não dos materiais como tintas e telas, ao menos do transporte das obras? A quem incumbe contratar seguros? Quem as inscreverá em prêmios, concursos, exposições e editais? Caso a obra seja vitoriosa em alguma dessas iniciativas, como se dará a divisão dos resultados?”. Essas questões podem parecer pequenas no início de qualquer relação, mas sua importância se mostra conforme o tempo passa e a parceria se desenvolve, ele afirma.

Ainda, em O Direito das Artes, uma visão jurídica da cultura, se fala sobre os direitos dos autores quando há adaptações da literatura para o audiovisual. Já o artigo que fecha a coletânea da OAB, escrito por Guilherme Genestreti, aborda a regulação dos serviços de streaming, que também leva em consideração a preservação de locais de cultura como os cinemas de rua e a necessidade ou não de uma cota para produções nacionais nas plataformas desses serviços. “Se outros setores da economia brasileira, como o alimentício e o automobilístico, encontram proteção diante da concorrência com o equivalente estrangeiro, por que motivo ficaria de fora o audiovisual, que é uma indústria que estampa na tela a identidade brasileira?”, questiona o autor.

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