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“Completely Knocked Down”: Bremen e Recife em mostra experimental

CKD - Completely Knocked Down
À esquerda, Cartema de Aloísio Magalhães; à direita, obra de Wolfgang Heike. Foto: Divulgação

Ao priorizar combinações espontâneas de pensar arte, a exposição CKD – Completely Knocked Down – Recife Bremen Connection, em cartaz até 11 de dezembro no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (MAMAM), coloca em pauta atitudes experimentais no uso do espaço. Com curadoria dos jovens Francisco Valença Vaz e Rebekka Kronsteiner, o evento colaborativo entre as duas cidades portuárias conta com cinco artistas brasileiros e quatro artistas alemães. Com o enigmático título CKD, que em tradução livre quer dizer “completamente desmontado”, a exposição tem a maioria das obras executada diretamente dentro das próprias embalagens em que foram transportadas, que se transformam em arte. “Um dos conceitos da mostra”, explica Francisco Vaz, “era trazer ao Brasil pedaços de alguma coisa, não uma obra pronta”. O grupo prioriza a alegria do fazer, e sua primeira ação ao chegar foi colocar o contêiner que transportava os materiais no Marco Zero do Recife. Dentro dele encaixaram um barco onde realizaram a primeira reunião de trabalho. Francisco Vaz comenta que a partir daquele momento, “todas as decisões foram tomadas em conjunto e todos éramos curadores”.

Cada artista recebeu uma caixa de madeira que representa a vigésima parte do contêiner marítimo. Um processo intenso e de curto tempo de realização das obras potencializou um clima de cooperação, onde resíduos e objetos coexistiram, gerando proposições que sublinham o aspecto sensorial dos materiais. O público pode acompanhar tudo de perto e entender o conceito de montagem ou desmontagem dos trabalhos de Paulo Bruscky, Marcio Almeida, Maria do Carmo Nino, Silvio Hansen e Francisco Valença Vaz, de Recife; e Christian Haake, Wolfgang Hainke, Tobias Heine e Rebekka Kronsteiner, de Bremen (Alemanha). A exposição, prevista para 2020, com 21 dias para a realização das obras, teve o cronograma alterado por conta da pandemia. Os alemães ficaram uma semana, fizeram os trabalhos e voltaram com a chegada da Covid-19. A mostra, que foi retomada em 2021, tem texto de apresentação assinado por Moacir dos Anjos, que toca no tema da impermanência.

O que move a coletiva, tão heterogênea quanto experimental, é o cruzamento entre as narrativas e as utopias. Os trabalhos, de modo geral, são híbridos e têm uma estreita relação com os materiais. Arte em Vão, de Paulo Bruscky, um tapete vermelho com a frase citada, colocado entre batentes de uma porta, conflui para o espaço estético interpenetrando ilusoriamente o interno/externo. A instalação, de linguagem aparentemente simples, é complexa e se abre a outras problemáticas críticas já contidas na obra do artista. Quase todos os trabalhos têm dimensões variáveis e, portanto, são facilmente adaptáveis a outros espaços. Depois do Recife todas seguem para Bremen, como obras ou fragmentos delas, e se transformam em novos experimentos.

Entre os alemães destaca-se Wolfgang Hainke, 76 anos, com muito a contar de suas militâncias na arte, algumas delas vividas no grupo Fluxus. Um de seus trabalhos sugere uma espécie de coluna que dialoga com os Cartemas (composições visuais modulares, no caso feitas de cerâmica) do designer Aloísio Magalhães, que ocupa uma das paredes do MAMAM. Ainda há uma caixa na qual Hainke trabalha desde 1991 e que acaba de doar ao museu, com trabalhos do poeta Emmett Williams (do Fluxus) e de Richard Hamilton. Completam a instalação objetos como imagens do 11 de Setembro e da queda do Muro de Berlim, episódios em que ele esteve presente. Entre os livros se encontra Os Sertões, de Euclides da Cunha, com tradução de Bertholt Zilly – premiada na Alemanha e no Brasil -, que ensinou literatura brasileira na Universidade Livre de Berlim. Ainda está na mostra a pintura superdimensionada de um peixe, restaurado por Hainke que pertenceu à prefeitura de Bremen por quase cem anos.

Contemporâneo dele, o brasileiro Silvio Hansen, que militou na arte postal, preso político durante a ditadura militar, trabalhou para a exposição, mas morreu antes que ela fosse concretizada. Alguns de seus trabalhos denunciam episódios da violência imposta à democracia brasileira.

A arte de hoje capta a violência produzida pela sociedade, não importa o país. Sobre o mesmo chão de estrelas, de Marcio Almeida, pertence à matriz dos trabalhos políticos do artista e exibe placas de alvos retirados de um Clube de Tiro. A dramática origem desse material ativa a imaginação do espectador preocupado com a truculência das cidades. Ainda dele, Patuá Platz nasce dentro da arquitetura de sua caixa, que sustenta uma rede vermelha, símbolo do ócio experimental impregnado de impermanências territoriais, políticas e amorosas. A instalação se alimenta de plantas de proteção como espada de São Jorge e arruda. Ao alcance da mão ostenta a jureminha, bebida indígena feita de jurema, raiz alucinógena.

O imaginário às vezes é mais forte que a realidade: o jovem Tobias Heine, mesmo antes de viajar ao Brasil, antecipou o que encontraria por aqui. Leu A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, pesquisou imagens do Recife e, ao chegar, fez um vídeo registrando o trajeto entre Olinda e Recife, que projetou em sua sala. Heine se inteirou das magias do candomblé, se deixou influenciar pelas cores de Exu e as introduziu em sua instalação ao colocar camisas branca e preta sobre cadeiras vermelha e preta.

Obra de Tobias Haine em “CKD – Completely Knocked Down”, no MAMAM. Foto: Roberta Guimarães

Mesmo sendo o idealizador e curador da Completely Knocked Down, Francisco Vaz, que se formou na Universidade de Bremen e hoje vive em Viena, não sabia o que fazer quando chegou ao museu. Dentro de seu conceito, criou em cima da hora Tramontana, um mural realizado com placas de isopor reciclado, retiradas do correio da cidade. Foram dezenas de peças que subiram pelas paredes. “Depois de fixadas fiz uma pintura com tinta spray que contém acetona e encolhe o isopor.” O resultado da obra são gestos minimalistas, quase uma caligrafia grafada em amarelo e preto. “Quando esses pedaços forem para Bremen quero jogá-los numa piscina de acetona e diminuí-los até chegar a uma chapa de dois centímetros”.

Ainda em Recife, Maria do Carmo Nino comprimiu tudo o que pôde de seu imaginário em sua caixa, transformada em porto seguro para suas referências de vida, uma espécie de memorial de sua história acadêmica. Ligada à literatura, “grafitou” textos em diferentes ritmos existenciais. Numa outra ponta de pensamento, a enigmática obra de Rebekka Kronsteiner, de apenas 25 anos, parece premonitória da pandemia. Seu inventário é composto por imagens de luvas cirúrgicas e camisinhas impressas sobre tela, objetos que impedem o contato físico, sobre as quais derramou látex exportado do Brasil, se reportando às possíveis imobilidades impostas ao ser humano. A obra foi realizada dias antes do lockdown ser decretado no país e, talvez, seja a primeira a se aproximar do tema, mesmo que por acaso.

SERVIÇO

CKD – Completely Knocked Down – Recife Bremen Connection
ONDE:
MAMAM | R. da Aurora, 265 – Boa Vista, Recife – PE
QUANDO: Em cartaz até 11 de dezembro de 2021, de terça a sábado, das 12h às 17h
Entrada gratuita

The sensitive form

Julio Villani. Photo: Hélio Campos Mello

Julio Villani left Brazil a long time ago, always in search of images, forms, ideas that would bring him food for his curiosity. She left Marília, in the interior of São Paulo, to England, where she studied at Watford School of Art; and settled in Paris, where he attended the École Nationale des Beaux-Arts, and stayed there since the 1980s.

It is as if he had built a vessel of himself and in it was putting brushes, lines, words, algorithms, indigenous geometry, indignations and loves. He is a prospector and, with his luggage, is always crossing borders. That gives samba.

Thus, he has painted and embroidered linens, worked and reworked ancient iconographic images bringing up traces of artistic movements, from modernism to avant-garde. Villani had the opportunity to follow closely one of the richest moments in the history of art of the 20th century, both European and Brazilian avant-garde.

His sculptures, playful and irreverent, bring traces of the readymade, but also of the concrete poets, of the works of Harold and Augusto de Campos, who built them laying words thin a nonlinear way, in order to find a shape in the support of the page. In this case, Villani builds them in a collage that uses the material of his mining: a triangular kettle that inspires the body of a bird and whose body he completes with the lightness of wire; a snake mounted from a tape measure; a turtle created from a steel shovel; a pot, a portrait. Everything is experimental and the result is an original and poetic work.

Producing for exhibitions from the 1980s until today, Villani went through MAC-USP, MAM-SP, Oscar Niemeyer Museum of Curitiba, Museo del Barrio de New York, Habitat Center of New Delhi, Maison de l’Amérique Latine in Paris; and made several individuals in institutions such as Sesc-SP and in the galleries that represent him, Galerie 1900-2000 and Galerie RX, both from Paris, and the Brazilian galleries Estação and Raquel Arnaud. Villani never stopped working.

Currently, he launches his new website, Julio Villani, D’ICI, DE LÀ (julio-villani.com), and sets up his next exhibition at the GALLERY RX & Slag Galleries, Paris, with a new branch in Chelsea, New York, where he presents, from December 9 to January 22, 2022, the show Julio Villani, Conflicting Perspectives. There are about 20 works, where the line and color are permanently in tension. “If only one were to be missing, he says, the whole building could collapse,” says the text of the catalogue. “There is a conflict between escape lines and perspectives that I think is symptomatic of what I am – are we all? – living today”, confesses the artist, thus revealing the choice of the title of the exhibition.

✱ Clique aqui para ler a matéria em português 

A forma sensível

Foto horizontal, colorida. Julio Villani veste uma camisa branca e um casaco cinza. Está em seu ateliê, ao seu redor algumas obras e um papagaio.
Julio Villani. Foto: Hélio Campos Mello

Julio Villani saiu do Brasil há muito tempo, sempre em busca das imagens, das formas, das ideias que lhe trouxessem alimento para sua curiosidade. Saiu de Marília, no interior de São Paulo, para a Inglaterra, onde estudou na Watford School of Art, de Londres; e se estabeleceu em Paris, onde frequentou a École Nationale des Beaux-Arts, e lá ficou desde os anos 1980.

É como se tivesse construído uma embarcação de si mesmo e nela fosse colocando  pincéis, linhas, palavras, algoritmos, geometria indígena, indignações e amores. Ele é um garimpeiro e, com sua bagagem, está sempre atravessando fronteiras. Isso dá samba.  

Assim, já pintou e bordou linhos, trabalhou e retrabalhou imagens iconográficas antigas trazendo à tona traços de movimentos artísticos, do modernismo às vanguardas. Villani teve a oportunidade de acompanhar de perto um dos momentos mais ricos da história da arte do século 20, tanto das vanguardas europeias quanto das brasileiras.

Suas esculturas, lúdicas e irreverentes, trazem vestígios do readymade, mas também dos poetas concretos, das obras de Haroldo e Augusto de Campos, que as construíam com palavras que iam dispondo não linearmente, de modo a encontrar uma forma no suporte da página. No caso, Villani as constrói numa colagem que se utiliza do material da sua garimpagem: uma chaleira triangular que lhe inspira o corpo de um pássaro e cujo corpo completa com a leveza de arames; uma cobra montada a partir de uma trena de madeira; uma tartaruga criada a partir de uma pá de aço; uma panela, um retrato. Tudo é experimental e o resultado é uma obra original e poética. 

Produzindo para exposições desde os anos 1980 até hoje, Villani passou pelo MAC-USP, MAM-SP, Museu Oscar Niemeyer de Curitiba, Museo del Barrio de Nova York, Habitat Center de Nova Delhi, Maison de l’Amérique Latine em Paris; e fez diversas individuais em instituições como o Sesc-SP e nas galerias que o representam – a Galerie 1900-2000 e a Galerie RX, ambas de Paris, e as brasileiras Estação e Raquel Arnaud. Villani nunca parou de trabalhar.

Atualmente, lança seu novo site, Julio Villani, D’ICI, DE LÀ (“daqui e dali”, em tradução livre), e monta sua próxima exposição na RX & Slag Galleries, de Paris, com nova sucursal no Chelsea, em Nova York, onde apresenta, do dia 9 de dezembro a 22 de janeiro de 2022, a mostra Julio Villani. Perspectiva em conflito. São cerca de 20 obras, nas quais a linha e a cor estão permanentemente em tensão. “Se apenas uma viesse a faltar, costuma ele dizer, todo o edifício poderia ruir”, diz o texto do catálogo. “Há um conflito entre linhas de fuga e perspectivas que eu acho sintomático do que estou – estamos todos? – vivendo atualmente”, confessa o artista, revelando assim a escolha do título da exposição.

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Festival Varilux 2021: confira destaques

"Titane" de Julia Ducournau. Foto: Divulgação.

O Festival Varilux de Cinema Francês segue até quarta-feira, dia 8 de dezembro, incluindo 50 cidades brasileiras em sua itinerância. Um local especial de exibição será a tenda Varilux no Parque Lage, com projeção ao ar livre, sendo esse o único lugar em que será possível assistir Titane, de Julia Ducournau, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2021. Para a sessão do longa, no sábado, 4, às 22h25, o ingresso pode ser comprado na bilheteria da tenda ou com antecedência no site do festival (clique aqui).

Na programação do Festival Varilux 2021 – considerado o evento mais consolidado de filmes franceses fora da França – há uma variedade de gêneros, do drama à comédia, da animação ao documentário, e ainda a exibição de dois clássicos e uma mostra especial em homenagem ao ator Jena Paul-Belmondo, falecido em setembro deste ano.

A arte!brasileiros destaca algumas obras para não perder. Confira nossa lista:

Still de "Travessia". Foto: Divulgação Festival Varilux.
Still de “Travessia”. Foto: Divulgação.

A Travessia
Dir.: Florence Miailhe

Sinopse: Uma aldeia saqueada, uma família em fuga e duas crianças perdidas nos caminhos do exílio… Kyona e Adriel tentam escapar daqueles que os perseguem para chegar a um país com um regime mais brando. Durante uma jornada que os levará da infância à adolescência, eles passarão por muitas provações envoltas em um misto de fantasia e realidade para chegar ao seu destino.

Sessões disponíveis: clique aqui.

Still de "Enquanto vivo". Foto: Divulgação.
Still de “Enquanto vivo”. Foto: Divulgação.

Enquanto Vivo
Dir.: Emmanuelle Bercot

Sinopse: Um homem condenado cedo demais por uma doença. O sofrimento de uma mãe diante do inaceitável. A dedicação de um médico e de uma enfermeira para acompanhá-los num caminho impossível. Ao longo das quatro estações de um ano eles terão que lidar com a doença, domesticá-la, e compreender o que significa morrer enquanto vive.

Sessões disponíveis: clique aqui.

Still de "Paris, 13º Distrito". Foto: Divulgação Festival Varilux.
Still de “Paris, 13º Distrito”. Foto: Divulgação.

Paris, 13º Distrito
Dir.: Jacques Audiard

Sinopse: Paris, 13º arrondissement, bairro de Olympiades. Emilie encontra Camille, que se sente atraído por Nora, que acaba cruzando caminhos com Amber. Três garotas e um garoto. Eles são amigos, às vezes amantes, frequentemente os dois.

Sessões disponíveis: clique aqui.

Still de "As coisas da vida". Foto: Divulgação.
Still de “As coisas da vida”. Foto: Divulgação.

As Coisas da Vida
Dir.: Claude Sauted

Sinopse: Pierre (Michel Piccoli), arquiteto na faixa dos 40 anos, sofre um grave acidente de carro. Arremessado para fora de seu veículo, em estado de coma à beira da estrada, tem flashbacks do passado e das duas mulheres de sua vida: a ex-mulher Catherine (Léa Massari), com quem tem um filho, e Hélène (Romy Schneider), com quem vive um conturbado relacionamento.

Sessões disponíveis: clique aqui.

Foto do elenco de "Está tudo bem". Foto: Divulgação Festival Varilux.
Foto do elenco de “Está tudo bem”. Foto: Divulgação.

Está tudo bem
Dir.: François Ozon

Sinopse: Emmanuèle, romancista realizada na sua vida privada e profissional, se dirige ao hospital onde o seu pai, André, acaba de sofrer um AVC. Fantasque, apaixonado pela vida, porém cansado, pede à sua filha para ajudá-lo a acabar com isso. Com a ajuda de sua irmã Pascale, ela terá que escolher: aceitar a vontade de seu pai ou convencê-lo a mudar de ideia.

Sessões disponíveis: clique aqui.

Van Abbemuseum coloca León Ferrari e Gülsün Karamustafa em diálogo

Gülsün Karamustafa, "Mermaid", 1986. Foto: Cortesia da artista

León Ferrari nasceu em 1920 em Buenos Aires, Argentina. Gülsün Karamustafa, em 1946 em Ankara, Turquia. Apesar de virem de diferentes cantos do mundo e apresentarem histórias e linguagens expressivas distintas, é possível encontrar pontos de diálogo entre os dois artistas. Inaugurada no último dia 27 de novembro no Van Abbemuseum (Eindhoven, Holanda), a exposição Parallel Lives, Parallel Aesthetics (Vidas paralelas, estéticas paralelas, em tradução livre) traz à tona essas convergências e cruzamentos entre o trabalho e a vida de Ferrari e Karamustafa.

Ambos ficaram conhecidos por suas posturas contra governos autoritários, que dificultam a liberdade de expressão. Karamustafa se debruça até hoje sobre as relações homem-mulher em uma Turquia em transformação e reflete sobre a perda do clima multicultural de Istambul. Ferrari, falecido em 2013, respondia à influência da civilização cristã ocidental na América do Sul e na ditadura na Argentina.

Para estabelecer os diálogos e ao mesmo tempo revelar as particularidades, Parallel Lives, Parallel Aesthetics combina duas exposições solo. After the Cosmopolis (Depois da Cosmópolis, em tradução livre) traz uma visão geral da obra da artista turca, contando também com trabalhos feitos especialmente para a individual. Em 2022, após o fim da temporada no Van Abbemuseum, a mostra deve ser exibida no Lundskonsthall, em Lund (Suécia). Já Kind Cruelty (Crueldade bondosa, em tradução livre) é uma retrospectiva que abrange a vida e a obra de Ferrari, em comemoração ao centenário do artista argentino. Incluindo peças inéditas, a exposição esteve em cartaz no Museo Reina Sofia, em Madri (Espanha) em 2021, e seguirá para o Centre Pompidou, em Paris (França) no verão de 2022.

Com curadoria de Charles Esche, Andrea Wain e Julieta Zamorano, Parallel Lives, Parallel Aesthetics fica em cartaz até 13 de março de 2022. As mostras que a compõem são as primeiras grandes individuais dos artistas na Holanda e fazem parte de um projeto do Van Abbemuseum que busca levar ao país figuras de renome internacional.

Flip 2021: Confira destaques da programação

Destaques Flip 2021
Da esquerda para a direita: Itamar Vieira Junior, Ailton Krenak e Alice Walker. Foto: Divulgação Flip.

Na sua 19ª edição este ano, a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) traz dezenove encontros que serão transmitidos pelo YouTube da Festa, como também parte de sua programação – as mesas dos finais de semana – será exibida pelo canal Arte1. Todo o eixo temático da Festa de 2021 foi delineado pelo coletivo curatorial no texto “Nhe’éry, Plantas e Literatura” que pode ser lido na íntegra aqui. A cargo da organização do evento estão Hermano Vianna, antropólogo e coordenador desta edição; Anna Dantes, colaboradora da Escola Viva Huni Kuin há mais de dez anos e uma das fundadoras do Selvagem – Ciclo de estudos sobre a vida; Evando Nascimento, escritor e filósofo, pioneiro na reflexão sobre literatura e plantas no Brasil; João Paulo Lima Barreto, Tukano do Alto Rio Negro, doutor em antropologia social pela Universidade Federal do Amazonas e fundador do Centro de Medicina Indígena em Manaus; e Pedro Meira Monteiro, professor da Princeton University e um dos organizadores da oficina Poéticas Amazônicas, no Brazil LAB da Universidade.

Confira a seguir alguns destaques na programação da Flip 2021:

Sábado, 27 de novembro

16h | MESA 1: Nhe’éry Jerá (Abertura)

Cerimônia Guarani, Carlos Papá e Cristine Takuá

Nhe’éry (pronuncia-se nheeri) é como o povo Guarani chama a Mata Atlântica, uma denominação que revela a pluralidade da floresta. Segundo o ensinamento do cineasta e liderança do povo Guarani Mbya, Carlos Papá, Nhe’éry quer dizer “onde as almas se banham”. E se purificam. “Jerá” quer dizer, neste contexto, desabrochar. A Flip 2021 fala da relação entre literatura e plantas a partir de Nhe’éry. Em sua abertura, representantes do povo Guarani da região fazem uma cerimônia, com rezas e cantos, abrindo e protegendo os caminhos da Nhe’éry e dando permissão para a entrada da Flip em seu território sagrado. Tudo realizado na Praça da Matriz, onde havia uma aldeia indígena antes da fundação da cidade. Os povos originários que ali habitavam, e hoje resistem na região, voltam a ocupar, com suas palavras e rituais, o Centro Histórico.

Domingo, 28 de novembro

16h | Mesa 3: Naturalismo e violência

David Diop e Micheliny Verunschk

Mediação: Milena Britto é professora no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia

Há muito em comum entre os mundos criados por Micheliny Verunschk e David Diop em seus romances mais recentes. Em O som do rugido da onça, a escritora pernambucana evita a historiografia hegemônica e parte da vida curta de Iñe-e e Juri, crianças indígenas arrancadas de suas terras por um naturalista europeu, para meditar sobre os vazios deixados pelo desterro e pela violência colonial. A porta da viagem sem retorno, do francês de ascendência senegalesa David Diop, faz a operação oposta. Em referência à Ilha de Gorée, um dos pontos centrais do comércio de escravizados no continente africano, o escritor reimagina a vida do botânico Michel Adanson, um homem do Iluminismo movido pelo projeto de formular uma grande enciclopédia dos seres vivos. Em ambos os livros, o leitor se vê diante de vidas ameaçadas pelo sonho de um progresso sem fim, que dilacera os corpos, rasga a memória e ameaça fazer com que as pessoas se esqueçam de si mesmas e de quem são.

Segunda, 29 de novembro

20h | Mesa 6: Árvores e escrita

Paulina Chiziane e Itamar Vieira Junior.

Mediação: Ligia Ferreira é pesquisadora e professora do programa de pós-graduação em Letras da Unifesp

Uma das mais importantes escritoras de língua portuguesa da atualidade, Paulina Chiziane recebeu há pouco o Prêmio Camões. Ela conta ter aprendido a escrever “debaixo de uma árvore”. No Brasil, apenas dois de seus romances foram publicados: O canto alegra da perdiz (2008), e Niketche (2002), sua obra mais conhecida. Na literatura de Paulina, gerações de mulheres se afirmam em meio às estruturas de uma sociedade tradicional marcada pelo colonialismo. Neste encontro, ela conversa com Itamar Vieira Junior, cujo Torto Arado é grande sucesso internacional e arrebatou leitores de todas as idades. Assim como em alguns relatos da escritora moçambicana, a história em diferentes tempos de Bibiana e Belonísia se passa em meio à violência de uma sociedade marcada pela herança da escravidão, mas sempre em volta de quintais e ervas que guardam segredos, memórias e experiências compartilhadas.

Quarta, 01 de dezembro

18h | Mesa 9: Fios de palavras

Cecilia Vicuña, Júlia de Carvalho Hansen e Leonardo Fróes

Mediação: Ludmilla Lis é escritora e mestre em estudos étnico-raciais

Nos anos 1970, o poeta carioca Leonardo Fróes foi morar num sítio na região de Petrópolis, onde se dedicou a cultivar e a refletir sobre plantas, e a escrever poemas relacionados à temática ambiental, tanto quanto a problemas demasiado humanos, como se pode atestar em sua Poesia reunida. O interesse sobre as plantas, animais e afins também comparece na obra de Júlia de Carvalho Hansen, poeta de uma geração mais jovem, em livros como Romã e Seiva veneno ou fruto. Nesta mesa, a escritora e o escritor brasileiro encontram-se com Cecilia Vicuña, artista e também poeta chilena que fez de seu trabalho uma plataforma de luta, na defesa aos direitos humanos ou na denúncia da destruição ambiental. Seu trabalho ganhou o Premio Velázquez e foi exposto na mais recente Documenta de Kassel. Uma de suas propostas se inspira nos quipus andinos, objetos feitos com fios e nós, que serviam para a contabilidade e para contar histórias. O encontro dos três ajudará a deslocar o antropocentrismo que relega os viventes não humanos, em particular os vegetais, a segundo plano. Nesse sentido, os “fios de palavra” (expressão de Carlos Papá, cineasta e liderança guarani no litoral de São Paulo) da poesia se entrelaçam aos fios das instalações da artista, num emaranhado que remete também aos cipós e lianas das florestas. Forma-se assim uma tessitura verbal-vegetal para cuidar da saúde planetária.

20h | Mesa 10 – Utopia e distopia

Margaret Atwood e Antonio Nobre

Mediação: Anabela Mota Ribeiro é escritora, jornalista e programadora cultural; pesquisa a obra de Machado de Assis

Margaret Atwood, autora de O Conto da Aia, já escreveu: “Ustopia é um mundo que criei combinando utopia e distopia – a sociedade perfeita imaginada e seu oposto – porque, a meu ver, cada uma contém uma versão latente da outra.” Como então diferenciar o distópico do utópico? Para responder a essa pergunta, nesta mesa Margaret Atwood conversa com Antonio Nobre, cientista que desenvolveu alguns dos principais estudos sobre as ameaças contra as florestas brasileiras e que, apesar dos dados assustadores, continua a lutar por uma “Matrix Utópica”. O que o melhor da imaginação literária pode aprender com os ensinamentos das plantas para manter a “latência distópica” sob controle?

Quinta, 02 de Dezembro

18h | Mesa 11: Botânicas migrantes

Djaimilia Pereira de Almeida e Elif Shafak

Mediação: Mirna Queiroz é jornalista, editora e curadora; fundou e é editora executiva da revista Pessoa

Em seu pequeno e denso romance A visão das plantas, um dos vencedores do prêmio Oceanos de 2020, Djaimilia Pereira de Almeida reescreve o final da vida do luso Capitão Celestino. O personagem foi um cruel pirata e traficante negreiro que, ao se aposentar, retornou a sua cidade natal, vivendo sozinho na casa da família e cuidando do jardim antes abandonado. É na tensão entre a crueldade de Celestino e o modo delicado como trata as plantas que a história propõe uma revisão das ações humanas ambivalentes. Já a turca Elif Shafak, em The Island of Missing Trees [A ilha das árvores desaparecidas], conta a história de amor proibido entre Kostas e Defne Kazantzakis, o primeiro cristão grego, a segunda muçulmana turca, e os conflitos que surgem daí. Um dos capítulos é narrado na perspectiva de uma figueira, expondo a violência colonial e os preconceitos veiculados e criticados no texto. Tanto no romance da angolana Almeida quanto no da turco-britânica Shafak estão em jogo os conflitos e os traumas que o colonialismo acarreta, tendo como uma de suas motivações narrativas o elemento vegetal: no primeiro caso um jardim português, no segundo uma figueira de origem cipriota.

20h | Mesa 12: Políticas vegetais

Kim Stanley Robinson e Eliane Brum

Mediação: Lucia Sá é professora de estudos brasileiros na Manchester University, na Inglaterra

Kim Stanley Robinson foi convidado pela organização da COP26 para acompanhar, com passe totalmente livre, as negociações que tentaram estabelecer um novo acordo internacional para evitar a catástrofe climática. Pode parecer tarefa estranha para um consagrado escritor de ficção científica, mas sua última obra literária, The ministry for the future (o “livro da década” segundo o músico/pensador Brian Eno), já é referência incontornável para muitas pessoas que decidem política ambiental no mundo todo. Na Flip, Kim Stanley Robinson conversa com Eliane Brum, que acaba de publicar Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo, seu relato sobre a batalha contra a catástrofe climática em curso na Amazônia. Como as políticas vegetais do presente podem nos guiar para a invenção de outros futuros possíveis?

Sábado, 04 de dezembro

18h | Mesa 16: Em busca do jardim

Alice Walker e Conceição Evaristo

Mediação: Djamila Ribeiro é filósofa, escritora e uma das principais vozes em defesa das mulheres e negros

Neste encontro histórico mediado pela filósofa Djamila Ribeiro, a escritora estadunidense Alice Walker dialoga com a mineira Conceição Evaristo. Uma das mais importantes vozes da literatura brasileira contemporânea, a autora de Ponciá Vicêncio se recolheu durante a pandemia num sítio em que acompanha o lento desenvolvimento das plantas. Grande admiradora de Walker, Conceição encontra agora a autora de A cor púrpura para uma conversa sobre literatura, política e jardins. O último livro de Alice Walker publicado no Brasil é Em busca dos jardins de nossas mães: Prosa mulherista.

20h | Mesa 17: Ouvir o verde

Alejandro Zambra e Ana Martins Marques

Mediação: Rita Palmeira é crítica literária, editora e curadora literária

Dois livros iniciais do consagrado escritor chileno Alejandro Zambra têm as plantas como catalisadoras ficcionais: Bonsai e A vida privada das árvores. Em ambos, os vegetais se associam metaforicamente a histórias de relacionamentos afetivos, que contam também sobre a ditadura de Pinochet. Em seu último livro, Poeta chileno, Zambra volta aos temas que marcaram sua escrita, incluindo-se aí a metáfora vegetal e um mapa de todas as babosas plantadas no bairro Maipú, em Santiago. Ana Martins Marques tem se notabilizado como autora de alguns dos mais belos poemas envolvendo plantas no cenário da poesia brasileira contemporânea. Um de seus títulos refere explicitamente essa temática: O livro dos jardins, dividido em duas partes. Na parte I, os textos descrevem e refletem poeticamente sobre cacto, dente-de-leão, rosa e girassol, entre outros assuntos. Já a parte II oferece “jardins textuais” a mulheres poetas, como a brasileira Orides Fontela, a norte-americana Sylvia Plath e a polonesa Wislawa Szymborska. Na literatura de Zambra e na de Marques, ouvir o verde se torna uma urgência politicamente existencial.

Domingo, 05 de dezembro

18h | MESA 19 – Cartografias para adiar o fim do mundo

Ailton Krenak e Muniz Sodré 

Mediação: Vagner Amaro é editor e fundador da Malê, especializada em literatura brasileira; é também escritor e bibliotecário 

Para encerrar esta edição da Flip, o encontro inédito entre Muniz Sodré e Ailton Krenak, que ao mesmo tempo produzem e comentam os mapas que vão nos orientar no enfrentamento dos cada vez maiores desafios brasileiros e mundiais. De um lado o autor de Pensar nagô e A sociedade incivil, do outro o autor de Ideias para adiar o fim do mundo e O amanhã não está à venda. No Brasil temos também o encontro entre os xamanismos indígenas e as religiões afro-brasileiras, com as plantas como principais mediadoras para suas respectivas tecnologias do êxtase, da cura, do conhecimento sobre o mundo. Sem folhas não há festa, não há vida, não há nada. Como fortalecer o aprendizado com o reino vegetal? Como construir uma rede de florestas e escolas? Acompanhando a conversa, trazendo também respostas, na videografia, haverá a apresentação dos mapas criados nas oficinas de cartografia dos povos indígenas Maxakali e Guarani. Novos mapas para novos mundos.

Vídeos com curadoria Flip na plataforma de streaming Tamanduá

Na plataforma de streaming Tamanduá, a Flip disponibiliza uma lista de documentários, filmes e séries que dialogam com sua programação. A lista completa contém 67 títulos e a Tamanduá disponibiliza 7 dias grátis para novos assinantes conhecerem o acervo. Clique para assistir.

 

Em conjunto com IPEAFRO, Inhotim traz ao público o Museu de Arte Negra

Abdias Nascimento, "Eternidade", 1972. Coleção Museu de Arte Negra - IPEAFRO.
Abdias Nascimento, "Eternidade", 1972. Coleção Museu de Arte Negra - IPEAFRO.

Ao marco dos dez anos do falecimento do artista plástico, ator, diretor, escritor e dramaturgo Abdias Nascimento, o Inhotim e o IPEAFRO (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros), instituição fundada por Abdias e que zela pelo seu legado, o homenageiam com uma ação de longa duração, o Museu de Arte Negra (MAN), aberto a partir de 4 de dezembro de 2021 até o final de 2023. Sediado dentro do próprio museu mineiro – localizado em Brumadinho – pelo período descrito, o MAN foi idealizado originalmente pelo Teatro Experimental do Negro sob a liderança de Abdias no início dos anos 1950. Ele nasceu com o objetivo de “recolher e divulgar a obra de artistas negros, sem distinção de gênero, escola ou tendência estética, promovendo-se, assim, a documentação de sua criatividade”, como explicou Abdias em entrevista para o Correio da Manhã.

"Invocação Noturna ao Poeta Gerardo Mello Mourão: Oxóssi" (1972). Cortesia Inhotim.
“Invocação Noturna ao Poeta Gerardo Mello Mourão: Oxóssi” (1972). Cortesia Inhotim.

A exposição será dividida em quatro atos, cada um com duração de cerca de cinco meses. O primeiro, exibido a partir de 4 de dezembro, traz o diálogo entre a obra de Abdias, Tunga e o acervo do MAN em um espaço que remete às origens do Inhotim: a Galeria Mata, situada próximo à Galeria True Rouge, uma das primeiras da instituição e que expõe de forma permanente a instalação homônima de Tunga. Seu pai, Gerardo Mello Mourão, foi um poeta que participou, na década de 1930, da Santa Hermandad Orquídea ao lado de Abdias e de outros escritores. Foi Gerardo, inclusive, que o indicou pela primeira vez ao prêmio Nobel da Paz, em 1978 – Abdias seria indicado novamente, em 2004, pela sociedade civil e autoridades brasileiras e, de forma oficial, em 2009. Assim, desde pequeno Tunga já convivia com o artista e era influenciado por sua obra.

Entre as cerca de 90 obras que serão apresentadas estão o quadro pintado por Tunga em 1967, aos 15 anos, para o acervo do MAN; Invocação Noturna ao Poeta Gerardo Mello Mourão: Oxóssi (1972), pintura que Abdias fez em homenagem ao amigo Gerardo e à memória dos poetas da Santa Hermandad Orquídea; e e a instalação Toro Condensed; Toro Expanded (1983-2012).

Tunga, "Toro Condensed, 1983; Toro Expanded", 2012. Foto: Daniel Mansur.
Tunga, “Toro Condensed, 1983; Toro Expanded”, 2012. Foto: Daniel Mansur.
Sobre a idealização do Museu de Arte Negra

Desde os anos 1940, Abdias Nascimento e seus companheiros do Teatro Experimental do Negro (TEN) trabalhavam com a proposta de valorização social do negro por meio da arte e da educação. Ao delinear um novo estilo estético e dramatúrgico, o TEN lançava as bases para a fundação do Museu de Arte Negra. Foi o TEN que, em 1950, no Rio de Janeiro, organizou o 1º Congresso do Negro Brasileiro, cuja plenária aprovou uma resolução sobre a necessidade de um museu de arte negra. O projeto foi assumido pelo grupo e assim nasceu o MAN. 

“Naquela altura, a representação do negro nos museus tradicionais aparecia em segundo plano e, em sua maioria, mediada pelo olhar do branco. Assim, era preciso romper com esse sistema representacional e tornar visível ao mundo a riqueza da cultura negra para o campo da arte”, explica Deri Andrade, curador assistente do Inhotim e pesquisador do Projeto Afro.

A exposição inaugural da coleção Museu de Arte Negra foi realizada em 6 de maio de 1968, no Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro. Após a abertura, Abdias ganhou uma bolsa de intercâmbio cultural para os Estados Unidos. Com a promulgação do Ato Institucional 5, em dezembro de 1968, na fase mais dura da ditadura civil-militar, Abdias se viu impedido de retornar ao país. 

“Esse infortúnio foi um obstáculo para o retorno de Abdias ao Brasil. Limitou as atividades do Museu de Arte Negra, mas não as do artista, que continuou produzindo e coletando obras durante o seu exílio”, comenta Elisa Larkin Nascimento, viúva de Abdias Nascimento e co-fundadora do IPEAFRO. “Assim, atualmente uma profusão de artistas nacionais e internacionais integram o acervo do MAN-IPEAFRO, contribuindo para o enriquecimento das narrativas curatoriais sobre a produção artística negra”, acrescenta.

Funcionamento

O  Inhotim  está funcionando de  quinta-feira a domingo  e em  feriados, com capacidade para  mil visitantes por dia.  A entrada é gratuita em toda última sexta-feira do mês, exceto em feriados, com o mesmo limite de público. A compra e retirada de ingresso  é realizada exclusivamente online  e  com  antecedência pela  Sympla. Em função dos protocolos de saúde, vale lembrar que  não está sendo feita  operação de venda de entradas na bilheteria do museu. 

O uso  obrigatório  de  máscara, por funcionários e visitantes, displays de álcool em gel distribuídos pelo parque e distanciamento entre as mesas nos pontos de alimentação seguem em vigência.  

Todas as orientações sobre compra de ingressos, os protocolos adotados e regras de visitação estão disponíveis  no site da instituição.

A escultura de Victor Brecheret: entre tradição e contemporaneidade

Brecheret
"A índia escondida por um grande peixe", 1947-1948, de Brecheret, pedra rolada pelo mar. Foto: Reprodução

Às vésperas das comemorações dos 100 anos da Semana de Arte Moderna, é importante refletir sobre a figura do escultor ítalo-brasileiro Victor Brecheret (1894-1955), profissional cuja obra aguarda reavaliações. Este texto atenta para o fato de que sua produção, de início, se estabeleceu entre as franjas da tradição e da modernidade e, já no final da vida, entre a modernidade e o contemporâneo.

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Nathalie Heinich, socióloga francesa especializada em arte, no livro El paradigma del arte contemporâneo. Estrucuturas de uma revolución artística [1], afirma que a arte tradicional, ou “clássica”, seria “uma representação figurativa ajustada aos cânones herdados da tradição”. Já a arte moderna, “a expressão da interioridade do artista, às custas da transgressão dos cânones clássicos e, portanto, a favor de um valor aprioristicamente dado à personalização, à inovação, à originalidade”. Por último, Heinich define a arte contemporânea como sendo aquela produção engajada na “transgressão dos critérios que delimitam aquela noção”, ou seja, a noção de arte moderna antes formulada[2].

Apesar do esquematismo das definições[3], elas proporcionam uma entrada para as questões que pretendo discutir. É certo, no entanto, que elas precisam de complementações e eu me encarregarei de realizá-las.

Quando nos referimos à arte tradicional, (ou à arte “clássica”, como prefere Heinich), falamos sobre a tradição da arte europeia que iria, grosso modo, de meados do século 14 até o final do século 19. Durante esses séculos, ali se desenvolveu um conceito de arte como uma espécie de duplo do real, pautado em prescritivas nas quais qualquer transformação somente era aceita enquanto acréscimo e nunca como ruptura[4]. A arte, então, assumiu uma função de exemplaridade e, pautada sobretudo na representação da figura humana – mais ou menos idealizada, (dependendo da época) –, seu papel era acionar no espectador certos sentimentos e reflexões que transcendessem sua própria materialidade. A arte era assim instrumentalizada para transmitir ensinamentos religiosos, morais, éticos e, para tanto, era comum que o artista lançasse mão de elementos retóricos para enfatizar suas proposições, dentre eles a alegoria. Nesse contexto não eram incomuns obras que, apresentando ao público representações humanas idealizadas, buscassem traduzir conceitos abstratos, tais como amor, ódio, justiça e outros assuntos.

Teria sido contra esses códigos estabelecidos pela tradição que a arte moderna se insurgiu, estabelecendo novos paradigmas.

Se até então a obra de arte era produzida a partir da manutenção/disseminação de valores e práticas previamente estipuladas – e que deveriam, por certo, transcender suas respectivas materialidades para provocar no espectador sentimentos também previamente estipulados –, a partir do século 19 essa situação começou a mudar: contra as prescritivas mais estritas, contra as normas que impediam, em última análise, a própria manifestação da individualidade do produtor, começa a ganhar força, como novos elementos para valoração da obra de arte, a fuga a qualquer ordenação prévia, a ênfase à originalidade, a negação de qualquer impessoalidade para que a obra de arte passasse a se tornar uma manifestação da interioridade do artista.

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Até aqui estive circunscrito às definições de Heinich sobre “arte clássica” e “arte moderna”. Porém, um elemento que a autora exclui de sua definição de “arte moderna”, mas que também servirá ao seu surgimento, é a ênfase que vários artistas começaram a conferir à materialidade da obra e à exploração de seus elementos constitutivos; ou seja, dos elementos intrínsecos a cada linguagem artística. Em texto dos anos 1960, o crítico norte-americano Clement Greenberg sintetizou esse processo ao afirmar que, se até o início da modernidade a arte usara de artifícios (ou da arte) para esconder a sua materialidade, a partir de então os artistas empenham-se em deixar evidente em cada trabalho a matéria da qual o mesmo era constituído e os elementos que estruturavam cada uma delas[5].

Nesta nova situação em que a obra de arte não mais seria vista como representação do mundo real ou ideal, mas como uma nova realidade, é que se entende um dado importante e que também ajudou a forjar o conceito de arte moderna: o suposto banimento, na constituição da obra, de qualquer alusão a algo que estivesse fora de sua realidade concreta. Daí a proscrição dos elementos tradicionais da retórica, dentre eles, a alegoria[6].

No entanto, como veremos, tal exclusão não foi absoluta. Mas, é importante sublinhar que essa postura mais radical foi se tornando hegemônica, não propriamente nas produções dos artistas, mas nas interpretações de críticos, espalhados pelo mundo (inclusive no Brasil), que retiravam da corrente principal da arte moderna os artistas que continuaram lidando com questões outras, que não apenas as especificidades de suas respectivas linguagens.

É claro, portanto, que a narrativa criada por esses estudiosos concentrou seu interesse nas questões específicas da arte, deixando de lado outros problemas que também tiveram seu papel na passagem da arte tradicional para a arte moderna e que relativizam parte das diferenças entre as duas.

Dentro dessa situação, pontuaria um fenômeno que até o presente não foi encarado pelos estudiosos: a passagem da arte tradicional para a arte moderna não se estabeleceu de maneira abrupta, como querem nos fazer crer os textos canônicos sobre arte moderna. Houve um razoável período de entranhamento entre modernidade e tradição, em que valores desta tentavam se impor aos valores daquela, estabelecendo uma produção híbrida e, diga-se de passagem, interessante sob vários aspectos. Se no âmbito da escultura francesa, por exemplo, as experiências de Rodin e Maioll podem ser relembradas como casos exemplares, no Brasil a produção de Victor Brecheret me parece emblemática.

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“Ídolo”, c.1919, Victor Brecheret, bronze, 20 x 46 x 16 cm. Foto: Reprodução

Ídolo, Cabeça de mulher e as duas versões de Soror dolorosa (em mármore e em bronze) – todas as quatro produzidas por volta de 1919 – nos apresentam Brecheret recém-chegado de seu primeiro estágio europeu, período de seis anos que passou em Roma no ateliê do escultor italiano Arturo Dazzi.

Se a “presença” de Dazzi é perceptível no domínio da forma, é nítido, porém, que já naquele período Brecheret buscava outros parâmetros: enquanto estuda com Dazzi, ele se mostra atento às produções dos também italianos Adolpho Wildt e Arturo Martini, mas são sobretudo as produções de Ivan Mestrovic, escultor croata com penetração na cena internacional, aquelas que mais aguçam seu talento. De fato, Mestrovic parece ter sido a principal referência tomada por Brecheret nesse seu estágio romano e na curta temporada que passaria no Brasil (1920/21), antes de transferir-se para Paris.

Ídolo ainda testemunha a formação primeira do artista: nela persiste a sujeição à anatomia observada na escultura tradicional com forte presença na Itália, embora nela já se perceba– sobretudo na torsão do corpo e nos sulcos produzidos pela ênfase nos detalhes – certa sofreguidão no intuito de fugir às convenções então mais aceitas. Em Cabeça de mulher, por outro lado, tal ansiedade se materializa de maneira plena, na medida em que Brecheret – mais atento a Mestrovic do que a Dazzi – submete a obediência às convenções da anatomia artística à deformação da figura, agigantando-lhe o pescoço e transformando os planos em áreas repletas de sulcos, lugares onde as sombras formam linhas veementes.

Já nas duas versões de Soror dolorosa, constata-se, a exemplo da produção de Mestrovic, um pendor a uma figuração arcaizante, como uma espécie de repúdio ao realismo verista ainda tão presente na escultura centro-europeia de então, assim como a um gosto de derivação neoclássica, também ainda hegemônica naquele período. Nesse momento, as referências para o jovem Brecheret – sobretudo em Soror dolorosa – é a escultura pré-renascentista, eivada, no entanto, por um vigoroso pathos expressivo. Tais referências buscam recuperar/recriar com dramaticidade aquela tradição tão antiga, enfatizando, por um lado, o rigor hierático das formas, e, por outro, tensionando as superfícies onduladas, concluídas em linhas de sombras profundas, indecisas entre o ornamental e o obsessivo.

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Se as esculturas do segmento precedente possuem como característica uma espécie de frêmito interior que tende a ondear os planos, a sulcá-los de sombras trágicas, Virgem e o menino, explicita mudanças sensíveis na maneira como o artista passava a se posicionar frente ao fazer escultórico. Longe da dramaticidade de antes, nessa peça percebe-se o escultor encontrando uma maneira de substituir a teatralidade que caracterizava sua produção anterior por um hieratismo despido de qualquer dramaticidade. Pelo contrário: ali os planos se abrem serenos à luz e os volumes são concatenados uns aos outros por delicados sulcos na matéria, linhas sutis que demarcam as fronteiras entre as formas anatômicas e os limites entre os corpos. Mesmo a sugestão do panejamento, dos dedos dos pés e das mãos, e do ondular dos cabelos da figura principal, sujeitam-se ao ritmo manso de uma ordem que aspira ao atemporal, sempre em busca daquilo que, para o pensador alemão Johann Joachin Winckelmann, distinguia a arte grega: “[…] uma nobre simplicidade e uma grandeza serena tanto na atitude como na expressão […]”[7].

Victor Brecheret, “Virgem e o menino”, década de 1920, bronze, 75 x 15 x 15 cm. Foto: Reprodução

Porém, se em sua fase “arcaica” Brecheret investia na dimensão planar de sua escultura – quase que totalmente “em relevo” –, a partir dos anos 1920 tal característica passa por uma sutil, mas poderosa transformação, ao agregar àquele caráter uma volumetria elíptica, manifestando-se por meio de módulos[8].

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A pesquisadora Daisy Peccinini, tratando do estágio francês de Brecheret[9], atenta que, em 1924, em férias na fronteira entre a França e a Suíça, o artista se interessará pelas formas naturais encontradas naquelas paragens, sobretudo:

“… pelas formas dos seixos rolados, erodidos pela força das águas há milhares de anos. Para um artista que tinha forte inclinação a fazer apologia da natureza, foi um período decisivo na evolução de sua plástica, em direção às formas puras, orgânicas e naturais que vai explorar, uma vez no Brasil, na fase das “pedras” e da arte indígena, a partir de meados da década de 1940…”[10].

Como atesta a estudiosa, o interesse de Brecheret por aquelas formas ganhará papel preponderante na sua última produção. No entanto, já nos anos 1920 nota-se que aquelas formas oblongas que elas tornam visíveis, traduzidas para o mármore ou para o bronze. São essas formas – que ele pode ter percebido na natureza a partir de sugestões captadas na obra do escultor romeno Constantin Brancusi -, que caracterizam parte de sua escultura, entre meados daquela década e a seguinte. Virgem e o menino, já comentada, assim como Diana caçadora (dec.1920) e O beijo, 1932, exemplificam o interesse de Brecheret por essas formas que remetem a pedras roladas dos leitos dos rios e dos mares.

Por outro lado, a atenção que a obra de Brancusi despertou em Brecheret não parece ter se estancado no fascínio pela forma oblonga, mas, indo mais além, ela se desenvolveu também por meio da analogia que o brasileiro estabeleceu entre aquela forma – quando trabalhada em modelos encadeados –, e a configuração do corpo humano.  Essa espécie de ponte que Brecheret estabelece entre módulos elipticos concatenados e o corpo humano pode ser inferida em diversas de suas obras do período, entre elas a já comentada Virgem e o menino, e na parte superior de Portadora de perfume, 1924, pertencente ao acervo da Pinacoteca do Estado.

Quando, a partir de meados dos anos 1930, o artista se estabelece em definitivo no Brasil, nota-se que, paulatinamente, os elementos que caracterizavam a escultura por ele produzida nos anos 1920 se aprimoram ainda mais, logo no início daquela década para, na sequência, e aos poucos, irem sendo substituídos por outras demandas e outras soluções formais.

Se os anos 1930 terminam com Brecheret revisando a grande tradição da escultura ocidental a partir dos exemplos mais recentes de Bourdelle, Maioll e outros – e Torso feminino, de 1939, é um exemplo desse esforço –, a década seguinte aos poucos imprimirá novas orientações em sua trajetória que revelarão uma originalidade até então inaudita no ambiente do tridimensional do Brasil.

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Está certa Peccinini ao enfatizar os anos 1940 como o período em que Brecheret passará a explorar as pedras roladas, e isso por uma questão crucial: tal ação não se dará mais por meio de uma abstração em que, como nos anos 1920/30, o escultor traduzia a forma original daquelas pedras para o mármore ou o bronze, transformando-a em corpos de deusas, ninfas ou santas.  A operação por ele realizada a partir dos anos 1940 é de uma radicalidade ímpar no campo da arte moderna no Brasil: ao invés de representar em materiais preciosos a nobre simplicidade e a serena grandeza das pedras roladas, o artista agora delas se apropria, indo busca-las na natureza para nelas interferir.

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A historiografia artística brasileira ainda não se dedicou à reflexão sobre o significado dessa atitude de Brecheret, ação de alta radicalidade, mesmo se tomarmos como base não apenas a cena brasileira de meados dos anos 1940, mas também o ambiente artístico internacional do período. Afinal, como situar essa atitude do artista? O que pode ter possibilitado a ele, se não abandonar o mármore e o bronze, pelo menos acoplar a esses meios expressivos devidamente reconhecidos, a apropriação de pedras roladas, transformando-as também em meios de expressão? Por que ainda não foi dada a devida atenção ao fato de um artista como Brecheret ter colocado no mesmo patamar de sua produção já devidamente institucionalizada, um objeto tão comezinho – e, portanto, tão estranho à “grande arte” –, como as pedras roladas?

A partir da apropriação dessas pedras, desses objetos que não mais traduzem, mas que são a própria forma criada por milênios pela natureza, Brecheret irá nelas intervir a partir de incisões que podem apenas desvelar desenhos sugeridos pelo tempo na própria matéria (A índia escondida por um grande peixe, 1947-48), ou então, mesclando a esses estímulos já existentes a incisões voluntariosas, criar obras como A luta da onça com o tamanduá, 1947-48.

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A obra de Brecheret foi forjada no âmbito da modernidade do século 20, mas sempre entre franjas; primeiro em muito se confundindo com a tradição; e já no final da vida apontando para uma compreensão contemporânea da arte. Talvez tenha sido justamente se movimentar dentro dessas fronteiras difusas o que lhe permitiu produzir em concomitância obras devedoras da tradição europeia, em suas formulações mais discutíveis, em paralelo a outras peças em que se nota concepções que colocam o interesse sobre Brecheret em outro patamar.

Justamente por essa variedade na produção do escultor, com procedimentos e concepções vindos de diversas tradições, é que ele vem sendo colocado, por parte da crítica especializada, como um artista menor, um “eclético”. Como se essa característica, vista de forma negativa, fosse encontrada apenas nele.

Não só no Brasil, mas em toda cena internacional, é possível encontrar exemplos de artistas que desenvolveram concomitantemente suas respectivas obras em diversas direções. E mesmo que seus biógrafos ou especialistas “editem” esse suposto ecletismo na hora da produção de uma retrospectiva ou publicação, isso não faz com que ele desapareça e mantenha sua importância para a compreensão da obra como um todo. Como é o caso da obra de Brecheret.

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[1] – HEINICH, Nathalie. El paradigma del arte contemporâneo. Estrucuturas de uma revolución artística.Madrid: Casimiro Libros, 2017.
[2] – Idem, págs. 54/55.
[3] – No decorrer do livro, a autora irá matizar essas definições.
[4] – Para uma introdução a esta questão, consultar: GRAMMONT, Guiomar de. Aleijadinho e o aeroplano. O paraíso barroco e a construção do herói colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Fundamental também é a leitura do Prefácio desta obra, realizado por João Adolfo Jansen.
[5] – “Pintura Modernista”, de Clement Greenberg. IN FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecilia (org.). Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, pág. 101,
[6] – Para uma introdução ao assunto, ler, de Craig Owens, “The allegorical impulse: toward a theory of postmodernism”, IN WALLIS, Brian (ed.). Art After Modernism: rethinking representation. New York/The New Museum of Contemporary Arte; Boston, David R. Godine, Publisher, Inc.
[7] – WINCKELMANN, J.J. Reflexões sobre a arte antiga. Porto Alegre: Editora Movimento/Un. Fed. Rio Grande do Sul, 1975, pág. 53.
[8] – Embora este não seja o espaço apropriado para análises sobre as estruturas do pensamento plástico de Victor Brecheret, registro aqui que, se durante os anos 1910, o artista trabalhou o objeto escultórico sempre confinado entre dois planos – dentro de padrões teorizados pelo escultor e teórico alemão Adolf Von Hildebrand –, parece que durante os anos 1920, ao lado da continuidade desse modelo, Brecheret, em várias de suas produções,  colocará um cilindro entre esses dois planos. Ou seja, em muitas de suas obras será perceptível o objeto escultórico surgir de um cilindro fechado entre dois planos. Tal cilindro normalmente será seccionado em algumas partes pelo artista para criar a sucessão de volumes ovoides.
[9] – O “estágio francês de Brecheret” ocorre entre os 1921 e 1932, período em que o artista viverá em Paris com eventuais visitas a São Paulo.
[10] – PECCININI, Daisy. Op. cit. Pág. 67/68. Em nota (pág.68), a autora cita um depoimento do escultor ao jornalista Luis Martins, de 1939, em que ele afirma ter levado para Paris alguns exemplares de pedras encontradas em suas férias. Mais à frente, no mesmo texto, Peccinini voltará a salientar o interesse de Brecheret por pedras e rochedos, relatando – segundo depoimento de Simone Bordat (então companheira do escultor) – as viagens que o artista e amigos faziam para o litoral da Córsega e da Bretanha, locais em que o escultor também se dedicava a admirar as formações rochosas das regiões (op. cit. pág 115 e seg.).

Onde encontrar a brasilidade depois dos modernos?

Atualizações Traumáticas de Debret, 2019-2021, Ge Viana
"Atualizações Traumáticas de Debret, 2019-2021", Gê Viana. Cortesia CCBB.

Em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro até dia 22 de novembro e a caminho da unidade paulistana (de 15 de dezembro até 7 de março de 2022), a exposição Brasilidade Pós-Modernismo não foi pensada para ter um olhar histórico, mas sim focado na atualidade. Com 51 obras produzidas da década de 1960 até os dias de hoje, há também algumas inéditas, ou seja, já produzidas com uma maturidade e um distanciamento histórico dos primórdios da modernidade brasileira, como comenta a curadora da mostra coletiva, Tereza de Arruda. Para ela, a brasilidade de que se fala no título se mostra diversificada e miscigenada, regional e cosmopolita, popular e erudita, folclórica e urbana. “Temos aqui uma produção de pintura, fotografia, desenho, escultura, instalação, novas mídias, entre outras, como defensoras da diversidade artística nacional através da abrangência de meios e linguagens”.

O processo de pesquisa e as tratativas com os artistas começaram ainda em 2018. Algumas obras presentes na mostra foram emprestadas de coleções privadas, outras vieram diretamente do ateliê dos criadores. “No processo de elaboração da mostra, houve uma troca intensa com os artistas participantes e, a partir daí, muitos realizaram obras especialmente para Brasilidade Pós-Modernismo, como é o caso de Agarrados ao Poder, de Luiz Hermano, Série Biomas, de Armarinhos Teixeira, Índias Ocidentais, de Luzia Simons, Terra tão só, de Marlene Almeida, A visita aos ancestrais, de Jaider Esbell – falecido recentemente -, assim como a instalação suspensa de Francisco de Almeida”, conta Tereza.

Tal produção diversa é espalhada por seis núcleos temáticos que obedecem à ordem do percurso: Liberdade, Identidade, Natureza, Futuro, Estética e Poesia. A organização, desse modo, procura convidar o visitante a uma imersão: “Pensamos com a equipe em uma certa dramaturgia, composta por elementos como cor e luz específicos como parte da expografia a demarcar os temas abordados”, explica Tereza. A exemplo disso, nos núcleos dedicados à Liberdade e Identidade as obras estão inseridas em um ambiente mais fechado de luz para um convite introspectivo. “A luz vai se abrindo gradativamente durante o percurso, sendo que nos deparamos nos núcleos da Estética e Poesia com um ambiente claro a enaltecer a vitalidade ali exposta”, complementa a curadora.

"Voluta e Cercadura", 2013, Adriana Varejão. Foto: Jaime Acioli.
“Voluta e Cercadura”, 2013, Adriana Varejão. Foto: Jaime Acioli.

Do primeiro eixo, a liberdade vem em nome da descolonialidade, mas também da resistência à modernidade forçada. Nesse contexto, há várias obras na mostra a serem citadas. Tereza destaca a colagem Atualizações traumáticas de Debret (2019-2021), por Gê Viana, onde um drone aparece na mira de um arco indígena; Azulejão (Neoconcreto), de Adriana Varejão, que mostra o legado colonial europeu desgastado, “repleto de craquelês a desfazer e desmistificar o seu poder estético e sócio-cultural”; a série A geometria à brasileira chega ao paraíso tropical, de Rosana Paulino, que segundo a curadora também alerta para o potencial de características de brasilidade a sobrepor preceitos eurocentristas; e por fim, as obras Rolo com disco amarelo e Brasil 1500-1996, de Anna Bella Geiger, que aludem à defesa e reconhecimento territorial – este último, aliás, um dos motes do modernismo brasileiro. Como explica a crítica de arte e historiadora Aracy Amaral, “no Brasil, internacionalismo e nacionalismo foram simultaneamente as características básicas do movimento modernista ocorrido nas letras e artes a partir de meados da segunda década do século passado”.

"Brasil, 1500-1996", Anna Bella Geiger. Cortesia CCBB.
“Brasil, 1500-1996”, Anna Bella Geiger. Cortesia CCBB.

Segundo a historiadora, o nacionalismo viria como decorrência de “uma ânsia de afirmação a partir da implantação da República (1889), estando daí em diante implícito o desejo de rompimento da intelectualidade com o século 19 e o academismo nas artes visuais”. Com isso, visava assumir nossa realidade física e cultural, até então menosprezadas pela elite, que se identificava com a Europa.

"Copa do Mundo, O futebol" (1974), Glauco Rodrigues. Cortesia CCBB.
“Copa do Mundo, O futebol” (1974), Glauco Rodrigues. Cortesia CCBB.

Em direção a essa questão, em Brasilidade Pós-Modernismo, Identidade é um dos núcleos mais interessantes da mostra, refletindo justamente sobre a ideia de uma identificação nacional e em que momento ela deságua nas nossas vidas particulares, ou se sobrepõe, e ainda que elementos fariam parte dessa pretensa imagem única. Para Tereza, o centenário da Semana de Arte Moderna propicia um momento oportuno acerca de debates dessa natureza. “A cada época novas respostas às reinventadas perguntas. Esta é uma oportunidade para o público reparar. Repare: olhe, observe, note! Estamos reparando: revendo, restaurando, renovando!”, afirma ao apontar, também, a necessidade de uma discussão inovadora, que atenda à demanda do nosso tempo.

A ocasião para revisitar a Semana de 22 e reavaliá-la criticamente não deve passar despercebida. Como lembram a pesquisadora Christina Queiroz e a professora da FFLCH-USP Maria Arminda do Nascimento Arruda, as revisitações críticas ao modernismo ganharam corpo somente a partir dos anos 1990. Até a década anterior, principalmente no cenário acadêmico paulistano, o movimento foi tratado como se estivesse acima de qualquer análise. Isso aconteceu, em parte, por conta do envolvimento de figuras ligadas ao cenário cultural modernista com a criação da USP. Desse modo, é preciso ressaltar a importância de estudar o modernismo através do país e não considerá-lo como uma repercussão do que acontecia em São Paulo.

Outro ponto a ser revisitado é a questão do protagonismo. Segundo Tereza, os artistas modernistas tentaram uma aproximação com “o outro” – o representante do regionalismo brasileiro. “Hoje vemos esta postura em partes como uma apropriação de um legado do outro. Foi necessário um centenário e um longo processo de reconhecimento, conscientização, assimilação e integração para chegarmos à essência da arte contemporânea brasileira apresentada em Brasilidade Pós-Modernismo, com artistas representantes de diversas etnias, gerações e procedências geográficas”, reflete.

Por hora, a mostra continua no CCBB Rio de Janeiro, que lançou recentemente um tour virtual por Brasilidade Pós-Modernismo. Confira aqui.

Leia também: Ampliação do debate sobre o modernismo brasileiro pauta mostras em grandes instituições, destacando o papel das artes decorativas e aplicadas e a produção de nomes como John Graz e os irmãos Gomide. Confira aqui.

Mostra no MAM-SP explicita caráter abrangente e multifacetado da arte moderna nacional

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"Mulata", 1927, Alfredo Volpi. Foto: Romulo Fialdini/ Divulgação

*Por Maria Hirszman e Patricia Rousseaux

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“Mulata”, 1927, Alfredo Volpi. Foto: Romulo Fialdini/ Divulgação

Alçada a símbolo maior da modernidade no País, a Semana de Arte Moderna – realizada no Carnaval de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo – foi apenas o lado mais barulhento de um processo amplo e descontínuo de ruptura com os modelos culturais vigentes no século 19 e de desenvolvimento de uma forma inovadora de pensar a cultura e a arte no Brasil. Com o intuito de explicitar esse caráter abrangente e multifacetado do desenvolvimento da arte moderna nacional, a exposição Moderno onde? Moderno quando?em cartaz até 12 de dezembro – reúne um conjunto diverso de obras produzidas nas primeiras décadas do século 20 em diferentes regiões do país.

Com obras de mais de 30 artistas, produzidas entre 1900 e 1937 (tendo como marco final o início do Estado Novo, momento de virada na trajetória política nacional), a exposição enfatiza alguns dos aspectos mais marcantes desse ímpeto modernizante: a adoção de temáticas e linguagens novas, desprezadas no passado oitocentista. Destaca-se um olhar atento para a cena local, seja por meio de registros do ambiente rural, seja na atenção crescente à renovação e expansão urbana vivenciada nas grandes cidades, bem como a incorporação crescente de modos de pintar, esculpir e fotografar muito mais próximos das experimentações de vanguarda que já há algum tempo sacudiam a arte europeia. Como explicam as curadoras Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros, nota-se claramente no período um desejo de renovação, uma vontade de se reconhecer nessa nova produção e uma alteração dos anseios no Brasil após a queda do Império. “Queríamos comemorar o Brasil recente, o Brasil novo”, sintetiza Aracy.

Apesar das dificuldades decorrentes da pandemia, que tornou muito mais difícil a pesquisa e a obtenção dos empréstimos das obras, foi possível reunir um conjunto bastante significativo de trabalhos. Propositalmente, não há uma divisão clara entre os três núcleos centrais da exposição (pré-modernismo, a Semana e os desdobramentos do movimento nos anos subsequentes). Como num fluxo livre, a montagem permite ao visitante acompanhar, sem rigores didáticos, alguns pontos altos da produção do período. Ora os trabalhos selecionados têm uma força individual potente e catalizadora, ora representam de forma sintomática eventos centrais do período abordado, como a disruptora entrada do expressionismo pelas telas de Anita Malfatti, na pioneira exposição de 1917; a já citada Semana de 22; ou o também célebre Salão Revolucionário, realizado em 1931 no Rio, quando o urbanista Lucio Costa assumiu, mesmo que por pouco tempo, a Escola Nacional de Belas Artes. Do ponto de vista regional, São Paulo e Rio – e, num segundo plano, Recife – são as cidades com maior representação, mas nota-se uma clara intenção de desmontar uma versão bairrista da modernidade brasileira, evidenciando o espraiamento das ideias e práticas modernistas pelo território nacional. A ideia era “fugir um pouco desse ufanismo paulistano”, pontua Aracy Amaral. Procuramos “esparramar um pouco a ideia de modernidade e de modernismo pelo Brasil, não só temporalmente, mas em termos de território”, complementa Regina Teixeira de Barros.

“Fachada do Teatro Municipal”, 1911, de Valério Vieira.

A seleção combina desde obras icônicas da modernidade nacional a investigações menos conhecidas do público e normalmente dissociadas desse anseio modernizador, como por exemplo a tela Baile à Fantasia, pintada em 1913 por Rodolpho Chambelland, uma cena vibrante e de inspiração popular tendo a festa por tema. Vamos do violeiro ao carnaval, ilustra Aracy, enfatizando a multiplicidade de caminhos representados por autores tão diversos como Almeida Junior e Chambelland. A progressiva urbanização, que impõe uma acelerada incorporação de modelos mais sofisticados de comportamento e de configuração das cidades, também se faz presente no trabalho Fachada do Teatro Municipal, uma fotopintura executada em 1911 por Valério Vieira que destaca a exuberância do edifício e a intensa movimentação dos citadinos.

“Eu vi o mundo…Ele começava no Recife”, de Cícero Dias. Acima, na íntegra, abaixo, em detalhes. Foto: © Dias, Cícero dos Santos/ AUTVIS, Brasil, 2021

Curiosamente, o exercício de representação da cidade moderna de Vieira se encontra face a face da obra de maior destaque da exposição, o painel Eu vi o Mundo… ele começava no Recife, realizado entre 1926 e 1929, por Cícero Dias. Exposta originalmente num congresso psiquiátrico realizado no Rio de Janeiro e posteriormente no Salão Revolucionário, a obra tem uma enorme dimensão histórica e estética. A ousadia da composição, que mescla reminiscências de sua infância no Recife a referências contemporâneas da cena carioca, foi tamanha que ela foi vandalizada por conservadores e perdeu três dos 15 metros que possuía originalmente. “Há vários mundos aí dentro, vários brasis, que acontecem simultaneamente e desordenadamente”, afirma Regina Teixeira de Barros. “Há ali uma multidão de referências. Cada metro nos chama à meditação”, complementa Aracy. Pertencente a uma coleção privada, a obra é raramente mostrada ao público.

Esse desejo de Brasil, um anseio por “demarcar o território que vai ser amplamente desenvolvido no século 20”, como dizem as curadoras, se faz sentir na obra de todos os artistas representados, mesmo que em termos temporais fiquem claras mudanças internas nos processos pessoais de criação. É o caso, por exemplo, de Di Cavalcanti, representado com obras de diferentes momentos, da ainda sisuda Amigos ou a aguçada série de ilustrações intitulada Fantoches da Meia Noite, ambos de 1921, à sua peça de destaque, Cinco Moças de Guaratinguetá, de 1930. O artista é um exemplo claro dessa tentativa de modernização da linguagem tão ansiada nas décadas de 1910 e 1920 e que, no anos 1930, adquire uma clara dimensão política e de engajamento social.

Para complementar esse mergulho na produção visual e cultural do período, também será lançado um catálogo com texto de diferentes autores, como Ana Maria Belluzzo, Felipe Chaimovich, Ruy Castro e Cacá Machado, em data ainda a definir. Esses ensaios acabam por estender ainda mais o alcance da mostra, iluminando áreas e movimentos que não puderam ser contemplados na seleção expositiva.