O Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, é ponto de partida para nova residência no Rio de Janeiro. Em 1924, o poeta modernista nos convocava a aprender o que a floresta e a escola tem a ensinar. Em 2022, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage selecionará duas duplas – formadas por um crítico de arte e um artista – para realizarem um período colaborativo de vivências na Floresta Nacional da Tijuca. Cada equipe a conquistar a bolsa receberá o equivalente a R$ 20 mil (vinte mil reais) para custeio de suas diárias de investigação, produção de textos, fotos e vídeos e total manutenção do projeto.
A sinalização de Oswald, aliada à localização da EAV – o Parque Lage, porção que integra a Floresta Nacional da Tijuca, maior floresta urbana do mundo – leva a instituição a realizar duas edições do Programa Residências na Floresta neste ano, uma em cada semestre. Assim, “integrando as reflexões acerca da Modernidade na arte brasileira, com forte atenção para um borrar fronteiras de natureza e cultura”, destaca o edital.
Cada dupla residente deverá desenvolver um projeto com desdobramentos práticos e teóricos tendo a floresta em suas dimensões estéticas, éticas, poéticas e ancestrais como ponto de investigação. Mensalmente, os selecionados deverão apresentar um relato crítico, em texto e imagens – estáticas ou em vídeo –, que serão disponibilizados nos canais digitais da EAV Parque Lage. Posteriormente, haverá apresentação pública, em seminário, das elaborações desenvolvidas no projeto. Buscando sobretudo promover um processo alargado de pesquisa, o edital não exige a realização de uma obra ao fim do período de residência.
Floresta da Tijuca, onde serão realizadas as Residências na Floresta da EAV Parque Lage. Foto: Alice Loureiro
Para se inscrever, cada equipe deve contar com um crítico e um artista, ambos naturalizados brasileiros ou nascidos no país, e ter disponibilidade para um período de residência artística de três meses. Serão considerados na seleção projetos inéditos e relevantes para a compreensão expandida e integrada da natureza e da cultura.
“Desejamos, com radicalidade, acolher propostas inovadores, inventivas e provocativas que possam fazer a comunidade escolar, seus artistas, alunos, professores, visitantes e demais profissionais de áreas interdisciplinares compreenderem a ecologia como uma disciplina a ser expandida e esgarçada – sobretudo aliando um entrecruzamento de referenciais, disciplinas e indisciplinas que possam contribuir para que possamos ‘adiar o fim do mundo'”, destaca o edital, resgatando as ideias de Ailton Krenak.
As inscrições ficam abertas até dia 20 de abril e devem ser feitas no site da EAV, incluindo currículos atualizados, portfólios, projeto único de autoria partilhada e defesa do projeto. Confira maiores detalhes acessando o edital (clique aqui). A divulgação dos selecionados está prevista para o dia 28 de abril.
Pavilhão da Bienal ocupado pela SP-Arte. Divulgação.
A feira acontece de 6 a 10 de abril no Pavilhão da Bienal, no Parque Ibirapuera, onde reunirá 132 galerias, das quais 92 galerias de arte nacionais, oito galerias internacionais e 32 galerias de design. Entre as principais galerias brasileiras estão: Galeria Luisa Strina, Fortes D’Aloia & Gabriel, A Gentil Carioca, Nara Roesler e Galeria Jaqueline Martins. Também participam com força no mercado secundário Gomide & Co, Almeida & Dale Galeria de Arte, Dan Galeria, Paulo Kuczynski, Pinakotheke e Galeria Ipanema.
A SP-Arte apresenta ainda trinta escritórios e galerias especializadas em mobiliário e design autoral brasileiro. Participam: Etel, Ovo, Loja Teo, Jacqueline Terpins, Atelier Hugo França e Passado Composto Séc. XX (todos de São Paulo), além de diversos estreantes estrelados como Wentz e Diletante 42, também da capital paulista, e o coletivo de designers Cultivado em Casa, de Minas Gerais.
Inédito a essa edição,o Radar SP–Arte busca aproximar o mercado e o público de agentes autônomos (artistas, espaços autogeridos) que constituem o sistema de arte. O Radar SP–Arte será formado por uma curadoria de Felipe Molitor de artistas que não possuem representação comercial, intitulada Hora grande, e pela participação presencial de cinco coletivos e espaços autônomos de arte, que apresentarão seus projetos em pequenas exposições comerciais. São eles: 01.01 Art Platform, Casa Chama, GDA, MT Projetos de Arte e Nacional TROVOA.
Com a nova expografia desenvolvida para a 18ª edição, o térreo será ocupado pelos setores de design, editorial e Radar SP–Arte, além da exposição Arte Natureza: ressignificar para viver. No primeiro piso, estarão galerias ligadas ao mercado secundário e, no segundo, serão reunidas as galerias do mercado primário de arte, tanto as mais consagradas quanto as emergentes, e as participações institucionais.
O tradicional programa de Talks será promovido no lounge Arena Iguatemi no segundo andar do Pavilhão. Dessa vez, Jacopo Crivelli Visconti, que esteve à frente da curadoria da 34º Bienal de São Paulo, e Ana Roman, curadora assistente na última Bienal, organizam e conduzem conversas com artistas e curadores renomados na quinta, sexta e sábado, dias 7, 8 e 9 respectivamente.
Articulando culturas diversas que aportaram no Brasil a partir da diáspora africana, um amálgama único de saberes ancestrais, ensinamentos, ritos e visões de mundo preenche o quarto andar da Pinacoteca Estação a partir deste sábado, 2 de abril. Trata-se de Yorùbáiano, que apresenta uma seleção de 63 obras de Ayrson Heráclito. Com curadoria de Amanda Bonan, Ana Maria Maia e Marcelo Campos, a exposição que agora chega a São Paulo foi inicialmente concebida e exibida no Museu de Arte do Rio (MAR), em 2021.
Tratando do trauma da escravidão, a performance Segredos Internos – a ser encenada na ocasião da abertura – dá o tom da mostra. Através de fotografias, vídeos, performances, instalações e registros, Yorùbáiano refaz a memória para secar feridas históricas ligadas à exploração dos corpos e ao silenciamento das culturas afro-diaspóricas. A retomada do passado ganha um sentido de expurgo, de despacho, e os trabalhos buscam representar uma reinvenção poética e política de um Brasil iorubano.
Açúcar, dendê e carne de charque. São esses materiais orgânicos que compõem histórica e simbolicamente o “corpo cultural diaspórico” – conforme afirma Heráclito – que nos guiam pela mostra. “O mundo é como um corpo, um ser vivente. E em meu trabalho toda a utilização dos materiais orgânicos, que são associados às práticas de alimentar as divindades e a natureza, tem a ver com o fato de que a natureza é quem nos dá de comer, é esse sujeito maior que nos guia, nos orienta, nos propicia a vida. E são os elementos da natureza que nos deixam potentes para, por exemplo, transmutar essa ideia de cicatriz, de dor, desse passado colonial que reduziu todo esse conhecimento à ideia de feitiçaria e de macumba”, explicou o artista em entrevista à arte!brasileiros em 2020 (leia aqui).
Na primeira sala expositiva de Yorùbáiano, um conjunto de obras traz o açúcar como forma de rememorar a ganância da monocultura canavieira escravocrata, ao mesmo tempo que evoca Exú, orixá a quem é ritualmente oferecida a cachaça. Ainda no mesmo ambiente, nos deparamos com a polissemia do azeite de dendê, seja na instalação Regresso à pintura baiana – na qual uma maquete da Igreja do Rosário dos Pretos e uma parede do museu são tingidas com o alimento -, na série fotográfica Sangue vegetal, ou em outras instalações e fotografias que compõem essa sessão e que, por vezes, trazem o azeite como símbolo de fluidos vitais do corpo humano.
Já a carne de charque, presente nas obras da sala seguinte, remete a Ogum, ao mesmo tempo que alude às violências sofridas pelo povo negro escravizado. São exemplos de trabalhos com essa temática os registros das performances Transmutação da carne e Sacudimento. Sobre esta última, o artista explica (em entrevista de 2020): “No meu trabalho, o sacudimento é também uma tática de retornar ao passado afim de sacudir a história, promovendo uma ‘movência’ dos nossos traumas. É uma forma de gerar uma visibilidade para questões que tradicionalmente foram ocultadas, como o processo de desumanização da população africana escravizada”. O registro exposto na mostra atual é da apresentação de Sacudimentos ocorrida nos arredores do edifício da própria Pina Estação, onde funcionou o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), órgão responsável pela detenção de dissidentes políticos nos anos 1960 e 1970.
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Ayrson Heráclito na performance de "Bori", no Museu de Arte do Rio, 2021. Foto: Divulgação
"Osún com Abebê e Ofá", Ayrson Heráclito, 2020. Foto: Divulgação
Na última sala da mostra, entramos em contato com a instalação fotográfica Borí, que traz doze grandes fotografias do ritual de fazer a cabeça, representando cada um dos 12 orixás do xirê. No dia 11 de agosto será possível acompanhar o ritual sagrado que inspira a obra, no espaço Octógono, no edifício Pina Luz, com a presença de músicos e 12 iniciados do candomblé.
SERVIÇO
Ayrson Heráclito: Yorùbáiano ONDE: Pina Estação, Largo General Osório, 66 – Luz, São Paulo (SP)
QUANDO: 2 de abril a 22 de agosto de 2022
FUNCIONAMENTO: segunda a sábado, da 10h às 18h
"Mapa de Lopo Homen II", de Adriana Varejão. Foto: Jaime Acioli
Apresentando um amplo panorama da carreira de Adriana Varejão, uma das mais destacadas artistas brasileiras das últimas décadas, a mostra Suturas, fissuras, ruínas ocupa vasto espaço da Pinacoteca do Estado de São Paulo até o início de agosto. Com curadoria de Jochen Volz, diretor-geral da Pinacoteca, a exposição constrói uma narrativa que explicita o olhar reiterado de Varejão para a história da produção visual brasileira, seus diálogos com as tradições iconográficas europeias e com as convenções e códigos materiais do fazer artístico ocidental.
“Sempre acreditei que não há uma versão da história, mas versões, múltiplas e variadas. Ocorre que muitas delas foram perpetuadas. A minha história se baseia em versões às vezes imaginadas, às vezes silenciadas”, explicou a artista em entrevista à Vogue. O olhar de Varejão para esta história, portanto, pode ser visto em mais de 60 obras produzidas de 1985 até os dias de hoje – várias delas mostradas raras vezes no Brasil, já que foram vendidas para o exterior logo após a sua realização. É o caso de Azulejos (1988), primeiro trabalho em que a artista usa como referência um painel de azulejaria portuguesa, encontrado no claustro do Convento de São Francisco, em Salvador.
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"Ruína Brasilis", 2021, de Adriana Varejão. Foto: Vicente de Mello
"Açougue Song", de Adriana Varejão. Foto: Divulgação
"Estudo sobre o Tiradentes de Pedro Américo", de Adriana Varejão. Foto: Divulgação
Seja em esculturas e peças com azulejos ou em pinturas produzidas pela artista ao longo da carreira, as fissuras e suturas – como diz o título – se apresentam em vários trabalhos das mostra. “Desde suas primeiras pinturas barrocas, a superfície da tela nunca é mero suporte; ao contrário, é um elemento essencial da mensagem da pintura. O corte, a rachadura, o talho e a fissura são elementos recorrentes nos trabalhos da artista desde 1992”, diz o texto de apresentação da exposição.
As recorrentes “vísceras” e “carnes” que saltam de uma série de trabalhos de Varejão remetem à violência da história colonial brasileira – e acabam por mostrar um diálogo estreito da artista com alguns dos temas mais atuais tratados na arte contemporânea nacional. “Ela tem essa ideia do que é a arte brasileira e esse olhar cuidadoso para uma história visual que é dominada por um olhar, influência e academicismo europeus, e a partir disso faz a estratégia da paródia”, diz ele. “Está ali inclusive a ideia de antropofagia, da carne, dessa fascinação da ideia de quebrar inclusive alguns tabus. Tudo aparece na obra dela”, diz Volz em entrevista à Folha de S.Paulo.
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"Mapa de Lopo Homen II", de Adriana Varejão. Foto: Jaime Acioli
"Nave", 1987, de Adriana Varejão. Foto: Divulgação
"Atlântico", de Adriana Varejão. Foto: Vicente de Mello/ Divulgação
Para o Octógono, espaço central da Pinacoteca, serão apresentados cinco trabalhos da recente série Ruínas de charque, composta por pinturas tridimensionais de grande escala. Entre elas está Ruína Brasilis (2021), doada pela artista para a coleção da Pinacoteca de São Paulo e que esteve em sua última exposição em Nova York. Nas palavras do curador, “a obra é uma tentativa de resgate das cores da nossa bandeira, que nos últimos tempos se tornou símbolo do que há de mais reacionário e retrógrado no país. (…) A ruína não está ali edificando um projeto glorioso. Ao contrário, é um monumento trágico, que nos revela uma verdade brutal”.
Para saber mais sobre o trabalho da artista, leia aqui matéria de Leonor Amarante sobre a mostra Adriana Varejão – por uma retórica canibal, apresentada em 2019.
SERVIÇO: Adriana Varejão: Suturas, fissuras, ruínas QUANDO: de 26 de março a 1 de agosto de 2022. De quarta a segunda, das 10h às 18h. ONDE: Edifício Pinacoteca Luz Praça da Luz 2, São Paulo, SP, 1º andar e Octógono
Ulysses de Souza Ferraz mostra fotografia da volante de Nazareth, composta por seus parentes e comendada por seu pai. Foto: Ricardo Beliel
Com o tempo perdemos a transmissão da história pela oralidade; pior, perdemos o poder da escuta. Do silêncio, do tempo que transcorre tranquilo sem a necessidade de apressá-lo. Com o tempo perdemos nossa capacidade de olhar para nossos rostos para ver as nossas marcas, para entendermos o nosso ser e estar no mundo.
Mas é esse tempo perdido, essa voz que adoça os ouvidos, que reencontramos no livro do repórter e fotógrafo Ricardo Beliel, Memórias Sangradas: vida e morte nos tempos do cangaço, Editora Olhares e apoio do Rumos Cultural.
A publicação reconta uma história que há muito perpassa o imaginário brasileiro, tendo sido contada em livros, fotos e filmes: a do cangaço. O movimento que dominou o sertão nordestino de 1920 até ser definitivamente aniquilado em 1938 pelas tropas do então governo do Getúlio Vargas, na famosa batalha de Angico em Sergipe. A saga de Virgolino Ferreira, conhecido Lampião (1898-1938), Maria Bonita (1911-1938) e seu bando, composto entre outros por Corisco, Dadá, Pancada, Labareda, Volta Seca e Jararaca é talvez uma das mais importantes e conhecidas da história brasileira.
E foi atrás desta história que o jornalista Ricardo Beliel e sua esposa, a artista plástica e cineasta Luciana Nabuco, embarcaram. “Tudo começou em 2007, quando fiz uma reportagem para uma revista europeia chamada Geo. Junto com um repórter espanhol subimos o Rio São Francisco”, nos conta o autor. Foi lá que Beliel relembrou sua infância, quando sua mãe professora de história e geografia gostava de contar para a família as narrativas da cultura brasileira, e escutou histórias dos que ali ainda viviam. Foi ali também que soube que havia remanescentes do movimento do cangaço. O então menino, que ouvia encantado sua mãe falar sobre o interior nordestino, sobre o sertão, por meio dos livros de Graciliano Ramos e de Rachel de Queiróz, entres tantas outras histórias, ampliou seu imaginário.
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Mão de Ana Agra, testemunha desse fato, sobre fotografia das cabeças cortadas expostas em Santana do Ipanema. Foto: Ricardo Beliel
Ozeas Gomes de Oliveira, irmão de Maria Bonita. Foto: Ricardo Beliel
Naquele mesmo ano, na verdade, na mesma semana, Ricardo Beliel, como freelancer, retornou ao sertão nordestino para produzir algumas matérias sobre o assunto do cangaço. Conseguiu publicar algumas matérias em revistas, mas foi só em 2014 que ele convidou Luciana Nabuco para percorrerem juntos o sertão nordestino, procurar os lugares por onde o bando de Lampião andou e tentar falar com as pessoas que habitavam aquelas paragens, ouvir suas histórias, fotografar suas memórias. De 2007 a 2019 foram nove viagens, 11 mil quilômetros percorridos de carro, sete estados visitados e muitos, muitos, depoimentos gravados e rostos e lugares fotografados: “Queríamos ouvir a história destas pessoas. Sabemos que muito já foi dito e escrito, mas queríamos contar essa história por nós mesmos como uma grande reportagem, uma memória social daquele tempo”. O apoio de Luciana Nabuco foi fundamental. Nascida no Acre, ela, assim como Beliel, cresceu ouvindo seu pai contar histórias de seu longo caminhar, da cultura familiar. Como afirmava a pesquisadora e psicóloga social Ecléa Bosi: “A memória oral é um instrumento precioso se desejamos constituir a crônica do cotidiano”.
Ana Cleto e Pedra, parentes dos cangaceiros Zé Gato e Sabina. Foto: Ricardo Beliel
A cada retorno, ao ouvir as histórias que haviam gravado, resolveram então que a semântica da fala dos personagens deveria ser preservada. Os entrevistados, em sua grande maioria pessoas quase centenárias, são descendentes da época do cangaço, personagens de um ciclo da história do Brasil que nem sempre foi bem lembrada.
Desta forma, Ricardo Beliel começou a escrever o livro entrelaçando sua visão como jornalista – que é e sempre foi – com os depoimentos dos 43 personagens que selecionou para fazer parte de Memórias Sangradas. Aos escritos juntou suas fotos, mas também foi atrás das fotos que os próprios personagens guardavam em suas casas. Fala-se muito do libanês Benjamin Abrahão (1890-1938), que fotografou e filmou o bando na década de 1930, mas muitos outros fotografaram o movimento sem o devido reconhecimento, visto que na época falar em crédito na fotografia era quase inexistente. Muitas vezes o que aparecia era o nome do proprietário do jornal. Beliel encontrou estas imagens na casa dos próprios entrevistados e as reproduziu mesmo sem retoques, sem trazer um ar novo para a fotografia, mas resguardando as marcas do tempo que já haviam se incorporado às imagens: “Foram fotografias feitas nos anos 1920 e 1930, adquiriram marcas do tempo da história que quisemos preservar”, comenta Beliel.
O resultado, embora em tom jornalístico, relembra um pouco os grandes livros épicos onde histórias de morte, de amor, de luta, de vinganças, de encontros e desencontros nos são recontadas. Daí a ideia do título. Um livro construído pela escuta – aliás, papel este do jornalista, seja ele de texto ou da fotografia: “Este livro é o renascimento do repórter que nunca deixei de ser”, conta Beliel. Mas é Luciana Nabuco que em forma de poesia no prefácio e posfácio do livro nos lembra que ”estamos perdendo a história porque estamos deixando de escutar nossos velhos. Eles são as nossas fontes primárias”.
Christian Dunker é professor titular em Psicanálise e Psicopatologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em patologias da linguagem. É autor de uma série de livros, entre eles “Lacan e a democracia”, lançado este ano pela Boitempo.
Márcio Seligmann-Silva é doutor pela Universidade Livre de Berlim, pós-doutor por Yale, professor titular de Teoria Literária na UNICAMP e pesquisador do CNPq. É autor de livros premiados como “Ler o Livro do Mundo” e “O Local da Diferença”, entre outros.
Renato Araújo da Silva é pesquisador e curador. Graduado em Filosofia pela USP, pertence ao grupo de crítica de arte contemporânea do CCSP. É autor de livros como África, Mãe de Todos Nós.
Dereck Marouço é pesquisador, crítico de arte, curador e tradutor, mestrando em Culturas Curatoriais na Faculdade de Belas Artes de Leipzig, na Alemanha. Vive e trabalha em São Paulo e Berlim.
Simonetta Persichetti é jornalista e crítica de fotografia. Mestre em Comunicação e Artes (Mackenzie), doutora em Psicologia Social (PUC-SP) e pós-doutora pela ECA-USP, é membro do Conselho Editorial da arte!brasileiros. Publicou diversos livros e ganhou o prêmio Jabuti de Reportagem.
À frente, "Museu do Homem do Nordeste", de Jonathas de Andrade, ao fundo obras de Candido Portinari, Almeida Junior e Paulo Nazareth. Foto: Levi Fanan/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo
Como é possível retratar e envolver pessoas e comunidades de forma ética? Essa é uma questão chave para artistas com obras que possuem teor social, especialmente nos últimos cinco anos. Afinal, o sistema da arte contemporânea, trabalhando no campo simbólico, deve apontar para estratégias que se diferenciem de segmentos como a publicidade ou o jornalismo, que muitas vezes abordam questões sociais sem qualquer tipo de compromisso com elas.
Sebastião Salgado é um exemplo de transição neste caso. Fotojornalista que transita no mundo da arte com desenvoltura, sua mostra Amazônia, em cartaz no Sesc Pompeia, retrata povos indígenas ameaçados, entre eles os Yanomami. Ao contrário do costume no fotojornalismo, que é não pagar para fazer imagens, Salgado contribuiu financeiramente com a Hutukara, que é a associação da Terra Indígena Yanomami, presidida por Davi Kopenawa.
Contrapartida financeira nem sempre é uma das estratégias, quando se fala de arte contemporânea. Em Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste, obra que está em cartaz na mostra de longa duração da Pinacoteca do Estado, Jonathas de Andrade entregou fotografias aos homens retratados no trabalho. Ele escolheu seus modelos na rua e, em troca da participação no projeto, deu a eles um retrato realizado. O Museu do Homem do Nordeste comporta-se como uma coleção paralela e homônima ao museu antropológico criado, em 1979, por Gilberto Freyre, ainda existente na cidade do Recife.
A questão que esta estratégia traz é: até que ponto essas pessoas retratadas por Jonathas não estão sendo tão exploradas quanto qualquer trabalhador que agrega valor a um objeto, mas não participa de fato de seu lucro, além de não terem controle de sua própria imagem. É importante ressaltar que a obra tem quase 10 anos, portanto não estava inserida no atual contexto de debates.
Artistas etnógrafos
Em um texto já clássico de 1995, O artista como etnógrafo, Hal Foster constatava nas práticas artísticas o surgimento de uma estratégia de associação a um novo sujeito: “O outro cultural e/ou étnico, em nome de quem o artista engajado luta”.
No fim do século 20, Foster ainda não tinha dado conta de que lutar em nome de alguém representava um posicionamento por um lado paternalista, já que é como se o artista pudesse se colocar no lugar da causa que defende, e, por outro, oportunista, afinal ele se legitimava com um discurso de esquerda, mesmo que no final seus trabalhos acabem rendendo apenas a ele de fato.
Esse tipo de estratégia já foi criticado por artistas como o argentino León Ferrari (1920-2013). Ao abordar o artista “engajado”, ele afirmou que “o triunfo de suas obras significou o fracasso de suas intenções”, no texto A arte dos significados, de 1968.
Algo semelhante defendeu o crítico Hrarg Vartanian recentemente, em sua conta no Instagram: “Um mundo da arte que se beneficia das desigualdades econômicas não é um mundo da arte pelo qual valha a pena lutar. Chico Mendes disse que ‘ambientalismo sem luta de classe é apenas jardinagem’. Talvez arte sem luta de classes seja apenas decoração.”
Still de “Swinguerra”, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, 2019.
Nesse sentido, uma significativa mudança de atitude pode ser o posicionamento do artista: ao invés de lutar “em nome de alguém” que ele lute “com alguém”, como fizeram Bárbara Wagner e Benjamin de Burca no pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza, em 2019, com o filme Swinguerra.
Baseada em um fenômeno cultural periférico, a swingueira pernambucana, a obra envolveu uma parceria com três companhias de dança, Cia. Extremo, La Máfia e O Passinho dos Maloka. Parceria aqui é palavra essencial, ela aponta para um trabalho conjunto, tanto que durante a apresentação para a imprensa, na abertura da Bienal, em Veneza, a protagonista do filme, a artista trans Eduarda Lemos, participou da divulgação do trabalho junto com Bárbara e Benjamim. Fica a questão de como foi tratada a divisão dos lucros do filme.
De qualquer forma é no mínimo esse tipo de parceria que precisa ser cada vez mais proposto e implementado. Assim, não se trata mais de falar sobre, em uma postura etnográfica, método questionado agora pela própria Antropologia, mas de falar com.
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"Funai-Serra Parima" (série "Contato"), Claudia Andujar, , 1982. Foto: Cortesia da artista e do Instituto Inhotim
"Garota sendo iniciada", Claudia Andujar, 1976. Foto: Cortesia da artista e da Galeria Vermelho
"Arajani" (série "Marcados"), Claudia Andujar, 1981-83. Foto: Cortesia da artista e do Instituto Inhotim
Debate decolonial
Tal debate também faz parte dos estudos decoloniais, uma reflexão importante, que surgiu especialmente nas universidades, mas que cada vez mais ocupa o mundo da arte. Trata-se de colocar em xeque o caráter colonialista de polos político-econômicos como Europa e Estados Unidos, além de questionar o caráter patriarcal e heteronormativo dessas culturas, assim como suas formas de exploração social. Isso tudo, no final, aponta para a necessidade de novas constituições de poderes, o que envolve também o poder do artista, especialmente aqueles que tratam de questões sociais.
Não por acaso, recentemente algumas vozes começaram a questionar até as imagens do povo Yanomami, realizadas por Claudia Andujar, já que por ser de origem europeia e branca, ela estaria falando em nome dos indígenas, em um posicionamento superior a eles. Repare que na mostra Amazônia, Sebastião Salgado dá voz às lideranças indígenas em vídeos como forma de escapar dessa questão.
Aí é que o debate precisa evitar cancelamentos precipitados. Claudia tem uma vida dedicada aos Yanomami, tendo trabalhado com eles desde os anos 1970, sem sequer produzir para o circuito da arte. Suas imagens foram realizadas como registros para denúncias no Brasil e no exterior, tanto sobre as invasões como sobre a necessidade da demarcação da terra Yanomami, o que foi uma conquista em 1990 na qual ela esteve profundamente engajada.
Claudia, aliás, usou o museu como espaço de denúncia, muito antes dessas instituições iniciarem seus próprios processos de decolonialismo. Genocídio do Yanomami: Morte no Brasil, por exemplo, foi uma instalação apresentada por ela junto com a CCPY (Comissão pela Criação Yanomami), no Museu de Arte de São Paulo, em 1989, quando garimpeiros invadiam suas terras, como segue ocorrendo hoje.
Foi apenas no início do século 21, de fato, que a obra de Claudia acabou sendo incorporada ao circuito de arte contemporânea, e ela estabeleceu um princípio bastante particular: divide o resultado das vendas de forma paritária com a galeria que a representa e os Yanomami, através da Hutukara, cada um ficando com um terço do valor.
Registro do projeto Vídeo nas Aldeias. Foto: Divulgação
Por tudo isso, é preciso muita atenção para não ficar na superfície do debate. A questão indígena, aliás, tem outro exemplo notável de inclusão que é o trabalho desenvolvido pelo antropólogo Vincent Carelli com o Vídeo nas Aldeias (VNA), fundado já em 1986, que desde então fornece equipamento e treinamento em oficinas a povos indígenas para que eles próprios criem suas representações sem a mediação cultural de outras pessoas.
Com isso, o VNA já formou dezenas de especialistas em audiovisual, o que possibilitou a criação de um importante acervo de imagens sobre os povos indígenas no Brasil, com uma coleção de mais de 70 filmes, a maioria deles premiados nacional e internacionalmente – transformando-se em uma referência nesta área. Tendo participado da Bienal de São Paulo Incerteza Viva, em 2016, esse é um dos grandes exemplos de estímulo para que povos marginalizados sejam autores das imagens de suas lutas.
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Parede de entrada do JAMAC. Foto: Cortesia JAMAC
Ateliê do Jardim Miriam Arte Clube - JAMAC. Foto: Cortesia JAMAC
Finalmente, é importante lembrar ainda de um outro exemplo de posicionamento radical feito pela artista Mônica Nador, em 2004, quando ela implantou o Jamac (Jardim Miriam Arte Clube), uma associação na periferia da zona sul da cidade, e desde então vive lá. Trata-se praticamente de um centro cultural, onde ocorrem debates, encontros, ciclos de filmes sobre arte e cidadania, mas a particularidade é como Mônica compartilha com a comunidade um saber: em como usar a pintura como forma de ativação social. No princípio, ela ensinou os moradores da região a utilizar técnicas como o estêncil – máscaras de papel que permitem pintura seriada -, tendo como motivos temas simples, de objetos de cozinha a animais ou plantas. Hoje, várias pessoas da comunidade usam essas técnicas, não só em paredes, mas em tecidos também.
Com isso, Nador alia a tradição da pintura a um exercício colaborativo e conceitual, que coloca em prática a máxima pregada pelo alemão Joseph Beuys: “Todo mundo é um artista”. Com isso, uma nova ética se realiza de fato.
Sem título, José Antonio da Silva. Foto: Divulgação
Um dos méritos em torno das comemorações dos cem anos da Semana de Arte Moderna é que a efeméride vem ganhando um tom crítico em torno do evento. Afinal, após tanto debate já acumulado sobre o protagonismo paulista ao longo desses cem anos seria estranho não aproveitar o momento para uma revisão dos significados da Semana e do próprio projeto moderno brasileiro. Em um momento de rever narrativas hegemônicas, sem dúvida chegou a vez da Semana.
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Still do filme "Um céu partido ao meio", de Danielle Fonseca. Foto: Reprodução / Sesc 24 de Maio
"O micróbio da fuzarca", Lídia Baís. Foto: Patricia Rousseaux
Raio-que-o-parta: ficções do moderno no Brasil, em cartaz no Sesc 24 de Maio, insere-se dentro dessa perspectiva e uma de suas marcas centrais é a inclusão de 200 artistas de todo país em cerca de 650 obras, com um recorte que valoriza produções nem tão reconhecidas. Nesse sentido, a mostraé menos uma exposição de obras primas e mais um imenso caleidoscópio na produção nacional. Ela é também uma forma de reparação, ao trazer para o debate da Semana muitos artistas até então invisibilizados, especialmente os fora do eixo Rio-SP.
O título em si já aponta para desconstrução da própria Semana, mandando-a para o “raio que o parta”, nome dado em Belém do Pará à decoração das fachadas das casas feitas por cacos de azulejos, reunindo tanto padrões abstratos como figurativos. Um vídeo logo na entrada da mostra, realizado por Danielle Fonseca, documenta exemplos dessas construções com testemunhos de moradores que usaram tais procedimentos em suas casas. Ou seja, trata-se de um estilo contra-hegemônico e fora do padrão de caráter vernacular. Apesar desse ótimo começo, não há mais casos para esse tipo de processo construtivo alternativo, o que é uma pena.
Mesmo assim, não faltam obras surpreendentes, como o potiguar Dorian Gray (1930-2017), que comparece com uma tapeçaria com motivos florais de 1973. O artista com nome de personagem de Oscar Wilde é uma das descobertas felizes da mostra.
Com curadoria de Aldrin Figueiredo, Clarissa Diniz, Divino Sobral, Marcelo Campos, Paula Ramos e Raphael Fonseca e consultoria de Fernanda Pitta, Raio-que-o-parta é organizada em quatro módulos: Deixa falar; Centauros iconoclastas; Eu vou reunir, eu vou guarnecer; e Vândalos do apocalipse.
“Floral com Pássaro”, de Dorian Gray. Foto: Evelson de Freitas / Divulgação
O primeiro se dedica a um debate bastante contemporâneo que diz respeito à apropriação cultural. Ele traz, entre outras obras, uma espécie de colagem em feltro deRegina Gomide Graz (1897-1973), chamada Índios, da década de 1930, na qual estão representados indígenas caçando. Procedimento típico do modernismo, essa representação de culturas “exóticas” ou “selvagens”, como eram designadas na época, pode ser vista agora em um contexto de revisão sobre lugar de fala. Algo semelhante ocorre com os vasos de prata de Maria Hirsch da Silva Braga (1875-1960), muito impressionantes aliás, ornados em padronagens indígenas. Hoje, tais obras são questionadas por se apropriarem de outras culturas.
“Ao presumir que os indígenas estariam ‘extintos’ ou ‘aculturados’ e que, por isso, supostamente deveriam ter suas memórias ‘preservadas’ pela obra de artistas brancos, a arte nutriu uma economia simbólica ancorada na impossibilidade histórica de autorrepresentação que, por sua vez, se atualiza constantemente no ‘bem-intencionado’ e lucrativo horizonte estético e político da representação do Outro”, discorre a curadoria em um discreto texto na parede, mas que conduz a mostra para o debate decolonial de maneira explícita. Esse, aliás, é um dos méritos de Raio-que-o-parta: apresentar uma visualidade potente e diversificada, mesclada a textos pontuais críticos que problematizam questões vinculadas às obras selecionadas.
Sem título, José Antonio da Silva. Foto: Divulgação
Assim ocorre também nos demais módulos, Centauros iconoclastas, que aborda ações performativas e transformações; Eu vou reunir, eu vou guarnecer, sobre a festa e a criação coletiva; e, finalmente, Vândalos do apocalipse, que trata das ruínas e catástrofes derivadas do projeto modernista nacional. É nesse último que estão pinturas de José Antonio da Silva (1909-1996), como Trem e Lavoura, de 1959, onde a visão de progresso já era denunciada como a destruição das florestas, antecipando o papel arrasador do agronegócio.
Uma exposição tão abrangente – vamos relembrar, são 650 obras, incluindo até o tríptico Sôdade de Cordão, de 1940, do artista ucraniano radicado no Brasil Dimitri Ismailovitch (1892-1976) – em um espaço difícil e pequeno, ganha potência graças a uma montagem arquitetônica simples e modesta, que deixa as obras em primeiro plano. Seria excelente um catálogo que documentasse essa ampla pesquisa, afinal são os catálogos que ficam para a história. E, nessa narrativa, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, finalmente, não são as protagonistas. Mesmo faltando um registro para o futuro, Raio-que-o-parta trata-se de uma das mais contundentes reparações sobre o modernismo e sobre a Semana no presente.
Fachada do Humboldt Forum, em Berlim. Foto: Alexander Schippel / Stiftung Humboldt Forum im Berliner Schloss
Em 2021 a cidade de Berlim ganhou um novo espaço de debate a respeito da cultura, que trouxe também uma enorme responsabilidade histórica e demandas presentes: o atual Humboldt Forum, construído no local do antigo Palácio da República (1976-2003), anteriormente ocupado pelo Palácio Berlinense (1443-1950). Trata-se de um local que, por sua centralidade política, geográfica e simbólica já reflete há bastante tempo a identidade alemã. Hoje, o museu e seus espaços expositivos têm sua articulação sincronizada usando as coleções dos Museus Estatais de Berlim (Staatliche Museen zu Berlin), da Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano (Stiftung Preußischer Kulturbesitz), em parceria também com a Projetos Culturais Berlim (Kulturprojekte Berlin) e o Museu da Cidade de Berlim (Stadtmuseum Berlin).
Após sérios danos sofridos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o Palácio Berlinense foi demolido para dar espaço a um novo prédio que indicaria o renascimento em uma nova era, e não apenas em pressupostos arquitetônicos. O Palácio da República, projetado por Heinz Graffunder e sua equipe de arquitetos, Karl-Ernst Swora, Wolf-Rüdiger Eisentraut, Günter Kunert, Manfred Prasser e Heinz Aust, foi construído em 1976 e funcionou até 1990, quando então o seu funcionamento foi interrompido por conta do uso de amianto no sistema de isolamento contra fogo. O prédio continuou funcionando parcialmente e sendo habitado mediante aprovação em ocasiões especiais, e após 2004 deu espaço à um projeto intermediário para a criação de eventos culturais sob o nome de Palácio do Povo (Volkspalast), até ser demolido em 2006. Em 2000, no entanto, já havia sido formada uma comissão para examinar a futura utilização do espaço em uma nova fase e em 2002 o projeto de retomada da fachada barroca do antigo Palácio Berlinense foi aprovado – o edifício agora seria habitado pelas coleções listadas anteriormente. Após tantas mudanças e um projeto que se estendeu e custou mais do que se tinha imaginado, somando mais de 600 milhões de Euros, o Humboldt Forum é o edifício cultural mais caro da história da Alemanha. O Palácio Berlinense, que teve sua fachada redesenhada em estilo barroco pelo arquiteto alemão Andreas Schlüter no século 17, ganhou uma nova leitura do italiano Franco Stella, ganhador do concurso para o projeto do novo edifício, e foi reaberto em 2021 para visitação com uma área expositiva de aproximadamente 28 mil metros quadrados.
Um dos objetivos atuais da instituição é de significativa dificuldade: abrigar as coleções de arte “etnográfica”[1] adquiridas durante o passado colonial alemão entre 1885, com a Conferência de Berlim[2], até a atualidade, e se posicionar criticamente através dos objetos de cultura material exibidos. Essa premissa, junto com a retomada da fachada do Palácio Berlinense, abriu grande resistência e protestos da comunidade artística e cultural – essencialmente cosmopolita e pluricultural de Berlim. Com livre visitação através de ingressos com hora marcada e sem custos, a exposição de longa duração que abre o edifício para o público é intitulada Museu Etnológico e Museu para a Arte Asiática (em tradução livre do alemão), mostra dividida em diversos segmentos.
Como se já não bastasse o forte gesto – bastante anacrônico – de se trazer à contemporaneidade a fachada barroca do período imperial alemão, as exposições, na tentativa de instruir e educar o público de Berlim, expressam ativamente o desejo de corresponder aos interesses do país europeu. Dois terços dos objetos da coleção etnográfica alemã são provenientes dos tempos coloniais e foram colecionados com o “intuito de se ter material básico para pesquisas futuras”. No entanto, mesmo que o armazenamento desses objetos seja bastante trabalhoso e demande extensivo financiamento, e mesmo que pesquisas sobre sua proveniência sejam incentivadas pelo Humboldt Forum em parceria com instituições e pesquisadores de suas áreas do local de produção desses objetos, trazê-los para o contexto museológico europeu ignorando as suas qualidades adicionais, que extrapolam o seu peso estético, contribui para a atual complexidade social dos países dos quais foram tomados. Ignora-se o contexto e proveniência original dos objetos para se considerar apenas a sua utilidade à cultura estrangeira que os abriga, como se pode ler em alguns dos textos da exposição: “A seleção dos objetos expostos não pretende definir, homogeneizar ou delimitar as culturas. Ela não oferece uma visão geral da história cultural, mas reflete interesses europeus e alemães, inclinações estéticas e orientações científicas no passado e no presente”[3].
A exposição Uma questão de perspectiva (tradução livre), a qual recebe os visitantes no Museu Etnológico, é bastante interessante justamente porque lida com arquivo e não com objetos. Com diversos eixos, oferece uma reconstituição do passado colonial alemão no século 19, incluindo a relação da Alemanha Oriental com as suas colônias através de relatos nativos e conta com miniaturas representando os ocupantes através do olhar local[4]. No complexo expositivo de imagem, texto e vídeo, o visitante autônomo tem de se engajar fisicamente para descobrir informações e fotos e assim reconstituir, ou “revelar”, as dinâmicas coloniais. Fica-se claro que o colonialismo é uma tática de dominância que considera apenas o espaço físico, ao passo que ignora os espaços sociais e culturais anteriormente cultivados no local de ocupação. Por exemplo, uma das fotos mostra a escola das Mulheres da Federação Colonial Alemã (uma organização oficial do Estado alemão), que tinha como objetivo “tratar o espírito familiar alemão e seu tipo”, trazendo mulheres para as colônias para que os soldados e ocupantes alemães não se casassem com mulheres africanas[5].
Trono “Mandu Yenu” (Camarões, antes de 1885) no módulo “Emaranhados Coloniais” do Humboldt Forum. Foto: Alexander Schippel / Staatliche Museen zu Berlin, Ethnologisches Museum / Stiftung Humboldt Forum im Berliner Schloss
Outro exemplo que prima pela ausência de contato entre colonizador e colonizado foi o Gauturnfest 1939 em Lüderitzbucht (Namíbia), que levou jovens alemães para competir na colônia, onde permaneciam isolados dos habitantes locais durante o torneio. No eixo Vida Entre Culturas é abordada a história dos jovens namibianos, filhos de exilados e refugiados que foram criados na Alemanha Oriental durante a Guerra da Independência da Namíbia (1966-1990) entre 1975 e 1990. O conflito foi também ultimamente um desdobramento da divisão da África pelos países da Europa na Conferência de Berlim (1884-1885). Mais tarde, com o final da guerra, os jovens namibianos foram repatriados pelo Estado independente da Namíbia, o que causou um significativo choque cultural.
Objetos africanos
Posterior à relativização das perspectivas apontada pela estrutura expositiva anterior, o próximo ciclo dentro da exposição é o Armazém Aberto África, que reproduz o modo de armazenamento da coleção expondo os objetos em vitrines, acompanhados de seus números de identificação. Estão ali armas, facas, espadas, adornos de marfim, brincos, braceletes, representações de espíritos e estátuas de significação política representando governantes de variados tamanhos, instrumentos musicais como tambores e instrumentos de sopro. Madeira e metal, cordas, conchas e marfim são os principais materiais, esculpidos e compostos com notável técnica. Fica-se evidente que a subtração desses objetos de seus lugares de proveniência é primeiramente um desvio do trabalho, não somente dos feitores dos objetos, mas também de todo um povo que passava seu conhecimento de trabalho de geração em geração por um sistema de ensino hereditário ou de tutor para pupilo. Os objetos acumulados aqui são provenientes de diversas expedições ao território africano do final do século 19 e a sua exibição na Europa influenciou diretamente a arte moderna[6]. Estas expedições foram conduzidas por oficiais da Alemanha colonial tal qual Hans Glauning, que morreu em uma de suas expedições em Camarões.
A relação de Camarões com a Alemanha é posta em foco no próximo segmento expositivo, através de batentes de portas esculpidos à mão, esculturas de diversos tamanhos, apetrechos, bancos, máscaras adornadas e outros objetos históricos. Grande parte dos itens denotam o grau de importância de seus detentores na sociedade camaronesa do início do século passado, além de adereçar o caráter da pessoa que os possuía. Estes objetos, carregados com agência social e espiritual, também tinham finalidade e efeito político. Exemplo máximo disso é o Trono Comemorativo do Rei Tufoyn, do povo Bekom, datado do século 19 e cujo desaparecimento gerou estado de emergência, já que sua presença era necessária para que se pudesse passar o poder ao próximo governante da matriz hereditária. O trono foi adquirido em 1906 pelo explorador alemão Hans Gaspar Ganz zu Putzliz. Para evitar uma crise no poder e na sucessão, o Rei Yuh, sobrinho e sucessor de Tufoyn, ordenou a criação de um novo trono, hoje em dia considerado como original, enquanto que o que se encontra na Europa foi expropriado de seu caráter oficial. As técnicas de dominação cultural motivadas pelo fetichismo estrangeiro refletem diretamente na desestabilização política das culturas as quais pretenderam dominar.
A Oceania e a cultura dos mares
A coleção de objetos de cultura material das antigas colônias da Oceania também faz parte da exposição. Uma sala foi dedicada para abrigar uma coleção de adereços e o último navio construído pelos habitantes da ilha Luf, na Papua Nova-Guiné, em 1890 – já que todos os outros foram destruídos na guerra pelos alemães. Após a guerra, este último navio foi comprado por uma companhia de comércio alemã, que o trouxe à Berlim. A proibição da livre locomoção imposta pelos ocupantes ao povo de Papua Nova-Guiné também contribuiu para a extinção das técnicas de construção de barcos que tinham importância singular na economia da região, uma vez que eram trocados por outros tipos de bens em um sistema de escambo. A união entre povos nativos e a natureza fica evidente não só pela relação direta com o mar, entendido como extensão de seu território tanto quanto o solo, mas também porque sabiam lê-lo, encontrando caminhos através de suas correntes e usando seus materiais. O mar tem papel central na tradição oral e na conexão com deuses e ancestrais. A alienação do modo de produção de barcos, além da proibição de locomoção, bem como as doenças trazidas pelos europeus e a destruição causada pela guerra, fizeram com que a autonomia do povo da Polinésia morresse completamente. Na Micronésia e Melanésia o conhecimento de construção naval também foi quase completamente extinto. É importante frisar que o produtor de barcos era também dotado de autoridade espiritual e, portanto, podia fazer rituais acessando poderes sobrenaturais, tendo um papel central na sociedade. Atualmente a construção de barcos é lentamente retomada pelo povo da região da Polinésia através do modelo deste último barco que se encontra em posse alemã.
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Navio da ilha Luf (Papua, Nova Guiné), exposto no módulo "Oceania: homem e mar. Um Mar de Ilhas". Foto: Alexander Schippel / Staatliche Museen zu Berlin, Ethnologisches Museum / Stiftung Humboldt Forum im Berliner Schloss
Vista da exposição do módulo “Da Nova Irlanda a Berlim. Coletando na Era Colonial" no Humboldt Forum. Foto: Alexander Schippel / Staatliche Museen zu Berlin, Ethnologisches Museum / Stiftung Humboldt Forum im Berliner Schloss
Em outra sala é exposto o Armazém Aberto Oceania, com diversas vitrines que apresentam a cultura material vinda da Oceania ocupada pela Alemanha. Aqui também se trata de uma coleção formada por diversas expedições e em diferentes regiões. Assim como nas sociedades africanas, as esculturas aqui tinham o poder de organizar a sociedade, sinalizar funções sociais gênero-distintivas e motivar através da espiritualidade comum e dos rituais de passagem e celebrações. São um exemplo as esculturas usadas nos rituais Malagan, que tinham diversos significados e funções, sendo utilizadas com objetivos espirituais como a conexão com ancestrais e também funções práticas, tal qual a transmissão de direitos à terra.Por serem considerados espíritos perigosos e poderosos, as esculturas eram utilizadas somente uma vez e destruídas após o ritual. A coleção e exibição destes objetos desconsidera e desrespeita a sua concepção e função cultural. Imagens espirituais chamadas de Tikki, nas Ilhas Marquesas, tinham a característica de carregar um espaço com propriedades sagradas onde somente o alto sacerdote poderia adentrar. Este espaço e os rituais conduzidos ali formavam o centro da vida espiritual e a proximidade com os Tikki dotava ao sacerdote mana. Essa energia sobrenatural dava-lhe poder que poderia ser usado para diversos fins, como por exemplo arruinar pessoas ou abençoar ao povo antes de uma batalha, o que os tornava líderes de alto escalão. Através da imposição do cristianismo, hoje religião que representa 90% dos habitantes de Papua Nova Guiné, diversas partes da tradição local morreram. Assim como nas antigas colônias africanas, o padrão de dominação através da separação entre um povo e os seus objetos de cultura e culto também se fez presente.
Tempos coloniais
Este seria o momento ideal para países detentores de objetos de cultura material de outros povos e regiões, como a Alemanha, iniciarem uma verdadeira reparação ética do ponto de vista cultural em relação aos países que sofreram a imposição de relações coloniais notadamente unilaterais e extrativistas. A função atual poderia ser classificada como antiética, já que a Alemanha continua a se beneficiar destes bens sem realmente oferecer algo de valor equivalente aos demais países de proveniência, cuja ausência desses objetos mudou completamente a auto-percepção das diferentes culturas. Trata-se de uma instituição que minimiza o valor dos objetos que se propõe salvaguardar, reduzindo sua importância ao valor estético, e nega, no escopo macro-político, que estes objetos também tragam outras dimensões de poder, para que não seja necessária a imediata devolução destes patrimônios. A falta de acesso dos povos de origem a estes objetos não só contribui para um senso de identidade deficitário, mas também permite ao antigo ocupante controlar a história dos países anteriormente ocupados. O Humboldt Forum está para as ex-colônias da Alemanha assim como o museu russo Hermitage está para a Ucrânia – objetos foram tomados do país por combatentes nazistas e depois retornados à União Soviética após o fim da Segunda Guerra. Ao retirar símbolos culturais com diversas funções do seu local de produção procura-se manter as outras culturas subjugados através de cisões no tecido social, tática colonial que tem como produto final o ganho de tempo para que o fantasma do fascismo – que muitos países possuem em suas dinâmicas políticas e no caso da Alemanha se encontra ativo, ainda que seja minoria – se aproveite caso seu projeto venha a se concretizar.
[1] Outras instituições com o mesmo tipo de coleção como o Museu Grassi (Leipzig, Alemanha) tem se posicionado criticamente a respeito da classificação “etnográfica”, uma vez que este nome produz comparações entre produções culturais materiais de diferentes contextos.
[2] A conferência de Berlim dividiu a África entre os países da Europa ocidental, gerando o sua atual divisão territorial, a qual desconsidera os diversos povos e culturas africanas.
[3] Trd. “Die Auswahl der Exponate erhebt nicht den Anspruch, Kulturen zu definieren, zu homogeneizieren, oder voneinander abzugrenzen. Sie bietet keinen Kulturgeschichten Überblick, aber sie spiegelt europäische und deutsche Interessen, ästhetische Neigungen und wissenschaftliche Ausrichtungen in der Vergangenheit und Gegenwart wieder”. (Humboldt Forum, 2022, tradução nossa).
[4] Na exposição existe um foco na relação com os seguintes países: Camarões, Namíbia, Papua Nova-Guiné, Samoa-Alemã e Tanzânia. No entanto, a Alemanha possuía muitas outras Colônias antes da Primeira Guerra Mundial (1939-1945).
[5] Trd. Den deutschen Familiengeist und die deutsche Art zu pflegen.(Humboldt Forum, 2022, tradução nossa).
[6] Uma das maiores commodities do mercado secundário são as obras de Pablo Picasso, que era colecionador de arte africana.
"Baía de Guanabara", de Ismael Nery, exposta em "Fluxos do Moderno" na Casa Roberto Marinho. Foto: Cortesia Casa Roberto Marinho
Muitas vezes celebrações de efemérides são mera formalidade. Mas no caso da Semana de Arte Moderna essa rememoração é incontornável. Afinal, se continuamos mirando para aquele passado depois de tanto tempo, é porque algo dele sobrevive e nos faz pensar não apenas sobre nossas raízes, mas sobre como elas ajudam a definir nosso futuro. Há nestes festejos em torno dos 100 anos do evento algo de singular, um desejo de entender melhor seu significado. E há também uma espécie de ansiedade, de desejo de reavivar uma fagulha que nos ajude a iluminar o presente, encontrando algum alento que nos auxilie a enfrentar a angústia e a paralisia contemporâneas – buscando com um misto de nostalgia e cansaço entender e defender projetos transformadores, que desafiaram as regras e se propuseram a abandonar os ranços passadistas em busca de novos modelos de pensamento e produção.
A lista de encontros, exposições, lançamentos de livros e revistas que giram em torno do encontro de três dias realizado no Theatro Municipal de São Paulo em fevereiro de 1922, que com o tempo foi se transformando no mito fundador da modernidade nacional, é enorme. E só faz crescer. São inúmeros os enfoques adotados e é um alívio que neste centenário haja pouco espaço para olhares congelados e meramente laudatórios. É verdade que tal profusão de estudos e apresentações deixam margem tanto para debates de fôlego como para briguinhas bairristas que há muito estão ultrapassadas, mas que funcionam como iscas de clicadas e likes nesse nosso mundo de belicismos digitais.
O contraste entre o volume de pensamento contido nas mostras, catálogos e antologias e o aspecto raso com que a grande mídia vem tratando a efeméride é gritante, pois o pouco que se viu na imprensa sobre o tema é eivado de erros históricos, chamados usualmente de fake news, que perpetuam equívocos largamente repetidos como a suposta participação de Tarsila do Amaral na Semana (ela estava em Paris e só se aproximou do grupo posteriormente) ou então a conspiratória ideia de que as vaias ouvidas durante as apresentações no Municipal teriam sido claques contratadas pelos próprios artistas para valorizar suas performances, algo que lembra as manipulações cotidianas dos tempos contemporâneos e que foi desmentido com veemência por Oswald de Andrade em Diário Confessional, obra reeditada pela Cia. das Letras junto com outras obras de sua autoria.
Apesar das acusações de excessivo paulistocentrismo e de um certo esforço de apontar para uma série de lacunas e contradições presentes naquele grupo, é cada vez mais consensual entre os pesquisadores a ideia de que a importância da Semana é mais simbólica do que real. Também não é mais novidade o fato de que muitos dos autores participantes só futuramente consolidaram sua modernidade e que é preciso expandir o olhar para além de São Paulo, para fora dos marcos de 1922 e para segmentos sociais ignorados pelos modernistas no período. Isso não tira a importância emblemática da Semana, enquanto momento de condensação de um processo lento e mais abrangente de modernização no país. Talvez haja nessa observação mais atenta e diversa a confirmação de que algo premonitório havia na resposta dada por Manuel Bandeira a um repórter em 1952. Disse o poeta, cujo poema Os Sapos, lido durante a semana, foi alvo de vaias: “Acho perfeitamente dispensável comemorar o trigésimo aniversário da Semana. Que esperem o centenário. Se no ano 2022 ainda se lembrarem disso, então sim”.
Capas dos livros “Semana de 22: Antes do Começo, depois do fim”, “O guarda roupa modernista” e “Modernismos 1922-2022”. Fotos: Reprodução
Visões que se transformam
O pontapé inicial para as reflexões acerca dos desdobramentos da semana teve início no ano passado, com uma série de encontros patrocinados por um consórcio de instituições culturais paulistas: Pinacoteca do Estado, Museu de Arte Contemporânea de São Paulo e Instituto Moreira Salles. Iluminar pontos cegos, situar a Semana num contexto menos mítico e mais real, inserindo-a em um processo de formação da cultura nacional mais plural, foram alguns dos objetivos do evento, que se desdobrou em 10 encontros entre março e dezembro, com dezenas de convidados e que podem ser vistos no Youtube dos organizadores. Também foi em 2021 que muitos museus (MAM-SP, MAC-USP e Pinacoteca, entre eles) preferiram realizar suas exposições em torno do modernismo, desvinculando-se da obrigatoriedade de participar do calendário celebratório e optando por uma ótica menos nuclear. O Museu de Arte Moderna destacou-se com a mostra e o catálogo Moderno onde? Moderno quando?, com curadoria de Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros, e que não por acaso adotou como intertítulo a frase: “A Semana de 22 como motivação”, evidenciando a importância da Semana como elemento fundamental, mas não necessariamente a locomotiva do processo de “aggiornamento” da arte brasileira, que se desdobrou de maneiras diversas no tempo e no território.
Aliás, os termos adotados nos títulos das inúmeras publicações já lançadas ou ainda no prelo sobre o tema são muito ilustrativos: Semana de 22: Antes do Começo, depois do fim (Estação Brasil), Modernidade em Branco e Preto e Modernismos 1922-2022 (Cia. das Letras) traduzem de forma bastante sintética algumas das questões fundamentais que constituem a coluna vertebral de como o movimento de São Paulo vem sendo pensado na atualidade.
Afinal, como 2022 vê 1922? E como essa visão foi sendo transformada ao longo do tempo, ajudando-nos a compreender mais sobre o momento histórico e também sobre o momento atual? Como escreve Ana Maria de Moraes Belluzzo em texto publicado no catálogo de Moderno onde? Moderno quando?, trata-se de um projeto coletivo de interpretação nacional, que nos coloca diante de diferentes modernismos. Ela lembra que não podemos esquecer que, para além da Semana de 22, temos outros momentos de grande densidade histórica que ajudaram a compor a nossa modernidade, como por exemplo o Salão Revolucionário de 1931, do qual participaram em intensidade ainda maior grandes nomes da arte nacional (como Cícero Dias, Ismael Nery, Guignard, Goeldi…). Como outros eventos de destaque no campo modernista é possível citar ainda o Congresso Regionalista, realizado em 1926 em Recife, além de uma série de publicações, revistas ou manifestos publicados em diferentes lugares do território brasileiro sem que a Semana fosse sequer mencionada. “O modernismo não pode ser visto como um cânone, mas sim como um momento de riqueza muito grande”, diz ela. “Não sei porque esse pessoal continua querendo saber onde começa. Não começa, pipoca”, ironiza ela. “Quem faz essa pergunta pensa que a história é um processo linear”, explica a pesquisadora, que organiza este ano o programa Modernismo Hoje, uma série de 11 episódios que discutem a emergência e desenvolvimento do modernismo, uma iniciativa da Academia Paulista de Letras.
Ninguém sabia direito o que era aquilo em 1922, explica Thiago Gil de Oliveira Virava, autor de Um Boxeur na Arena: Oswald de Andrade e as Artes Visuais no Brasil, a ser lançado esse ano pela Biblioteca Brasiliana e o Sesc, junto com outros trabalhos premiados que tratam da nossa dupla celebração do ano: o centenário da Semana de Arte Moderna e o bicentenário da Independência. Naquele momento, segundo ele, o que diferencia o movimento é que existe um grupo, que começou a se formar em torno da exposição de Anita Malfatti em 1917, cujos participantes se defendem uns aos outros e se preparam para essa ofensiva. Evidentemente havia uma articulação política e não à toa escolheram o ano de 1922 (chegaram a cogitar organizar a Semana em 1921, mas a coincidência com as celebrações do centenário da Independência os fez adiar a execução). O projeto vai se constituindo aos poucos, tendo como base tanto uma articulação com as vanguardas parisienses – com Tarsila e Oswald posteriormente, entre 1923 e 1928, atuando como espécies de embaixadores na capital francesa – e a tentativa de criar uma rede nacional de troca e interlocução. “O que não significa que eles estivessem determinando como seria o modernismo nesses lugares”, alerta.
Sem título, de Roberto Rodrigues (1926), exposta em “Fluxos do Moderno “na Casa Roberto Marinho. Foto: Cortesia Casa Roberto Marinho
Um tema que não se esgota
“1922 é um marco do modernismo, se foi construído a posteriori, não importa” destaca Lauro Cavalcanti, diretor da Casa Roberto Marinho e curador da mostra Fluxos do Moderno, em cartaz no instituto carioca até junho. Reunindo obras de nomes incontornáveis da Semana e artistas menos conhecidos na atualidade, como Roberto Rodrigues, irmão de Nelson Rodrigues que foi assassinado aos 23 anos por uma jornalista – que se indignou com a publicação de uma charge aludindo uma suposta traição dela -, a mostra tem momentos de grande atualidade e defesa dos ideais modernistas. “Mais do que nunca no Brasil é necessário comemorar a modernidade. Estamos num período de trevas e essa resistência, esse momento de força de possibilidades, de abertura é fundamental”, conclui.
“Este é um tema que não se esgota”, afirma Gênese Andrade, organizadora da antologia Modernismos 1922-2022 e que define a Semana como a primeira performance de grande repercussão no país. “Como as performances costumam ser, foi muito pouco vista. Fala-se sobre uma cena sobre a qual há apenas uma memória turva, uma fama sem lastro muitas vezes”, afirma. Talvez seja por esses contornos tão fluidos que ela se preste tão bem ao papel de síntese de um processo díspar, espalhado, prolongado e desigual como foi a penetração do pensamento e da linguagem moderna no Brasil.
Um outro aspecto interessante desse centenário e que possivelmente venha a render frutos no futuro é o esforço de colocar em diálogo pensadores de diferentes formações, áreas de conhecimento, regiões do país e até mesmo de diferentes gerações. Memórias, reflexões, questionamentos compõem um panorama diverso, às vezes até mesmo contraditório, mas complementar, como é possível descobrir nas páginas da antologia. Ali estão reunidos desde estudos que ajudam a compreender a simbiose entre o projeto da Semana e um projeto maior de elevação de São Paulo à liderança política e econômica nacional. Felipe Chaimovich faz, por exemplo, uma interessante análise sobre as articulações da família Prado com as formas de ver e patrocinar as artes brasileiras. E Luiz Ruffato ilumina a experiência fundamental das revistas literárias que brotaram por toda a parte no Brasil na primeira metade do século 20. Também sobressaem-se em muitos desses textos críticas e reflexões sobre o caráter elitista e excludente do movimento (em termos raciais e de gênero, sobretudo na literatura), mas predomina o esforço coletivo de tentar entender como as interpretações em torno do movimento paulista foram tornando-se diferentes e mais complexas ao longo do tempo.
Dilui-se, portanto, a associação entre a Semana e a ideia de vanguarda. Para usar um outro termo militar, que não o de pelotão de frente (afinal, a modernidade foi importada da França, com anos de atraso, e adaptou-se de diferentes maneiras pelo país afora), pode-se adotar a metáfora do canhão, como instrumento que lança um projétil muito à frente, como uma arma de efeito prolongado.
Modernismos alternativos e cultura popular
Há, sobretudo em São Paulo, opções de todas as ordens para quem quiser mergulhar nesse universo. A exposição Era uma vez o Moderno, em cartaz no Centro Cultural Fiesp e organizada em parceria com o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), vem sendo apontada como a maior mostra sobre o modernismo brasileiro já realizada, com mais de 300 obras e documentos que normalmente ficam preservados do público nas reservas técnicas da instituição da USP, que tem entre suas preciosidades os arquivos e a coleção de Mário de Andrade, material fartamente revisitado em publicações, estudos e teses.
Também com dimensões estonteantes há a exposição Raio-que-o-parta, que faz parte das celebrações do Sesc-SP em torno da Semana e que reúne um conjunto expressivo de mais de 600 trabalhos, realizados por 200 artistas de diferentes regiões, gerações e linguagens. A mostra dá espaço importante para formas de expressão mais populares como os impressos, a fotografia e a arte popular, usualmente menos valorizados pela elite letrada, mas que têm um papel fundamental na disseminação do moderno no país.
A força da cultura popular e o apagamento da questão racial também constituem elementos importantes do livro Modernidade em Preto e Branco, de autoria do pesquisador Rafael Cardoso. “Os nomes do nosso cânone derivam quase exclusivamente das esferas elitistas de literatura, arquitetura, arte e música eruditas, enquanto os modernismos alternativos que brotaram da cultura popular e de massa são esquecidos ou ignorados”, escreve o autor que analisa, dentre outros, os casos de Arthur Thimoteo da Costa e Lima Barreto, pintor e escultor negros, ambos mortos em 1922, cujo modernismo “alternativo” foi longamente ignorado. Mas como diz o próprio Cardoso, “o passado sempre dá um jeito de voltar a assombrar o presente”.
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Composição (Retirantes), de Cândido Portinari. Foto: Coleção de Artes Visuais do IEB-USP / Divulgação
"Estudo do homem," Anita Malfatti, 1915-16. Foto: Coleção de Artes Visuais do IEB-USP / Divulgação
A questão racial, que nos últimos anos têm rendido algumas das mais inovadoras reinterpretações da história do país, também esteve presente de forma marcante no ciclo de eventos organizado pelo próprio Theatro Municipal, palco das ações de 100 anos atrás. Numa fala marcada por denúncia e reflexão, o poeta e pesquisador Allan da Rosa desconstruiu mitos e não apenas demarcou claramente o caráter elitista do evento, como descreveu o que ocorria na cidade de São Paulo enquanto a elite se digladiava nos palcos do teatro. Avesso à celebração do popular como explosão de alegria carnavalesca, Allan falou sobre urbanidade, exclusão, opacidade e esquecimentos. Segundo ele, apenas lembrar que a Semana foi feita sob o patrocínio da aristocracia cafeeira, aliada ao capital financeiro e ao capital comercial, é chover no molhado. É importante olhar para a cultura urbana, ignorada, presente nos cantos de trabalho, na cozinha, no cotidiano. É importante pensar naquelas pessoas que nem souberam da Semana, pois esta trazia “um olhar muito branco, tetricamente branco, apesar de louvar encontros carnavalizados”, conclui, lembrando que naquele início de século o projeto vigente desde o final do século 19 era o branqueamento da nação. E ele alerta: “Quando a gente troca um recalque imperial solene por outro recalque, não é um desrecalque”.
Mulheres modernistas
Nem só de Mários e Oswalds, Anitas e Tarsilas se faz o modernismo. Evidentemente, os Andrade, como muitos chamam os dois escritores maiores do modernismo e que fizeram sua aparição de primeira ordem com a Semana de 22, são incontornáveis. Afinal, desenvolveram ao longo de décadas alguns dos mais sólidos projetos de cultura para o país, bastando citar o Manifesto Antropofágico, formulado por Oswald em 1928, e todo o projeto de levantamento e preservação do patrimônio nacional capitaneado pelo autor de Macunaíma. Mário, aliás, é um dos poucos a ser lembrado nessas celebrações com uma exposição individual, em cartaz no Museu Afro Brasil.
No caso das duas pintoras, é interessante notar como elas foram ao mesmo tempo eleitas a um papel de destaque na arte brasileira a partir da proximidade com os ideários da Semana, mas ao mesmo tempo pagaram um preço por isso. Como demonstra Ana Paula Simioni em Mulheres Modernistas, seu envolvimento com o grupo acabou fazendo com que o olhar sobre suas produções se restringisse ao período inicial, com o resto de sua obra sendo por muito tempo vista como decadente ou inferior. Elas também acabam sendo enquadradas em modelos estreitos, Anita sendo eternamente enquadrada no papel de “mártir”, vítima dos ataques de Monteiro Lobato na crítica à sua exposição de 1917, e Tarsila no papel de “musa”, da mulher bela e sedutora.
Segundo Simioni, um dos efeitos positivos de celebrações como essa em torno da Semana seria uma recuperação do modernismo como tema de pesquisa, com destaque para estudos que buscam resgatar artistas ou fases menos estudadas, sobretudo entre artistas mulheres que foram longo tempo relegadas a um papel secundário ou inexistente na história da arte. Uma dessas figuras que segundo ela mereceria ser melhor conhecida é Nair de Teffé, primeira caricaturista do Brasil e possivelmente do mundo e que se casou com ninguém menos que o presidente Hermes da Fonseca. Dentre os vários méritos de Nair está o de ter levado O corta-jaca, composição popular de Chiquinha Gonzaga, para dentro do Palácio do Catete em 1914.
“Nos digladiamos pelo passado porque vivemos um presente de destruição”, diz Ana Paula, em sintonia com a ideia defendida por Lauro Cavalcanti de que mais do que nunca é necessário comemorar a modernidade, como forma de se contrapor a destruição de seu legado – basta ver o desmonte das estruturas culturais que vem sendo estrategicamente orquestrada pelo atual governo, como por exemplo desmantelamento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), um dos mais importantes legados de Mário de Andrade e de sua geração – sem cair na armadilha de usar questões vitais da contemporaneidade para, anacronicamente, fazer cobranças aos agentes de antigamente. Afinal, é preciso ter consciência de que, como diz Thiago Virava, temos uma “modernidade incompleta, falha e cheia de buracos”.