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Inhotim reforça seu caráter público

Abdias Nascimento, Raízes n.º 1, exposta em Inhotim
Abdias Nascimento, Raízes n.º 1 - Tributo a Aguinaldo Camargo, 1987. Foto: Coleção Museu de Arte Negra - IPEAFRO

Em junho, o Instituto Inhotim inaugurou um novo momento de sua história. O empresário, colecionador, mecenas e fundador do Inhotim, Bernardo Paz, transferiu de forma definitiva para a instituição uma inestimável coleção composta de aproximadamente 330 obras de sua coleção de arte contemporânea nacional e internacional, incluindo todas as 23 galerias e obras permanentes do museu.
A pandemia e as dificuldades econômicas que exigiram a redução de equipes de trabalho não conseguiram tornar opaco o brilho dos jardins que albergam mais 4,3 mil espécies de diversos continentes e que formam parte do Jardim Botânico do Instituto.

A doação de Bernardo Paz encabeça o projeto O Inhotim de Todos e Para Todos, que tem como objetivo fortalecer a vocação pública da instituição, seu caráter de museu vivo e seu colecionismo ativo.

O movimento inclui também a constituição de uma nova governança, com representatividade da sociedade civil, liderada por uma nova diretoria formada por Lucas Pessôa, como diretor presidente, Paula Azevedo, diretora vice-presidente, e Julieta González, diretora artística.

A coleção tem expoentes da cena nacional e internacional, como Anri Sala, Arthur Jafa, Babette Mangolte, Chris Burden, Dan Graham, David Lamelas, Do Ho Suh, Ernesto Neto, Matthew Barney, Nelson Leirner, Rosana Paulino, Olafur Eliasson e Yayoi Kusama.

A doação, de caráter definitivo e irrevogável, contempla também as galerias emblemáticas de artistas como Adriana Varejão, Carlos Garaicoa, Cildo Meireles, Doug Aitken, Lygia Pape, Matthew Barney, Miguel Rio Branco, Valeska Soares, Rivane Neuenschwander e Tunga, entre outros.

“O Inhotim nasceu de um projeto de vida e foi se ampliando ao longo dos anos. A doação é um processo natural desse percurso. O Inhotim não é meu, é de todo mundo”, afirma Bernardo Paz, fundador do Instituto.

Com a chegada da nova diretoria em janeiro de 2022, o Inhotim deu início a um processo de ampliação da participação da sociedade civil. Para isso, uma das primeiras medidas foi a constituição de uma nova e moderna governança, por meio da formação de um novo Conselho Deliberativo.

O novo Conselho terá Bernardo Paz como presidente e o empresário mineiro Eugênio Mattar como vice-presidente. Junto a eles estarão 18 pessoas, entre executivos de diversos setores e agentes culturais como Jandaraci Araújo, cofundadora do Conselheiras 101 – programa que visa à inclusão de mulheres negras em conselhos de administração – e CFO da 99jobs; Susana Steinbruch, colecionadora e conselheira fundadora da Fundación Museo Reina Sofia; e Guilherme Teixeira, diretor da Barbosa Mello Construtora.

O Conselho passa a ser a instância máxima da instituição, com mandatos alternados e estabelecidos, assegurando sua constante renovação. O grupo, neste momento constituído por 20 pessoas – que deverá ser ampliado até o fim do ano com mais dez integrantes –, terá mandatos temporários, renovados de três a quatro anos. O novo Conselho será responsável pelas deliberações administrativas e financeiras do Instituto, mas não terá papel decisório na programação cultural, que se mantém independente e organizada pela diretoria artística. Além do grupo Deliberativo, o Inhotim também terá um Conselho Fiscal, com a função de acompanhar e fiscalizar as prestações de contas e a organização financeira da instituição.

O objetivo desta proposta organizacional é permitir maior transparência e contato com a sociedade como um todo, dada a magnitude do projeto.

Novas exposições

A curadora Julieta González e o curador assistente de Inhotim, Deri Andrade, inauguraram na Galeria da Mata o Segundo Ato do Museu de Arte Negra, idealizado por Abdias Nascimento. A exposição, realizada em parceria com o IPEAFRO, enfoca a história do Teatro Experimental do Negro, criado em 1944. Documentos, livros e fotografias mostram o quanto, já nos anos 1950, era profícuo o movimento antirracista e pelo reconhecimento da arte negra no Brasil. A carreira de Abdias Nascimento foi permeada pela importância que, para ele, tinham as raízes africanas na cultura do País. Foi isso que guiou sua trajetória como dramaturgo, escritor, artista plástico e parlamentar.

Essa mostra cresce em conversa com o vídeo apresentado na Galeria da Praça, de Isaac Julien, Looking for Langston: I Dream a World, que parte de uma pesquisa sobre a vida do poeta, ativista social, dramaturgo afro-americano Langston Hughes (1902-1967), seus amigos e colegas escritores negros que formaram o Renascimento do Harlem, movimento que ocorreu no começo do século 20, baseado nas expressões afro-americanas e que refletiam sobre identidade e sexualidade.

A investigação sobre personalidades proeminentes do século 20, como Langston, é uma constante na obra de Isaac Julien. O artista se debruça sobre a vida de personagens de começo de século, com o objetivo de revisitar as narrativas históricas oficiais.
O vídeo reúne imagens ficcionais, reproduzindo impecavelmente costumes de época, junto a imagens jornalísticas, No caso de Hughes, Julien faz uso da ficção para refletir e desmistificar o estereótipo do homem homossexual, negro e americano que, na década de 20, não podia se expressar como gostaria. “É uma tentativa de preencher as lacunas da história com uma ficção”, diz Douglas de Freitas, curador do Inhotim.

Isaac Julien, Stars, da série Looking for Langston Vintage, 1989-2017. Foto: Cortesia do artista

 

A doação contribui para tornar Inhotim mais ativo

Por Patrícia Rousseaux

arte!brasileiros conversou com a curadora Julieta González, nova diretora criativa que traz para Inhotim uma importante trajetória internacional. Atuou como curadora em instituições como o Tate Modern (Londres), o Masp, o Museo Tamayo (Cidade do México), o Museu do Bronx (Nova York) e o Museu de Belas Artes de Caracas. Em 2019, deixou o Museo Jumex, também no México, mas continuou trabalhando como curadora independente.

ARTE!✱ – Julieta, gostaríamos que comentasse algum exemplo de curadoria que lhe pareça emblemático na tua carreira.

Eu cito duas exposições que fiz com quase 15 anos de diferença, mas que tentaram, cada uma à sua maneira, desmontar algumas das matrizes de pensamento ocidental que dão forma aos nossos regimes visuais, culturais e museológicos. A primeira é Etnografía: Modo de Empleo – Arqueología, Bellas Artes, Etnografía y Variedades, que realizei no Museu de Belas Artes de Caracas, em 2002. Essa mostra desmontava a mirada etnográfica sobre o “outro” e fazia uma dissecção das metodologias antropológicas e suas lógicas com respeito à arte contemporânea.

A segunda foi Memorias del Subdesarrollo: Instancias Tempranas de Estéticas Descoloniales en América Latina (1960s-1980s), mostra que partiu do meu trabalho de tese de mestrado. Foi uma pesquisa para o projeto iniciado pelo Getty Institute, Pacific Standard Time, Latin America in LA, que pretendia tirar a produção artística da América Latina desses anos do nicho de conceitualismo latino-americano, a qual havia sido consignado nestas últimas duas décadas, e entender as especificidades de diversas produções sobre a lógica desenvolvimentista que permeou as diversas modernidades no continente. Acho que as duas mostras falam de uma constante na minha pesquisa como curadora, de pensar e articular o nosso discurso a partir da América Latina.

Julieta González, diretora criativa do Inhotim
Julieta González, diretora criativa do Inhotim. Foto: Patricia Rousseaux

Você chega a Inhotim num momento importante. Como você o vê?

A doação contribui para tornar Inhotim mais ativo, com uma programação pública mais intensa, mudanças mais dinâmicas nas galerias, colaborações com outras instituições, uma integração ainda maior entre arte e natureza e com as comunidades do entorno.

O que Inhotim traz como desafio? Como você resolveu a programação no caso das atuais inaugurações? Qual é o foco para este espaço expositivo?

Inhotim é um lugar como nenhum outro no mundo, e essa diferença traz muitos desafios que incitam a pensar muito além da arte e da exposição num sistema, indo para uma ecologia, onde a arte se encontra em relação com o território, a comunidade e a natureza.

No caso das inaugurações atuais, trabalhamos muito para dar uma forma mais específica ao projeto de Abdias Nascimento e convertê-lo no eixo norteador do programa até o final de 2023, quando terá fim esta parceria com IPEAFRO, que realmente inaugura uma virada epistêmica no pensamento, programa e na coleção do Inhotim, e uma relação mais permanente e estável com diversas comunidades, entre elas, a afro-brasileira.

Como são decididos os orçamentos na instituição? Um projeto é apresentado e então busca-se um financiamento, ou há um orçamento anual, por projeto, ao qual é preciso se adequar?

Estamos num momento inicial onde muitas coisas estão sendo reformuladas, mas o procedimento é bem parecido com o de outras instituições: fazemos uma previsão orçamentária, e o programa é construído a partir desses recursos disponíveis.

Como funciona a gestão? Vocês discutem os projetos em conjunto, entendendo e adequando conceitos e prioridades?

A diretoria artística é bastante autônoma no sentido que, depois de alinhar os pontos essenciais do programa, compartilhamos com o diretor-presidente e a diretora-vice presidente para viabilizar financeiramente ou para articular eventuais colaborações institucionais.

Qual é a relação da diretoria – mais especificamente da diretoria artística, sua neste caso – com a curadoria de arte, atualmente de Allan Schwartzman e Fernanda Arruda?

Allan Schwartzman é uma figura fundamental do Inhotim, iniciou este projeto com Bernardo Paz. Hoje, junto com a Fernanda Arruda, trabalha mais perto do Bernardo na aquisição de obras para sua coleção e em algumas das comissões artísticas para o Instituto. A direção artística e a equipe curatorial possuem um diálogo com eles sobre o programa e pontos em que as diversas estratégias podem se alinhar. Herdamos vários projetos iniciados por Allan e Fernanda, e que agora irão se concretizar, como a galeria para as obras de Yayoi Kusama, entre outros.

Houve um boato de que Inhotim estaria interessado em comprar a obra do pavilhão brasileiro de Veneza, do artista Jonathas de Andrade. Procede? Num caso desses quem toma as decisões de incorporar obras ao acervo do museu?

Com a doação das obras ao acervo de Inhotim, daqui para frente as aquisições serão definidas a partir de estratégias periódicas. Sobre sua primeira pergunta, essa possibilidade não entrou nas nossas estratégias.

Quais são os próximos movimentos?

São muitos. Por agora, os próximos atos da parceria com o IPEAFRO e a reorganização das salas temporárias de Inhotim, em diálogo com os temas que articulam as exposições de Abdias com as últimas aquisições de Bernardo Paz – muitas das quais formam parte desta doação. Estamos também dando continuidade a projetos infraestruturais como remodelação de galerias, conclusão de galerias que foram projetadas com anterioridade à nossa chegada, e projetos novos sobre os quais falaremos quando estiverem mais adiantados.

A obra de Bispo e suas linhagens

Em primeiro plano, a obra "Manto de Apresentação" na exposição "Bispo do Rosário Aparição, Impregnação e Impacto", no Itaú Cultural. Foto: André Seiti
Em primeiro plano, a obra "Manto de Apresentação" na exposição "Bispo do Rosário Aparição, Impregnação e Impacto", no Itaú Cultural. Foto: André Seiti

O fascínio provocado pela exposição de Arthur Bispo do Rosário tem origem múltipla: a densidade poética e plástica daquilo que ele produziu; a intensidade de sua pulsão criativa e de recriação do mundo – buscando de forma incansável repertoriar, organizar e reelaborar tudo à sua volta; mas também a força propulsora de sua experiência, que em alguns momentos parece sintetizar e dialogar com alguns dos veios principais da arte moderna e contemporânea brasileira, como fica evidente nos diálogos propostos pela mostra entre os trabalhos criados pelo Bispo e uma seleção de cerca de 200 obras de 50 artistas convidados, que iluminam em contexto amplo um enorme campo de possibilidades para estabelecer relações, de convergência, sintonia ou influência.

Sem ter um caráter didático ou cronológico, a exposição remete sem cessar à experiência trágica e profunda do autor, encerrado por décadas em manicômios e enfatiza o aspecto único e coeso de suas obras. Não à toa Ricardo Resende, diretor do Museu Bispo do Rosário (mBRAC) e curador da mostra juntamente com Diana Kolker, enfatiza que se trata de uma obra de um trabalho só, mesmo que composto de mil peças (das quais aproximadamente 400 foram trazidas a São Paulo). São painéis, bordados, vestes, objetos, assemblages que ele construiu metódica e compulsivamente ao longo de sua vida. Evidentemente, cada peça ou conjunto tem suas características particulares, lança mão de materiais e procedimentos específicos, mas elas reverberam entre si com uma intensidade que a expografia só busca acentuar, trazendo para o espaço do Itaú Cultural elementos que fazem referência à arquitetura da Colônia Juliano Moreira, instituição onde ele viveu como interno, a exemplo do uso de estruturas cubiculares (celas) e de paredes vazadas como os cobogós presentes no edifício.

Internado pela primeira vez em 1938, data em que dizia ter recebido a revelação de que seria o filho de Deus e a missão divina de recriar todos os objetos presentes no mundo, Bispo constrói uma verdadeira cosmogonia. “Tudo que ele organiza e confecciona são a representação do objeto, são sistemas representacionais do mundo”, explica Diana. Como resume a curadora-pedagoga do mBRAC, a narrativa que ele constrói não é racional, moderna. Ele estabelece nexos, sugere conexões muitas vezes improváveis entre coisas como religiosidade, pulsão inconsciente e criação artística. Mais do que apresentar respostas, a exposição devolve ao espectador uma série de perguntas essenciais: Como definir o que é arte? O fazer manual e o esforço de organização não são afinal um exercício de cura? Não seria a arte uma forma de conexão com instâncias muito mais profundas (místicas ou inconscientes), que vão muito além de um circuito autorreferente?

Materiais precários

É marcante a presença entre suas construções de listas, coleções e catálogos de objetos similares, como sandálias, nomes de mulheres ou mapas. Mas além dos traços estilísticos recorrentes, pulsam nesses objetos elementos cotidianos da vida desse homem negro, pobre, encarcerado ao longo de praticamente toda a sua vida adulta. A precariedade dos materiais – que remetem ao caráter pobre, um tanto tosco dos mercados de secos e molhados ou dos camelôs – fala sobre as condições difíceis enfrentadas nas instituições manicomiais. É profundamente significativo que muitos dos elementos que ele incorpora tenham sido obtidos por ele num processo permanente de acúmulo e doação.

A própria linha, já desgastada, que ele usa para bordar – com uma habilidade provavelmente advinda da tradição do bordado na sergipana Japaratuba, sua cidade natal, ou do desenvolvimento da técnica nos tempos em que serviu à Marinha – é obtida de velhos uniformes azulados e roupas de cama, que desfia sem parar. Tal fragilidade torna-se uma dificuldade a mais na preservação dessa obra, cuja sobrevivência durante sua vida e logo após a morte deve-se à intervenção de um conjunto de pessoas sensíveis à força dessa produção. Afinal, sua obra ainda não estava inscrita no circuito da arte. Nos últimos anos seu acervo passou por uma série de procedimentos de conservação, limpeza e catalogação, porém é inevitável notar os efeitos do tempo sobre as peças, sobretudo no embotamento da cor, sensível em algumas peças icônicas como o Manto da Apresentação e Grande Veleiro, que tiveram participações de destaque em mostras como as bienais de São Paulo (2000 e 2012) e Veneza (1995 e 2013).

Esse caráter efêmero de sua produção, um desafio museológico que torna ainda mais imperdíveis exposições como essa, é uma das diversas chaves de entrada para a relação entre sua obra e o amplo recorte da produção contemporânea representada na mostra. Parece predominar na seleção um tipo de trabalho em sintonia formal ou poética com aquele desenvolvido por ele, uma produção artística que muitas vezes deixa de lado as noções de obra perene em busca de uma interação maior entre arte e vida, que valoriza uma ação prática e poética no mundo, sem preocupar-se com a fragilidade, pureza ou nobreza dos materiais empregados, como por exemplo nos carros de sucata de Arlindo Oliveira, do Atelier Gaia, projeto coletivo de arteterapia mantido pelo mBRAC e criado em 1992 frequentado por artistas usuários dos serviços de saúde mental. Outro recorte importante da seleção é aquele que contempla os artistas que transitaram por essa fronteira extensa entre arte e psiquê, retratando e resgatando o universo da loucura (Regina Silveira e Monica Nador), incorporando-se a projetos pioneiros (Maria Leontina, Almir Mavignier e Abraham Palatnik) ou usando a criação como forma de terapia (pacientes da Dra. Nise da Silveira no Centro Psiquiátrico Pedro 2º, que hoje compõem o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente).

Para além dessas referências históricas ou formais, ecoa por toda a exposição uma espécie de sintonia conceitual, afetiva, que une os gestos de Bispo há produção de artistas de diferentes gerações, autores que se reapropriam ou simplesmente reverberam de diferentes maneiras sua forma potente de agir no mundo. Tanto as obras quanto os testemunhos coletados pelos curadores dão indícios claros desse impacto. Rosana Palazyan – presente com delicados bordados, usando fios de cabelo ou páginas de caderno pautado – diz ter se sentido autorizada a expor a costura e o bordado quando teve o primeiro contato com sua obra, na exposição realizada em 1989, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, logo após a morte dele. Jaime Lauriano, autor de um dos poucos trabalhos comissionados da exposição, fala em Bispo habitando seu próprio corpo, de um encontro em dimensão transistórica. Carmela Gross – presente com duas potentes obras, A Negra e Cabeças – lembra-se de ter ficado petrificada em seu primeiro encontro com seu trabalho e Pedro Moraleida explicita no próprio trabalho essa conexão, ao inserir um retrato seu em uma de suas obras e escrever em outra: “Bispo é meu pai”.

O abandono do Valongo

Sítio Arqueológico do Cais do Valongo e Cais da Imperatriz
Sítio Arqueológico do Cais do Valongo e Cais da Imperatriz, 2014. Foto: João Maurício Bragança

Difícil encontrar lugar ou situação que condense de forma mais paradigmática contradições históricas e sociais do País como a região do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, que há anos se encontra ameaçada pelo retrocesso e descaso. Construído em 1811 para receber os milhares de africanos que tornaram o Brasil – e o Rio –  o principal porto de destino do tráfico escravo ao longo do século 19 e reformado em 1843 para receber Thereza Christina, que viria a ser Imperatriz do Brasil, o Valongo acabou por cair no esquecimento ao longo do século 20, enterrado sob os escombros da reforma Pereira Passos. Sobrevivia apenas nos registros históricos e iconográficos de autores como Maria Graham, Debret, Rugendas e Thomas Ender. Foi redescoberto em 2011, durante as escavações para a reforma da área, que deveria transformar-se no prometido Porto Maravilha, cartão postal ligado ao projeto dos Jogos Olímpicos de 2016. Dois museus nasceram nesse entorno, um deles ironicamente intitulado de Museu do Amanhã, enquanto o cais real continua inundando quando há chuva.

Durante os trabalhos de prospecção foram encontrados milhares de registros arqueológicos, que permitiriam conhecer um pouco mais da cultura material carioca da primeira metade do século 19, mas que ainda hoje se acumulam longe dos olhos do público em 243 contêineres, abertos de quando em quando para limpeza e fiscalização, mas rapidamente escondidos novamente. Graças a uma forte movimentação da sociedade civil, o local foi alçado à categoria de Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco em 2018 – em categoria semelhante a de outros sítios históricos de memória sensível como o campo de concentração de Auschwitz ou a cidade de Hiroshima. Mas o cais e seu entorno encontram-se ainda em completo abandono, descuidados pelas instituições que deveriam salvaguardá-lo.

“Todos estão faltando com sua responsabilidade, alguns de forma escandalosa, outros por omissão”, afirma a defensora geral, Rita Cristina de Oliveira, uma das responsáveis pelo esforço coletivo de recuperação do sítio e pela viabilização do projeto de preservação e disseminação dessa memória. Várias iniciativas, como diferentes processos judiciais envolvendo a defensoria e o Ministério Público Federal, vêm sendo tomadas, mas poucos resultados foram obtidos até o momento. São múltiplas as faces deste descaso.

Docas Pedro 2o

Recentemente, ganhou mais visibilidade a situação do prédio conhecido como Docas Pedro 2o, que passou por uma vistoria no último mês de maio. Atualmente sob a guarda da Fundação Palmares e em estado bastante precário, a construção necessita de medidas efetivas de proteção e restauro. Além de encontrar-se na área tombada em âmbito internacional, abrigar (mesmo que precariamente) todo o material levantado nas pesquisas arqueológicas da região e ser o local que naturalmente deve sediar o centro de referência da Celebração da Herança Africana e os trabalhos do Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana (LAAU), o prédio é ainda uma um marco fundamental da história arquitetônica do Rio de Janeiro. Projetado pelo engenheiro negro André Rebouças, é a primeira construção no País a não usar mão de obra escrava.

Docas Dom Pedro II, 2015. Foto: João Maurício Bragança
Docas Dom Pedro II, 2015. Foto: João Maurício Bragança

No entanto, os planos de recuperação ainda estão bastante distantes e inadequados. Vale destacar, por exemplo, que a Fundação Palmares tem planos de instalar parte de seus escritórios nesse endereço, deturpando e diminuindo a vocação memorialística do local. Ou que o projeto ora em tramitação no Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) não prevê o retorno do prédio às condições originais do século, mas incorpora mudanças estruturais realizadas ao longo do tempo, como algumas alterações realizadas quando o galpão funcionou como depósito de armamentos, durante a ditadura militar.

A precariedade reinante no Docas Pedro 2o se espraia pela área toda. O sítio onde funcionava o Cais – por onde, calcula-se, desembarcaram quase um milhão de escravizados em pouco mais de três décadas – também encontra-se bastante comprometido. Se ao longo do século 20, a região foi abafada por um manto de esquecimento e um evidente desejo de branqueamento de uma área central conhecida como Pequena África, ao longo do século 21 ainda reina uma estratégia de desmonte de políticas de enfrentamento do racismo e da desigualdade.

Novas perspectivas

Como afirmam os pleiteantes no relatório de candidatura à Unesco, “um sítio arqueológico não fala sozinho”, ele precisa de todo um esforço da sociedade para que seu caráter e simbolismo venham à tona. Há resistência e há esforço da comunidade, que se organiza para fazer frente ao descaso governamental, sobretudo na instância federal que, mais uma vez, põe em prática a estratégia do desmonte. Vários acordos firmados no passado ficaram no papel e houve alteração bastante prejudicial no conselho gestor, enfraquecendo seu papel. Algumas iniciativas mais recentes, como a destinação, no âmbito do Termo de Ajustamento de Conduta relacionado ao caso de assassinato de João Alberto Silveira Freitas nas instalações do Carrefour e as políticas de reparação vinculadas ao caso, trazem novas perspectivas de financiamento, com a destinação de R$ 2 milhões para financiar a elaboração de projeto museológico na região do Cais do Valongo, de um total de R$ 115 milhões pagos pela empresa. No entanto, a política de desmantelamento implementada pelo governo – expressa na frase de Bolsonaro de que seu governo precisava “desconstruir muita coisa” – segue valendo.

Felizmente nem tudo depende dessa estrutura rígida e negligente entre os poderes, como exemplifica e sinaliza o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), que acaba de reabrir sua exposição permanente, traçando o percurso de homens e mulheres trazidos como escravos ao Brasil, mostrando importantes vestígios das diversas escavações realizadas no local e abrindo espaço para um diálogo permanente com a arte contemporânea, como a mostra atual de Geleia da Rocinha.

Instalado em cima do cemitério que recebia os corpos dos desembarcados que não resistiam à brutalidade da viagem e dos maus-tratos, o Instituto nasce de uma descoberta casual, feita em 1996, quando a família Guimarães dos Anjos encontra ossadas sob sua casa durante uma reforma. Desde então a família vem desenvolvendo um importante trabalho de pesquisa e divulgação.

Além das exposições e dos vários trabalhos de pesquisa arqueológica (foram adquiridas áreas vizinhas para ampliar o alcance do Instituto), que devem ser retomados agora em julho, o Instituto realiza um importante trabalho de disseminação de conhecimento e memória. A partir de 2016, oferece gratuitamente uma visita guiada por 13 diferentes pontos desse circuito da herança africana nesse núcleo do Valongo, como o Largo da Prainha, o Jardim Suspenso e a casa de infância de Machado de Assis, na rua em frente ao Cais. O principal público-alvo são os educadores e estudantes de escola pública, mas é grande o interesse do público em geral, com longas filas de espera.

“É uma ferida aberta”, afirma Marco Antonio Teobaldo, curador do Instituto, traçando um paralelo entre o terror de nosso passado escravista e a imagem dos restos dos homens e mulheres pretos novos (como eram chamados os recém-chegados da África) que podem ser vistos nas janelas arqueológicas dentro do museu. Em termos de vestígios materiais, muito pouco foi encontrado. Em sua maioria miçangas, contas, pedras ritualísticas e outros objetos do gênero porque eram pessoas absolutamente desmunidas e sem qualquer tipo de tratamento funerário. As cerca de 60 mil ossadas encontradas nos quatro terrenos do Instituto foram desovados, empilhados, incinerados, revirados à terra. “Quando você mostra essa realidade, não tem como romantizar a escravidão. Daí a importância desse lugar”, diz Marco.

“Trato o Valongo como um sintoma”, diz o jornalista e historiador Rogério Pacheco Jordão, que dedicou seu doutorado ao estudo do apagamento ao que o Valongo foi submetido ao longo do tempo, por um claro processo de branqueamento, de esforço por ocultar de uma memória que pulsa e persiste. “O que apagou o Valongo foi o ideal de branqueamento”, diz ele referindo-se ao projeto de reforma e urbanização que buscou transformar o Rio de Janeiro em uma Paris dos trópicos.

O fotógrafo João Maurício Bragança, que também escolheu a região do Valongo como tema de pesquisa em cultura e territorialidade, trabalho que o levou a acompanhar de perto o esforço de resistência e afirmação dessa comunidade ancorada no centro do Rio, registrou em centenas de imagens os esforços de escavação, os circuitos históricos que levavam do cais ao Cemitério dos Pretos Novos ou ao Lazareto, para onde eram levados os escravos que vinham doentes, bem como as tradições preservadas em comunidades como a da Pedra do Sal, onde viviam os recém-libertos. Parte desse registro pode ser visto na exposição virtual O Jardim Secreto do Valongo, na plataforma online artsteps.com.

O que fica evidente nesse confronto entre o descaso e o esforço por trazer à luz os resquícios dessa história de repressão e resistência – lembrado há pouco por Chico Buarque em sua mais nova canção, Que Tal Um Samba? – é que há em jogo uma luta entre forças conflitantes, entre aqueles que pretendem iluminar e aprender com o passado e aqueles que continuam querendo deixá-lo sob esse manto de apagamento,

fortalecendo vícios antigos e recusando-se a aprender com sua própria história, confirmando, na prática, o que dizia a historiadora Emília Viotti Costa: “Um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado”.

Bienal de Veneza: Sonho em meio à guerra

Obras da série Sonhíferas, de Solange Pessoa
Obras da série "Sonhíferas", de Solange Pessoa, expostas no Arsenale. Foto: Roberto Marossi / Cortesia Bienal de Veneza

Talvez seja importante dizer que estive na 59ª Bienal de Veneza após ter visitado a documenta de Kassel e a Bienal de Berlim, ambas muito complexas, com trabalhos que demandam tempo e concentração, e que abordam a difícil realidade do mundo atual, cada uma a seu jeito.

Por isso, ver Veneza, de certa forma, foi uma suspensão do tempo presente, quase um alívio. A mostra a cargo da italiana radicada em Nova York Cecilia Alemani é, essencialmente, uma sucessão de belos e agradáveis trabalhos, nos dois locais-sede da mostra internacional: o Arsenale e o Pavilhão Central, no Giardini, onde também fica boa parte das representações nacionais.

Possivelmente, se eu tivesse feito o roteiro inverso, teria me decepcionado com uma mostra tão fora do contexto atual. Prorrogada, afinal, por conta dos anos mais difíceis da pandemia – ela estava prevista para 2021-, não há nada nela que lembre o caos sanitário e socioeconômico gerado pela Covid-19 e nem da guerra em curso na Europa.

Mesmo assim, há uma excelente menção ao estado disso tudo: é o vídeo do artista brasileiro Luis Roque, que filmou por algum tempo, em 2020, urubus vistos de sua janela, sobrevoando a vizinhança, como a anunciar as mortes que se seguiram aos milhares frente ao descaso do governo. Assim, Urubu acaba sendo um dos poucos contrapontos a esse contexto onírico da curadora, que usa emprestado o título do livro The Milk of Dreams (o leite dos sonhos), de Leonora Carrington (1917-2011) para conceituar sua própria mostra.

Ao menos a Bienal de Veneza tem tudo a ver com um debate atual e necessário: o da reparação. Dessa forma, exibir mais mulheres que homens e incluir negros e indígenas como nunca havia ocorrido por ali é um gesto importante, contra o apagamento de mais de um século na mais prestigiada bienal. Ao mesmo tempo, são trabalhos com uma camada estética muito dominante e um debate social, quando ocorre, sem contundência, o que torna toda a mostra muito reluzente, como nas pinturas de Jaider Esbell, em que o caráter onírico é sempre prevalente.

Essa condição um tanto homogênea, no entanto, não impede boas descobertas como as pinturas e bordados da cantora chilena Violeta Parra (1917-1967), que eram chamadas por ela de “canciones que se pintan”. Essas obras, aliás, foram expostas no Louvre, em 1964, sendo ela a primeira latina a ser exibida no museu francês. Em Veneza, Parra comparece com três bordados, técnica também usada por outra latino-americana, a haitiana Myrlande Constant. Por sua vez, fios são a base das sofisticadas esculturas de Ruth Asawa (1926-2013), uma ex-aluna da Black Mountain College.

Outro contraponto ao conjunto resplandecente da seleção de Alemani é a instalação de Barbara Kruger, Untitled (Beginning/Middle/End) (sem título/começo, meio e fim), aliás, das poucas obras comissionadas para esta edição. Ela faz referências ao tempo atual nos vídeos que compõe a instalação e repetem frases como “please care” (por favor, tome cuidado) e “please mourn” (por favor, faça o luto), referências explícitas às mortes da pandemia.

Artistas mulheres de fato estão muito bem representadas em amplos conjuntos, caso da portuguesa Paula Rego, que morreu agora em junho aos 87 anos, e da alemã Rosemarie Trockel, com um impressionante grupo de “pinturas” feitas através de bordados realizados por máquinas.

Há uma valorização da manualidade na elaboração das obras, que faz com que nesta mostra haja de fato muitos trabalhos bordados, costurados, produzidos de forma um tanto individualizada, dentro do ateliê. Nesse segmento, entre as obras mais impressionantes estão as esculturas de grandes dimensões em barro do argentino Gabriel Chaile. Em formatos antropomórficos, as cinco esculturas representam sua família e dialogam com a tradição das culturas pré-colombianas na América Latina.

Do Brasil, além de Roque e Esbell, participam também Lenora de Barros, Solange Pessoa e Rosana Paulino. As duas últimas comparecem com grandes conjuntos, especialmente Pessoa, que além de 14 imensos painéis com figuras orgânicas dentro do Arsenale, também ocupa o jardim fora do espaço com esculturas de pedra-sabão.

Cinco pequenas mostras dentro da curadoria de Alemani complementam ainda esta edição da bienal, cada uma sendo consideradas uma “cápsula do tempo”, algumas a cargo de curadoras externas. Elas simulam gabinetes de curiosidade, com suas vitrines e cores próprias, a partir de designers do estúdio Formafantasma.

Representações nacionais

Nesta edição, que vai até 27 de novembro, a artista que ganhou o Leão de Ouro como melhor participação na mostra internacional foi a norte-americana Simone Leigh, que abre e encerra The Milk of Dreams no Arsenale, além de representar os EUA nesta bienal.

As representações nacionais, aliás, seguem sendo uma confusão, onde ao contrário de um excelente nível na mostra internacional, padecem de uma discrepância impressionante, de pavilhões com ótimos trabalhos a outros bastante constrangedores, como ocorreu desta vez com Jonathas de Andrade, pelo Brasil. Ao levar para o pavilhão expressões populares brasileiras, ilustrando algumas delas com esculturas um tanto cafonas, o conjunto parecia perdido em traduções, sem levar em conta o contexto internacional da mostra.

O que se destaca: a Polônia, com uma imensa instalação em tecido de Malgorzata Mirga-Tas; a Bélgica, com Francys Alÿs e seus vídeos de crianças brincando em várias partes da Terra; a França, com Zineb Sedira, em um divertido filme sobre seu amor pelo cinema; e a Inglaterra, que recebeu o Leão de Ouro por melhor pavilhão, com Sonia Boyce e um trabalho que parte das vozes de cantoras negras. A questão agora é como manter essa representatividade toda nas futuras edições.

Kassel vira celeiro de trocas

Gudskul, Sekolah Temujalar, instalação pedagógica com áudios, câmeras, desenhos e jogos exposta no Fridericianum, na documenta quinze, em Kassel
Gudskul, "Sekolah Temujalar", instalação pedagógica com áudios, câmeras, desenhos e jogos exposta no Fridericianum, em Kassel. Foto: Patricia Rousseaux

“Faça amigas e amigos, não arte!”, defende o coletivo ruangrupa, logo na introdução do guia da documenta quinze, pela qual respondem como direção artística. A provocação está longe de ser uma frase de efeito. Toda a concepção desta mostra está voltada para a criação de espaços de encontros e trocas, a partir de uma ampla rede de artistas e coletivos. No site, estão elencados 72 grupos, mas como cada um trabalha com dezenas de colaboradores, estima-se que cerca de 1.500 pessoas participem desta edição da mostra.

Nesse sentido, difícil não perceber a energia que emana dos 39 lugares por onde a mostra se espalha em Kassel, na Alemanha, alguns recebendo apenas um grande painel, enquanto outros ocupam vários andares de antigas fábricas desocupadas. Em muitos deles, os próprios artistas vivem durante os cem dias da documenta, aberta no dia 18 de junho.

Criado em 2000, o ruangrupa é um coletivo da Indonésia que vem desenvolvendo propostas de caráter participativo. Entre elas, está o lumbung, que na zona rural do país é o celeiro onde é armazenado, de forma comunitária, o excedente da colheita de arroz. Assim, caso haja necessidade no futuro, qualquer pessoa da comunidade pode utilizar parte desta reserva. No campo da arte, simplificando, lumbung acaba sendo um sistema de trocas e, portanto, de solidariedade, de amizade.

Dentro do concorrido sistema de arte contemporânea, estas duas ideias estão longe de ser uma prática, mas a documenta quinze através da complexa rede criada pelo ruangrupa, aponta como não só elas são possíveis, como já ocorrem de fato. Aliás, o próprio coletivo foi ampliado, acolhendo cinco novos membros de quatro cidades: Kassel, Amsterdã, Jerusalém e Møn (Dinamarca).

Assim, o museu Fridericianum, primeira sede da documenta, em 1955, foi transformado em Fridskul, um espaço-escola, que é habitado por 11 coletivos, entre eles a Gudskul, de Jakarta, na Indonésia. Ele é composto por três coletivos, incluindo aí o próprio ruangrupa, e é voltado a consolidar recursos criativos e intelectuais, em sentido crítico à educação formal.

Todo o lado direito do térreo do Fridericianum é ocupado pela Gudskul, sendo que uma parte é acessível a visitantes para ver como funcionam os workshops, e outra restrita apenas às 40 pessoas que participam do projeto e vivem no museu, dormindo e comendo ali também, para desespero de alguns cidadãos de Kassel.

O mundo dos bebês

É também no térreo do Fridericianum, mas do lado esquerdo, que se encontra o projeto da artista brasileira Graziela Kunsch, Public Daycare (creche pública) e é um ótimo exemplo da complexidade do lumbung no contexto da documenta quinze. Trata-se de um amplo espaço dividido em duas partes: uma delas, a creche em si, aberta diariamente e gratuitamente das 10h às 17h, onde mães, pais e demais cuidadores podem levar crianças de até 3 anos – pela porta dos fundos do museu – e vivenciar com elas a abordagem pedagógica da pediatra húngara Emmi Pikler (1902-1984), que inspira o projeto. A outra seção, acessível aos visitantes o dia todo, apresenta fotografias da também húngara Marian Reismann (1911-1991), que por décadas documentou o cotidiano do Instituto Pikler, em Budapeste, e um vídeo da artista mostrando o “desenvolvimento motor livre” ou “autoiniciado” de sua própria filha. A partir das 17h, todos os espaços estão liberados para visitação.

Pikler demonstrou que bebês com vínculos afetivos são capazes de brincar livremente, sem a direção de adultos, e esse brincar livre coincide com o movimento corporal livre, cada bebê em seu próprio tempo. “É comum adultos anteciparem as posições motoras de bebês – sentando-os, colocando-os em pé, ajudando-os a andar –, esperando que, o mais rapidamente possível, os bebês se tornem parte do ‘mundo adulto’. E se invertermos essa relação, descendo ao chão, tornando possível que bebês vivam plenamente seus primeiros anos de vida, ou o ‘mundo dos bebês’? A minha contribuição para a Fridskul foi criar um espaço onde, mais que ensinar os bebês, nós adultos possamos aprender com eles”, explica Kunsch.

Para desenhar o ambiente preparado, ela trabalhou junto a Elke Avenarius, diretora de uma creche local e engenheira civil de formação. O mobiliário foi todo pensado para garantir a crescente autonomia dos bebês. A colaboração na arquitetura foi tão intensa que Elke se tornou co-autora do projeto. Há anos, a prática de Kunsch se baseia na colaboração, mas no contexto da documenta quinze, ela se multiplica em várias camadas, desde o respeito a mulheres que nos anos 1940 já trabalhavam com educação infantil e fotografia, a construir redes na própria cidade de Kassel, como na parceria com Avenarius.

Essa, de fato, é uma energia mobilizadora da mostra, que começa antes da exposição em si, e seguirá no futuro, quando os móveis serão transferidos para a Casa do Povo, em São Paulo, entidade também parceira do projeto. No total, 26 pessoas e entidades estão listadas como “cooperadoras” da proposta de Kunsch. Nos dias seguintes à abertura, ela contou que a porta dos fundos estava cada vez mais sendo usada e a cidade havia abraçado o lindo projeto.

Eu sou porque somos

Dessa forma, como se percebe, a partir de cada artista-lumbung, ou seja, aqueles convidados inicialmente, é tecida uma teia que vai se ampliando para várias direções, em geral buscando questionar a ideia de autoria e a noção de objeto. A documenta quinze, de fato, não é uma exposição de objetos, mas uma experiência possível de colaborações.

Contudo, não se trata de uma exposição repetitiva e homogênea, já que a ideia de experiência é muito ampla e a diversidade de temas dessa documenta é imensa e com grandes surpresas. Um dos lumbung-membros é a Fondation Festival sur le Niger, fundada em 2009, que organiza um festival multicultural em Segu, no Mali. Não se trata de um evento, mas de uma instituição voltada a promover a formação de jovens artistas, além de estimular práticas colaborativas baseadas na filosofia Maaya: “eu sou porque somos”.
Na documenta, o grupo ocupa um amplo espaço na Hübner Areal, uma antiga fábrica de trens e ônibus, de três andares, com várias áreas para apresentações musicais, além de exibir obras de alguns de seus fundadores, como Abdoulaye Konaté, um dos mais prestigiados artistas africanos, que participou da 19ª edição do Sesc_Videobrasil, em 2014.

Denominado como Vestíbulo Maaya, a partir da importância da hospitalidade como prática no Mali, 39 artistas ocupam o espaço do Festival sur le Niger na mostra alemã.
Nesse mesmo edifício, em seu subsolo, está uma das instalações mais acachapantes da documenta quinze – que faz com que seja impossível dizer que não há arte em Kassel, frase recorrente dos críticos da mostra. Aliás, sim, para além de todas as redes criadas a partir dos artistas-lumbungs, há muitos trabalhos plásticos impressionantes, caso de Amol K Patil, artista indiano que apresenta uma série de esculturas, filmes e desenhos com iluminação dramática. Entre as esculturas, estão mapas de lugares por onde o artista viveu nos últimos tempos, incluindo Kassel, feitas de terra com engrenagens que, discretamente, criam pequenos movimentos nas estruturas. É das obras mais impactantes da documenta.

Contra narrativas

Em outra fábrica desocupada, o Hafenstrasse 76, próxima do porto da cidade, está o trabalho do artista não-binário Nino Bulling. Cartunista que explora os limites entre o documental e a ficção especulativa, Nino expõe no local desenhos ampliados de sua nova publicação, firebugs, viabilizada pela documenta quinze. No entanto, sua presença em Kassel também representa um debate sobre artistas queer, trans e non-conforming que trabalham com quadrinhos, e vão participar de um workshop organizando junto com o coletivo libanês Samandal Comics.

O resultado será publicado pela editora alemã Steidl. Aqui, neste caso, vê-se como a proposta do lumbung se multiplica de forma orgânica a partir de cada convidado – no caso de Nino, também participa o Sindicato dos Artistas Gráficos. Nesse mesmo edifício, outro coletivo queer, o Fehras Publishing Practices, também se ocupa de narrativas gráficas, desta vez abordando questões do Mediterrâneo Oriental, Norte da África e da diáspora árabe.

Outro eixo importante desta documenta diz respeito ao meio ambiente: vários são os coletivos que atuam nessa questão, caso do espanhol INLAND, criado por Fernando Garcia Dory, que possui uma estação de rádio, uma academia, organiza mostras e produz queijo. Nesta edição, INLAND ocupa parte do Museu de História Natural Ottoneum, onde apresenta o vídeo Animal Spirits, em colaboração com Hito Steyerl, que ironiza o conceito de “espírito animal” (um impulso emocional) desenvolvido por John Keynes. Outro dos grandes trabalhos desta documenta, Animal Spirits também é uma forma de ampliar o debate ecológico realizado por INLAND.

Finalmente é essencial ainda apontar coletivos de militância política, caso do INSTAR – Instituto de Artivismo Hanna Arendt, criado pela cubana Tania Bruguera, que ocupa parte da Documenta Halle, um amplo espaço criado em 1992, para a nona edição da Documenta. Lá, INSTAR organiza uma série de dez mostras com artistas cubanos que produzem contra narrativas sobre arte e história de seu país na América Central.

Esta edição da documenta, como toda grande mostra, também enfrentou polêmicas. Primeiro, uma perseguição de grupos de extrema-direita a coletivos palestinos. Depois, logo na abertura, a acusação de que havia imagens antissemitas em um imenso painel próximo à Documenta Halle, People’s Justice (2002), do coletivo indonésio Taring Padi, que foi coberto e, finalmente, retirado logo na sequência. O fato gerou um pedido de desculpas formais no site da documenta, tanto por parte do ruangrupa, quanto do Taring Padi, além de ter sido organizado um debate sobre antissemitismo na arte, no final de junho. O Taring Padi, aliás, ocupa vários espaços da mostra, um dos mais belos em uma antiga piscina pública, o Hallenbad Ost, com uma diversidade de cartazes e pôsteres de demonstrações políticas, muitos feito como gravuras. A polêmica, no entanto, funcionou como combustível para guerras culturais que gostam de atacar arte contemporânea.

Taring Padi na documenta quinze
Obras do coletivo Taring Padi no Hallenbad Ost, em Kassel. Foto: Frank Sperling

O ocorrido, contudo, não retira da mostra sua potência e a energia inédita em exposições de grandes dimensões como a documenta. Construída de forma colaborativa e orgânica, propiciando uma imensa rede ativa de artistas, ativistas e militantes, ela é uma resposta contundente a uma Europa que enfrenta uma guerra e a um mundo que vê o neoliberalismo das Big Techs colapsar as democracias. Não se trata de acreditar em utopias, mas de demonstrar que a resistência é possível e ela já ocorre em muitos lugares, onde o lumbung, mesmo que muitos não usem esse nome, já existe na prática.

Acervo político

Os colecionadores Patricia e Pedro Barbosa
Os colecionadores Patricia e Pedro Barbosa | Foto: arquivo pessoal
Haris Epaminonda, Untitled 11, 2011 | Foto: Daniel Perez / Cortesia da artista e da Rodeo Gallery

O engenheiro químico de formação Pedro Barbosa, que trabalhou por 25 anos no mercado financeiro, iniciou em 1999 a coleção hoje chamada de moraes-barbosa (cmb), que conta com um acervo de obras de arte de peso e um extenso arquivo de documentos raros. Recentemente, foi implementado na coleção um programa de bolsas que propõe que artistas e pesquisadores desenvolvam estudos em interação com o acervo. Em conversa com a arte!brasileiros, Barbosa comenta que um dos obstáculos para o crescimento do circuito da arte no Brasil é o hábito que se tem de jogar questões que envolvam a relação entre ética e estética para debaixo do tapete, quando elas deveriam, na verdade, estar em primeiro plano de importância.

arte!⁕ – Como começou seu projeto de colecionismo?

Pedro Barbosa – De modo absolutamente involuntário. A [galerista] Raquel Arnaud é minha prima de primeiro grau. Eu visitava a sua galeria com alguma frequência, apenas para apreciar. Um dia, comprei uma obra [Petite Ronde Olive (1999), de Jesus Rafael Soto] e foi o início do que se tornou hoje a coleção. Durante minha vida universitária na USP, nos anos 1980, eu já era interessado por museus e pela contracultura paulistana, e acompanhava as artes visuais pelos jornais. Depois da primeira compra, veio a segunda, a terceira e assim por diante. Eu fui, então, tomando gosto pelo colecionismo.

A subida repentina de preços no início dos anos 2000 me expeliu do segmento da geometria abstrata e tive que partir para artistas novos ou em meio de carreira, fui gostando e me envolvendo mais. Até o ponto em que entendi que isso era um espaço de ativismo político. Que eu poderia usar as obras, ou uma certa narrativa da coleção, para me expressar politicamente.

Em 2012, achei que poderia navegar no mercado internacional, fazendo uma compra aqui e ali. Primeiro, tive uma conversa com [o colecionador] Luiz Augusto Teixeira de Freitas, que havia chamado um curador externo para acompanhá-lo no desenvolvimento da sua coleção. O Luiz Augusto foi supergeneroso, contou-me absolutamente tudo, trocamos ideias, “veja, isso aqui fiz errado e não faria de novo; nisso, eu daria mais ênfase”. Peguei uma experiência de nove anos que ele já tinha e copiei o modelo dele, com minhas nuances. Foi ele que me apresentou ao trabalho de stanley brouwn, por exemplo.

Aí vi que precisava de alguém no Brasil com formação e conhecimento que me ensinasse sobre a arte contemporânea internacional e suas tendências. Só tinha um cara, que era o Jacopo [Crivelli Visconti, curador]. Propus a ele trabalhar comigo no desenvolvimento desse projeto, inicialmente pensado para durar dez anos, mas que foi terminado em 2019, quando o Jacopo foi chamado para ser o curador da 34a Bienal de São Paulo.

Em um mês haveria a Art Basel, na Suíça, e Jacopo fez uma lista de 100 artistas contemporâneos, muitos deles bastante conhecidos no circuito artístico atual. Reduzimos a lista para 40, para ter melhor atenção, e deles sobraram no máximo 15 ou 20. Ao mesmo tempo, continuamos olhando a cena brasileira. Fomos montando um projeto que envolvia publicações, residências no Brasil e outras em Londres, em parceria com a Delfina Foundation. Atualmente, tenho uma coleção com certo protagonismo, e Jacopo foi finalmente reconhecido quando foi chamado para fazer a Bienal. Teve uma caça às bruxas violenta a ele, que é um doce de pessoa, muito profissional, dedicado e ético. Convivi com ele por sete anos, todos os dias.

Jacolby Satterwhite
Jacolby Satterwhite, Reifying Desire 6, 2014 | Foto: cortesia do artista

A sua coleção tem um traço muito particular. Como você construiu essa linha de colecionismo?

O Jacopo fez tese de doutorado baseada em artistas andarilhos, que fazem land art, walking art. Então havia essa afinidade com uma arte mais imaterial que me fascinava. Juntou a fome com a vontade de comer. Eu queria caminhar para a arte conceitual, então foi um casamento perfeito. Eu encontrava algumas coisas, ele sugeria outras, e íamos trocando ideias, construindo tudo junto. Dentre esses artistas contemporâneos que vieram da pesquisa do Jacopo está a cipriota Haris Epaminonda, de quem compramos algumas obras já em 2012, e que ganhou o Leão de Prata da Bienal de Veneza em 2019.

Mas logo no segundo ano, eu comecei a trazer umas coisas extremamente contemporâneas que não eram do gosto do Jacopo, porque não tem a ver com a estética dele, por exemplo a obra do Jacolby Satterwhite. Ano passado estive no Haus der Kunst de Munique, no hall principal estava uma instalação gigantesca do Jacolby. Eu fui um dos primeiros compradores dele na história, que era representado apenas por uma galeria perdida em Palma de Mallorca.

Mas isso era eu caminhando minha trajetória, ainda que acompanhado do Jacopo, era uma troca de experiência muito produtiva com extensas conversas. Acabamos olhando coisas diferentes juntos, como Ken Okiish e Nick Mauss. Eram artistas estrangeiros que já produziam antes do começo dos anos 2010, mas eu os peguei num ponto de inflexão, de serem encontrados pelos museus.

Há um diferencial que aproxima você deles. Do que se trata na sua opinião?

Posso talvez fazer um comentário extremamente preconceituoso e perigoso, mas acontece que nos EUA e na Europa estes artistas têm formação acadêmica. E, para este colecionismo que segui, penso que é necessário, mas não suficiente, esse tipo de formação. Tem a minha identidade nisso. Não estou criticando a produção artística que não tenha formação acadêmica. Tudo é arte. Mas este caminho traz para mim uma interlocução com que tenho mais afinidade.

Dê um exemplo de onde isso fica evidente em seu acervo.

A nossa próxima exposição, com a Leslie Thornton, professora na Brown. Uma precursora da videoarte nos EUA. Vamos mostrar cinco trabalhos que nunca foram vistos no Brasil. E que acabaram de ser exibidos no MIT [Massachusetts Institute of Technology].

Mas nem sempre um acadêmico é capaz de construir uma boa obra…

Claro que não. Entretanto, no caso da arte conceitual, que está no foco da minha coleção, o trânsito dos artistas entre as salas de aula e os ateliês cria reflexões que se materializam na produção artística. E como eles não vendiam obras, era inevitável que eles tivessem a academia como fonte de renda. Ou davam aula, ou morriam. Uma ‘ideia’ do Robert Barry ou uma ‘conversa’ do Ian Wilson, dificilmente eram compradas. Ao passo que um bela pintura figurativa tem mais chances de ser comercializada.

Você acha que por isso o León Ferrari, por exemplo, demorou tanto a ser entendido?

Mas acho que ele fez mais obras materiais. Fez pintura, muitas obras em papel e esculturas. Estou falando do grupo que andou a partir de meados dos anos 1960 com o galerista Seth Siegelaub, como Carl Andre, Sol LeWitt e Douglas Hubler, entre outros.

Neste sentido, você acha que é mais difícil num lugar como o Brasil construir uma linguagem como essa?

Muito mais difícil porque são mínimas as escolas de arte. Aqui acham que quem as frequenta é comunista e vagabundo, exatamente o contrário do que se vê na Alemanha, onde um dos pilares da Reunificação, por exemplo, foi a arte. Os EUA fizeram uma conquista estética, viram na arte a importância geopolítica após a Segunda Guerra Mundial. Aqui, infelizmente, tivemos no governo Lula uma oportunidade de fazer uma conquista estética na América Latina, mas… Hoje isso nem passa pelas cabeças desses caras. Por isso é necessário ter um nível educacional mais alto.

Então concluímos que criar um conceitualismo mais radical não é uma questão geracional ou de tendências, mas tem a ver com a possibilidade ou não de adquirir certos conhecimentos. Ou seja, um tipo de cultura…

Um tipo de cultura menos material e comercial. O Antonio Dias, por exemplo, ao estar na Itália, conseguiu total comunicação com artistas e conceitualistas europeus. Entre os grandes artistas da arte conceitual, vale destacar dois grandes nomes: o brasileiro Cildo Meireles e o alemão Hans Haacke. São dois mestres que conseguem juntar a excelência do conceitualismo e a política de forma extremamente harmoniosa. O brilhantismo de Antonio Dias já se expressa, nos anos 1960, quando da criação do NAC (Núcleo de Arte Contemporânea) na Universidade Federal da Paraíba. E o Haacke foi, por décadas, professor da Cooper Union em Nova York. O Cildo tem uma sólida formação acadêmica na Universidade de Brasília (UnB).

Jonathas de Andrade
Jonathas de Andrade, Educação para Adultos, 2010 | foto: Cortesia do artista e da Galeria Vermelho

Então você, ao se identificar com estes artistas, descobriu uma forma de militância.

Para mim, tem a ver com o jeito como fui formado. Meu pai é professor. Todo mundo em casa tem PhD. Sou o único que não tem. Então sempre tive certa fascinação por este tipo de coisa. Muita gente na família é ligada à universidade.

Por exemplo, vi na Bienal de 2010 uma obra baseada nos métodos de alfabetização do Paulo Freire, um cara sobre quem eu tinha escutado falar em casa a vida toda, e que hoje é execrado por gente que nem o conhece!

Se você olhar as aulas que tem em Harvard, no MIT, na Caltech, das que eu já vi, nada mais são do que variantes de um método desenvolvido por este brasileiro.
Educação para Adultos, do Jonathas de Andrade, é uma obra em que ele formalizou algo político de modo superconceitual. E fui dos primeiros a comprar trabalhos dele.
Viajo muito, estou em tudo quanto é lugar. Tenho acesso a galerias e a espaços independentes, tenho interlocução com estas pessoas que desenvolvem projetos experimentais. Esse foi o caminho.

Aqui, por exemplo, tem uma coleção completa com mais de 300 folhetos do CAyC [Centro de Arte y Comunicación, centro internacional de cultura e arte pop, criado na Argentina nos anos 1970]. Compramos este material. Aqui é o lugar onde tem mais itens sobre o CAyC no Brasil. Assim como a edição de 1966 de Diagonal Cero [revista dirigida pelo artista argentino nascido em La Plata, Edgardo Antonio Vigo, dedicada à arte experimental, conceptual e à poesia visual. Num gesto vanguardista, o editor pulou a edição 25 e a dedica “ao nada”].

Entrei neste jogo sedutor, que é uma Babel ou um labirinto borgeano, em que você entra e de que não sai jamais. As associações são infinitas.

O fascínio está no quase inalcançado. O desejo se move em direção à falta, como diz o Lacan…

É por aí. Eu não vou conseguir dominar a coisa. Estou sempre atrás. É muito gostoso você viver numa relação que é de eterno desafio.

Parece-me que no fundo, seria um pouco o contrário do que vemos no colecionismo visto apenas como commodity, em que o fascínio está em adquirir uma peça para tê-la, esperar que se valorize e depois vendê-la. Aqui o prazer está em você continuar pesquisando, encontrando elos e associações a partir da obra.

E isso é infinito. Desafia muito mais intelectualmente. Não tenho nada contra quem faz isso comercialmente, mas a minha parte comercial é outro lado da minha vida. Neste jogo aqui, estou eternamente caminhando atrás do que eu não sei. E aí, não preciso somente de material. Preciso de pessoas extremamente inteligentes para conviver. Aí, de novo, não dá para tirar a parte humana desse circuito, porque quem faz isso aqui são essas mentes brilhantes. E eu escolhi um caminho que remete à minha história de vida, a meu pai professor, minha irmã cientista, meu irmão também professor, primos na USP e assim por diante. Eu consegui uma independência financeira e estou numa posição privilegiada que me permite isso.

Você comenta que nesse colecionismo há dois mundos diferentes. Mas esse outro, o que te traz independência financeira, ele fica esquizofrênico ou você consegue manter teus posicionamentos nele? Grande parte das instituições públicas está sendo dirigida por executivos ligados ao mercado ou ao mercado financeiro, não só no Brasil, e são geralmente colecionadores, ou profissionais ligados diretamente a galerias. Essas instituições, que manejam alguns milhões, estão tomando decisões estéticas e éticas. Isso não representa um conflito de interesses dentro do que seria um ideal no mundo da arte? Isso não tem que ter limites? Há códigos de ética?

No Brasil, todo mundo é público e privado, porque depende de Lei Rouanet. Se você pegou dinheiro público, você tem que ter respeito pela sociedade à qual ele pertence.
Eu sei, por exemplo, que existe um código no museu Reina Sofía, na Espanha, para os colecionadores que participam dos comitês de aquisição. Há quase dois anos, dois colecionadores que moram em Paris, um italiano e outro grego, chamaram-me para um grupo e fizemos discussões extensivas, para criar um código de conduta. Primeiramente com os artistas, depois os galeristas, os museus, os colecionadores, as instituições independentes, as coleções públicas e as privadas, e assim por diante. Obviamente, isso vai ser sempre reformulado. A primeira versão está no ar no site ethicsofcollecting.org.

Feito em inglês, mas traduzida para o espanhol, chinês e o francês, e em breve teremos a versão em português. Propusemos várias coisas extremamente discutidas e negociadas, visando a uma proposta coletiva. Conseguimos endossos diversos, que veem o código como algo com um objetivo comum, em que todos se beneficiam. Por exemplo, uma coisa que a gente advoga como colecionador: jamais pedir mais de 20% de desconto para um galerista, mas o galerista também tem que ajudar não deixando se influenciar pela pressão que sofre. Se eu mato o galerista, mato um pedaço do circuito.

Tem colecionador que chega e pede 40% a 50% de desconto. Pergunto: qual o interesse? Sufocar o galerista, matar o artista? Veja bem, isso não é um mercado de pulgas onde a regra número um é a barganha. Quando eu não concordo com um preço, simplesmente vou embora, adeus. Os preços se ajustam no tempo.

E nos museus…

É o CIMAM [comitê internacional para museus] que vai te dar um norte, porque é um código público amplamente discutido. Aqui temos mania de jogar para debaixo do tapete, precisamos discutir essas coisas no dia a dia, implementar e aperfeiçoar as condutas do CIMAM.

Mas este tema precisa ser amplamente discutido porque a arte também tem valor comercial e financeiro, e quem coleciona se beneficia das exposições, sejam mostras individuais ou coletivas.

O processo de doações para museus tem que ser profundamente discutido. Quando as pessoas votam a favor ou contra a aquisição de uma obra, pode haver algum tipo de conflito, e isso deveria ser debatido com a instituição e documentado. No caso de videoarte e fotografia, pelo fato de muitas vezes serem edições, obviamente o conflito aparece com mais frequência.

Um outro ponto a ser levantado, é o número de obras de arte mostradas em exposições, em instituições públicas ou privadas, em que os curadores mantêm relações próximas com os colecionadores de onde partem esses trabalhos a serem exibidos. Infelizmente esse não é um problema só do circuito brasileiro de arte, é um problema global.

Mas neste sentido não deveríamos ser mais radicais e dizer que não pode ser o diretor do museu, enfim, aquele que está no museu ocupado de buscar patrocínios etc., a mesma pessoa que está ligada à compra e venda de obras, já que estão se beneficiando sistematicamente da informação de terceiros para isso?

No Brasil estamos caminhando na profissionalização dos museus. No meu ponto de vista a diretoria deve ser de funcionários do museu. Nos conselhos, sim, há espaço para os mantenedores, mas também deveria ter espaço para os outros agentes da arte. Eu tenho preferência pelo estilo de governança da Pinacoteca do Estado de São Paulo. O modelo da Pinacoteca está mais próximo dos modelos estrangeiros em que os diretores são funcionários da instituição.

Os colecionadores Patricia e Pedro Barbosa | Foto: arquivo pessoal

Parte importantíssima de sua coleção são arquivos. Como os estão organizando, como funciona a sua equipe?

Catalogação e preservação já são questões técnicas importantíssimas, e cuidamos disso. Mas criamos aqui um esquema com o objetivo de transformar o arquivo em algo vivo, mais dinâmico. Então decidimos investir em artistas, curadores, pesquisadores, que por seis meses, trabalham em período part-time, recebem uma bolsa, ficam estudando e pesquisando em temas do seu interesse em intersecção com o nosso arquivo.

Esse percurso tem como objetivo entregar um resultado, de domínio público, que pode ser um vídeo, um livro de artista para baixar da internet, uma exposição, um texto. Os editores somos nós. O pesquisador tem um interesse especial em uma área, esse é o disparador. É isso que vai dirigir seu trabalho.

É como uma residência de pesquisa…

De vez em quando tem de seis a sete pessoas aqui, que vão se ajudando também. Tudo aqui é de domínio público. Um dos bolsistas, o artista Pontogor, começou a pesquisar o trabalho da videoartista holandesa Manon de Boer, que trafega pela arte conceitual e de quem temos aqui, na coleção, seis obras. O resultado foi um vídeo-ensaio que relaciona trabalhos de Manon de Boer, Antonio Dias, Guy Debord, Roberto Bolaño e outros.

Na exposição Horror Vacui, que abrimos no dia 7 de maio deste ano, com organização do Pontogor, é apresentado o vídeo Como Ver um Fantasma?, em que ele investiga as diferentes manifestações do vazio na arte.

Cris Ambrósio e Deyson Gilbert apresentaram a exposição Estado de Possessão – Notas para uma Estética da Tortura, que permaneceu aberta ao público de novembro de 2021 a fevereiro de 2022. ⁕

O penoso aprendizado dos museus

Imagem colorida. Alessandra Munduruku, uma das principais lideranças indígenas do Brasil, durante a II Marcha das Mulheres Indígenas: Reflorestamentos, Corpos e Corações para a cura da terra. Brasília, 2021. Foto: Edgar Kanaykõ Xakriabá
Alessandra Munduruku, uma das principais lideranças indígenas do Brasil, durante a II Marcha das Mulheres Indígenas: Reflorestamentos, Corpos e Corações para a Cura da Terra em 2021. Foto: Edgar Kanaykõ Xakriabá

O Museu de Arte de São Paulo (Masp) chegou finalmente a um acordo satisfatório com as curadoras do núcleo Retomadas, Sandra Benites e Clarissa Diniz (que montavam para a instituição uma mostra que faria parte da exposição coletiva Histórias Brasileiras, inaugurada em 1º de julho). Em maio, Sandra e Clarissa foram surpreendidas pela insólita disposição do Masp de eliminar um recorte de sua seleção artística, recusaram seguir sem o material por julgarem que estavam sendo objeto de censura e se demitiram no dia 17 de maio.

Para reverter a situação, o Masp concordou no seguinte: a exibição voltará a ter a presença de todos os fotógrafos que tinham sido anteriormente vetados na exposição, e cujas obras retratam o Movimento Sem Terra (eram seis fotografias do MST de autoria de André Vilaron, Edgar Kanaykõ Xakriabá e João Zinclar). Esses registros, vetados anteriormente, terão agora ampliações distribuídas a todo o público (em formato de pôsteres), e a exposição ampliará a gratuidade de acesso ao museu e às suas atividades também às quartas-feiras (tradicionalmente, a entrada grátis é somente às terças). A instituição também reconhece a propriedade intelectual do trabalho das curadoras e dará ao argumento curatorial o caráter de copyleft.

O Masp aceitou ainda realizar um seminário online tratando do processo de produção da mostra, com convidados comissionados, com o intuito de debater os desafios e desdobramentos da proposta curatorial, além de produzir (por intermédio da editora Expressão Popular, do MST) uma revista que trate dos processos das lutas sociais. Na abertura da exposição, no dia 26 de agosto, o Movimento Sem Terra (MST) e movimentos sociais e indígenas convocarão um ato cultural que será abrigado pela exposição, e o museu se comprometeu também em realizar novas edições do núcleo Retomadas em escolas e espaços de formação do movimento de luta pela terra.

O museu ainda promoverá a readmissão da antropóloga Sandra Benites como curadora adjunta, voltando a ter em seu corpo de curadores a primeira mulher indígena a integrar o bureau do Masp. Sandra e Clarissa divulgaram uma carta aberta como forma de reagir a um aceno de reconsideração do Masp, feito em nota oficial uma semana antes. No dia 20 de maio, a instituição se manifestou publicamente anunciando “um novo posicionamento” sobre a questão, alegando que buscava aprender com o episódio. Havia dolorosas arestas a serem aparadas – o museu atribuiu o cancelamento à negligência das duas profissionais, e elas consideraram isso ultrajante.

“A instituição lamenta publicamente o cancelamento do núcleo, tão importante para a  exposição, e a saída das curadoras do projeto”, dizia a nota. “Pretendendo avançar para que episódios semelhantes não se repitam no futuro, estamos abertos a ouvir Benites e Diniz, com a finalidade de aprendermos com essa experiência e aprimorarmos processos e modelos de trabalho”.

Real envolvimento

Sandra e Clarissa se dispuseram ao diálogo, mas estabeleceram seis principais condições para que pudessem regressar ao projeto. Essas condições, agora aceitas parcialmente pelo Masp, buscam ilustrar a possibilidade de criar um novo patamar de relacionamento das instituições museológicas com a sociedade. Em vez de os movimentos afirmativos e sociais se prestarem a lustrar o prestígio dos museus (que precisam dessa ressonância), é proposta agora uma relação de real envolvimento nos diagnósticos e movimentos que a arte promove em suas exposições. O museu que abrigava circunstancialmente passa a ser também o museu que participa, que ativa, que se envolve, que vai além das representações e assume compromissos. Algo que chacoalha a conveniência das antigas neutralidades.

Oficialmente, após essas concessões de parte a parte, o Masp confirmou então em nota que o núcleo Retomadas voltará a fazer parte da exposição e que a mostra está confirmada para o período de 26 de agosto a 30 de outubro. A experiência dialética do Masp, embora tenha se imposto à revelia da vontade do museu, é um desafio que se abre para toda a museologia na nova ordem internacional. Retomadas faz parte da série Histórias, que incluiu Histórias da Sexualidade (2017), Histórias Afro-atlânticas (2018), Histórias Feministas (2019), entre outras. Um museu “diverso, inclusivo e plural”, que busca “estabelecer diálogos críticos e criativos entre o passado e o presente por meio das artes visuais”, como se apresenta a série, não pode lançar mão de subterfúgios que mascarem atitudes de censura e genuflexões para com o poder político instituído.

Essa encruzilhada está sendo encarada em todo o Planeta nesse momento. A incorporação da crítica anticolonial e antirracista, a amplificação das questões de gênero, o debate sobre a manutenção dos sistemas de poder na sociedade, a urgência de se transmutar forma em processo. É um desafio ainda maior na atual conjuntura de regressão democrática no Brasil, país no qual o presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) publica uma portaria aprovando o regimento interno dos museus do sistema em 30 de março e, 47 dias depois, revoga o texto que o próprio governo tinha aprovado sem maiores explicações.

CIMAM 2022

É por não fugir do debate contemporâneo que o tema do congresso do International Committee for Museums and Collections of Modern Art, o CIMAM 2022 (conferência anual de museus do mundo todo, que celebra 60 anos de realização), é justamente o seguinte: O Museu Atento – Práticas Permeáveis para um Terreno Comum. Ele terá 12 conferencistas do mundo todo, incluindo diretores de instituições como o Reina Sofía, de Madri, e será realizado na Espanha entre 11 e 13 de novembro próximo, tratando da proposição de diferentes modelos que podem oferecer uma nova visão de governança, narrativas, discurso de caráter decolonial e uma visão sobre o museu global face a novas narrativas e novos modelos institucionais, além do futuro sustentável.

O CIMAM abordará temas que dizem respeito a toda a movimentação da sociedade contemporânea. Mudando a Partir de Dentro: Como Nós Devemos Governar a Nós Mesmos, com Mami Kataoka, presidente do CIMAM, é a conferência que abre o primeiro dia de debates. Outra frente de reflexão é o tema Aprendendo com a Comunidade: Ações Coletivas em Face da Emergência. Destravando a História e as Novas Narrativas, com a filósofa brasileira Denise Ferreira da Silva, pesquisadora do Social Justice Institute da University of British Columbia de Vancouver, Canadá (com outras debatedoras no painel), é o tema seguinte.

Denise é uma das principais pensadoras a abordar com maior energia o tema mais candente da atualidade: “Para além da crítica pós-colonial como um exercício intelectual, a arte do confronto é uma intervenção anticolonial precisamente porque transforma o espaço entre o artista e o público numa trincheira”, ela escreveu, no texto Reading Art as Confrontation. “Ao encenar um confronto, a arte anticolonial forja uma experiência estética que expõe a própria violência que é o pensamento moderno precisamente por causa da in/diferença entre o palco e o museu como espaços de exibição”.

“Convido a uma reapropriação da atenção”

O artista e curador da Bienal de Berlim, Kader Attia.
O artista e curador Kader Attia.
por Patricia Rousseaux e Fabio Cypriano
Kader Attia
Kader Attia durante a entrevista concedida à arte!brasileiros

Generoso, Kader Attia conversou conosco no KW Institute for Contemporary Art, sede da Bienal de Berlim, no que ele chamou “de um excelente encontro, mais do que uma entrevista”. Artista, curador e pensador francês, nascido em 1970, Attia cresceu entre a França e a Argélia, fazendo dessa experiência de pertencimento a diferentes culturas sua prática. Ele encena uma obra sensível, na busca por um resultado estético e ético nos seus relacionamentos e na sua produção. É defensor incondicional da necessidade de trazer à luz o impacto que o colonialismo teve na modernidade, e sua pesquisa se centra em diferentes formas de reparação perante a hegemonia cultural ocidental. Vencedor de prêmios da Fundação Miró e do Marcel Duchamp, em 2016, e do Yanghyun Art Prize, de Seoul, em 2017, Kader Attia tem, entre suas individuais mais recentes, The Museum of Repair, na State of Concept de Atenas (Grécia), e Irreparáveis Reparos, realizada em 2020/2021, no Sesc Pompeia, em São Paulo.

ARTE!✱ – Temos, no Brasil, uma importante discussão em andamento com relação ao apagamento que os governos e a sociedade brasileira fizeram do racismo e da brutal desigualdade que nos caracteriza como país colonial…

Creio que o discurso e o diálogo decolonial é uma conversa que necessita evoluir permanentemente. Fundamentalmente no campo do qual estamos falando, o da arte. O capitalismo tenta se recuperar, por meio da cultura e da arte, apropriando-se das mensagens políticas, como essa da decolonização, e com isso temos o risco de que elas se tornem institucionalizadas. Ou seja, temos de ser capazes de cuidar das retóricas, de inventar uma linguagem, sempre nova, quase novos vocabulários, quem sabe abandonar a palavra “decolonial” e criar outra, por exemplo, “desmodernizar”, porque decolonial não inclui o feminismo, por exemplo.

O capitalismo tenta se recuperar, por meio da cultura e da arte, apropriando-se das mensagens políticas, como essa da decolonização

Você é um artista e já foi curador de exposições diversas. Qual foi o desafio maior de pensar uma Bienal?

Para mim, uma bienal não é uma feira de arte, é um laboratório, no qual temos que inventar o mundo. E nessa invenção, precisamos preservar a história da qual viemos, que nos precede. Porque a amnésia não faz bem. Eu conheço feministas, como Paula Bacchetta, que me comentava outro dia como os jovens de hoje dizem que não havia negras ou árabes feministas nos anos 1970. Não é verdade, havia nos anos 1980 uma organizacão de mulheres árabes chamadas Les Beurettes [nome dado a jovens de origem magrebina nascidas na França]. E a Paula também me disse que havia feministas nos anos 1970 que colaboraram com os movimentos de independência de Porto Rico, assim como com os Panteras Negras. Quer dizer, o feminismo já era decolonial, muito mais cedo do que imaginávamos.

Por isso, incluí muitos arquivos na bienal. Temos, por exemplo, projetos bem específicos, como o da israelense Ariella Aïsha Azoulay, The Natural History of Rape, e em outros lugares estão objetos em vitrines, como livros da coleção Archiv der Avantgarden, de Egidio Marzona, e o livro Djamila Boupacha, de Simone de Beauvoir, que fala da jovem militante argelina que foi violentada por soldados franceses e faz um eco com a incrível pintura Grand Tableau Antifasciste Collectif, que está na Bienal.

Nós também tivemos encontros com pessoas incríveis que já vieram falar aqui, como Françoise Vergès, Felwine Sarr, Joseph Tonda e Stefania Pandolf.

Eu diria que, como artista, tive uma facilidade de me relacionar com os outros artistas, por entender certas dificuldades. Ajudou o meu sentido de espaço e de como trabalhar com economias limitadas. Como artista, trabalhamos com outros artistas, que são outros universos intelectuais e emocionais.É uma responsabilidade enorme, que funciona com a confiança que os artistas dão a você, e para criar esta mensagem e compartilhar com o público, você tem que pensar muitíssimo em espaços que separam as obras. Espaços intersticiais, e então criar diálogos entre as obras, como o que acontece entre a pintura de Calida Garcia Rawles e o vídeo Erasing the Green, de Dana Levy.

Equipe artística da 12ª Bienal de Berlim
Equipe artística da 12ª Bienal de Berlim; esq. para a dir., Ana Teixeira Pinto, Noam Segal, Kader Attia, Đỗ Tường Linh, Rasha Salti, Marie Helene Pereira

Ou seja, como artista, criar um espaço de diálogo para compartilhar uma visão e assim abrir o pensamento do público. Porque especialmente nós, que trabalhamos com os tópicos da reparação, da decolonização, da modernização, não o fazemos para nossa própria comunidade. Estamos de acordo com a importância deles, mas as exposições – não sei quantas pessoas virão à Bienal, umas 100 mil – desempenham um papel político na sociedade muito importante, porque o público, a meu ver, está perdido em um mundo onde as informações e opiniões estão sendo constantemente manipuladas pelos meios políticos.
Ao criar um espaço de exposição como este, onde se trata de dar outra visão de uma sociedade cheia de feridas que não foram reparadas, é aí que outros espaços intersticiais são importantes, porque os espectadores têm que construir uma narrativa.

No WhatsApp, no Twitter, os grupos se relacionam em comunidades que são câmaras de eco fechadas, fascistas sem que saibam

Uma das coisas que chamam muito a atenção é a participação interdisciplinar dentro da mostra…

Creio que Jean Lassègue, um filósofo amigo, disse-­me que conhecia um matemático, David Chavalarias, que fizera um projeto analisando 82 mil contas de Twitter, entre as duas eleições de Macron. Encontrei Chavalarias e disse a ele que, o que me parecia interessante em seu trabalho, é que estava mostrando a vulnerabilidade da opinião dos indivíduos hoje em dia. Bem, vocês no Brasil conhecem isso, com a eleição de Bolsonaro. Segundo Chavalarias, Gabriel Taub dizia, no fim do século 19, que o carisma e o magnetismo que um político consegue exercer sobre grupos alcança no máximo 500 pessoas. O processo de influência da opinião pública pertence aos sujeitos, entre si. E o que a governança algorítmica está fazendo hoje é a ampliação disso, que é tecnicamente possível.

No WhatsApp, no Twitter, os grupos se relacionam em comunidades que são câmaras de eco muito fechadas, fascistas sem que saibam, onde as pessoas vão ouvir o que querem ouvir, isolados. Nesse sentido, para mim, o que parece importante na ideia de espaços intersticiais para o espectador e com o espectador é, por exemplo, o que disse a David Chavalarias quando o encontrei: o principal seria como mostrar esse trabalho para o público. Como fazê-lo possível. Para mim isto é fundamental, e acredito que é o trabalho do curador, não apenas do artista. O trabalho é mostrar ao público como nos tornamos antissemitas, islamofóbicos, homofóbicos, transfóbicos, sem nos darmos conta, com uma espécie de raiva, quando somos manipulados por dados que circulam na velocidade da luz.

Convido as pessoas que vão para uma exposição para apenas estarem vivas e presentes, e não para instagramar suas vidas

Na sua opinião, qual é um dos maiores perigos que estamos enfrentando?

O verdadeiro perigo é a coleta de dados que está nos transformando. Primeiro, temos que entender qual seria a coisa que este capitalismo tecno-liberal mais deseja, quais são os mercados futuros que o capitalismo está explorando e, a partir daí, desenvolver estratégias de luta. Em suma, qual é esse neocolonialismo? É o neocolonialismo que está coletando dados por um processo simples que é chamar a atenção: quando a sua atenção está ativada, a governabilidade algorítmica está coletando informações.

Ontem, vi um artista falando que odeia a palavra vigilância. Então eu disse que não era de fato vigilância, mas é como [a escritora norte-americana] Shoshana Zuboff fala em seu livro The Age of Surveillance Capitalism. Trata-se da extração de dados, que na verdade constitui este mercado da atenção, esta economia da atenção e o torna extremamente poderoso.

Mas o processo de extrair dados nestas grandes companhias, como Facebook e Google, é apenas a parte mais visível dessa extração de dados, que depois são vendidos. O que nós produzimos constantemente, todos os dias, isso é um comportamento que é vendável neste mercado de atenção. Nós somos as cobaias desta economia de atenção. Como poderíamos lutar contra isso? Os artistas, os amantes da arte, aqueles que acreditam nela?

Eu me voltei aos estudos de Marshall McLuhan, que disse uma vez algo muito importante: no fim das contas, um trabalho de arte opera apenas com atenção. E o artista está roubando atenção. Então decidi que não trabalharia com arte digital na bienal porque isso seria uma armadilha também. Você quer criticar esta ideia, mas acaba apresentando o trabalho de alguém a quem admira. Há artistas que trabalham com isso, como o matemático David Chavalarias, Omer Fast e Zach Blas, que falam da vigilância digital, mas há também obras do passado, que estão contando a mesma história. Por isso, provavelmente, é muito importante para nós estarmos conectados com a fisicalidade da arte. Porque se trata de um campo de criação, produzido pela humanidade, que deixa muito mais espaço ao observador do que a vigilância computacional.

Quando você está olhando uma obra de arte, que seja por um segundo, você está aprendendo. Está ativo, e não passivo. A obra não está extraindo qualquer coisa de nós.
Para mim, é extremamente importante entender que, se eu me importo com o presente, eu na verdade me preocupo com a atenção. Eu convido a uma reapropriação da atenção.

Convido todas as pessoas que vão para uma exposição para apenas estarem vivas e presentes, e não para instagramar suas vidas, achando que eles estão consumindo algo, mas elas não estão. Elas estão apenas alimentando a máquina. A velocidade com que se manipula o Instagram é baseada em nossa confiança. Tudo é confiança.

Então, acho que temos que voltar ao espaço como um terreno comum, onde realmente nos encontramos, um espaço onde uma pessoa é tocada emocionalmente por um trabalho. Ficando com raiva de uma obra, por exemplo. Isso significa que você está vivo. Você não está passivo, desativado por um governança que tenta extrair de você.

Berlim mapeia feridas do mundo

Antonio Recalcati, Enrico Baj, Erró, Gianni Giancarlo Dova, Jean-Jacques Lebel, Roberto Crippa, "Grand tableau antifasciste collectif", 1960. Exposto na Bienal de Berlim
Antonio Recalcati, Enrico Baj, Erró, Gianni Giancarlo Dova, Jean-Jacques Lebel, Roberto Crippa, "Grand tableau antifasciste collectif", 1960. Foto: Cortesia dos artistas / VG Bild-Kunst, Bonn 2022; Erben Enrico Baj, Gianni Dova

“Qual é a razão por trás das falhas em reparar traumas coletivos que assombram nossa sociedade como um membro fantasma de um corpo amputado?” A questão é apresentada pelo artista e diretor artístico da 12ª edição da Bienal, Kader Attia, no catálogo da mostra. Em seu diagnóstico, ele defende que as feridas da sociedade atual não são reparadas porque se tornaram invisibilizadas por narrativas colonialistas “ainda presentes”, como é o título desta bienal.

Ainda Presente, contudo, não se refere apenas ao passado colonialista europeu, que gerou toda a riqueza da modernidade, mas também é uma afirmação de resistência: estar vivo e “ainda presente”, apesar de todas as perversões que seguem no mundo, é, assim, um ato necessário.

Ocupando seis espaços em Berlim, incluindo agora uma ala inteira da Hamburger Bahnhof, além da sede original, o KW, a mostra, em cartaz até 18 de setembro, é realizada por Attia junto a Ana Teixeira Pinto, Đỗ Tường Linh, Marie Helene Pereira, Noam Segal e Rasha Salti.

Não é uma bienal que se vê sem passar por forte impacto. No KW, por exemplo, Ariella Aïsha Azoulay apresenta A História Natural do Estupro, uma investigação sobre os milhares de estupros que mulheres alemãs sofreram após a Segunda Guerra Mundial e que foram praticamente apagados dos livros da época. De acordo com Azoulay, em um dos textos da instalação, de milhares de fotos realizadas em abril e maio de 1945, não há nenhuma com menção a estupro e, em 9.558 páginas sobre o período, apenas 161 abordam os estupros massivos de mulheres.

Uma mesa apresenta os livros que tratam do assunto, mas as imagens estão recobertas com uma tarja negra, como a proteger as vítimas. A artista apresenta uma complexa documentação sobre o tema também em uma parede. Ao lado deste conjunto, encontra-se a Grande Pintura Coletiva Antifascista, realizada por cinco artistas em Milão, em 1960, uma denúncia das torturas e do estupro sofridos por Djamila Boupacha, uma líder da Frente Nacional pela Libertação da Argélia, acusada injustamente de ter feito um ataque com bombas, na Argélia, no mesmo ano.

Ao ser exibida pela primeira vez, a pintura chegou a ser confiscada pela polícia italiana e foi devolvida apenas 27 anos depois, circulando desde então em diversos países. Ainda na mesma sala, Cold Cases (casos frios), de Susan Schuppli, apresenta em vídeos impressionantes relatos de como no Canadá e nos EUA a polícia usa de baixas temperaturas para torturar e até mesmo matar indígenas, no caso do primeiro país; e assustar imigrantes latinos, no segundo. São histórias realmente inacreditáveis. Na fronteira entre México e Estados Unidos, por exemplo, há celas de detenção com temperaturas perto de zero grau, para desestimular pedidos de asilo.

Se as histórias por trás destes trabalhos em meios e tempos distintos são tão absurdos, uma outra seção, no mesmo espaço, dá conta de mostrar como a arte resiste a tempos difíceis. Trata-se de um pequeno apanhado da coleção Arquivo da Vanguarda, de Egídio Marzona, de Dresden. Esse acervo reúne 1,5 milhão de documentos e objetos reunidos por Marzona desde os anos 1960, recentemente doados à Coleção dos Museus Públicos de Dresden. Entre as publicações, há desde revistas antinazistas alemãs a panfletos contra a Guerra do Vietnã, além de manifestos antirracistas dos anos 1960.

Ao longo da Bienal, a equipe curatorial inclui outros trabalhos de pesquisa, que não necessariamente surgiram no campo da arte, como o livro recém-lançado Toxic Data, do matemático David Chavalarias, do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França. A partir da publicação, ele criou a instalação Shifting Collectives (moldando coletivos), na Hamburger Bahnhof, onde apresenta, por meio de vídeos, imagens e sons, como os valores democráticos franceses ruíram com o fortalecimento da xenofobia e do nacionalismo. Tudo isso a partir de uma ferramenta que analisa centenas de milhares de comentários no Twitter. Entre os fatos que ajudaram a colapsar as democracias, Chavalarias aponta a eleição de Bolsonaro no Brasil.

Também no mesmo museu, uma das obras mais polêmicas da Bienal toca em outra ferida: a violência da invasão no Iraque, em 2003, por tropas norte-americanas. Trata-se uma instalação em forma de labirinto de Jean-Jacques Lebel, composta por imagens de cenas de violência, muitas delas divulgadas pelos meios de comunicação, em que soldados abusam da agressão contra iraquianos. A polêmica aí está em se usar imagens tão fortes que acabam por reforçar estereótipos da violência ao invés de questioná-los, um debate bastante atual que busca não revitimizar a dor dos outros.

O contraponto nesse grupo é o contagiante vídeo de Clément Cogitore, no qual bailarinos de várias raças fazem uma batalha no estilo Krump, ao som da ópera de 1735, Les Indes Galantes (as índias amorosas), de Jean-Philippe Rameau, que também dá título ao trabalho. A ópera, em sua montagem original, trouxe africanos para se apresentarem nos palcos franceses pela primeira vez. A performance no vídeo é um contraste à formalidade da ópera – para muitos o estilo mais sofisticado de arte – trazendo a espontaneidade das manifestações dessas batalhas. “

Ainda Presente é uma bienal que enfoca problemas conhecidos sobre a perspectiva da arte, trazendo muitas vezes revelações um tanto assustadoras, como as torturas à baixa temperatura. Muitas obras, como é o caso de Azoulay ou Lebel, partem de questões reais para criar arquivos e dispositivos que buscam evitar o apagamento e o esquecimento. Pode não ser fácil de se conviver com tudo isso, mas é um confronto necessário, já que ele não se realiza em muitos outros campos.

Mostras que se complementam

Richard Bell, Sol, 2022
Richard Bell, “Sol”, 2022. Foto: Patricia Rousseaux

Três exposições de grande escala em cartaz na Europa – a documenta de Kassel, a Bienal de Berlim e a Bienal de Veneza – dão conta de um complexo e complementar panorama da arte contemporânea. As duas primeiras são realizadas basicamente por fundos públicos alemães, o que permite maior independência – aliás, com curadores escolhidos por processos democráticos com profissionais da área.

Já a centenária bienal veneziana, a cargo da curadora italiana Cecília Alemani, segue próxima do mercado – apesar de, nesta edição, em todas as legendas as obras serem identificadas apenas como “cortesia do artista”, evitando assim o óbvio nexo. De qualquer forma, é explícito que a mostra italiana continua apresentando muito mais uma produção objetual, disponível em grande parte nas galerias poderosas do circuito, que vê a figura da artista e do artista como gênios individuais com um trabalho que valoriza o fazer em detrimento do conceito.

Enquanto isso, as exposições na Alemanha enfatizam processos, como dos trabalhos colaborativos, no caso da documenta, a cargo do coletivo indonésio ruangrupa; ou de denúncia social, como em Berlim, que tem à frente o artista franco-marroquino Kader Attia. Contudo, é inegável que ver Veneza é um prazer: a maior parte das obras parte de um acabamento estético primoroso, além de estar buscando um efeito de reparação à própria história da bienal.

Isso porque em cerca de 200 artistas presentes, 180 nunca participaram desta que é considerada a primeira bienal – iniciada em 1895 –, sendo que a maioria composta por artistas mulheres, além de um significativo aporte de negras, indígenas e figuras do Sul Global. As mostras alemãs, por outro lado, são muito mais contemporâneas de fato.
A documenta, com seu orçamento multimilionário de mais de 42 milhões de euros (R$ 232 milhões) consegue fazer algo que, desde o início da produção contemporânea, lá nos anos 1960, busca-se de fato: acabar com a representação para tornar a vivência o principal sentido da arte. Com cerca de 70 coletivos, que por sua vez mobilizaram mais de 1.500 artistas no total, a mostra em Kassel traz uma energia vibrante para apontar como a arte pode transformar o mundo, seja através de processos educativos, seja no cuidado com o ambiente, entre várias temáticas abordadas.

Já Berlim aposta na necessidade de denúncia, de apontar para questões que nem sempre estão visíveis, seja dos abusos pela polícia norte-americana contra imigrantes latinos, seja sobre como algoritmos conduzem o mundo para a direita. Tudo isso, importante dizer, sem abrir mãos de elementos estéticos que permitem que esses debates aterradores estejam no campo da arte. De qualquer maneira, cada uma a seu modo, essas exposições conseguem se complementar pois reúnem formas de trabalhar que, mesmo contraditórias em alguns casos, seguem sendo realizadas e constituem a complexa cena contemporânea atual.