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Reapropriar para reparar: o centenário da Semana de 22 sob a ótica decolonial

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Por Alessandra Simões

Reapropriação para a reparação. Esta tem sido a tônica das comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, que reforçam as mudanças que vêm atravessando o sistema da arte nos últimos anos. O centenário está pintado com os tons do decolonialismo em uma operação complexa, que revela as circularidades entre as noções de alteridade e apropriação cultural, porém com um final aparentemente simples: não há mais como discutir classe, sem discutir raça e gênero. Grande parte destas discussões versam sobre a noção de “re-antropofagia”, independentemente da ligação da Semana de 22 com o momento antropofágico posterior (tema de debate na historiografia em geral). Isto é, se as vanguardas históricas almejavam o forjamento da identidade nacional com base na noção de classe social/geopolítica e nas apropriações culturais a partir do sequestro identitário das culturas originárias, para os artistas contemporâneos esta conta não fecha. É preciso lançar mão da interseccionalidade, juntar tudo no caldeirão da decolonialidade e reapropriar-se destas ideias e estéticas para reparar os males causados pela colonização ao campo das artes, o maior deles, o silenciamento das poéticas indígenas e afro-diaspóricas. Neste sentido, inúmeras exposições, debates e algumas publicações neste ano salientam o saqueio cultural e a subalternização intelectual das culturas tradicionais, regionais, indígenas e afro-brasileiras, e das regiões fora do eixo Rio-SP, por parte das vanguardas modernistas brasileiras. Estas ações realimentam os contornos conceituais acerca do viés decolonial como a pauta mais urgente na arte contemporânea, que encontra neste marco do modernismo brasileiro a oportunidade para a rediscussão de temas exíguos no debate artístico daquele momento, como segregação racial e de gênero.

Uma das novas lentes para a reinterpretação deste momento histórico tem sido a ideia de “re-antropofagia”, utilizada por artistas para definir a necessidade da devoração daqueles que antes os devoraram. Estes artistas mostram que o termo tão alardeado por Oswald de Andrade (1890-1954) para definir a deglutição cultural dos valores europeus encobria a outra devoração que ocorria paralelamente, a da cultura dos povos originários e afro-diaspóricos por parte de artistas da elite aristocrática da época. A reinterpretação do termo já havia ganhado força com a exposição ReAntropofagia, em 2019, no Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense, tendo entre seus curadores o artista Denilson Baniwa, que apresentou na ocasião a tela homônima que representa a cabeça decepada de Mário de Andrade (1893-1945), ofertada em uma bandeja de palha, e ao lado do livro Macunaíma com um pequeno bilhete que diz: “Aqui jaz o simulacro Macunaíma, jazem juntos a ideia de povo brasileiro e a antropofagia temperada com bordeaux e pax mongólica. Que desta longa digestão renasça Makunaimî e a antropofagia originária que pertence a nós, indígenas”. Makunaimã, a divindade que habita o monte Roraima em tempos imemoriais, também já havia sido “redevorado” pelo artista Jaider Esbell em seu trabalho poético-imagético (2018), e pelo coletivo que escreveu a peça Makunaimã: o mito através dos tempos (2019) uma interessantíssima conversa entre várias pessoas que questionam a apropriação cultural de Mário de Andrade. Na peça, se destila o quebra-cabeça: Mário de Andrade que se apropriou de Theodor Koch-Grünberg, que coletou a mitologia sagrada indígena, que agora é re-apropriada por aqueles a quem ela originalmente pertence. Tudo com muito respeito, como está no livro: dedicado a Akuli Taurepang e Theodor Koch-Grünberg. 

Se a antropofagia modernista ainda não estava contextualizada pela tensão entre raça-etnia e gênero, atualmente, este tem sido o mote de sua revisão crítica. Afinal, no Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, em 1928, não havia realmente nenhuma menção acerca da cultura afro-brasileira (CARDOSO, p. 207, 2022). A afirmação “Só a antropofagia nos une”, presente no manifesto, se tornou atualmente uma pergunta, “Só a Antropofagia nos Une?”, estampada na capa da revista The Brooklyn Rail, lançada em fevereiro de 2021 e coeditada pela escritora norte-americana Sara Roffino e pelo artista brasileiro Tiago Gualberto. A edição traz textos de vários autores e autoras brasileiros (as), como Sandra Benites, Denilson Baniwa e Vivian Braga dos Santos. As escritas são respostas diretas ao idealismo da época, como o belo texto poético do artista negro Caetano Dias, A Qualquer Hora Carne Dura, que se inicia assim: “Minha terra não tem palmeiras, nem cantos de sabiás. Nesse descampado, não há mato e tão pouco cães sem dono e de caminho encruzilhado”. Baniwa apresenta um pequeno contra-manifesto modernista, também intitulado Re-antropofagia, no qual pede que “(…) renasça Makünaimî e a antropofogia originária que pertence a Nós indígenas”. 

Segundo a revista Select, Sara e Tiago começaram sua interlocução em 2018, quando, devido à retrospectiva de Tarsila do Amaral no MoMA-NY, Sara ficou espantada com a pintura A Negra (1923). Para ela, a exposição demonstrou uma visão reducionista sobre o modernismo no Brasil, com aspectos racistas e idealistas. A propósito, a obra de Tarsila foi o ponto de partida para a “reapropriação” da artista Renata Felinto na obra Axexê da Negra ou O descanso das mulheres que mereciam ser amadas (2017), performance que, a partir de referências na ritualística do candomblé nagô, propõe entre suas ações o enterro de uma reprodução da obra como metáfora para o enterro da espiritualidade coletiva de mulheres negras que foram amas de leite no Brasil (como a modelo da obra, a anônima babá de Tarsila). Trata-se assim do enterro do “culto infinito aos modelos modernistas que carregam em si a gênese racista das elites escravocratas”, como afirmou Felinto.

Colagem digital de Tadeu Kaingang, 2022. Cortesia do artista.
Colagem digital de Tadeu Kaingang, 2022. Cortesia do artista.

O coletivo Kókir, formado pelos artistas Sheilla Souza e Tadeu Kaingang, trabalha com a premissa de uma “antropofagia da re-volta” para fazer uma crítica à modernidade eurocentrada. O coletivo sinaliza para a recusa da subalternidade imposta pela colonialidade aos indígenas, por meio de ações coletivas e compartilhadas que articulam artistas, não artistas, indígenas de diversas etnias, não indígenas; estratégias de ocupação de territórios urbanos e indígenas para debater o direito, a etnografia e a política dos espaços; proposições altamente conceituais, mas que abarcam a compreensão e o prazer da forma e da contemplação; usos de tecnologias e novas mídias para falar de ancestralidade; trânsitos entre objetos e fazeres prosaicos, como as cestarias Kaingang, que revelam a generosidade estética da vida cotidiana. Se trata de um processo de deglutição estético-político que inverte a “antropofagia” dos colonizadores como signo de submissão e extermínio. A “antropofagia da re-volta” indicaria o caminho da volta à afirmação da identidade dos povos originários, o que pode ser visto em suas obras expostas este ano em três mostras: Ẽpry Nẽn Mág – Caminhos do Mato, na Casa de Eva, em Campinas; Krecidade, no Consulado do Brasil, na Holanda: em Amsterdam; e na mostra Antropofagia da Re-volta, dentro da coletiva ARTES para DESCOBRIR as CULTURAS INDÍGENAS, com curadoria de Sebastián Gerlic (realização compartilhada entre Helder Camara Jr. e a ONG Thydêwá), que ficou em cartaz no Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília (versão online: www.AEI.art.Br/artes/). Uma outra interessante “reapropriação para a reparação” também está presente nesta mostra coletiva. Se trata da obra Tapuya Abaporu (2022), do artista indígena Kadu Tapuya, que homenageia os 100 anos do Modernismo no Brasil, remixando o “Abapuru” com uma colagem digital na qual expressa sua poética baseada na ideia de um “futurismo indígena”.

Tapuya Abaporu, Kadu Tapuya, colagem digital. Cortesia do artista.
Tapuya Abaporu, Kadu Tapuya, colagem digital. Cortesia do artista.

Fazendo coro ao revisionismo decolonial, o Itaú Cultural optou por lançar uma série de entrevistas em seu site a partir de perguntas como: O que seria essa semana de oposição ao conservadorismo na arte se ela ocorresse atualmente? Seria mais plural, menos centralizada, mais inclusiva? Quem estaria na “turma” dessas pessoas se a Semana de arte moderna acontecesse hoje? O Mekukradjá – círculo de saberes, ciclo de debates, realizado anualmente pela instituição – partiu este ano do poema Erro de Português, de Oswald de Andrade, para fazer mais uma pergunta: O que aprendemos se o indígena despir o Brasil? Com curadoria dos educadores Daniel Munduruku e Naine Terena e da antropóloga Júnia Torres, o Mekukradjá também se baseou na noção de reantropofagia de Denilson Baniwa, que afirmou no site da instituição: “Reantropofagizar é rever – ver de novo – o que não foi visto. Talvez revelar – tirar o véu – do que nos foi ocultado quando as vozes ancestrais não tinham eco em uma sociedade brasileira que ensaiava se conhecer conhecendo o desconhecido, propositadamente deixado oculto. Querer reantropofagizar é deixar de ser apenas o alimento e ser, também, aquele que se alimenta com o que fizeram de nós.” A Pinacoteca de São Paulo também lançou uma série de debates intitulada 1922: modernismos em debate com o objetivo de reunir uma grande diversidade de opiniões sobre o marco.

A revisão crítica sobre as narrativas estabelecidas a partir da Semana de 22 também foi o ponto de partida para a proposta curatorial da exposição Nakoada, com curadoria de Denilson Baniwa e Beatriz Lemos, que ficará em cartaz no MAM do Rio de Janeiro, entre julho de 2022 e janeiro de 2023. Com projetos comissionados de artistas contemporâneos e um recorte das principais obras modernistas presentes nas coleções do MAM Rio, a mostra Nakoada traz em seu título o conjunto de éticas de guerra Baniwa. Em seu vasto campo de significados, Nakoada seria o estudo e profundo entendimento de outra cultura para exercer a habilidade de capturar conhecimentos não-indígenas e construir narrativas que sejam radicais na continuidade da vida e dos saberes indígenas. “Em outras palavras, uma contra-antropofagia ou re-antropofagia”, afirmou Beatriz Lemos, confirmando o propósito curatorial em criticar os discursos de legitimação e centralidade de um ideal modernista no país, cuja construção insiste na invisibilidade de pessoas, criações e narrativas localizadas fora dos grandes centros e originárias de outras percepções de mundo.

Apesar de não declarar uma política específica de comemoração da Semana de 22, o Masp vem realizando exposições que integram o biênio de programação do museu dedicado às Histórias brasileiras, em 2021-22, que inclui mostras de Alfredo Volpi (1896-1988), Luiz Zerbini, Dalton Paula, Joseca Yanomami, Madalena dos Santos Reinbolt (1919-1977), Judith Lauand e Cinthia Marcelle, além de uma grande coletiva, Histórias brasileiras. A mostra Abdias Nascimento: um artista panamefricano, curada por Amanda Carneiro, curadora assistente, e Tomás Toledo, curador-chefe, é a maior exposição dedicada ao trabalho visual do artista, ativista, escritor, dramaturgo, ator, diretor de teatro, poeta, jornalista e professor universitário, figura fundamental na vida política e cultural brasileira recente. Na mostra, estão presentes 61 pinturas realizadas ao longo de três décadas, de 1968 até 1998, o período mais frutífero do artista. O catálogo-livro da exposição mostra um apanhado de grande fôlego a respeito da obra visual do artista, na qual figuram personagens, iconografias, insígnias e temas de religiosidades afro-brasileiras, elaborados em diálogo com a tradição da abstração geométrica e na representação dos símbolos africanos, como os adinkras. Organizado por Adriano Pedrosa e Amanda Carneiro, o volume contém ensaios inéditos de Amanda Carneiro, Glaucea Helena de Britto, Kimberly Cleveland, Raphael Fonseca e Tulio Custódio e uma entrevista histórica com Elisa Larkin Nascimento conduzida por Tomás Toledo, além de textos republicados de Lélia Gonzalez e de Abdias Nascimento.

Até mesmo a exposição Luiz Zerbini: a mesma história nunca é a mesma, curada por Adriano Pedrosa, diretor artístico, Masp, e Guilherme Giufrida, curador assistente, pode ser interpretada dentro do viés da releitura da Semana de 22. A ideia de que “a mesma história nunca é a mesma” aponta para a repetição das histórias ao longo dos séculos, bem como para a necessidade de se criar outras narrativas para esses episódios, fazendo emergir novas leituras, protagonistas e imagens. Com cerca de 50 trabalhos, em sua maioria inéditos, a exposição inclui cinco pinturas de grandes dimensões de forte impacto estético, quatro delas produzidas especialmente para a mostra, em que o artista revisita de maneira crítica a pintura histórica. Utilizada para representar eventos marcantes de uma nação, como guerras, batalhas, independências e abolições, este gênero de pintura “pré-semana de 22” frequentemente idealizava ou romantizava marcos e personagens a serviço das ideologias dominantes. Em 2014, Zerbini recriou uma das imagens mais clássicas da pintura histórica brasileira, em sua icônica Primeira missa, formulando uma nova representação para essa cena ocorrida em 1500, que é um emblema da colonização portuguesa no Brasil. Estas obras também são apresentadas em um extenso livro-catálogo. A mostra inclui ainda 29 monotipias em papel da série Macunaíma (2017), concebidas para uma edição do livro do mesmo nome de Mário de Andrade (1893-1945), um marco da literatura modernista brasileira.

O debate ecológico, também uma importante vertente do decolonial, foi expresso por meio da revisão da Semana de 22 na exposição Semana de Arte Mundana, na Galeria Kogan Amaro. Lama da tragédia criminosa de Brumadinho, cinzas de queimadas no cerrado, na Amazônia, na Mata Atlântica e no Pantanal e óleo que atingiu as praias do nordeste são elementos que o artista Mundano já havia utilizado para suas obras. Agora, em relação especificamente à Semana, o artista se apropriou da estética do icônico cartaz da Semana de Arte Moderna, de Di Cavalcanti, propondo um questionamento sobre o momento atual e sua aceleração vertiginosa rumo à destruição do patrimônio ambiental brasileiro. A obra ganhou versão NFT, com uma animação em stop motion na qual aparece a troca do enunciado original para Semana de Arte Mundana e a imagem do brotinho que cresceu e acabou cortado como muitas árvores, dando a ideia de ruptura.

Uma das maiores exposições referentes ao centenário de 22 é a mostra Brasilidade Pós-Modernismo, no Centro Cultural Banco do Brasil (inicialmente no Rio de Janeiro), com curadoria de Tereza de Arruda, que também se focou na atualidade para repensar o histórico, reunindo obras de 51 artistas, produzidas a partir da década de 1960 até a atualidade, sendo algumas inéditas, ou seja, já com uma maturidade e com um distanciamento histórico dos primórdios da modernidade brasileira. Pintura, fotografia, desenho, escultura, instalação, novas mídias, entre outras linguagens, procuram mostrar uma versão sobre as discussões ensejadas pela Semana de maneira diversificada e miscigenada, regional e cosmopolita, popular e erudita, folclórica e urbana. A sensação é de que se trata de um grande traçado da Semana, cujo ápice é a contemporaneidade, com a participação de artistas como Adriana Varejão, Alex Flemming, André Azevedo, Anna Bella Geiger, Armarinhos Teixeira, Arnaldo Antunes, Augusto de Campos, Barrão, Berna Reale, Beatriz Milhazes, Camila Soato, Caetano Dias, Cildo Meireles, Daiara Tukano, Daniel Lie, Delson Uchôa, Ernesto Neto, Emmanuel Nassar, Fábio Baroli, Farnese de Andrade, Flávio Cerqueira, Floriano Romano, Francisco de Almeida, Gê Viana, Glauco Rodrigues, Gisele Camargo, Jaider Esbell, Joaquim Paiva, Jorge Bodansky, José De Quadros, José Rufino, Judith Lauand, Júlio Plaza, Lenora de Barros, Lina Bo Bardi, Lúcio Costa, Luiz Hermano, Luzia Simons, Márcia Xavier, Marlene Almeida, Maxwell Alexandre, Mira Schendel, Nelson Leirner, Oscar Niemeyer, Paulo Nazareth, Rejane Cantoni, Rodrigo Braga, Rosana Paulino, Rosilene Luduvico, Shirley Paes Leme e Tunga. A pluralidade de vozes também aparece no catálogo da exposição com textos de Bel Santos Mayer, Ernani Chaves, Idjahure Kadiwel e Leonor Amarante.

Entre os livros lançados por ocasião da Semana de 22, dois se destacam pela proposta revisionista de cunho decolonial. A obra Modernismo em preto e branco: arte e imagem, raça e identidade no brasil, 1890-1945 (Cia das Letras), de Rafael Cardoso, questiona a associação do modernismo a um seleto grupo paulistano e reinvindica a modernidade de manifestações da cultura de massas, como a imprensa ilustrada, a publicidade, a música popular e até o Carnaval, especialmente, a partir do panorama da capital carioca. O livro apresenta uma pesquisa extremamente consistente e com um viés bastante inovador, iluminando pontos inusitados sobre o modernismo brasileiro, incluindo principalmente a questão racial. Já o livro Modernismos: 1922-2022, organizado por Gênese Andrade, traz 29 ensaios inéditos, com a participação de intelectuais como José Miguel Wisnik, Lilia Moritz Schwarcz, Renata Felinto e Walnice Nogueira Galvão, que contribuem com um amplo panorama de reflexões sobre a Semana de 22 e seus desdobramentos, revisitando suas memórias e fortuna crítica.

O centenário da Semana de 22 parece evocar e confirmar um novo momento para o sistema da arte brasileira, que vem encontrando muitos vieses interessantes para a discussão da decolonialidade. Em um momento político tão nebuloso, em que as políticas de opressão da cultura evidenciam ainda mais os mecanismos de estratificação cultural no país, a possibilidade de se debater e revisar este marco histórico com dados realistas e sem idealizações banais aponta para um amadurecimento da discussão decolonial, que mostra o quanto é possível reconhecer as limitações do passado, sem recair em discussões generalizantes e vazias. As ações ocorridas este ano têm mostrado que é preciso reconhecer o caráter inovador de 22, quando artistas propunham a superação de paradigmas europeus e a acolhida de novos parâmetros para a arte nacional. Porém, pontuam que estas mudanças estavam restritas majoritariamente a uma elite permeada pela cultura escravocrata e racista, consolidada ainda mais pela centralidade paulistana. 

Como afirmou Bel Santos Mayer (2022), também podemos celebrar o fato de que, com o advento do modernismo, a literatura deixou de ser assunto exclusivo de acadêmicos(as) sobre “imortais e suas bibliotecas majestosas”. A autora pontua ainda que a proposta de Mário de Andrade, de abrasileiramento da língua e da literatura como forma de liberdade e de independência das normas lusitanas, causou estranheza até ser vista como contribuição à linguística nacional. “Seus passos abriram caminhos para que, nos anos 1970, a intelectual e ativista Lélia Gonzales (1935-1994) apontasse a africanização no português falado, principalmente, pelas mulheres negras: o ‘pretuguês’. Nos anos 1990, outra intelectual negra, Conceição Evaristo, cunha o termo ‘escrevivências’ para falar da vida escrita e da vida que se escreve em uma sociedade marcada pelo racismo”. Assim, a Semana de 22 se consagra como momento legítimo de liberdade para a produção artística, com expressivo valor por suas provocações sobre as noções de nação e identidade nacional. Atualmente, o movimento decolonial, que afirma a existência de outras experimentações e criações, sinaliza que o inventariado deste marco moderno será sempre mutante. Afinal, a arte se reconfigura à medida em que o mundo se transforma, sendo ao mesmo tempo agente transformador do mundo. É neste paradoxo que reside a riqueza do debate decolonial a respeito da Semana de 22.

Referências

ANDRADE, Gênese (org.). Modernismos: 1922-2022. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

BANIWA, Denilson. “O ser humano como veneno do mundo”. Entrevista concedida a Julie Dorrico e Ricardo Machado. IHU Online, São Leopoldo, n. 527, 2018. Disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/7397-o-ser-humano-como-veneno-do-mundo Acesso em: 16 maio 2019.

CARDOSO, Rafael. Modernismo em preto e branco: arte e imagem, raça e identidade no brasil, 1890-1945. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

DINATO, D. ReAntropofagia: a retomada territorial da arte. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 3, n. 3, p.276-284, set. 2019. Disponível em: ˂https://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/ mod/article/view/4224˃. DOI: https://doi.org/10.24978/mod.v3i3.4224.

ESBELL, Jaider. Macunaima: meu avô em mim! In Imagem e Descolonização: imaginários plurais em movimento. Revista Iluminuras, v. 19 n. 46, 2018. Disponível em https://seer.ufrgs.br/iluminuras/article/view/85241. Acesso em 09/04/2022

GUALBERTO, Tiago; ROFFINO, Sara. Só antropofagia nos une? Disponível em:; https://brooklynrail.org/2021/02/criticspage/Cartas-aos-Leitorxs. Acesso em 07 de maio de 2022.

MARQUEZ, Renata. A língua das onças e das lontras. Arte e Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, vol. 26, n. 40, p. 361-373, jul./dez. 2020. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n40.25. Disponível: http://revistas. ufrj.br/index.php/ae. Acesso em 04 de maio de 2022.

MAYER, Bel Santos. Ousadias literárias com sotaques brasileiros. In Brasilidade pós-modernismo (Curadora Tereza de Arruda). São Paulo: Base7 Projetos Culturais, 2021. Disponível: https://ccbb.com.br/programacao-digital/tour-virtual-360-brasilidade-pos-modernismo/ Acesso em 01 de maio de 2022.

TAUREPANG,… [et al.]. “Makunaimã: o mito através dos tempos”. São Paulo: Editora Elefante (2019).

Instituições e projetos têm chamadas abertas para artistas

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A arte!brasileiros preparou uma lista com quatro editais que oferecem oportunidades para artistas de diferentes linguagens. Todos os projetos têm inscrições abertas durante o mês de agosto. Confira:

Bienal Sesc_Videobrasil

Após um adiamento de quase dois anos por conta da pandemia de Covid-19, a 22ª Bienal Sesc_Videobrasil acontecerá em outubro de 2023 no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, atenta à produção contemporânea do Sul Global. Com curadoria do brasileiro Raphael Fonseca e da queniana Renée Akitelek Mboya, a Bienal tem chamada internacional aberta para seleção de artistas até 2 de setembro. Sob o título A memória é uma ilha de edição, o evento deste ano busca selecionar trabalhos que tratem das memórias coletivas, das lembranças e esquecimentos que constroem narrativas históricas e sociais, relativas a povos, nações e regiões geográficas. “Como se dá a equação entre lembrança e esquecimento? Quais as fronteiras éticas de um corte? Quem detém o poder de fazê-lo? Como uma sequência de imagens pode revisitar as narrativas que dizem respeito a uma família, nação ou região geográfica? Como forjar a memória daquilo que não vimos ou sentimos em nossos corpos? Quais os limites da memória?”, questionam os curadores.

Podem se inscrever artistas oriundos de países do Sul Global, da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) ou radicados neles há pelo menos cinco anos, e artistas indígenas de quaisquer nacionalidades, bem como coletivos em que pelo menos um integrante atenda aos requisitos. Serão aceitas obras realizadas em quaisquer linguagens ou suportes desde que inéditas em São Paulo. Cada artista e/ou coletivo selecionado receberá o valor bruto de R$ 3.000 pela participação. A 22a Bienal terá também uma série de premiações. Serão concedidas as seguintes distinções: Prêmio Estado da Arte, para o trabalho considerado pelo júri o mais instigante e potente do evento; Prêmio Sesc de Arte Contemporânea, que contempla obras produzidas por artistas brasileiros e que passarão a integrar o Acervo Sesc de Arte; Prêmio O.F.F., oferecido pelo Ostrovsky Family Fund e que contempla um artista que apresente uma investigação original sobre a imagem em movimento; e, por fim, prêmios de residência artística, que garantem períodos de residência em instituições parceiras. Acesse o site do Videobrasil para saber mais.

Cura 2022

O tema articulador do Circuito Urbano de Arte deste ano é a terra, um espaço de acolhimento das lutas, de reconhecimento do passado e cultivo do futuro. Na terra fértil, o corpo de luta vira semente para o levante coletivo: onde cai um, nasce um milhão. Nossa pergunta para você nesta convocatória é: qual imagem você convoca para a luta?”, destaca a organização do evento. Neste ano, o festival vai selecionar uma obra digital que se tornará NFT e também será impressa em formato lambe para ocupar a fachada do Hotel Sorrento, na praça Raul Soares, região central de Belo Horizonte.

Podem participar desta convocatória pessoas brasileiras ou naturalizadas brasileiras, maiores de 18 anos, que já tenham mintado pelo menos um NFT até a data de encerramento das inscrições e que tenham uma carteira válida na blockchain Tezos. A obra inscrita deve ser inédita e ainda não tokenizada – a mintagem acontecerá após e somente se o trabalho for selecionado. O responsável pela elaboração da proposta vencedorá receberá o valor de R$ 4.000, a fim de remunerar a concepção do projeto e a aquisição de um exemplar do NFT por parte do CURA, bem como a cessão dos direitos de utilização da imagem. O CURA arcará com toda a despesa de impressão e colagem da peça na fachada do Hotel Sorrento e se compromete a estar em contato com a artista durante todo o processo de montagem, a fim de garantir fidelidade à proposta artística. Acesse o site do festival para saber mais.

Delfina Foundation e Instituto Inclusartiz

Moradores da região Sul do Brasil podem concorrer a uma bolsa de residência artística de três meses em Londres, Inglaterra, na Delfina Foundation, entre 5 de janeiro e 30 de março de 2023. O projeto é uma parceria com o Instituto Inclusartiz e visa contribuir para a exposição e presença internacional de artistas e curadores brasileiros. O programa já recebeu nomes como Manauara Clandestina, Maxwell Alexandre e Vivian Caccuri. Estão à
frente do corpo de jurados da atual edição, que tem chamada aberta para artistas que
vivem e trabalham na região Sul do país, Ana Rocha (Museu de Arte Contemporânea do
Paraná), Igor Simões (Bienal Mercosul/Universidade Estadual do Rio Grande do Sul) e
Kamilla Nunes (Universidade do Estado de Santa Catarina/Instituto Mayer Filho). “O mais importante é que a proposta tenha coerência e pertinência nos tempos atuais, que
esteja aberta para experimentações e transformações ao longo da pesquisa/residência, que
consiga articular a poética, a estética, a ética e a política e, claro, que seja factível”, afirma
Kamilla Nunes.

As inscrições estão abertas até as 17h do dia 28 de agosto e devem ser feitas através do formulário disponibilizado pelas instituições. A residência inclui visitas guiadas a museus, galerias, organizações sem fins lucrativos, espaços e estúdios dirigidos por artistas, bem como viagens a instituições fora de Londres; oportunidades de conhecer e interagir com artistas, curadores, acadêmicos e pesquisadores por meio de apresentações organizadas, visitas ao estúdio, eventos e refeições; atividades de desenvolvimento profissional, incluindo apresentações e críticas, revisões de portfólio e atividades de orientação; e um intercâmbio colaborativo entre moradores por meio de encontros, críticas e refeições. Os selecionados terão também direito a um subsídio de subsistência de £ 30 por dia, orçamento de materiais de £ 700, um quarto de solteiro na Delfina Foundation, e auxílios referentes a transporte e viagem. Acesse o edital para saber mais.

Festival Ubatuba de Artes Visuais

Com inscrições abertas até as 16h do dia 22 de agosto, o Festival Ubatuba de Artes Visuais chega à sua 18ª edição em 2022. O edital possibilita a participação de artistas visuais em uma exposição de grande porte no Centro de Convenções da cidade, prevista para ocorrer no período de 22 de outubro a 19 de novembro deste ano. O evento busca difundir trabalhos artísticos e estimular o acesso da população à arte e à cultura. Dentre os selecionados para a exposição, serão concedidos um Prêmio Fundart de Aquisição, no valor de R$ 4.000; quatro prêmios estímulo, no valor individual de R$ 2.000 cada; e a fim de valorizar a criação artístico-cultural de artistas residentes na cidade de Ubatuba, serão concedidos um prêmio Destaque Ubatuba de Obra de Arte, no valor R$ 4.000 e um de estímulo no valor de até R$ 2.000, ambos exclusivos a artistas residentes no município.  De acordo com o edital da Fundação de Arte e Cultura de Ubatuba (Fundart), podem participar do evento (de forma individual ou em coletivos) brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, maiores de 18 anos. Cada participante pode se inscrever com até três trabalhos originais e recentes (feitos dentro dos últimos cinco anos). Serão aceitas diversas linguagens dentro do universo das visuais. Para mais informações, clique aqui e verifique o edital completo.

Pasolini: Sesc celebra centenário com exibições especiais e palestras

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Pier Paolo Pasolini. Reprodução Wikimedia Commons.
Pier Paolo Pasolini. Reprodução Wikimedia Commons.

Até o dia 17 de agosto, filmes, encontros e debates – organizados pelo Sesc São Paulo junto do Instituto Italiano di Cultura – homenageiam Pier Paolo Pasolini, emblemático cineasta italiano cujos 100 anos teriam sido completos em 2022. Ao todo, 19 filmes serão projetados no CineSesc, em cópias restauradas em 2k e 4K e uma sessão especial em 35mm. Um ciclo de palestras on-line com a presença de professores e críticos será realizado pelo Centro de Pesquisa e Formação do Sesc. Além disso, duas aulas magnas sobre Pasolini com pesquisadores italianos serão disponibilizadas on-line. No dia 17 de agosto, cinco títulos dirigidos por Pasolini serão disponibilizados gratuitamente na plataforma Sesc Digital, onde ficam disponíveis por 30 dias ou até esgotarem os limites de visualização.

Para Michele Gialdroni, diretor do Istituto Italiano di Cultura de São Paulo, o centenário de Pasolini é uma oportunidade de homenagear a vida e obra de um autor inevitável. “Todos têm seu Pasolini, o apocalíptico e o elegíaco, o violento e o delicado, o comunista e o católico, o tradicionalista e o moderníssimo, o clássico e o vanguardista, o intelectual sofisticado e o frequentador das ruas de subúrbio, o filólogo e o cineasta, o poeta e o colunista. Eu também tenho meu próprio Pasolini”, declara.

Nascido em 5 de março de 1922, em Bolonha, no norte da Itália, Pier Paolo Pasolini era gay, católico e comunista. Formou-se em Estudos Literários pela Universidade de Bolonha, publicou livros de poesia, contos e romances. Foi poeta, editor, ensaísta, roteirista, jornalista e crítico cultural. Tornou-se cineasta em torno dos seus quarenta anos, ganhando assim projeção internacional e uma obra atacada por todos os lados. Inevitável nela era a crítica à sociedade do consumo e à burguesia. 

Entre os destaques da programação (clique aqui para acessá-la por completo), o público que estiver em São Paulo poderá assistir ao primeiro longa-metragem do diretor, Accattone – Desajuste Social (1961); Mamma Roma (1962) – sobre uma prostituta de meia-idade que sonha em mudar de classe social para poder voltar a viver com seu filho adolescente, Ettore; O Evangelho Segundo São Mateus (1964) – prêmio do juri no Festival de Veneza; à trilogia da vida, realizada pouco antes de sua morte precoce, em 1975, e formada pelos filmes Decameron (1971), Contos de Canterbury (1972) e As Mil e uma Noites (1974); e à sua última produção Salò, ou os 120 Dias de Sodoma (1975), adaptação da obra do Marquês de Sade, onde o cineasta apresenta sua visão sobre o poder, a sexualidade, o conformismo e a juventude italiana dos anos 1970.

Still do documentário "La rabbia di Pasolini". Crédito: © Cinecittà S.p.A. Divulgação Sesc.
Still do documentário “La rabbia di Pasolini”. Crédito: © Cinecittà S.p.A. Divulgação Sesc.

Ciclo de Palestras

A fim de dar conta da extensa obra e pensamento de Pier Paolo Pasolini, um ciclo de quatro palestras apresenta diferentes aspectos e interpretações sobre seu trabalho. As palestras acontecem online, sempre das 15h às 17h, em youtube.com/cpfsesc.

O cinema moderno de Pasolini

08/08, das 15h às 17h

Uma abordagem sobre a concepção de Pasolini do cinema moderno como um “cinema de poesia”; uma formulação que supõe que este cinema, ao expressar a visão de mundo de seu autor, imprime, ao mesmo tempo, toda ênfase à “função poética da linguagem”. Ou seja, aquela construção formal que faz a obra de arte chamar a atenção sobre si mesma, ao contrário do cinema clássico que procura fazer com que a tela se torne uma janela transparente para o mundo. Colocada esta premissa, o objetivo é apresentar uma reflexão sobre a sua noção mais original: a de “subjetiva indireta livre” formulada a partir de uma reflexão que parte do chamado “estilo indireto livre”, conceito usado pela teoria do romance para qualificar um procedimento do narrador em sua expressão do ponto de vista de uma determinada personagem. Com Ismail Xavier, pesquisador, crítico e professor de cinema. Professor associado da Universidade de São Paulo, publicou diversos livros e artigos que são referência na área de cinema no Brasil e internacionalmente.

A lama de outras era: anacronismo como resistência no cinema de Pasolini

09/08, das 15h às 17h

Frequentemente evocado como grande polemista, Pasolini assumiu artística e biograficamente o combate contra uma forma pervasiva de fascismo que ganhava escala na sociedade italiana dos anos 1960 e 1970: a onipresença do consumo. Assim, ele engendra um universo poético que manifesta uma tomada de posição política: figurativizações de formas ancestrais e periféricas da vida social representam uma via de resistência contra a homogeneização das diferenças culturais. A estética apocalíptica do cineasta instaura assim a dinâmica do anacronismo: no interior da própria lógica industrial burguesa, emergem as temporalidades e mentalidades disruptivas de um mundo arcaico que não se deixa reduzir à assimilação mercadológica. Com Mariana Duccini, doutora em Ciências da Comunicação pela ECA/USP. É coorganizadora dos livros “Gêneros cinematográficos e audiovisuais: perspectivas contemporâneas” (volume 2 e volume 3, prelo).

A influência de Pasolini na vida cultural brasileira

15/08, das 15h às 17h

Pier Paolo Pasolini, poeta, romancista, cineasta, crítico, semiólogo, intelectual de intervenção, faria 100 anos em 2022. O fio condutor da aula é resumido nas palavras de Roberto Esposito: “o pensamento de Pasolini prospera nas zonas mais densas da matéria social: a política, a história e a vida”. Tanto os poemas e narrativas, os filmes como seu ensaísmo crítico serão vistos num constante movimento de experimentação que aterrizam, em ondas, na vida cultural brasileira desde o Cinema Novo, nos anos 60, até as mais recentes traduções como as dos poemas de “As Cinzas de Gramsci” e do ensaísmo de urgência do livro Escritos corsários (Editora 34, 2020). Com Maria Betânia Amoroso, professora colaboradora no Departamento de Teoria Literária da Unicamp, Livre Docente na área de Literatura Comparada. Entre os autores estudados, é central o conjunto da produção de Pier Paolo Pasolini.

A semiologia da realidade de Pasolini

16/08, das 15h às 17h

A palestra parte de um exercício especulativo: que leitura faria Pasolini da realidade atual, veria ele aí a emergência de um terceiro tipo de fascismo? Enquanto realizava filmes herméticos que causavam escândalo e eram alvo da censura e da homofobia, o cineasta formulava uma teoria da vida a partir de seu estudo da linguagem do cinema. Assim como a montagem organiza e dá sentido ao filme, Pasolini atribuiu à morte o poder de organizar o sentido da existência. A partir desse insight, ele passa a ler a realidade como um discurso vivo, atribuindo ao consumo uma revolução antropológica, capaz de produzir a mutação de um povo inteiro. Tal modalidade de fascismo, chamado de consumismo, era ainda mais insidioso do que o fascismo histórico. Com Luiz Nazário, professor titular de Cinema da Escola de Belas Artes da UFMG, doutor em História pela USP. Escritor e ensaísta, publicou, entre outros, os livros “Todos os corpos de Pasolini” (2007) e “O cinema errante” (2013).

Bens públicos, de um patrimônio tombado, assentos do Pacaembu são colocados à venda

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Na última quarta-feira (27), a controversa concessão do Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu, teve mais um desdobramento no mínimo insólito: de um conjunto de 8 mil assentos, 600 foram transformados em cadeiras e banquetas pela TokStok, com preços que chegam até quase R$ 1800. Os itens foram doados à loja, e a renda será revertida para a fundação Gol de Letra. Logo após o anúncio da comercialização dos assentos, houve uma saraivada de críticas na internet.

“Não há nenhuma bondade aqui. Isso é fazer caridade com o chapéu alheio, no caso o chapéu do meu, do seu, do nosso Pacaembu”, escreveu Deborah Neves, em sua conta numa rede social. Doutora em História e especialista em Patrimônio Cultural, Deborah afirma que “as cadeiras […] se tornaram objeto de desejo”, “um ativo que poderá ser vendido pelo valor do fetiche”, enquanto “a concessionária privada […] está dragando o Pacaembu, esvaziando seu sentido, seu valor e deixando apenas o simulacro de um dos mais importantes estádios do País”.

Para urbanistas ouvidos pela reportagem, a doação dos assentos, que são bens públicos, de um patrimônio tombado por órgãos do Estado e do município, deveria ter ocorrido diretamente para uma entidade sem fins lucrativos, que decidiria a sua destinação. O repasse imediato ao setor privado permitiu que uma marca realizasse, a partir da iniciativa, uma ação de marketing, com uma roupagem de responsabilidade social. Uma crítica que reverbera outra passagem do texto de Deborah Neves: “A Fundação Gol de Letra deveria recusar essa reversão e cobrar que as pessoas doem diretamente sem dilapidar a história, a memória, a honra e o patrimônio do futebol”.

Diretor geral da Gol de Letra, Sóstenes Oliveira conta à arte!brasileiros que a fundação foi procurada em junho, não pela Allegra ou pela TokStok, mas pela agência de publicidade da empresa de decoração. “Fomos consultados pela DPZ se toparíamos participar. Naquele momento, havia ainda a possibilidade de que mais de uma entidade fosse beneficiada. A gente jamais iria atrás da Allegra ou coisa parecida, mas nós aceitamos. Enquanto convidados, e como não entendo os meandros do contrato de concessão, achamos bonita a iniciativa de dar uma utilidade, com apelo estético, ao que iria ser descartado. É claro que se trata de uma ação também de marketing, e que isso beneficia a marca”.

Após o anúncio feito ontem (28), de que o vereador Celso Giannazi (PSOL) acionou o Ministério Público paulista e o Tribunal de Contas do Município de São Paulo contra a venda, Oliveira consultou advogados, que consideram “a campanha um ato com base legal”. A verba, segundo ele, será destinada a projetos e programas da fundação, que acontecem no Rio de Janeiro e em São Paulo.

A reportagem procurou a Allegra e a TokStok para esclarecer a linha do tempo e os critérios para a doação e a avaliação dos assentos, assim como detalhes do processo de adaptação deles para móveis, mas não obteve essas informações. A concessionária afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que a avaliação ocorreu “entre janeiro de 2020 e agora”, e ressaltou que não eram itens originais, mas sim “assentos que foram implantados nos anos 1990 e seriam descartados no processo de reforma das arquibancadas leste e oeste”, o que não subtrai deles o caráter de bem público, tampouco seu valor como memória do patrimônio. Comunicou ainda que seu porta-voz está fora do Brasil até o dia 5/8 e não ofereceu uma alternativa para entrevistas.

Já a empresa de decoração, também via assessoria, não indicou um representante, afirmando que iria apenas “seguir o posicionamento oficial, feito em conjunto com a Allegra”. Ambos divulgaram uma nota em que qualificam a ação como uma “iniciativa socioambiental” e ressaltam que “não há qualquer restrição legal ou contratual”. A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Esportes (SEME), confirmou a ausência de restrições, declarou que cabia à Allegra “realizar a destinação e/ou descarte dos materiais e equipamentos existentes no Complexo do Pacaembu” e que “o reaproveitamento das cadeiras evitou seu descarte, dando a elas um novo propósito.”

Em entrevista à arte!brasileiros, Margareth Matiko Uemura, coordenadora do Instituto Pólis, organização da sociedade civil (OSC), de atuação nacional sobre questões relacionadas ao direito à cidade, considera que doar algo público para o privado é “muito estranho”, que a cessão dos assentos deveria ter sido feita diretamente a uma entidade sem fins lucrativos, como a própria Gol de Letra, não para uma empresa privada.

“A concessão não deveria permitir o desfazimento do patrimônio público. Afinal, o poder público não está doando aqueles bens, a concessionária não pode fazer o que quer. As concessões são longevas, mas, ao fim, o patrimônio volta ao poder público. No caso agora do Pacaembu, voltará sem essas cadeiras. É uma questão relevante, e as regras devem ser claras no processo de concessão e para a população”, afirma a arquiteta e urbanista.

A controvérsia anterior

A venda dos assentos é mais um episódio do controverso processo de concessão do estádio, do qual a Allegra saiu vencedora em janeiro de 2020, quando assumiu a gestão do Complexo Esportivo do Pacaembu por 35 anos. Até então sob gestão da prefeitura, o equipamento público, inaugurado na década de 40, havia sido tombado em 1988 pelo Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) e, em 1998, pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico), orgão da esfera estadual.

Em maio, a Allegra demoliu as duas arquibancadas centrais (leste e oeste) do estádio, sob a alegação de que precisava criar áreas de circulação de pessoas e ainda iniciar a construção, sob os assentos do lado da Rua Itápolis, de uma arena de e-sports, nome dado a competições com jogos virtuais. A concessionária afirmou, à época, que tinha autorização do Condephaat, o que foi confirmado em nota da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, à qual o conselho está ligado. O comunicado informa que “no projeto aprovado pelo Condephaat está prevista a demolição e reconstrução das arquibancadas laterais”. A Allegra divulgou que ambas as estruturas serão refeitas até a reabertura do estádio, em janeiro de 2024.

O arquiteto e urbanista Marcio Novaes Coelho Jr., que foi técnico do Condephaat de 2003 a 2007, e é professor de Preservação do Patrimônio na Faap e na Universidade Presbiteriana Mackenzie, queixa-se de que há falta de informação relativa ao processo como um todo. Quando ocorreu a demolição, Coelho Jr., que também é Diretor de Patrimônio Cultural da Associação Viva Pacaembu, questionou técnicos do conselho sobre onde poderia consultar as aprovações, e eles, por sua vez, indicaram um site sobre o projeto, mantido pela própria concessionária. “Eu entrei lá, e há menção a apenas um dos lados das arquibancadas”, conta.

Para o arquiteto, ainda que a Allegra tenha essas autorizações, trata-se de um bem tombado, e não se pode destruí-lo, alegando apenas que vai reconstruí-lo. “Isso não existe em nenhum lugar do mundo, nenhuma carta de preservação patrimonial fala sobre substituição do que foi demolido. Conceitualmente, é completamente equivocado. E, no caso do Pacaembu, há um agravante: tanto no tombamento do Conpresp quanto no do Condephaat, o primeiro item de reconhecimento de seu valor patrimonial fala como o estádio foi implantado de modo a tirar proveito de topografia do terreno, que formava uma arquibancada natural. Então ela era uma camada fina de concreto sobre a terra. Ainda que seja um valor simbólico, refere-se à importante relação da arquitetura com o território naquele projeto”, diz.

O argumento ecoa uma postagem em rede social feita à época da demolição por Nabil Bonduki, professor da FAU-USP: “As arquibancadas do Estádio do Pacaembu, tombado pelo patrimônio, assentadas sobre o talude da grota do córrego Pacaembu, em um exemplo da arquitetura em diálogo com o meio físico, foram destruídas pela concessionária Allegra Pacaembu”. Em entrevista à arte!brasileiros, Bonduki diz que, quando olhou o projeto, achou que a concessionária iria escavar sob a arquibancada, “fazendo uma estrutura de concreto por dentro, mantendo a parte de cima intacta”, explica. “Do ponto de vista patrimonial, a demolição foi um desastre.”

Quanto às cadeiras, Bonduki diz que ao menos uma fração dos assentos poderia ter sido recuperada e mantida no estádio, como parte de sua memória. Para ele, se as pessoas estão pagando até R$ 1800 por uma cadeira, é porque tem valor histórico, e isso deveria ser usufruído por todos e não apenas por quem pode pagar. “Mas a Allegra se comporta como se aquilo fosse uma propriedade privada. Há uma concessão do estádio, e eles estão usando tudo o que está lá para exploração econômica. Você está pegando um estádio e transformando quase 100%, na região mais valorizada da cidade, em área comercial. O tobogã foi demolido para ali se erguer um prédio com hotel, restaurantes, lojas etc. O campo, vai virar arena de espetáculos”, exemplifica.

Em nota acerca da demolição, a Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo informou que “o projeto aprovado foi analisado tanto pela esfera Municipal quanto Estadual, portanto não há irregularidade ou dano ao patrimônio, mas sim uma intenção de ocupar o subsolo, assim como foi feito em diversos bens tombados como Museu do Ipiranga, Estação da Luz, Cidade Matarazzo, Estádio Olímpico de Berlim, entre outros, com vistas à modernização das instalações, ao aumento de área e provimento de serviços qualificados.”

Nabil Bonduki cita a privatização do do Ibirapuera como um contraexemplo ao que vem acontecendo no estádio: “Eu tenho críticas à sua concessão, mas, ele continua sendo um parque, de acesso público, embora com preços abusivo para consumo no local. A empresa o mantém funcionando, com limpeza e segurança, e o uso permanece como original. No Pacaembu, o uso para o futebol vai ser praticamente terciário. Deixou de ser o objetivo principal, um estádio para jogos importantes, do Corinthians, do São Paulo, do Palmeiras e, sobretudo do Santos, que não tem estádio em Sao Paulo, mas com grande torcida. Se não terá o futebol como atividade principal, por que não o venderam de uma vez? Porque eles iriam pagar muito mais do que pagaram pela concessão”.

Um processo bastante nebuloso

A ideia de uma gestão privada do Pacaembu não é nova – no fim dos anos 1990, ele já havia sido incluído na lista de bens a privatizar pelo então prefeito Celso Pitta e, em 2015, quando o estádio completou 75 anos, Fernando Haddad (PT) chegou a abrir um edital, sem sucesso. Foi somente a partir de 2017, com a prefeitura sob a gestão de João Doria (PSDB), que o projeto ganhou tração. Segundo Coelho Jr., a entrada do político, tanto na prefeitura quanto no governo do Estado, tornou esse processo todo “bastante nebuloso”.

“A direção do Conpresp, mesmo depois do fim da gestão dele, continua sendo feita por pessoas aliadas a ele. E logo que Doria assumiu o governo de São Paulo, ele mudou a composição do Condephaat, a quantidade de representantes da sociedade civil. Com a mudança, ele garantiu a maioria, para sempre, nas decisões do Estado”, explica.

Em nota, o Condephaat afirma que “o questionamento não procede” e que o conselho foi reformulado em 2019 “para ampliar a representatividade da sociedade civil e assegurar mais agilidade e rigor técnico nas decisões”. O comunicado acrescenta ainda: “Desde a reformulação, nenhuma reunião quinzenal deixou de ocorrer por falta de quórum, o que lamentavelmente era comum antes da reformulação. Há representantes do Governo do Estado, do Governo Federal, de universidades e de instituições da sociedade civil, além de especialistas em patrimônio material e imaterial com notório saber na área”.

Para Margareth Matiko Uemura, que é também integrante do Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU), a concessão é, de todo jeito, inteiramente descabida. “Trata-se de um equipamento público importante, que atende a milhares de pessoas, além de ser bem localizado e um expoente da arquitetura, por isso tem proteção dos órgãos de proteção. Ela soma muitos atributos que deveriam estar sob tutela do poder público”, diz. “Tem um erro nestes processos de concessões e privatizações, em que o município se exime da responsabilidade, que é dele, de prover à população espaços públicos adequados e de boa qualidade, para uso de atividades diversificada e acesso amplo da população.”

 

Confira a programação do VII Encontro de Museus-Casas Literários

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Até o dia 30 de julho acontece o VII Encontro de Museus-Casas Literários, que terá como tema principal a discussão sobre como o passado é reconstruído no presente e reúne especialistas que atuam em museus-casas e outras instituições culturais de diversas regiões do Brasil. Um dos objetivos do encontro é aproximar esses espaços dos diferentes públicos e democratizar as informações sobre os acervos.

O Encontro de Museus-Casas Literários chega com uma programação totalmente gratuita voltada a diversos públicos, como profissionais e estudantes das áreas de museologia, arquivologia, biblioteconomia, letras ー línguas, literatura, teoria literária e tradução ー, artes plásticas, artes cênicas, história, sociologia, turismo e afins, representantes da comunidade acadêmica, de instituições públicas, além de interessados em museus e cultura.

As inscrições para as atividades online, relacionadas a seguir, devem ser feitas aqui.

Confira a programação completa:

Palestra: “Museu e anti-museu: outras histórias”

Sexta-feira, 29 de julho, às 11h

Com Francisco Régis Lopes Ramos

Atividade realizada virtualmente, via plataforma Zoom

Vagas: 200

Palestra: “Reconstruir passados em museus?”

Sexta-feira, 29 de julho, às 14h30

Com Aline Montenegro Magalhães

Atividade realizada virtualmente, via plataforma Zoom

Vagas: 200

Mesa 1: “A reconstrução do passado: experiências”

Sexta-feira, 29 de julho, às 16h

Com Márcia Luíza Freitas Ganem, Maria João Amado, Museu Gustavo Teixeira, Ivan Teixeira de Barros

Mediação: Tayna Rios

Atividade realizada virtualmente, via plataforma Zoom

Vagas: 200

Mesa 2: “A reconstrução do passado: experiências”

Sexta-feira, 29 de julho, às 18h

Com Ronaldo Alves de Oliveira, Marlene Gomes Vellasco, Ana Cláudia Rôla Santos,

Mediação: Davidson Kaseker

Atividade realizada virtualmente, via plataforma Zoom

Vagas: 200

Visita virtual: Casa Guilherme de Almeida, Casa das Rosas e Casa Mário de Andrade

Sábado, 30 de julho, às 11h

Com Alexandra Rocha

Atividade realizada virtualmente, via plataforma Zoom

Vagas: 200

Mesa 3: “A reconstrução do passado: experiências”

Sábado, 30 de julho, às 14h30

Com Ezequiel Barel Filho, Solange Duarte Alvarenga, Juliana Maria de Carvalho, Fernando José Arouca

Mediação: Cecília Machado

Atividade realizada virtualmente, via plataforma Zoom

Vagas: 200

Discussão: “Implementação de grupo de discussão sobre museus-casas literários”

Sábado, 30 de julho, às 16h

Com a participação dos representantes das instituições participantes do Encontro

Atividade realizada virtualmente, via plataforma Zoom

Vagas: 200

”Quase sarau”: Leituras de textos dos patronos dos museus, por seus representantes

Sábado, 30 de julho, às 17h

Com a participação dos representantes das instituições participantes do Encontro.

Atividade realizada virtualmente, via plataforma Zoom

Vagas: 200

Pautas sociais e ambiental norteiam 37º Panorama

O fogo que consumiu o Museu Nacional do Rio, a Cinemateca de São Paulo, as queimadas na Amazônia e no Pantanal, e até mesmo o ataque incendiário à estátua do bandeirante Borba Gato, no início do ano, na capital paulista, inflamaram o imaginário da equipe de curadores do 37º Panorama da Arte Brasileira, que acontece até o dia 15 de janeiro de 2023. Desde março do ano passado, o grupo – formado por Claudinei Roberto da Silva, Vanessa Davidson, Cristiana Tejo e Cauê Alves – buscou conceituar e montar uma exposição que refletisse, poetica e esteticamente, a simbologia de resiliência e renascimento que envolve o elemento da natureza, para falar das questões mais candentes do País no momento: as pautas sociais e ambientais, a ancestralidade, a promoção de igualdade étnica, de gênero e classe.

Com o título Sob as Cinzas, Brasa, a mostra abriga criações de 26 artistas, em sua maioria comissionadas para esta edição – com todas as dificuldades que o trabalho remoto imposto pelas restrições sanitárias da pandemia ainda vêm impondo. Para exibir as instalações, fotografias, pinturas, os vídeos e as esculturas, o Panorama buscou ampliar seu espaço expositivo, incluindo no circuito o Jardim das Esculturas, que acolhe um trabalho de Jaime Lauriano; e, numa parceria que dá prosseguimento a experiências anteriores com equipamentos da vizinhança, como o MAC USP e a Bienal, entra em cena agora o Museu Afro Brasil, onde se encontram as criações de Davi de Jesus do Nascimento e Lídia Lisboa.

O conjunto de obras apresentadas, no entanto, não necessariamente traduzem de forma didática o título deste Panorama. A interlocução se propõe mais sutil. “Não há uma ligação mais evidente, não houve uma preocupação de que as obras ilustrassem seu nome”, afirma Cauê Alves. As criações se debruçam sobre símbolos nacionais, território, cartografia, ancestralidade, trazem referências ao Bicentenário da Independência, à Semana de 22 e retomam a discussão sobre a identidade nacional. Mas a escolha do título ecoa, de toda forma, pela mostra.

“Há uma ambiguidade das palavras que levamos ao título do Panorama, que por sua vez remetem a cores com um sentido político e histórico. As cinzas geralmente são associadas à terra arrasada. O próprio nome do País se refere à primeira commodity que explorou,  uma árvore, com uma madeira vermelha, como uma brasa. E a brasa arde, permanece como uma espécie de resistência da matéria, ainda que represente destruição, seja de um patrimônio ou nas queimadas de nossas florestas”, pondera Cauê.

“Uma obra como a da Gisele Beiguelman, que fica logo na entrada [uma reprodução do monumento de Borba Gato, cortado longitudinalmente ao meio e que serve como um banco] alude a este momento de nossas vidas em que estamos apagando incêndios, de modo figurado, mas também incendiando ícones, como os bandeirantes. O fogo surge também como possibilidade de uma ressurreição. É dali que a Fênix renasce, que as cinzas podem recuperar o solo”, conclui o curador.

Primeiro negro a fazer parte da equipe curatorial de um Panorama, Claudinei Roberto da Silva ressalta que a seleção de artistas desta edição reflete o “policentrismo” da produção artística brasileira no momento, o que por sua vez reforça seu caráter de diversidade. O curador afirma que, desde o convite para integrar o grupo, feito em 2020, ficou evidente que havia uma vontade de se criar “um diálogo maior com setores da sociedade que talvez não tenham sido exatamente privilegiados pela história da própria instituição” até este momento. “E essa nossa articulação me parece inédita, faz emergir uma força política que, embora existisse, não se apresentava de maneira tão organizada”, argumenta.

Claudinei conta que alguns dos artistas selecionados não têm na política o cerne de sua investigação criativa. Como Luiz 83 ou André Ricardo. “Os trabalhos deles não trazem uma marca de discurso político. Mas a gente entende que essa vocação política surge na maneira como privilegiamos este grupo de artistas. O Luiz 83 é frequentemente associado a um artista que adere a um partido concreto. De fato, talvez ele possa ser percebido como herdeiro de uma tradição do concretismo brasileiro. Mas ele sai de um lugar do mundo em que essa informação não estava presente. Mas ele faz com que pensemos suas obras também a partir de outras referências, que ainda precisam ser prospectadas. Ele é um artista periférico, mas o que significa sê-lo, num cenário de policentrismo, em que esta oposição entre centro e periferia começa a ser esgarçada?”, questiona.

O curador acrescenta que se pode falar o mesmo da obra de André Ricardo. “Ele tem um percurso extraordinário, foi aluno do departamento de artes da USP e absorveu essa cultura. Mas quando ele deixa o departamento, passa por um processo de autorreconhecimento, um homem negro, de pele clara, que tem passabilidade maior, por conta disso, do que um retinto. E a partir daí ele vai ficar mais sensível às histórias ligadas à própria origem. E você começa a perceber no trabalho que certos signos da cultura popular surgem. E ele usa têmpera, tem erudição muito grande. Daí ser comum que pessoas o remetam à obra de Volpi. Mas isso não é totalmente justo, porque a pesquisa dele pode até abarcar Volpi, mas não é devedora. Ele é mais devedor da observação que ele faz da arquitetura popular, que em São Paulo se origina também da diáspora nordestina”, diz.

Em maio desse ano, quando foi feito o anúncio dos artistas selecionados para o Panorama, houve críticas ao grande número de artistas paulistas ou radicados em São Paulo (18 dos 26), formando um grupo que, de modo geral, representava mais uma produção artística sudestina do que propriamente dita brasileira. Para a curadora Cristiana Tejo, que é pernambucana, a seleção final e as obras daí resultantes são capazes de mostrar, por exemplo, as eventuais conexões que podem haver entre Caruaru (PE) e São Paulo.

“Meu olhar parte sempre de uma perspectiva do Nordeste. Mas não preciso necessariamente fazer uma exposição sobre a região, porque é uma mirada descentralizada. Como curadora, eu me volto para outras tradições artísticas que não apenas o concretismo paulista ou a Semana de Arte de 22, por exemplo. Embora eu tenha trabalhado muito, ao longo de minha trajetória, com a inserção do artista nordestino no cenário nacional”, pondera.

“Nosso Panorama, no entanto, foi feito durante uma pandemia, o que criou uma dificuldade de circulação pelo País e impactou nossa pesquisa. Além disso, enxergamos essa edição como complementar a várias exposições que têm acontecido nos últimos anos, na própria cidade de São Paulo. E outra questão é a renovada migração que tem havido do Nordeste para a capital paulista por conta do desmonte de políticas públicas para a cultura. Por exemplo, a Eneida Sanches é baiana, eu a conheci há dez anos lá, mas hoje ela mora aqui. Eu entendo a crítica, a demanda deve continuar. No entanto, neste momento, estamos olhando para outras questões, não apenas a regionalidade. Mas gênero, raça e classe social, por exemplo. Que respostas os artistas estão dando a elas? Que estratégias estamos criando, como sociedade, para lidar com estes ciclos repetitivos de destruição do Brasil?”, indaga.

Os curadores destacaram também o papel importante da expografia desta edição do Panorama, que ficou a cargo da arquiteta Anna Ferrari. O desejo deles era reforçar a integração entre os espaços expositivos e facilitar a visibilidade das obras. “A ideia, por um lado, era revelar a dimensão do MAM, e por outro, não criar anteparos entre os trabalhos expostos. O que me possibilitou chegar ao resultado desejado foi o fato de a maioria das obras serem volumétricas, de chão, soltas no espaço. Só não sabíamos de antemão como seriam ao fim, porque eram comissionadas em sua maioria”, conta.

“O maior desafio era conseguir definir uma expografia, um partido de ocupação do MAM inteiro, foi então um trabalho coletivo com os curadores e os artistas. Tentei deixar o máximo de espaço livre e usar a menor quantidade de painéis. Outra questão era o desejo latente de que o tema da exposição refletisse no meu trabalho, por isso decidimos pintar o teto de vermelho. Como uma arquiteta de formação na Escola Paulista, eu me senti lisonjeada de poder trabalhar num espaço histórico da arquitetura moderna da cidade”, conclui a arquiteta.

Ancestralidade e questões raciais e de gênero guiam a 16ª Verbo

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Após dois anos em ausência, a Verbo: Mostra de Performance Arte volta a acontecer presencialmente em 2022. Com curadoria de Marcos Gallon e Samantha Moreira, a edição reflete sobre o atual estado das coisas com ações que ecoam discussões ligadas a identidade, gênero, raça e ancestralidade e busca pensar como se dá uma performance em tempos de pandemia, em que a presença física das pessoas e a circulação, por vezes, representam elementos de perigo.

De 27 a 30 de julho, a programação ocorre em São Paulo, na Galeria Vermelho, e nos dias 11 e 12 de agosto, em São Luís do Maranhão, no Chão SLZ. A edição conta também com um plano estendido de ações, que serão incorporadas ao programa regular de exposições da Vermelho entre os meses de setembro de 2022 e maio de 2023.

Dedicada a apresentação de performances de artistas brasileiros e estrangeiros, a Verbo teve início em 2005, com o objetivo de criar uma rede de artistas e público ligados à linguagem artística. Com a pandemia, viveu um hiato de dois anos. “Foi uma opção nossa, quando em 2020 resolvemos não fazer nenhuma ação que fosse virtual, por um esgotamento mesmo, por uma condição excessiva de tudo que estava acontecendo”, explica Samantha Moreira em entrevista à arte!brasileiros. Para a curadora, esse tempo de pausa ressoa na mostra atual: “Acho que depois de dois anos, vem com muita potência, muitas narrativas, muitas poesias e muitos desesperos a partir do que a gente viveu, além desse desejo do encontro”.

Neste ano, mais 400 propostas de diversas regiões do País e do mundo foram enviadas à seleção. Do encontro de suas latências, nasceu o recorte curatorial da 16ª Verbo. Isso, porque há anos a organização opta por criar o programa a partir da leitura dos projetos, ao invés de definir um conceito-guia a priori.

“Foi possível identificar algumas temáticas recorrentes, como aquelas relacionadas a questões raciais e de ancestralidade, apontando para a diversidade de temas prementes e essenciais evidenciados por conta da fragilidade dos sistemas políticos durante a pandemia; questões de gênero materializadas em performances e vídeos que reivindicam o empoderamento e a inserção de minorias no campo da arte atual, e de forma mais ampla na arena de políticas públicas; questões ligadas à identidade, ao estar no mundo materializadas a partir da precariedade e ambientadas em espaços reduzidos que constituem ‘diários de bordo’ sobre os dois últimos anos por meio de práticas diárias de manutenção da vida”, explicam Marcos Gallon e Samantha Moreira.

A mostra apresenta 38 ações, reunindo artistas e coletivos de 12 estados brasileiros das regiões Nordeste, Norte, Sudeste e Sul, e trazendo a participação de performers estrangeiros da África do Sul, Alemanha, México, Rússia e Suécia.

A edição deste ano traz ações presenciais, distribuídas entre a Vermelho e o Chão, e uma mostra de trabalhos em audiovisual. “A gente entendeu que a programação dos vídeos tinha que acontecer com uma intensidade. Tínhamos muitas performances em processo a partir da pandemia, feitas em vídeo. Muito acontece, claro, dessa relação corpo e movimento, ou corpo e não-movimento, a partir dessa experiência que tivemos mundialmente da Covid-19″, conta Samantha Moreira. A mostra de vídeos é comum a ambas as sedes e também ficará disponível online, de forma a alcançar um público mais amplo. 

A programação maranhense conta ainda com uma fala da diretora artística do Festival de Sexualidades e Gêneros de Lausanne (Suíça), Valentina D’Avenia, que apresentará o evento numa conversa com artistas e público, e com uma residência artística na Casa do Sereio, em Alcântara, Maranhão. O projeto de pesquisa, coordenado por Yuri Logrado, receberá o artista carioca André Vargas que desenvolverá a ação a ser apresentada como parte da programação do Chão SLZ no dia 12 de agosto.

Confira a programação completa:

Galeria Vermelho
Verbo 16
Rua Minas Gerais, 350 – Higienópolis, São Paulo (SP)

27/07
20h – Darqueruim Comuna, de Depois do Fim da Arte, acontece na Banca
20h – Nem tudo que vai prá parede é obra de arte, de Marcel Diogo, é apresentada na fachada
20h – Rezos pra rasgar o mundo, de Tieta Macau, na Sala 3
21h – Cadafalso, de Luisa Callegari, Guilherme Peters e Sansa Rope, na Sala 1

28/07
20h – Darqueruim Comuna, de Depois do Fim da Arte, acontece na Banca
20h – O presente, amanhã, de Carla Zaccagnini, na Sala 2
20h30 – 123 ponteiros, de Elilson, na Sala 3
21h30 – Um ritual-recital-performático III, de Jamile Cazumbá, na Sala 1

29/07
20h – Darqueruim Comuna, de Depois do Fim da Arte, acontece na Banca
20h – Apagamento, de Marcel Diogo, na Sala 2
20h – Zona Cinzenta, da T.F. Cia de Dança, na Sala 1
21h – Fagia, de Paola Ribeiro, na Sala 3

30/07
11h às 17h – Programa de vídeos

Registro de ARGILA, de Áurea Maranhão, que será apresentada na VERBO 16 no Chão SLZ
Áurea Maranhão, “Argila”, 2021-2022. Foto: Cortesia da artista

Chão SLZ
Verbo 16
Rua do Giz, 167 – Centro, São Luís (MA)

11/08
19h às 22h – Programa de vídeos
19h – O pornô ético: O que se faz a partir do sexo e das emoções, conversa aberta ao público com Valentina D’Avenia, diretora artística do Festival de Sexualidades e Gêneros de Lausanne (Suíça)
20h30 – Argila, de Áurea Maranhão

12/08
19h às 22h – Programa de vídeos
19h30 – André Vargas (obra em processo, desenvolvida na residência na Casa do Sereio)
21h – Toada — Retomada, do coletivo #Joyces

Festival Arte Serrinha chega à sua 20ª edição

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Em 2020, a pandemia restringiu o Festival Arte Serrinha, em Bragança Paulista (SP), a uma programação híbrida, que mesclou lives, residências e oficinas, e teve como destaque a inauguração da land art Terzo Paradiso, do italiano Michelangelo Pistoletto. No ano passado, ainda por conta das restrições sanitárias, foi feita apenas uma exposição retrospectiva das duas décadas de atividades do festival, fundado por Fabio Delduque, artista visual e seu diretor artístico, pelo jornalista Marcelo Delduque e o empresário Carlão de Oliveira.

Para compensar, o evento chega neste ano à sua 20ª edição, totalmente presencial, com atividades que se estendem para além das fronteiras de seus endereços recorrentes – o bairro Serrinha, no qual ficam a fazenda de mesmo nome, onde nasceu o projeto, e o Galpão Busca Vida, além do bairro Água Comprida. Um dos destaques do evento é a exposição Brasis – Expedição Serrinha, com obras inéditas exibidas entre o Centro Cultural Teatro Carlos Gomes – que nas duas primeiras edições do festival, quando ainda era uma construção abandonada, recebeu parte de sua programação – e o novo Parque Natural Arte Serrinha.

A mostra é fruto de viagens feitas ao longo de quatro anos, em quatro estados brasileiros (Pará, Pernambuco, Minas Gerais e São Paulo), por um grupo multidisciplinar: o maestro e pianista Benjamim Taubkin, o cineasta Beto Brant, o escritor Diógenes Moura, o designer e escultor Hugo França, a artista visual Laura Vinci, a coreógrafa Lú Brites, o fotógrafo Luiz Braga, a cozinheira Neka Menna Barreto, o estilista Ronaldo Fraga, e o próprio Delduque, que também assina a curadoria. Todos participaram dos quatro roteiros.

O objetivo da expedição foi percorrer regiões que traduzem os grandes ciclos econômicos do País e sua diversidade cultural, como a Zona da Mata Sul (PE) e seus engenhos de cana-de-açúcar; a Ilha do Marajó (PA), com a história da borracha e dos vaqueiros marajoaras; a Serra da Moeda (MG), marcada pela mineração e exploração do ouro, e finalmente a Serrinha (SP), uma região cafeeira. O resultado dessas experiências são fotografias, pinturas, esculturas, filmes, instalações, roupas, croquis, músicas, textos e registros de performances produzidas pelos artistas.

A programação completa, até o encerramento, pode ser conferida no site do Festival Arte Serrinha. Entre as atrações dos próximos dias estão o desfile Brasis, de Ronaldo Fraga, que acontece às 16h, no Centro Cultural Teatro Carlos Gomes, e o show do grupo Bala Desejo com o DJ Dolores, às 23h, no Galpão Busca Vida, ambos no sábado (23/7). No dia 27/7, às 21h, haverá a exibição do filme Modo Ave, Expedição Serrinha, de Beto Brant, no ateliê da Fazenda Serrinha. Para o último dia (30/7), destaque para a apresentação de Otto com o DJ Davida, no Galpão Busca Vida, a partir das 23h.

SERVIÇO

20º Festival Arte Serrinha

Até 30/7

Fazenda Serrinha, Parque Natural Arte Serrinha – bairro Serrinha, Bragança Paulista (SP)

Ingressos: para shows e Parque Natural Arte Serrinha, acesse sympla.com.br.

Exposição Brasis – Expedição Serrinha

Até 28/8

Centro Cultural Teatro Carlos Gomes – centro de Bragança Paulista (SP)

Ingressos: gratuitos

Horários: de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h; aos sábados e domingos, das 10h às 17h

“REVIRAVOLTA” leva acervo do Videobrasil ao Espírito Santo

Frente a um mundo em colapso, algumas produções artísticas buscam “revirar nossas certezas, tratar daquilo que é urgente e nos colocar diante de novas perspectivas”, explica Solange Farkas, fundadora e diretora da Associação Cultural Videobrasil (VB). É dialogando com esta ideia que se constrói REVIRAVOLTA, em cartaz até 10 de setembro em Vitória, no Espírito Santo. Reunindo produções audiovisuais que fazem parte do acervo do VB e que ecoam o momento em que vivemos, o projeto acontece simultaneamente em dois espaços da capital capixaba: enquanto o Museu de Arte do Espírito Santo (MAES) recebe Reviravolta – Arte e geopolítica; a Galeria Homero Massena apresenta Reviravolta – Corpo e performance.

O convite para a realização da mostra veio em 2019, feito pelo governo do Espírito Santo. A proposta era de uma itinerância da 21ª Bienal Sesc_Videobrasil. Porém, em decorrência da pandemia, o projeto ficou parado. Nesses dois anos, outras reviravoltas se estabeleceram no mundo: os embates políticos tomavam outro corpo e a crise sanitária intensificava uma série de colapsos já latentes no que tange às desigualdades sociais, de gênero, etnia e raça — em especial quando tratamos de países do Sul Global, aqueles à margem do capitalismo central e dos grandes eixos de poder econômico e geopolítico. 

“Quando finalmente retomamos, o clima político no país havia se deteriorado de tal forma que sentimos a necessidade de mostrar um panorama da produção do Sul mais focado na vocação política que a atravessa desde sempre, e cada vez mais”, explica Farkas em entrevista à arte!brasileiros. Assim, alteraram a configuração de REVIRAVOLTA: “Em lugar apenas da 21ª Bienal ou dos trabalhos premiados no evento, resolvemos tomar como base das curadorias o Acervo Videobrasil como um todo, buscando nele manifestações diversas e potentes do desejo dos artistas do Sul de criar reviravoltas na forma de fazer arte e de pensar o mundo”.

Mas de que forma se dá esse giro na maneira como entendemos arte e vida? “Vindos de países que têm em comum um passado colonial – ou seja, uma experiência fundadora de submissão intelectual, política e cultural –, os artistas do Sul oferecem uma perspectiva necessariamente outra, digamos, se pensarmos nas narrativas oficiais que seguem se sobrepondo a dissidências e antagonismos”, explica Farkas. Duas obras expostas no MAES evidenciam como esse conceito toma corpo. Em About Cameras, Spirits and Occupations: a Montage-Essay Triptych, o grupo Alto Amazonas Audiovisual articula olhares indígenas e não indígenas para rever a posição tradicional de poder do etnógrafo sobre o Outro; já a performance L’Arbre D’Oublier, de Paulo Nazareth, retoma o ritual de ‘apagamento da memória’ a que homens africanos escravizados eram submetidos antes de partir para a América, ao que o artista volteia 437 vezes a Árvore do Esquecimento – “é uma imagem quase gráfica de inversão de perspectiva”, compartilha Farkas.  

Hoje, as exposições no MAES e na Galeria Homero Massena apresentam um largo conjunto de obras em diálogos possíveis com o momento atual, além de materiais de apoio, como depoimentos de artistas e a série Videobrasil na TV, que aprofunda uma variedade de conteúdos a fim de complementar a experiência das mostras. Assim as obras do Acervo Videobrasil são exibidas pela primeira vez em conjunto significativo na capital do Espírito Santo. O projeto vai de encontro ao desejo histórico da instituição de acessar territórios fora dos grandes eixos de poder, não só no mundo (o Sul Global), mas também no próprio país (para além do eixo Rio-São Paulo). “A interlocução proposta com o Videobrasil em Vitória estimula um intercâmbio necessário para o fortalecimento das redes, dos artistas e suas produções para além das fronteiras dos territórios”, afirma Nicolas Soares, diretor do MAES, no release do projeto.

Frentes de ação

O convite feito pelo Governo do Espírito Santo ao Videobrasil se estendia a dois espaços expositivos da capital capixaba. “Fizemos, então, o exercício de imaginar dois recortes diferentes do Acervo que se adequassem às características de cada um deles – e, ao mesmo tempo, fossem complementares, no sentido de oferecer ao público de Vitória um panorama significativo do que é a coleção e de aspectos importantes da produção do Sul geopolítico”, conta Solange Farkas, que também assina a curadoria de REVIRAVOLTA

Enquanto o MAES apresenta um espaço expositivo mais aberto e uma proposta curatorial contínua ligada às linguagens contemporâneas, permitindo a exibição de trabalhos com grande presença espacial e representativos da produção recente em vídeo e instalação, a Galeria Homero Massena tem uma característica mais intimista – “é um espaço mais concentrado de fruição”, explica Farkas – e tornou-se mais propícia a um panorama retrospectivo de uma linguagem específica: a performance, “muito presente no acervo por causa da importância que o Videobrasil deu a ela desde as edições iniciais, nos anos 1980”, explica a diretora do VB. 

Assim, Arte e geopolítica no Acervo Videobrasil, no MAES, parte da cartografia desenhada por duas recentes edições da Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (2017 e 2019). A exposição apresenta trabalhos dos brasileiros Aline X (Minas Gerais), Alto Amazonas Audiovisual (Amazonas e Ceará), Ana Vaz (Distrito Federal), Gustavo Jardim (Minas Gerais), Luciana Magno (Pará) e Paulo Nazareth (Minas Gerais); e dos estrangeiros Bakary Diallo (Mali), Daniel Monroy Cuevas (México), Enrique Ramírez (Chile), Seydou Cissé (Mali) e Tiécoura N’Daou (Mali), além do coletivo indígena formado por Ana Carvalho, Ariel Kuaray Ortega, Fernando Ancil e Patrícia Para Yxapy (Brasil e Argentina).

Surgem na mostra práticas artísticas que borram as fronteiras entre arte e ciência e se constroem no campo do interdisciplinar, de forma a ampliar as concepções de mundo, bem como um reforço das práticas comunitárias como possibilidades de reconstruir o mundo a partir de coletividades ligadas a identidade e afeto. “A necessidade de fazer reverberar em toda a sua potência histórias não hegemônicas dá ao vídeo um fôlego narrativo que antes era privilégio do cinema. Ao mesmo tempo, e quase na mesma medida, os artistas mobilizam o poder da imagem para criar espaços e metáforas”, escreve Farkas em texto sobre a mostra.

Em paralelo, 200 registros de performance compõem Corpo e performance, na Galeria Homero Massena. A seleção é resultado de uma imersão nos registros de performances produzidos pelo Videobrasil ao longo de seus 40 anos – incluindo happenings, intervenções musicais, vídeo performances, entre outros. “Nos países do Sul Global, em meio à violência de Estado e à herança colonial, artistas plasmam corpo e imagem em uma produção que é signo de vida contra as políticas da morte. No programa principal desta exposição, eles manobram de formas diversas o repertório da performance para trazer para o próprio corpo o enfrentamento de temas urgentes, como racismo estrutural, terrorismo estatal e violência de gênero”, destaca Farkas. 

A lista de artistas e coletivos participantes da mostra, vindos de diferentes cantos do globo, é vasta. Entre os internacionais, estão: Aya Eliav e Ofir Feldman (Israel), Coco Fusco (Cuba / Estados Unidos), Marcello Mercado (Argentina), Melati Suryodarmo (Indonésia), Michael Smith (Estados Unidos), Steina Vasulka (Islândia) e Stephen Vitiello (Estados Unidos). Já entre os brasileiros: Alexandre da Cunha (Rio de Janeiro), Ayrson Heráclito (Bahia), Chelpa Ferro (Rio de Janeiro), Eder Santos (Minas Gerais), Felipe Bittencourt (São Paulo), Frente 3 de Fevereiro (São Paulo), Lenora de Barros e Walter Silveira (São Paulo), Luiz de Abreu (Minas Gerais),  Marco Paulo Rolla (Minas Gerais), Otávio Donasci (São Paulo), Paula Garcia (São Paulo) e Waly Salomão e Carlos Nader (São Paulo). 

“Há ainda na exposição um programa especial dedicado a artistas capixabas com obras performáticas: Charlene Bicalho, Castiel Vitorino Brasileiro, Geovanni Lima, Fredone Fone, Marcus Vinícius, Natalie Mirêdia e Rubiane Maia. Parte significativa destes trabalhos expostos passarão a integrar o Acervo Videobrasil, que além de cuidar de sua salvaguarda assume o compromisso de dar maior visibilidade e circulação às obras e aos artistas”, complementa a curadora. 

Apesar de ainda não ter previsão de realizar projetos semelhantes em outros estados do País — especialmente pelo atual foco do VB na próxima Bienal Sesc Videobrasil, que acontece em 2023 em São Paulo e celebra 40 anos de atividades da associação — Farkas não descarta a possibilidade. “O acervo nos oferece possibilidades curatoriais quase ilimitadas, de criação de programas e exposições que, sim, podem e devem viajar, alimentando circuitos novos e deixando que a produção artística do Sul global alimente novas gerações de artistas. Estamos abertos.”

SERVIÇO

REVIRAVOLTA
Arte e geopolítica no Acervo Videobrasil
10 de junho a 10 de setembro
MAES: Av. Jerônimo Monteiro, 631 – Vitória (ES)
Funcionamento: terça a sexta, das 10h às 18h; sábado, das 10h às 16h

REVIRAVOLTA
Corpo e performance no Acervo Videobrasil
10 de junho a 10 de setembro
Galeria Homero Massena: Rua Pedro Palácios, 99 – Vitória (ES)
Funcionamento: segunda a sexta, das 9h às 18h; sábado, das 13h às 17h 

Mostras celebram o centenário de Jorge Zalszupin

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Um dos expoentes da geração de arquitetos que atuou, entre os anos 1950 e 1980, nos campos do design e da arquitetura brasileira, o polonês naturalizado brasileiro Jorge Zalszupin nasceu em 1º de junho de 1922, em Varsóvia. Em 1945, formou-se em arquitetura na Romênia, e em 1949 veio para o Brasil, ainda fugindo da perseguição aos judeus em seu país. Deixou-nos em agosto de 2020.

Agora, quase dois anos depois, três mostras celebram o centenário de seu nascimento, que revelam facetas diversas de sua produção diversa, que não se limitava ao mobiliário moderno, com o qual ganhou mais notoriedade nos últimos anos após um consistente trabalho de resgate de sua memória e da reedição de seus produtos, um projeto capitaneado pela empresária e curadora Lissa Carmona, da galeria ETEL.

Até o dia 4 de setembro, a exposição Orgânico Sintético: Zalszupin 100 Anos acontece simultaneamente no Museu da Casa Brasileira (MCB), com curadoria do técnico do MCB, Giancarlo Latorraca, e na Casa Zalszupin, com curadoria de Lissa e do professor Guilherme Wisnik. A mostra apresenta criações inéditas do acervo de Zalszupin, como itens pessoais, a exemplo de um livro de piadas ilustrado. O trabalho de pesquisa teve apoio da museóloga Nathalia Reys, em parceria com a família do designer. A propósito de livros, está prevista para o segundo semestre a reedição do livro esgotado sobre Jorge Zalszupin, com conteúdo inédito sobre seu trabalho arquitetônico.

No MCB, estão sendo apresentados novos aspectos da obra de Zalszupin, ligados à  produção industrial de sua empresa L’Atelier (1959–1988), aos utensílios de plástico da série Eva e às séries de mobiliário para escritórios. Será também resgatado no museu seu trabalho como arquiteto, mostrando alguns edifícios que projetou na Avenida Paulista, no Centro de São Paulo e no bairro de Higienópolis.

Na Casa Zalszupin, morada projetada pelo próprio Jorge, e onde ele trabalhou e viveu por mais de 60 anos, o foco é em sua arquitetura residencial, marcada por uma organicidade expressionista, com volumes curvos e paredes grossas e brancas. Fotos de Nelson Kon e croquis inéditos ajudam a entender melhor esta sua faceta. O espaço abriga ainda alguns móveis de Zalszupin que faziam parte da própria casa, como sua emblemática poltrona Dinamarquesa, a reedição da ETEL para sua poltrona Ondine e a última peça que ele criou para a marca, a poltrona Verônica. Há também obras de arte da Almeida & Dale, de artistas como Tunga, Anna Maria Maiolino, Laura Vinci e José Resende, que conversam com a estética do designer.

Administrado pela ETEL e pela galeria Almeida & Dale, a Casa foi aberta no ano passado e vem realizando exposições diversas, em que se busca diálogos com obras de arte do acervo da galeria, a própria arquitetura da residência e mobiliários de Zalszupin, ou ainda de outros designers, como Claudia Moreira Salles, que expôs criações suas lá, entre peças emblemáticas e lançamentos, até o fim de maio.

Originais

Até o dia 3 de setembro, a recém-inaugurada Galeria Teo – um espaço dedicado a preciosidades de grandes nomes design modernista, das décadas de 30, 40, 50, 60 e 70 – também homenageia os 100 anos de Zalszupin com uma mostra. A expografia é assinada por Teo Vilela Gomes, empresário à frente da Casa do Teo, que em 2022 completa 15 anos, e pelo arquiteto e designer gráfico Claudio Novaes. A exposição abriga 40 móveis do designer, originais e certificados, parte acervo da própria galeria, e outra parte foi cedida por colecionadores, para o período da mostra.

A seleção apresenta móveis de jacarandá maciço da Bahia e outros de jacarandá curvado, feito de compensado laminado, técnica que Zalszupin aprimorou em suas criações. Nos detalhes, destaque para os acabamentos de metal cromado e latão. Vale ressaltar ainda a elegante execução da tapeçaria de todas as peças, muitas finalizadas com botões de jacarandá, costuras e pespontos.

SERVIÇO

Orgânico Sintético: Zalszupin 100 anos
Até 4 de setembro

Museu da Casa Brasileira (MCB): Av. Brig. Faria Lima, 2705 – São Paulo (SP)
Visitação de terça a domingo, das 10h às 18h, com exceção da sexta-feira, que tem horário estendido até 22h
Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia-entrada); às sextas-feiras, entrada gratuita

Casa Zalszupin:
Jardim Europa (oendereço compartilhado após agendamento da visita)
Visitação de segunda a sexta, das 10h às 18h, e aos sábados, das 10h às 14h
Entrada gratuita mediante agendamento prévio no site casazalszupin.com 

Exposição Centenário Jorge Zalszupin
Até 3 de setembro
Galeria Teo: Rua João Moura, 1298 – São Paulo (SP)
Visitação de segunda à sexta, das 9h às 18h; sábado, das 10h às 14h
Entrada gratuita