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Gomide & Co abre nova sede com mostra de Lenora de Barros e gentileza urbana em sua arquitetura

Nova sede da galeria Gomide & Co, com projeto do escritório AR Arquitetos. Foto: Leonardo Finotti
Nova sede da galeria Gomide & Co, com projeto do escritório AR Arquitetos. Foto: Leonardo Finotti

Nesta quarta-feira (8/3), a Gomide & Co abre sua nova sede com a exposição Não vejo a hora, de Lenora de Barros. Na esquina da Avenida Paulista com a Angélica, o novo espaço expositivo marca os dez anos de atuação de Thiago Gomide como galerista em São Paulo, em seu terceiro e maior endereço na cidade. Concebido pelo escritório AR arquitetos (Marina Acayaba, Juan Pablo Rosenberg e Ana Flavia Piacentini), com lighting design de Fernanda Carvalho, o projeto preza pela gentileza urbana, numa arquitetura que dialoga com a cidade, acolhe o público da galeria e é convidativa aos transeuntes.

Segundo Gomide, um dos grandes trunfos da nova sede é manter exposições em curso e o acervo num mesmo lugar. “Antes, se um colecionador vinha nos visitar, interessado por algum dos artistas que representamos, mostrávamos imagens das obras e tínhamos de marcar outra visita ao endereço onde elas estavam guardadas. Perdíamos a agilidade”, conta o galerista, que em seu primeiro endereço, na Rua Oscar Freire, mantinha 80% de seu acervo em outro andar, do mesmo prédio. Quando se mudou para a galeria anterior, na vila concebida por Flávio de Carvalho (1899-1973), perto da Alameda Lorena, Thiago ainda mantinha seu acervo no prédio da primeira galeria.

“Agora, temos um ambiente confortável, uma sala de reunião e outra de espera em que a visita do colecionador se torna mais construtiva. O tempo que ele fica aqui dentro é 20 vezes maior do que nos outros endereços”, conta Thiago, que investiu também no projeto de interiores, com móveis criados pela designer Cláudia Moreira Salles e, last but not least, obras do acervo da galeria, de artistas como, León Ferrari, Mira Schendel, Lygia Clark, Sergio Camargo e Antonio Dias.

O escritório AR Arquitetos, que assina o projeto da nova Gomide & Co, já havia feito também o retrofit do Edifício Rio Negro (rebatizado como Rosa), finalizado em 2020, e que agora abriga a galeria. E fora também responsável pela arquitetura da Bergamin & Gomide, em seu primeiro endereço, na Oscar Freire. Alguns elementos da nova Gomide & Co já estavam então presentes na reforma, como a escadaria externa, que funciona como uma sequência de bancos ao longo da fachada na Angélica, seja para transeuntes ou, agora, os visitantes do novo espaço. Assim como a transparência, outro aspecto marcante do andar térreo.

O arquiteto Juan Pablo Rosenberg destaca a luz natural, que banha o espaço interno da galeria, e a possibilidade de se abrir para a rua a nova sede, durante vernissages, mais um componente de “gentileza urbana” do projeto. “Na esquina das avenidas, mantivemos uma permeabilidade visual, tanto para convidar o público a entrar no espaço expositivo, quanto para os passantes descobrirem que ali existe uma galeria”, afirma o arquiteto. Para ele, a chegada da Gomide & Co pode dar um novo sopro de vida àquela área, como mais um destino do circuito cultural da Paulista.

“Quanto mais degradado um lugar está, mais ele tende a se desagradar. Quando você deixa o lugar bem iluminado, habitado, frequentado, a tendência é que o entorno fique mais bem cuidado e preservado”, avalia Rosenberg, que chegou a sugerir a Thiago que extrapole as fronteiras da galeria e realize, na praça em frente, happenings, performances etc., extensões do que acontece na própria Gomide & Co. A ideia é mesmo ótima.

TRAJETÓRIA

Mineiro de Belo Horizonte, Thiago Gomide gostava de artes visuais desde garoto, achava que viria a ser artista. Estudou arquitetura na capital mineira, pensando numa profissão “para sobreviver”, caso a desejada carreira nas artes não decolasse. Acabou não concluindo o curso, mas, muito jovem, teve já sua primeira experiência no mercado secundário com uma loja em que vendia mobiliários modernistas, um negócio que surgiu de  maneira um pouco insólita.

Sua mãe, a arquiteta Meire Gomide, havia feito um projeto para a Casacor em 1997, na capital mineira, para o qual pedira a ajuda do filho e fizera questão de comprar uma grande quantidade de móveis originais de grandes mestres, como Joaquim Tenreiro, Sergio Rodrigues e José Zanine Caldas, entre outros, a preços então bem baixos. Terminada a Casacor, a arquiteta propôs vender ao filho aquelas peças pelo mesmo valor que havia pago, e ele poderia comercializá-las em BH por preços mais elevados, já que ela as havia reformado.

Surgia daí a tal loja, em que Thiago, que tinha muitos artistas e fotógrafos entre seus clientes, ocasionalmente trocava os móveis por obras. O negócio, no fim das contas, era mais lucrativo. Ele começou a frequentar leilões e galerias, a comprar arte. Leu uma reportagem a respeito um documentário do cineasta Zelito Viana sobre acervos de colecionadores mineiros. Na matéria, aparecia uma obra do artista plástico Tunga True rouge (1997) ilustrando a coleção de Bernardo Paz. Havia rumores de que Paz estava construindo galpões e comprando muitos trabalhos de arte.

Ato contínuo, Thiago ligou para o colecionador, que o convidou para um almoço, em que anunciou estar fazendo “o maior museu do mundo”, na verdade o que viria a ser o Instituto Inhotim, inaugurado em 2006, na cidade mineira de Brumadinho. Era 2002, e Thiago resolveu fechar a loja de móveis, após se oferecer para trabalhar com Paz: “Quero ajudar você a construir seu sonho”, disse Thiago ao colecionador.

Lá, conta Thiago, ele fez de tudo, “todo mundo que tinha um problema me procurava para resolver”. Mas ele teve também seus primeiros contatos com o grand monde da arte, de grandes exposições, como a Bienal de Veneza e a Documenta de Kassel, a feiras, como a Art Basel. Em dezembro de 2007, pediu as contas e veio para São Paulo, onde no ano seguinte começou a trabalhar na Bolsa de Arte, de Jones Bergamin, o Peninha.

De lá, por sugestão e ensejo do próprio Peninha, juntou-se à filha do galerista, Antonia Bergamin, com quem viria a abrir, em 2013, a sua primeira galeria em São Paulo, a Bergamin & Gomide. Como sua experiência na Bolsa de Arte era com mercado secundário, manteve o mesmo perfil na nova galeria, até 2019, quando incorporaram o primário. Em maio de 2021, Antonia e Thiago se mudaram para casa na vila dos Jardins. Um mês depois, ela saiu da sociedade, e Thiago rebatizou a galeria como Gomide & Co.

A NOVA SEDE

A nova Gomide & Co passa a integrar o corredor cultural da Paulista, onde estão a Japan House, o Sesc Avenida Paulista, o Itaú Cultural, o Masp e o Instituto Moreira Salles, entre outros. A galeria tem de 600 metros quadrados contra 140 metros quadrados da primeira e 100 metros quadrados da anterior e fica no térreo do Edifício Rosa, cujo retrofit também foi projetado por Juan Pablo Rosenberg e Marina Acayaba, do escritório que leva seus sobrenomes. Dentro, Gomide passa a contar com um pé-direito duplo, de 5 metros, que pode acomodar obras de até 4mx10m.

Nas sedes anteriores, o galerista não dispunha de uma parede tão alta, ou do distanciamento necessário para expor trabalhos de grandes dimensões não pendentes. Em 2019, por exemplo, quando apresentou uma mostra dedicada ao catalão Antoni Tàpies, Thiago não pôde exibir uma de suas criações, justamente por falta de espaço.

As mudanças na Gomide & Co não se limitam à nova sede, no entanto. Em fevereiro, a galeria anunciou que Luisa Duarte crítica de arte, curadora e pesquisadora com mais de 15 anos de trajetória na arte contemporânea estava se unindo a seu time como diretora artística. “Ela vem principalmente para a gente ampliar o programa primário, de representação de artistas, aumentar dos atuais oito para 20. E fazer com que a galeria não se limite às obras caríssimas do mercado secundário, mas possa atender, por exemplo, a um casal jovem, de menos de 30 anos, que quer comprar algo de no máximo R$ 10 mil”, explica o galerista.

“Temos também um time de artistas que demandam um pensamento, uma coerência e um tempo de discussão, acerca de suas produções, que é diferente do meu tempo”, complementa Thiago, que divulgou outra novidade: a chegada à galeria de Fabio Frayha, ex-diretor do MASP, um administrador especializado no universo das artes visuais, que passa a atuar como seu sócio.

LENORA DE BARROS

Em 2022, Lenora de Barros apresentou, de abril a julho, a instalação Retromemória no Museu de Arte Moderna de São Paulo, esteve envolvida na 59ª Bienal de Veneza e com a exposição Minha língua, aberta em outubro e que fica em cartaz na Pinacoteca até 9 de abril. Sua nova mostra, Não vejo a hora, já fora programada para abrir o calendário expositivo da Gomide & Co em 2023, na nova sede.

De dezembro a fevereiro, Lenora se concentrou nos trabalhos que apresenta agora. Gomide conta que fez um único pedido à artista: “explore bem a fachada”. “São 150 metros virados para a Angélica, e é isso que vai possibilitar a gente trazer a cidade para dentro da galeria, um tipo de espaço com que as pessoas costumam ter certa preocupação quanto a entrar ou não. É para entrar, sim. E a Lenora veio com a ideia de um painel de LED com palavras ligadas ao tempo, como retardar, antecipar, perene, atraso etc., de um poema que teve como inspiração uma brincadeira infantil que fazia com sua mãe, Electra [Barros, mulher do artista plástico e designer Geraldo de Barros]”, conta.

Em Não vejo a hora, Lenora apresenta 12 trabalhos, em sua maioria inéditos, cujo denominador comum é uma elaboração sobre o tempo. A mostra abrigará fotografias, vídeo, instalação sonora e até uma mesa de pingue-pongue, em que a artista joga e  convida o público a jogar também, com as relações entre linguagem, temporalidade e corpo.

SERVIÇO

Não vejo a hora, de Lenora de Barros
Abertura: nesta quarta-feira (8 de março), às 18h
Nova sede da Gomide & Co Avenida Paulista, 2644 São Paulo (SP)
Visitação: até 13 de maio; segunda a sexta-feira, das 10h às 19h; sábados, de 11h às 17h
Entrada gratuita

Podcast ‘O Ateliê’ aborda denúncias de relações abusivas no circuito de artes plásticas

Podcast 'O Ateliê' aborda denúncias de relações abusivas no circuito de artes plásticas
Podcast ‘O Ateliê’ aborda denúncias de relações abusivas no circuito de artes plásticas

Os bastidores de uma fatia do mundo das artes visuais ganharam inesperado alcance graças ao podcast O Ateliê, projeto do jornalista Chico Felitti. No ano passado, ele se tornou celebridade por conta de A mulher da casa abandonada, que alcançou a posição de segundo podcast mais ouvido no Brasil, segundo o Spotify.

Desta vez, Felitti apresenta uma série de denúncias de ex-alunas contra o Atelier do Centro, uma “escola para formação artística expandida”, como o local é definido em seu perfil no Instagram, dirigida pelo artista Rubens Espírito Santo.

Assim como na “casa abandonada” do bairro de Higienópolis, o jornalista parte de uma situação sem amplo conhecimento público, como o Atelier, e daí revela uma história complexa e inesperada, a partir de denúncias apresentadas na Justiça por uma das ex-alunas da escola, a artista Mirela Cabral, que lá esteve por três anos. Ela afirma que, neste período, sofreu abusos físicos, psicológicos e financeiros em uma situação que se assemelha a uma seita em que era obrigada a chamar Espírito Santo de mestre. São denúncias graves, que estão sendo investigadas pela Justiça.

Pelas relações com figuras importantes no circuito da arte contemporânea, como colecionadores de prestígio e diretores de instituições culturais, todos com nomes preservados no podcast, o assunto passou a ser comentado fortemente nos grupos de artistas, galeristas, colecionadores e afins. Quem, afinal, é o milionário que bancaria os livros publicados sobre o “mestre” Rubens Espírito Santo? Quem é o colecionador e banqueiro, pai de uma participante do Atelier do Centro, que ajuda a dar status ao local?

Essas perguntas não são respondidas por Felitti, evitando, assim, o tom de fofoca que poderia contaminar o podcast. Ao contrário, ele opta por dar visibilidade apenas a quem aceita ter seu nome tornado público e investe em contextualizar o caso por questões muito atuais, aprofundando-as com especialistas, como a dificuldade de as pessoas perceberem quando estão envolvidas em relações tóxicas. Afinal, é mesmo difícil entender apenas pelos relatos como as alunas e os alunos se deixaram envolver por tanto tempo em situações tão indignas, o que é o tema do sexto episódio, um dos melhores do podcast, sobre relações abusivas.

Se há algo que nos últimos anos finalmente está sendo levado a sério é desnaturalizar as relações por tanto tempo tidas como “normais”, mas que são de fato constituídas por puro assédio, seja físico, moral ou sexual. E vítimas, independentemente de sua classe social, merecem ser tratadas com respeito e discrição.

Fui um dos entrevistados no podcast, para contextualizar a relevância que Espírito Santo teria no circuito da arte e reafirmo aqui: nenhuma. Tendo a acreditar que ele conseguiu manter o Atelier do Centro por mais de 20 anos por se aproveitar da ingenuidade e da fragilidade de quem passou por lá.

Ao olhar para esse microcosmo do mundo das artes, no fim, Felitti faz mais uma crônica do Brasil antigo, esse que perdeu as eleições de 2022, mas ainda sobrevive ao manter pessoas escravizadas para a colheita de uva, que assedia funcionários, que discrimina mulheres no trabalho, que faz afirmações preconceituosas contra nordestinos… a lista não tem fim.

Na própria entrevista concedida por Rubens do Espírito Santo, no episódio nove, sua defesa é que se tratava de um grupo de adultos, em que os eventuais exageros ocorriam no coletivo e com consentimento dos participantes.

No entanto, ao longo do podcast, Felitti usa de vários meios para apontar os comportamentos do “velho Brasil” no ateliê, a partir de depoimentos de antigos funcionários, infiltrando estudantes de arte no grupo, entrevistando pais de discípulos arrependidos.

No fim, O Ateliê não é apenas um podcast sobre uma microbolha do circuito das artes. É mais sobre como uma sociedade gera pessoas frágeis, que se deixam manipular com facilidade e que são capazes de se submeter a situações impensáveis, como venerar figuras que contestam a importância da imunização, mesmo que, escondidas, elas até tomem as vacinas que publicamente demonizaram.

Diego Dedablio apresenta primeira obra em larga escala no Brasil

Dedablio durante a pintura de empena no Conservatório de Tatuí.
Dedablio durante a pintura de empena no Conservatório de Tatuí. Foto: William Lima

Diego Dedablio é natural de Tatuí, cidade localizada a 140 km de São Paulo e conhecida por ser a capital da música. Isso se deve ao fato de sediar o Conservatório Dramático e Musical “Dr. Carlos de Campos” de Tatuí – o maior do gênero na América Latina –, ou apenas Conservatório de Tatuí, como é conhecido internacionalmente. 

Não à toa, o tema musical está presente na obra de Dedablio há muito tempo. A iconografia do músico é um personagem recorrente junto com a música popular, o sambista, o caboclo do Maracatu e o congado de Minas Gerais. Esses elementos fazem parte da pesquisa do artista que, em conversa com a arte!brasileiros, revelou ser muito influenciado pelo Jazz, ritmo musical que começou a ouvir por causa dos professores do Conservatório da cidade. 

Apesar da música ter forte apelo, a cidade também é berço de uma das maiores atrizes do país, a tatuiana Vera Holtz. A atriz é referência para todos que aspiram a uma carreira de sucesso e prestígio nas artes cênicas.

O artista Dedablio em seu ateliê
Dedablio em seu ateliê. Foto: Diego Dedablio / Divulgação.

Em uma visita à cidade, Vera se deparou com alguns trabalhos de Dedablio, que se aventurava na street art. Curiosa por saber quem estaria por trás dos sprays nos muros, a atriz foi até a casa do conterrâneo. Além de ter adquirido algumas obras, Vera foi responsável por financiar a temporada que o artista passou em São Paulo para estudar na Panamericana Escola de Arte e Design. Dedablio comenta sobre o período: “Não terminei os estudos lá porque a escola começou a influenciar demais o meu estilo. Decidi sair por causa de modulação pedagógica. Estava numa fase em que a influência era um risco para mim. Aí eu decidi sair e fui fazer cursos livres lá em São Paulo mesmo”.

No bairro da Santa Cecília, onde morava, Dedablio passou a pintar pela região e foi estudar gravura, xilogravura e litogravura no Museu Lasar Segall. Com os cursos livres, pôde desenvolver seu estilo próprio, sem interferências. 

Nessas experimentações, aprimorou sua prática rapidamente. Entre as características do trabalho do artista está a mistura de técnicas do grafite para a fine art e vice-versa. “Há pouco tempo, fiz um mural com spray e tinta óleo juntos, que é muito incomum, né? Eu não vi ninguém fazer ainda. Normalmente, o pessoal pinta de látex”. Um dos motivos de fazer esse intercâmbio de estilos é levar a técnica das telas, como a pintura a óleo, para as ruas. “É superdifícil fazer porque é pequenininho, aí você fica lá com o pincelzinho em um muro gigante. É um martírio, mas vale muito a pena. O resultado é ótimo”. 

De volta a Tatuí, Dedablio sempre procurou manter contato com a capital. Para ele, a falta da efervescência em uma cidade pequena faz falta. Nas idas até São Paulo, realiza trabalhos independentes e, assim, recebeu seus primeiros convites internacionais. Em 2012, foi até Amsterdã, na Holanda, onde foi convidado a fazer uma intervenção na fachada de um prédio. Cinco anos depois, foi chamado pela embaixada brasileira na Bielorrússia para pintar um mural em grande escala em Minsk, capital do país. 

Somente dez anos depois do primeiro convite internacional é que surgiu a oportunidade de realizar um trabalho tão grande no Brasil. Em 2022, o Conservatório de Tatuí encomendou a pintura de um mural para a instituição. “Só agora, com uma nova gestão no Conservatório, uma gestão mais abrangente, com a cabeça mais arejada, é que eles fizeram esse convite. Eu achei superimportante para mim, por ser a primeira vez no Brasil pintando em grande escala”.

A ligação de Dedablio com o Conservatório de Tatuí vai além da conterraneidade. O artista atribui grande parte da sua educação indireta ao contato que sempre manteve com os professores da instituição e com as referências musicais que constituem o seu trabalho: “Eu fiquei supercontente, porque meu trabalho já tem muito conceito musical dentro da parte teórica e, até da prática, de sinestesia, da questão da composição, de semiótica, de escala tonal dentro do trabalho de arte, e por aí vai. [O mural] é uma retribuição àquilo que eu aprendi, ao que as artes representam. Porque são coisas bem distantes a música instrumental, a música erudita e o grafite, né? Um negócio que é muito difícil de ver”.

Parte do trabalho de Deablio realizado na empena do Conservatório de Tatuí.
Parte do trabalho de Deablio realizado na empena do Conservatório de Tatuí. Foto: Diego Dedablio / Divulgação.

Para o futuro, Dedablio tem o desejo de criar o neografite: “Eu já tenho um monte de escritos teóricos aqui e eu tenho esse plano de fazer uma formalização desse neografite que abrange todas as técnicas ao mesmo tempo. É uma pesquisa que eu tenho de antropologia e sociologia com arte contemporânea, que é uma das minhas pretensões”.

Apesar disso, o artista disse que não procura ter muitas ambições. “O mundo da arte é meio estranho, tem um negócio meio austero, com que eu não me identifico muito. Mas é necessário estar pontuando o espaço, estar presente. Acho que a minha ambição é estar vivo e presente no trabalho. Não eu, como pessoa, mas dar a vida ao trabalho, fazer o trabalho respirar na percepção do próximo, assim. Não chega nem a ser pretensão, acho que é uma obrigação mesmo”. 

A Casa Zalszupin apresenta ‘Utopias Modernistas Brasileiras’, com curadoria de Iatã Cannabrava

Augusto de Campos e Julio Plaza, "Poemóbiles". Foto: Divulgação/Almeida & Dale
Augusto de Campos e Julio Plaza, "Poemóbiles". Foto: Divulgação/Almeida & Dale

Em cartaz até 18 de março na Casa Zalszupin, a exposição Sarau Zalszupin – Utopias Modernistas Brasileiras foi uma feliz coincidência para seu curador, Iatã Cannabrava. Mas foi também uma provocação. Há alguns anos, Cannabrava havia apresentado à Almeida & Dale – galeria que mantém o espaço expositivo em parceria com a ETEL – um projeto de mostra que misturava fotografia moderna com poesia concreta, que, segundo ele, “visualmente, tinham um caminho muito similar”. A proposta foi aceita, mas somada ao desafio de que ele traçasse um terceiro vértice em sua curadoria: o mobiliário modernista.

Também fotógrafo, Cannabrava conta que esta é sua primeira exposição que não envolve somente o suporte. Diante do desafio, ele conta que passou meses procurando uma parceria. Acabou contando com a ajuda do jornalista Tato Coutinho, com quem, ao longo de dois anos, havia editado um livro para o Itaú Cultural, o Moderna para sempre: Fotografia modernista brasileira na Coleção Itaú Cultural. A publicação é resultado de um conjunto de itinerâncias da exposição homônima, feita no Brasil e em outros países da América Latina, entre 2010 e 2019, período em que a coleção foi se completando.

Em comunicado de imprensa, o curador afirma que a exposição “festeja a utopia modernista brasileira insinuada na produção reunida aqui. São obras marcadas pelo desejo de invenção, pela busca de uma linguagem própria capaz de dar conta, mais do que da realidade em si, da necessidade de transformação da realidade que se apresentava então”.

Na mostra, Cannabrava sugere conexões visuais entre criações de épocas, suportes e autores completamente distintos. Na sala de estar, ele tirou partido da arquitetura da casa projetada por Jorge Zalszupin que “é um convite a ver, de outra maneira, tudo que tem nela e do lado de fora”, disse ele, à arte!brasileiros. Por exemplo: o curador iluminou, com uma luz amarela, uma árvore de tronco e raízes impactantes da área externa, vista através de um pano de vidro, e, na parede ao lado, colocou fotografias como Folhagem (c. 1960) e Decorativa (c. 1950), de José Yalenti, assim como Folhas (c. 1951), de Carlos Líger.

Noutro canto da sala, Cannabrava insinua associações entre ângulos de A caça do índio do Alto-Xingu (c. 1947), de Jean Manzon, e Diana (c.19450), de José Yalenti, com aqueles  da mesa lateral Ninho (1949), de Lina Bo Bardi, por exemplo. Outro nexo proposto pelo curador é um desenho de 1956 de Lúcio Costa, para o Plano Piloto de Brasília, e a fotografia Aldeia de Índios Brasileiros (1944/1947), também de Manzon. Ainda ali, a circularidade presente na foto Espiral (1944), de Gaspar Gasparian, conversa com a mesa Pétala (1959), de Zalszupin. “A forma vem como reflexão, e eles, os modernistas, tinham reflexões comuns, cada um no seu território, ou trilha”, comenta o curador.

Cannabrava valeu-se ainda da criativa arquitetura de Zalszupin para dispor, num volume cúbico que outrora abrigava a lareira da morada, os poemas concretos Ver navios (1958), Crystal (1958) e White (1957), de Haroldo de Campos. Do segundo, Cannabrava consegui o original datilografado, pertencente ao colecionador Fernando Abdalla, e o poema está disposto logo ao lado da lareira, no encosto do sofá de alvenaria.

Ao descer em direção ao pátio da casa, Cannabrava criou um ambiente dedicado à poesia visual. Recorre novamente à arquitetura de Zalszupin para expor obras como Solida (1962), de Wlademir Dias-Pino, num nicho. O poema The Bird (anos 1950), também de Dias-Pino, surge na parede logo à frente. Numa prateleira, o curador expõe uma reedição de 1984 do livro Poemóbile (1968), colaboração do espanhol Julio Plaza e Augusto de Campos. Outra obra dos artistas, Objetos (1969), está em exibição no mezanino da casa.

A exposição ocupa outros dois cômodos, no segundo andar da morada. Num deles, Cannabrava emula o cubo branco de uma galeria para criar um diálogo entre as fotografias Janela (c. 1960) e Composição em preto e branco (c. 1960), de Eduardo Salvatore; Abstração (1957), de José Oiticica Filho, e Fotoforma (1950), de Geraldo de Barros, com o poema Form (1959), de José Lino Grünewald, e a poltrona Módulo (1977), de Oscar Niemeyer.

“Esta é a sala do projeto inicial, a poesia concreta diluída no meio da fotografia moderna, e vice-versa. As duas trilharam caminhos similares, ao romper com o referente e apresentar reflexões na forma. E, ao não ter cor, a sala volta às origens da minha pesquisa sobre fotografia moderna”, conclui o curador.

 

SERVIÇO

Sarau Zalszupin – Utopias Modernistas Brasieiras
Curadoria: Iatã Cannabrava
Até 18 de março
Visitação: segunda a sexta-feira, das 10h às 17h; sábados, das 10h às 14h
Entrada: gratuita, por agendamento, no site mediante agendamento no site casazalszupin.com

 

Em ‘Ianelli 100 anos: o artista essencial’, MAM-SP resgata a pesquisa de linhas, formas e cor do pintor

Arcangelo Ianelli, natureza-morta, 1960. Foto: Sérgio
Arcangelo Ianelli, natureza-morta, 1960. Foto: Sérgio Guerini

O MAM-SP apresenta Ianelli 100 anos: o artista essencial, exposição que abre seu calendário de 2023, quando completa 75 anos de atividades, e resgata a pesquisa de linhas, formas e cor do pintor, que teve uma relação estreita com o museu paulistano. Foi ali que Ianelli fez sua primeira individual em uma instituição, em 1961, e, a partir de 1969, participou de seis edições do Panorama de Pintura, sendo premiado em 1973. Em 1978, o MAM-SP abrigou também uma retrospectiva de sua obra, com mais de 160 de suas criações, numa exposição que recebeu o prêmio de melhor do ano da Associação Brasileira dos Críticos de Arte (ABCA).

Com quase 100 trabalhos, Ianelli 100 anos apresenta desde a fase inicial da carreira do artista, com pinturas mais acadêmicas, até sua imersão na abstração. Ao conceber o percurso da mostra, a arquitetura do MAM – um volume que se afunila a partir da entrada – acabou definindo bastante como a curadora Denise Mattar iria construir seu caminho pela trajetória do pintor, caminho esse que não obedece exatamente a uma cronologia. 

“Acho que uma exposição é um ensaio visual, que tenta conversar com o lugar onde ela vai ser montada. Como a produção do Ianelli parte do pequeno para o grande, e eu queria que o público enxergasse as diferentes fases dele, uma nas outras, pensei num percurso meio retroativo, que começa nas obras de maiores dimensões, feitas até 2000, em que ele explora os campos de cor, até voltar ao figurativo, do início de sua carreira”, explica Denise, à arte!brasileiros.

A PESQUISA

Denise Mattar conta que teve um contato mais próximo com Ianelli no próprio MAM, de que o pintor era assíduo frequentador, entre 1987 a 1989, período em que ela trabalhou como diretora técnica da instituição. Feito no início de 2020, pouco antes da pandemia, o convite para que Denise fosse a curadora da mostra partiu dos filhos do artista, Kátia e Rubens. Iniciada a pesquisa, Denise teve acesso ao vasto material documental da família – o próprio Ianelli, vale ressaltar, tinha uma organização bem sistemática de sua produção – e lançou mão também de publicações da biblioteca do próprio museu. Desde o começo, a proposta da curadora foi apresentar ao público novidades acerca da obra do pintor.

“Uma coisa que eu descobri foi o fato de que [o crítico e escritor] Mário Pedrosa (1900-1981) tinha exposto pela primeira vez a obra do Ianelli numa instituição, no próprio MAM-SP, na virada de 1960 para 1961, ano em que a mostra foi para o MAM Rio”, conta Denise. O que mais chamou a atenção da curadora foi uma passagem do texto de Pedrosa, para a mostra, em que ele ressaltava haver ‘uma vibração, uma liquidez cristalina’ nas telas do artista, algo que parecia antever a produção de Ianelli na série Vibrações (1999-2000).

Outro achado de Denise foi um poema de Ferreira Gullar (1930-2016) em espanhol, que ela encontrou no catálogo de exposição feita por Ianelli na 3ª Bienal Internacional de Pintura de Cuenca, em 1991. A curadora não apenas localizou a versão original, em português, em Relâmpagos, livro do poeta publicado em 2004, como identificou que havia um trecho a mais. No MAM-SP, o poema é mostrado na íntegra. Numa passagem, Gullar descreveu assim a pintura de Ianelli:

Pintar, para Arcangelo Ianelli agora é
suscitar o surgimento da cor.
Fazer silêncio e deixar que ela (a cor) imerja
nele – do cerne dele – densa, luminosa.
Vinda do fundo da sombra, a cor
[…] Pintar para Ianelli agora é mostrar a cor como pura duração

Em sua pesquisa, Denise Mattar também encontrou um texto de Gian Carlo Argan (1909-1992) de 1966. Em 1964, Ianelli havia ganhado o prêmio de viagem ao exterior no Salão Nacional de Arte Moderna (SNAM), passando em seguida dois anos (1965-1967) na Europa. Em sua análise, feita por ocasião de uma mostra de Ianelli no Consulado do Brasil em Munique (Alemanha), o teórico da arte italiano teceu considerações que pareciam antever as recorrentes comparações da pesquisa de cor do brasileiro com a produção de Mark Rothko (1903-1970), pintor norte-americano de origem letã, apontando em que se aproximavam e se distanciavam as respectivas práticas. Escreveu Argan:

“Na pintura de Rothko, Ianelli reconhece com razão, e absoluta franqueza, o ponto de
chegada do desenvolvimento histórico da representação do espaço por meio de
relações colorísticas qualitativas e quantitativas. […] No caso de Ianelli, o fator dominante é uma evidente especulação sobre valores proporcionais: é isso que o distancia consideravelmente da dimensão da espacialidade expansiva e transbordante de Rothko e o leva da consideração das relações métrica e tonal entre os campos de cor, a uma delimitação geométrica das áreas coloridas e sua assunção como núcleos formais em relação às distâncias de fundo.

Já em 2002, quando a Pinacoteca realizou uma retrospectiva da carreira de Ianelli – o pintor, então com 80 anos, não compareceu à abertura, porque teve um AVC – a analogia com Rothko voltou à tona, em uma crítica de Olívio Tavares de Araújo, publicada no jornal O Estado de São Paulo. Araújo escreve que “em algumas fases, manchas e faixas flutuantes podem lembrar a pintura de Mark Rothko”. Mas ponderou:

[..]. basta observar atentamente a evolução interna da pintura de Ianelli para perceber que ele não foi beber em Mark Rothko. Ambos chegaram a soluções da mesma natureza porque têm sensibilidades parecidas. São temperamentos líricos que seguram o próprio lirismo, amantes de uma ordem inabalavelmente apolínea. Beberam nas mesmas fontes. São irmãos, não descendentes um do outro.

TRAJETÓRIA

Nascido na capital paulista, Arcangelo Ianelli (1922-2009) começou a desenhar ainda na adolescência, como autodidata. Em 1940, entrou para a Associação Paulista de Belas Artes e, no início daquela década, frequentou o ateliê de artistas como Waldemar da Costa (1904-1982) e Maria Leontina (1917-1984). Ao longo dos anos 1950, fez parte do Grupo Guanabara, ao lado de Manabu Mabe (1924-1997) e Jorge Mori (1932), entre outros. Em sua trajetória artística, foi da representação figurativa, do início da carreira, nos anos 1950, ao abstracionismo e à pesquisa dos campos de cor, passando ainda pelas experiências com formas geométricas, pelas pinturas sobre madeira e esculturas de mármore.

Segundo Denise Mattar, o próprio Ianelli consentia que sua carreira tinha fases e que ele “as desenvolvia à exaustão, até passar para outra”. Em um texto, lembra a curadora, o crítico Paulo Mendes de Almeida também via ciclos “quase que estanques” na prática do pintor. Mas Denise não percebe a produção do artista do mesmo modo. Para exemplificar isso, no catálogo da exposição, ela isolou parte de uma obra figurativa, dos anos 1950, em que já se insinuava o que o pintor viria a fazer nas décadas seguintes, a saber, “toda uma redução da forma até chegar aos campos de cor”, segundo a curadora.

“O que eu queria mostrar na exposição é que o percurso de Ianelli não era exatamente assim, estanque. Na verdade, você vai vendo uma interpenetração em sua produção”, conta Denise. “Mesmo na obra totalmente figurativa, de seus primeiros trabalhos, ao olhar uma janela você vê nuances de luz e cor que têm tudo a ver com a produção posterior dele, por exemplo, na série Vibrações, dos anos 1990, assim nomeada pelo crítico Paulo Mendes de Almeida. Há um processo interior, de extrema coerência, que está presente na mostra”.

Reprodução do catálogo da exposição "Ianelli 100 anos - O artista essencial", com uma natureza-morta de 1960 e, à esquerda, um detalhe da obra
Reprodução do catálogo da exposição “Ianelli 100 anos – O artista essencial”, com uma natureza-morta de 1960 e, à esquerda, um detalhe da obra

Ainda sobre aqueles trabalhos, que abrem a exposição e são comparados às obras de Mark Rohtko, Denise lembra que estão na moda as chamadas exposições imersivas, mas que elas não passam de projeções. “Enquanto que o Ianelli proporciona um mergulho na cor propriamente dita. O público é atraído pelo pigmento, que o leva realmente para dentro da pintura. E ele usa essas dimensões extraordinárias para justamente as pessoas terem essa sensação”, diz.

Como parte da pesquisa sobre a trajetória de Ianelli, Denise fez visitas às casas de Rubens e Kátia Ianelli, que abrigam o acervo do pai. Delas, tirou a ideia de levar à mostra um pouco dos bastidores da produção do pintor. Três vitrines trazem à exposição algo do dia a dia de Ianelli em seu ateliê, um material nunca antes visto pelo público. Uma delas exibe parte de sua biblioteca – livros sobre colegas de ofício, como Samson Flexor, Flavio-Shiró, Lygia Clark e Hélio Oiticica, ou ainda do fotógrafo J.R. Duran – dividem o espaço de duas estantes com inúmeros pincéis e algumas tintas, assim como reproduções de frases diversas, uma delas atribuída ao escritor francês André Malraux, que diz: “A ordem é o prazer da razão; a desordem é a delícia da imaginação”. Entre as estantes, um cavalete com das obras do pintor.

Noutra vitrine, encontram-se experimentos que Ianelli fazia em paralelo à prática de pintura, voltados à produção de esculturas, nos anos 2000. O artista fazia primeiro um modelo de papel, depois partia para o papelão, uma folha de metal, a madeira e a madeira pintada, explorando possibilidades, com pequenas alterações. Duas das esculturas, cujas etapas de criação estão evidenciadas nesta vitrine, estão presentes na exposição.

“O interessante desse material é que muitas pessoas se perguntam como um pintor tão pintor, como o Ianelli, num certo momento resolve fazer esculturas. Ver esse ateliê ajuda a entender melhor essa obsessão dele na busca pela essência da forma”, ressalta a curadora. “O público percebe que o Ianelli é um artista de processo, num momento das artes em que o processo era valorizado. Hoje em dia, temos certo desprezo por isso, todo mundo está focado no resultado inédito, em algo que nunca foi feito”.

SERVIÇO

Ianelli 100 anos: o artista essencial
Até 14 de maio
Curadoria: Denise Mattar
Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) – Parque Ibirapuera – Av. Pedro Álvares Cabral, s/nº – Portões 1 e 3
Horários: terça a domingo, das 10h às 18h (com a última entrada às 17h30)
Ingressos: R$25,00 inteira e R$12,50 meia-entrada; aos domingos, a entrada é gratuita

Mostra de Arte da Juventude (MAJ) chega à 30ª edição com um número recorde de inscrições

Maria Macedo, frame da fotoperformance "Dança para um futuro cego”, 2021.
Maria Macedo, "Dança para um futuro cego”, 2021.

Criada em 1989, em Ribeirão Preto, a Mostra de Arte da Juventude (MAJ) chega à sua 30ª edição e faz sua primeira itinerância na capital paulista, no Sesc Consolação. Foram 402 inscrições – número recorde – a partir das quais a dupla de curadores Luciara Ribeiro e André Pitol escolheram 40 artistas e coletivos.

“A exposição traz um conjunto de obras selecionadas em parceria com [o curador] André Pitol e reflete a pluralidade da juventude no campo das artes, tanto de contextos quanto de territórios”. Espelha também o que estes jovens têm pensado e utilizado na produção de suas obras. “Há questões políticas, sociais, identitárias, poéticas e estéticas”, conclui.

Segundo Pitol, os temas abordados nas obras da MAJ emergiram das próprias pesquisas estéticas dos artistas e, claro, de seu interesse em discuti-los. E que o aspecto híbrido ou mesmo digital de alguns trabalhos foi consequência natural do período em que a seleção foi feita num período grave da pandemia de covid-19. Entre os trabalhos que ele destaca está o mural 45 propostas antirracistas, de Alan Ariê (Itapecerica da Serra/SP).

 

Ainda segundo Luciara, recentemente a MAJ se abriu enquanto mostra nacional, com participação de artistas de outros estados, ainda que tenha uma grande presença de nomes do Sudeste, em especial de São Paulo. Mesmo assim, ela traz grande diversidade, com artistas do interior e da periferia da capital paulista. Luciara ressalta que ela e Pitol fizeram uma nova leitura da premiação da MAJ, sempre voltada a três artistas.

“Percebemos que nas edições anteriores da exposição o critério era conceder o prêmio aos trabalhos tidos como mais bem resolvidos ou artistas que haviam tido mais destaque. O que nós fizemos foi entender que a mostra deve fomentar a produção e conclusão de trabalhos. Então, neste ano em que a MAJ chega à sua 30ª edição, a premiação foi um incentivo para que as obras pudessem ser finalizadas”, explica.

Ao fim, foram laureados Rebeca Ramos (São Paulo/SP), cujas esculturas estão relacionadas a uma crítica social à desigualdade na cidade de São Paulo e que destacam o amarelo, cor que remete à fome segundo Carolina Maria de Jesus (1914-1977), autora de Quarto de despejo (1960); Anderson Oli (João Pessoa/PB), cujo vídeo A rua que era praia resgata a memória do Complexo da Maré, no Rio; e Roberval Borges (Teresina/PI), que criou um mural com 176 pequenos espelhos em que o visitante tanto se vê quanto “encara um repertório de pessoas”, segundo Pitol, com quem nos deparamos quando vamos a uma feira de rua.

Assista à entrevista com os curadores no vídeo abaixo:

SERVIÇO

30ª Mostra de Arte da Juventude – Itinerância
Até 5 de março
Sesc Consolação – Rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque – São Paulo (SP)
Visitação: de terça a sexta-feira, das 10h às 21h; sábados, das 10h às 20h; domingos e feriados, das 10h às 18h
Entrada gratuita

 

Brasil ganha Red List (lista vermelha) que ajuda a identificar objetos culturais em risco de tráfico

Litografia da vista de S. Sebastião do Rio de Janeiro, tirada das Ilha das Cobras, Alemanha, séc. 19. Crédito: Fundação
Litografia da vista de S. Sebastião do Rio de Janeiro, tirada das Ilha das Cobras, Alemanha, séc. 19. Crédito: Fundação Biblioteca Nacional

O Conselho Internacional de Museus (ICOM) lançou a Lista Vermelha (Red List) Brasil, um documento bilíngue, em português e inglês, que elenca as tipologias dos objetos culturais mais vulneráveis ao tráfico internacional. A apresentação da lista aconteceu na terça (14/2), no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, em cerimônia com a presença da ministra da Cultura, Margareth Menezes. Elaborada em parceria com especialistas brasileiros, a Red List Brasil tem o apoio do Itaú Cultural e do Instituto Moreira Salles.

O objetivo da Red List Brasil é ajudar profissionais de arte e de patrimônio, assim como  autoridades policiais ou mesmo cidadãos a identificar itens suscetíveis à comercialização ilegal. Ela é dividida em cinco categorias: livros, documentos, manuscritos e fotografias; arqueologia; arte sacra e religiosa; objetos etnográficos e paleontologia.

Capa da Red List Brasil
Capa da Red List Brasil

É importante ressaltar que os itens inventariados (veja alguns deles na galeria abaixo) no documento não foram roubados. Eles estão registados em coleções de instituições reconhecidas, são bens públicos pertencentes à União e indicam, para efeito de comparação, as tipologias em maior risco. Também vale salientar que tais objetos são contemplados pela legislação brasileira voltada à proteção do patrimônio cultural e histórico do país.

Segundo Roberta Saraiva, diretora do ICOM Brasil, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) lista um total de 1.974 objetos já traficados, sendo que apenas 48 teriam sido recuperados. E, de acordo com a INTERPOL, o Brasil ocupa a 26ª posição entre os países com maior número de bens culturais comercializados ilegalmente.

“Temos uma legislação robusta, mas o país tem dimensões continentais, com fronteiras muito porosas. Portanto é sempre uma grande dificuldade fazer o controle da saída dessas obras. Então, um documento como a Red List é muito estruturante porque, além do uso prático, ele articula as diferentes instâncias de governo para este trabalho de proteção do patrimônio”, afirma Roberta.

A diretora do ICOM Brasil também participou do lançamento, ao lado da presidente global do ICOM, Emma Nardi; da presidente do ICOM Brasil e diretora-executiva do Museu da Língua Portuguesa, Renata Motta; da secretária da Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo, Marilia Marton; da presidente do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), Fernanda Castro; e da Chefe da Assessoria de Participação Social e Diversidade do MinC, Mariana Braga.

O documento enumera quatro instituições que devem ser contatadas em caso de reconhecimento de um desses objetos: a sede do próprio ICOM, na França; o Iphan; a Agência Nacional de Mineração (AMN) e o Instituto Brasileiro dos Museus (Ibram). A lista insta museus, casas de leilões, comerciantes de arte e colecionadores a não comprarem objetos similares aos apresentados sem que haja antes uma pesquisa rigorosa de sua proveniência e checagem de documentação legal.

Estabelecido em 1946, o ICOM abriga em sua rede mais de 45 mil membros, de mais de 100 países e territórios, e é a única ONG entre as seis organizações especializadas e reconhecidas pelas Nações Unidas na luta com o tráfico de bens culturais, ao lado da UNESCO, UNIDROIT, INTERPOL, WCO (Organização Mundial de Aduanas) e UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime). A instituição elabora as Red Lists desde 2000. Já foram publicadas 20, que contemplam 57 países em quatro continentes. Recentemente, o ICOM lançou uma Red List emergencial, para a Ucrânia, por conta da guerra contra a Rússia.

 

 

 

Recém-lançado, Projeto Lorenzato já tem catalogadas cerca de 300 obras do pintor mineiro

Amadeo Luciano Lorenzato, sem título, 1973. Foto: Ding Musa
Amadeo Luciano Lorenzato, sem título, 1973. Foto: Ding Musa

Foi lançado no mês passado o Projeto Amadeo Luciano Lorenzato, que busca identificar e catalogar as obras do artista mineiro em uma plataforma digital, contínua e aberta. Com apoio do Itaú Cultural, a iniciativa partiu do galerista Thiago Gomide, mineiro como Lorenzato, e que tem o artista no elenco e de sua Gomide & Co. Segundo o pesquisador Mateus Nunes, que coordena o projeto, Gomide “sempre foi atento à importância do artista, que tinha seus debates muito restritos a Minas Gerais” e ele sentia a necessidade de “enfatizar a presença de Lorenzato na história da arte em um panorama mais amplo”. Nunes é doutor em História da Arte pela Universidade de Lisboa, professor do MASP e pesquisador integrado do Instituto de História da Arte da Universidade de Lisboa.

“A submissão pelo formulário objetiva, sobretudo, alcançar uma capilaridade em que a pesquisa de campo que empreendemos não chega, como as coleções particulares de muitos colecionadores”, Mateus Nunes, coordenador geral do Projeto Lorenzato

Por ora, foram catalogadas cerca de 300 obras, e há cerca de outros 100 trabalhos submetidos pela plataforma do site. De acordo com Nunes, Gomide estima que Lorenzato tenha entre 3 mil e 4 mil obras espalhadas pelo mundo. A catalogação do Projeto Amadeo Luciano Lorenzato feita a partir da submissão dos formulários, conta ele, tem sido minoritária. Para o lançamento, foi formado um banco de dados de centenas de obras a partir de pesquisa de campo em galerias e instituições de arte, além de publicações, catálogos, exibições em exposições etc.

“A submissão pelo formulário objetiva, sobretudo, alcançar uma capilaridade em que a pesquisa de campo que empreendemos não chega, como as coleções particulares de muitos colecionadores”, diz o pesquisador à arte!brasileiros, explicando que, além de três pessoas que trabalham diretamente na catalogação, as equipes das galerias e instituições de arte colaboradoras têm ajudado, cedendo imagens, fichas técnicas e pesquisas já presentes em seus próprios bancos de dados.

Nos próximos meses, será feita a primeira assembleia do Conselho Consultivo, presidido por Thiago Gomide, para a análise e deliberação do que vem sendo submetido por meio da plataforma. Entre os membros pesquisadores do Conselho estão Rodrigo Moura, autor de Lorenzato, livro publicado pela editora Ubu, e curador do El Museo del Barrio, em Nova York; Sabrina Sedlmayer, Laymert Garcia dos Santos e Luisa Duarte; os galeristas Vilma Eid, Pedro Mendes, Rodrigo Ratton e James Green; e Rui Terenzi Neuenschwander, colecionador de arte e primo de segundo grau do artista.

 

TRAJETÓRIA

Amadeu Luciano Lorenzato (1900-1995) nasceu e morreu em Belo Horizonte, capital mineira. Ao longo de sua trajetória, atuou como pintor e escultor. Mudou-se com a família em 1920 para Arsiero (Itália), onde trabalhou como pintor de paredes. Estudou na Reale Accademia delle Arti, em Vicenza. Em 1926, foi para Roma, onde ficou dois anos em companhia do pintor e cartazista holandês Cornelius Keesman, com quem desenhava nos fins de semana. Em 1928, ambos iniciaram uma viagem de bicicleta ao leste europeu, passando por Áustria, Eslováquia, Hungria, Bulgária e Turquia.

Em Paris, participou da montagem dos pavilhões da Exposição Internacional Colonial. No início da década de 1930, voltou para a Itália, onde permaneceu até 1948, quando retornou ao Brasil. Em BH, retomou o ofício de pintor de paredes até meados dos anos 1950, quando, devido a um acidente, passou a se dedicar apenas à pintura.

No comunicado de lançamento do projeto, Mateus Nunes ressalta que Lorenzato “é um artista que não obedece a moldes historiográficos usuais, como enquadramento em estilos, foi fora do eixo Rio-SP e utilizava técnicas não usuais”. O texto salienta ainda aspectos em oposição na produção de Lorenzato: figurativo versus abstrato, estética brasileira versus internacional, imaginário versus autêntico. Para Nunes, Lorenzato era o próprio denominador comum de sua obra.

“Ele fazia congregar esses opostos de maneira híbrida, erudita e intuitiva, ao ponto de manipular ferramentas visuais, como a perspectiva, por exemplo, para a criação de uma atmosfera nostálgica. O Projeto Amadeo Luciano Lorenzato refrisa o aspecto autobiográfico na produção do artista”, diz.

O pesquisador destaca também que a prática de Lorenzato, iniciada na década de 1920, percorreu um longo caminho até 1964 – as pinturas anteriores a 1948, ano em que retornou ao Brasil, foram destruídas durante a Segunda Guerra, conta ele –, quando apresentou alguns trabalhos aos críticos de arte Sérgio Maldonado e Palhano Júnior, responsáveis pela organização de suas primeiras mostras individuais. Ainda em vida, no início dos anos 1970, Lorenzato participou de exposições internacionais, na antiga Checoslováquia e na França.

“[O trabalho de Lorenzato] ficou por mais de 40 anos sendo exposto apenas no Brasil, com quase todas as mostras sendo feitas em Minas Gerais. Os debates foram reavivados há cinco anos, quando Lorenzato foi reinserido no panorama de discussão global, com exposições em Londres e em Nova York”, Mateus Nunes, coordenador geral do Projeto Lorenzato

“Depois dessas participações, seu trabalho ficou por mais de 40 anos sendo exposto apenas no Brasil, com quase todas as mostras sendo feitas em Minas Gerais. Os debates foram reavivados há cinco anos, quando Lorenzato foi reinserido no panorama de discussão global, com exposições em Londres e em Nova York. O objetivo do projeto é que, por meio da catalogação, Lorenzato tenha uma repercussão digna ao tamanho de sua obra tanto no Brasil quando no exterior”, afirma Nunes.

OBRA DISPERSA

Um dos principais desafios do Projeto é saber que se trata de um arquivo em constante expansão. O pesquisador lembra também que a obra de Lorenzato é bastante dispersa. Por exemplo, foram identificados indícios da presença de um trabalho feito pelo artista no período em que colaborou com Cornelius Keesman, “mas ainda sem grandes descobertas”, segundo Nunes, que considera as obras feitas à época na Itália “de muito difícil rastreamento”. Daí a necessidade de que os processos do Projeto ocorram em parte online:

“Ele pede uma plataforma aberta, que solicite aos colecionadores e pesquisadores o envio de obras para análise e catalogação. Há peculiaridades menos específicas, como acontece na catalogação das obras muitos artistas, como imprecisão de datas, falta de registros fotográficos que sigam um certo padrão de qualidade para um banco de dados padronizado e pouquíssima bibliografia acerca de Lorenzato”, explica. “A catalogação geral deve durar alguns anos e ficar sempre aberta a novas análises. É possível que, no futuro, exposições e publicações sejam fomentadas a partir do Projeto, mas não há planos para desenvolvê-los em um futuro próximo”.

 

‘A virada decolonial na arte brasileira’: Considerações para atiçar o debate

Rosana Paulino, "Parede da Memória", 1991-2015. Foto: Divulgação/Cortesia da artista

A leitura de A virada decolonial na arte brasileira (Editora Mireveja), de Alessandra Simões Paiva[1] –, trouxe várias questões que, embora digam respeito à cultura e à arte produzida no Brasil, são de naturezas distintas e necessitam, portanto, que sejam pensadas separadamente.

As primeiras estariam ligadas à produção de obras de arte que, antes da “virada decolonial”[2], já distanciavam-se de pressupostos artísticos e estéticos estabelecidos na Europa e nos Estados Unidos durante o modernismo. A própria autora atenta para este fato e, portanto, seria importante rememorar aqui algumas obras produzidas após o final da Segunda Grande Guerra no Brasil, pensando-as como “preparadoras” do campo decolonial.

Um segundo conjunto de questões também deve ser debatido: os posicionamentos teóricos contidos no livro de Alessandra Paiva, que propõem estratégias metodológicas para se pensar a recente arte produzida no Brasil, entendida pela autora como fruto de uma “virada decolonial”.

Por último – e antes de nos determos nos dois conjuntos de questões acima mencionados –, acredito ser importante refletirmos sobre a maneira subserviente como alguns intelectuais brasileiros encaravam a arte e a cultura locais, frente à Europa e aos Estados Unidos. A sobrevivência dessa submissão até os dias de hoje torna-se um complicador para pensarmos a questão do decolonial na arte estudada por Paiva.

Capa do livro "A virada na arte decolonial brasileira", de Alessandra Simões Paiva (Editora Mireveja; 240 págs.)
Capa do livro “A virada na arte decolonial brasileira”, de Alessandra Simões Paiva (Editora Mireveja; 240 págs.)

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Dou início a essas ponderações atentando para os posicionamentos sobre arte e cultura brasileiras defendidos por dois intelectuais aqui nascidos ainda no século 19. Meu objetivo é que elas esclareçam contra quem e contra o que surgiu entre nós a necessidade de se levar adiante a virada decolonial – o tema do livro de Paiva.

O primeiro deles, o escritor e crítico de arte Gonzaga Duque, a certa altura do seu romance Mocidade Morta – e por meio do personagem Camillo (seu alter ego) –, pondera sobre a impossibilidade de uma arte nacional e sobre como nós brasileiros deveríamos atuar como herdeiros da Europa:

[…]Nós outros, americanos, somos produtos de um amontoado de todas as raças, em que predomina mais esta do que aquela e, portanto, a nossa vida espiritual resulta da afinidade da raça predominante que, para nós brasileiros, é a latina, pelo ramo português […]

[…] A nossa preceptora espiritual… é a Europa. Dela recebemos as ideias coordenadas, etiquetadas, prontas para o consumo de seres mentais […][3].

O outro intelectual seria Menotti Del Picchia, atuante como romancista, jornalista e político. No dia 6 de abril de 1924, Del Picchia publica uma síntese do discurso proferido poucos dias antes por Washington Luís[4], por ocasião do banquete que a comunidade italiana de São Paulo lhe oferecera. A síntese produzida por Del Picchia traduziu o que um dos mais importantes políticos brasileiros da época pensava sobre o Brasil e os brasileiros, pensamentos em concordância com aqueles do intelectual:

Deu ele [Washington Luís em seu discurso] uma clara e concisa estrutura orgânica – definida na sua ossatura, especializada nas suas vértebras – a uma complexa série de ideias, cuja confusão trazia como consequência estéreis debates e improfícuos mal-entendidos.

“Somos um país de imigração”. Todo o plasma etnológico que constitui uma nacionalidade – tirante uns minguados extratos indígenas, não amalgamados ou absorvidos – e resultante da deslocação dos excessos de população de outros países. As bases da nossa raça, cuja coluna vertebral é lusa, compõem-se de um babélico complexo de tipos humanos, trazidos a bordo dos navios oriundos de outros céus e de outros climas. Não temos o preclaro orgulho dos gregos, que blasonavam perder-se a origem do seu povo nas brumas lendárias dos autóctones, saídos da Terra como os maravilhados ouvintes da lira orfeônica. Nossa civilização, puramente ocidental, foi de enxerto e veio no bojo das caravelas dos primeiros colonizadores e depois nos navios a vapor dos imigrados.

E a síntese continua:

“Vivemos com a imigração ocidental, nascemos dela, viveremos com ela”.

Se tal é uma verdade, dela decorrem consequências capitais para a apreciação dos fenômenos sociológicos brasileiros. A ausência de um elemento basilar étnico indígena, com longa história, com um caráter milenariamente típico, característicos morfológicos especiais – registrando-se apenas a preponderância latina – afasta a hipótese da aparição do meteco do “estrangeiro”, no sentido do transplantado. Fácil é, pois, no nosso ambiente, a adaptação do imigrado, o qual não pode sentir, de parte dos nativos, essa instintiva hostilidade natural, que se manifesta naqueles povos com um caráter racial típico, plasmado por uma longa elaboração histórica [5].

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Hoje em dia chega a ser constrangedor perceber como nos dois textos – apesar de todas as diferenças[6] – sobressaem o silêncio e o descaso pelos indígenas que aqui viviam, quando chegaram os colonizadores, e pelos africanos que para cá foram trazidos como escravizados. Para Gonzaga Duque e Del Picchia era como se esses dois contingentes simplesmente não existissem.

Para reforçar a importância do lançamento de A virada decolonial, é importante negar que tais preconceitos hoje em dia já tenham sido superados. A presença ainda rarefeita de pessoas negras e indígenas nas mais diversas áreas da sociedade aponta para a permanência de uma estrutura racista que dificulta a todos entenderem que o termo “brasileiro” deve abarcar mais grupos étnicos, do que apenas aqueles que para cá vieram “no bojo das caravelas dos primeiros colonizadores e depois nos navios a vapor dos emigrados”.

Ainda persiste no Brasil a subserviência que a elite branca sempre nutriu pela Europa. Desejosa de ser “herdeira” da civilização europeia, não consegue entender duas questões cruciais: mesmo sendo formada por “brancos e brancas” – e, portanto, euro-descendentes –, não somos europeus; por outro lado, essa elite não entende também que a arte e a cultura aqui produzidas não são – ou não deveriam ser – meras derivações do que foi produzido na Europa e, mais recentemente, nos Estados Unidos.

É por contribuir para o afastamento desta dimensão colonizada da sociedade que considero fundamental o lançamento de A virada decolonial na arte brasileira. O livro tem todas as condições para, pelo menos, diminuir uma lacuna significativa do debate local: se em diversas áreas das ciências humanas a questão decolonial nos últimos anos no Brasil já ganhou visibilidade incontornável, fazia falta entre nós uma publicação que enfrentasse essa questão no campo das artes visuais.

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A virada decolonial reune uma série de artigos publicados por Alessandra Paiva durante os últimos anos e é justamente esta característica que, a meu ver, empresta-lhe uma vivacidade e uma urgência pouco vistas em trabalhos realizados por acadêmicos[7].

O fato de ser uma coletânea de artigos para a imprensa traria uma ou outra reflexão mais superficial da autora? Sim, sem dúvida. Dirigidos a um público diversificado e certamente com limites de espaço etc., percebe-se que a autora nem sempre pôde aprofundar um ou outro argumento. Mas isso não retira o interesse do livro.

A meu ver, este é o preço que A virada decolonial paga por distanciar-se dos paradigmas do “bem escrever” da academia, optando pelo enfrentamento. Alessandra Paiva se vale de um discurso rápido, ativista e engajado na apresentação e valoração das transformações que percebe na cena brasileira. Nos vários textos que compõem a publicação, o objetivo é proclamar e enaltecer a virada decolonial nas artes do país.

A autora discute sobretudo a produção de artistas afro-descendentes, originários e LGBTQIA+ – fato que, como será visto, determina a condição decolonial – confrontando-a com o racismo estrutural e com aquela subserviência à Europa (e aos Estados Unidos), percebida em Gonzaga Duque e Del Picchia, mas que poderia ser encontrada em muitos textos de alguns intelectuais hoje atuantes.

É notório também que Paiva – apesar da urgência presente em todos os seus textos – opera premissas que nunca abandona e que conferem ao livro um interesse ainda maior. Exemplo: ela nota na produção que estuda que esta estaria menos presa às velhas prerrogativas e aos pressupostos estéticos que durante séculos encabeçaram a produção de arte nos países ocidentais. Assim, Paiva acaba atentando para um fato curioso: grande parte dos artistas que são vistos por ela como responsáveis pela “virada decolonial” no Brasil, além (ou por causa) dessa postura, tende a colocar em segundo plano – e, em alguns casos, até mesmo superar – produções ligadas às modalidades artísticas tradicionais (desenho, pintura etc.), optando por soluções distantes desses preceitos estéticos tradicionais.

Agindo de tal forma, esses artistas, em sua maioria, dariam continuidade a uma produção artística que emergiu com força após o término da Segunda Grande Guerra. Os artistas decoloniais lembrados por Paiva em seu livro, deveriam ser percebidos como formadores de novas gerações que, imbuídas de preocupações com explícito cunho político e ideológico, começam a sobrepor àquela produção oponente aos velhos cânones modernos, outras possibilidades de significação

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O protagonismo (talvez excessivo?) que Paiva concede ao circuito da arte não significa que a autora não reconheça que a “virada decolonial” tenha surgido da produção dos artistas[8]. No entanto, na prática, sua abordagem tenderá sempre a privilegiar os mecanismos institucionais que propiciaram ou que incentivaram o fenômeno:

Nos últimos anos, diversos acontecimentos têm confirmado o fenômeno da virada decolonial na arte brasileira: exposições com curadorias indígenas, como a Véxoa: nós sabemos, na Pinacoteca de São Paulo (2020), e a Moquém Surari: arte indígena contemporânea, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (2021); o Pipa, principal prêmio da arte contemporânea, que vem contemplando majoritariamente artistas decoloniais; grandes projetos de intervenção urbana […], em São Paulo […] e […] em Belo Horizonte, com edições sequenciais contando com grande presença de artistas negros/as e indígenas; representação de artistas decoloniais por parte de importantes galerias; inúmeras publicações na imprensa especializada e livros; eventos em instituições de arte diversas, como museus e bienais […] [9]

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Só após a caracterização dessa “insurgência de artistas e teóricos/as […]”[10] – é que a autora irá se deter na definição do termo “decolonial”.  De início, ela explicará o porquê do uso “decolonizar” ao invés de “descolonizar”.

O termo “decolonial” teria sido concebido no âmbito de um grupo de estudos chamado Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade (MCD), e formado por intelectuais nascidos na América Latina ou aqui residentes, e que – a partir do final dos anos 1990 – discutirá as relações de poder entre os países europeus (e os Estados Unidos) e o restante do mundo.

Para os integrantes do MCD, a “colonialidade” seria “um sistema que sobreviveu ao colonialismo histórico, mantendo-se ainda na contemporaneidade como matriz das relações assimétricas de poder perpetuadas nos últimos séculos”. Ainda segundo Paiva, a teórica norte-americana atuante na América Latina, Catherine Walsh, explica que, retirar o “s” da palavra “descolonialismo” seria introduzir uma diferença ao “des” castelhano:

Assim, a terminologia estaria mais adequada às diretrizes do grupo, que tem como proposta não apenas desarmar ou desfazer o colonial, mas compreendê-lo e combatê-lo como um fenômeno ainda atual. A autora [Walsh] explica que os termos pós-colonial e descolonial também denunciam as assimetrias de poder resultantes do projeto de domínio e opressão colonialista, porém essas nomenclaturas estão mais ligadas às matrizes teóricas surgidas no contexto da luta pela descolonização do período pós-Guerra Fria e relacionadas aos estudos asiáticos e africanos (de autores como Frantz Fanon, Albert Memmi, Aimé Césaire, Edward Said, Stuart Hall e Ranajit Guha) […]

[…] Enfim, o grupo MCD definiu o termo decolonial como o mais pertinente para se analisar a colonização como um evento permanente, mesmo que com determinadas rupturas.[11]

Continuando seu raciocínio, Paiva refletirá sobre o pensamento decolonial no Brasil afirmando que, apesar “da publicação de inúmeros textos sobre o decolonialismo em diversas áreas, há ainda significativa carência de abordagens que articulam de forma profunda, essa ótica no campo das artes.”[12]

Para preencher essa lacuna – criando assim uma direção possível para os estudos decoloniais sobre a arte no Brasil –, Paiva atentará para dois ensaios de Walter D. Mignolo,  estudioso argentino radicado nos Estados Unidos, e membro do MCD[13]. Para a autora esses textos seriam fundamentais para os interessados em entenderem o decolonial nas artes:

Publicados com um intervalo de quase dez anos, eles se articulam entre si para tecer importantes considerações sobre as artes visuais e sua relação com o pensamento decolonialista, seja a partir da análise de obras de alguns artistas, seja apoiado na reflexão sobre as possibilidades de uma crítica de arte decolonial […] seus dois artigos fornecem a maior contribuição científica para uma possível teoria decolonial nas artes.[14]

Concordo com Paiva quando ela estabelece os dois ensaios de Mignolo como referências possíveis para se pensar a “virada decolonial”. E tendo a ir além: a meu ver, retomar esses estudos do pesquisador argentino possibilitará refletirmos sobre aquela questão levantada logo acima: Mignolo nos instrumentaliza para entender que – antes da chegada do decolonial na arte –, já havia, sim, uma produção artística desvinculada da estética moderna tradicional, o que reforçaria a ideia de que o decolonial na arte contemporânea seria mais uma camada a se depositar sobre o debate artístico do pós-guerra, uma camada com forte potencial político, mas ainda assim uma camada nova para um todo anterior.

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O ponto que considero fulcral do primeiro ensaio de Mignolo – Aiesthesis decolonial – é a origem de aiesthesis, base do termo “estética” na cultura ocidental[15]. De origem grega, a palavra foi absorvida pelas línguas europeias significando, de início, “sensação”, “processo de percepção”, “sensação gustativa”, “sensação auditiva”[16]. No entanto, a partir do século 17, o conceito de aesthesis começa a se tornar mais restrito, passando a significar apenas a “sensação do belo”: “Nasce assim a estética como teoria e o conceito de arte como prática”[17].

Se aiesthesis é um fenômeno comum a todos os seres vivos – pois relaciona-se com o mundo a partir de todas as suas possibilidades cognitivas –, “estética” significaria uma teoria criada para pensar tão somente as sensações relacionadas à beleza. Ou seja: arbitrária e historicamente circunscrita, não existiria nenhuma lei universal que tornasse necessária a relação apenas entre aesthesis e beleza. Apesar disso, tal situação teria se fortalecido no contexto do século 18 na Europa, e depois se espalhado “naturalmente” pelo restante do planeta, tornando-se “universal”.

Segundo ainda Mignolo: “a mutação de aesthesis em estética assentou as bases para a construção de sua própria história, e para a desvalorização de toda experiência aesthesica que não tivesse sido conceituada nos termos em que a Europa conceitualizou sua própria e regional experiência sensorial”[18].

A partir da recuperação desse sentido primeiro da palavra aesthesis, Mignolo analisará os trabalhos de alguns artistas da cena norte-americana e europeia, cujas produções subvertem a noção de que a arte seria apenas uma demonstração, na prática, do que preconiza a teoria estética [19]; obras que não se conformariam aos preceitos estéticos da pintura ou da escultura, mas que – por meio da instalação de determinados objetos em espaços institucionais (museus históricos, de arte etc.) –, traziam outras possibilidades de interação com o público, levando-o a ampliar sua percepção cognitiva para além da “beleza”.

Um dado incontornável a ser sempre reforçado: seria a presença de temas raciais, étnicos e/ou de gênero acoplados a essas instalações, o que fundamentaria a prática artística decolonial, separando-a da produção modernista da primeira metade do século passado que, durante décadas, procurou banir o assunto da obra de arte, abrindo novos direcionamentos para a arte surgida após a Segunda Grande Guerra[20].

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Se nesse primeiro ensaio Mignolo rompe com os postulados que ligavam a arte à estética, em Reconstitución epistémica/estética: la aesthesis decolonial una década después o argumento volta a ser tratado, agora de maneira mais aprofundada. Para tanto, o estudioso recupera o conceito de gnosis a partir do novo sentido que lhe conferiu o filósofo norte-americano nascido na República do Congo, V.Y. Mudimbe, que o utilizava para “nomear a práxis do pensar na África” – mais ampla e inclusiva, relacionando-se a toda e qualquer forma de conhecimento. Um tipo de saber que teria sido recalcado pelo pensamento europeu colonizador.

Mignolo distinguirá gnoseologia de epistemologia, afirmando que, se a primeira se refere ao conhecimento em geral, a segunda remeteria apenas ao conhecimento científico. Assim, em contraposição à estética (restritiva) teríamos a aesthesis, e em contraposição à epistemologia (também restritiva), teríamos a gnoseologia.

Após fazer referência à produção do artista guatemalteco Benvenuto Chavajay, o estudioso argentino resume seu pensamento: “pensar decolonialmente é um constante desprendimento (deslinking) da epistemologia moderno/colonial e um constante fazer gnoseológico/aesthesico”[21].

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Essa síntese do pensamento de Mignolo é lacunar, sem dúvida, mas creio que ela estabelece uma base para que possamos acompanhar as demais reflexões de Alessandra S. Paiva em seu livro.

No texto em que a autora, a partir dos ensaios citados, debruça-se na constituição de uma visão decolonial das artes visuais no Brasil[22], além da enunciação e análise dos tópicos mais relevantes pensados pelo pesquisador argentino, explicita-se que o que Paiva mais admira nele é sua atitude como um estudioso e crítico atuante fora das amarras do pensamento europeu. A autora afirma: “Mignolo diz que seu próprio texto não é uma análise, mas um fazer decolonial; afinal, despregar-se da matriz colonial é começar pelo vocabulário”[23].

Esse “fazer decolonial”, esse “despregar-se” do passado colonial presente também no texto de Paiva é, de fato, o que lhe confere aquele caráter de urgência e engajamento já sublinhado. E é ele também quem leva a estudiosa a não se deter – ou a se deter pouco –, na produção que acaba por lhe servir apenas como cenário.

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Reiterando o pensamento do estudioso argentino, Paiva explicará que:

[…] Nas últimas décadas, proliferaram, nas ciências sociais e nas humanidades, diversos estudos que produziram críticas às matrizes do pensamento eurocêntrico, como a própria antropologia da arte, que mostra como o belo e o feio são categorias relativas e mutantes, e que se moldam a cada contexto e tempo histórico[24]

E, além das teorias: “[…] a prática artística fornece as chaves para a sua compreensão. Afinal, uma das grandes tarefas dos artistas […] é o questionamento das próprias linguagens”[25]. Se tais transformações já ocorrem há décadas, o que a questão decolonial teria trazido para o debate? Sobre isso, Paiva irá no mesmo sentido de Mignolo:

É a partir do quesito racial e em sua articulação interseccional com outras questões, tais como gênero e etnia, que o pensamento decolonial passou a questionar mais diretamente os cânones da historiografia artística eurocêntrica, refletidos também na historiografia brasileira […]

[…] é importante enfatizar que a corrente decolonialista não propõe, nas artes, a simples destruição do passado, mas o reconhecimento da heterogeneidade cultural e da pluralidade das formas de expressão artística de origem não eurocêntrica […][26]

Mais uma vez a questão racial em suas articulações com outras demandas presentes na contemporaneidade é que se tornarão o marco de distinção entre a produção decolonial e seus “antecedentes”.

Como será impossível nesta resenha dar conta de todos os inúmeros e interessantes aspectos tratados por Paiva em seu livro, caminho para a finalização desses comentários atentando para as conexões possíveis entre a arte decolonial no Brasil e aquela produção que, por antecedê-la em termos cronológicos, pode ter servido como base para o trabalho de seus autores.

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Se observarmos a cena brasileira a partir de 1960, será visto que uma série de artistas locais desenvolve produções em que os esquemas do modernismo tradicional e “internacionalizado” são superados. Artistas que rompem com a pintura, a escultura e outras modalidades tradicionais, em prol de um experimentalismo que busca um envolvimento mais totalizante e totalizador com público.

Os penetráveis de Hélio Oiticica, por exemplo, podem ser pensados como proposições ligadas a uma concepção mais aesthesica (nos moldes propostos por Mignolo) do que propriamente estética. Neles, o antigo espectador é levado a estabelecer uma relação de cunho totalizante com o ambiente, experimentando sensações ligadas não apenas ao interesse pelo belo. Nos penetráveis pode não haver nenhuma conotação política óbvia, mas é inegável o quanto sua proposta é revolucionária, na medida em que se coloca tão distante das premissas modernistas do início do século passado.

Embora explorem a dimensão sensorial do antigo espectador por meio de outros estímulos, também me parece inegável que a instalações como Desvio para o vermelho (1967/1984), de Cildo Meireles, assim como IN ABSENTIA MD, 1983, de Regina Silveira, provocam igualmente sensações aesthesicas no público. Mais recentemente, trabalhos como Doador (1999), de Elida Tessler e Parede Loos (2016/17) de Ana Maria Tavares também exploram uma relação não restrita apenas ao olhar e ao espaço, mas a uma experiência que se dá igualmente no tempo, envolvendo todos os sentidos do observador.

Por outro lado, é difícil não concordar que a dimensão política dessas obras também faz ressoar posicionamentos ideológicos claros que, se não podem ser acoplados diretamente à “virada decolonial”, assumem atitudes que discutem a suposta supremacia de arte ocidental entre nós: o trabalho citado de Regina Silveira, por exemplo, discute criticamente o excessivo “sombreamento” que a obra de Marcel Duchamp[27] exerce sobre a arte latino-americana. Por outro lado, é inegável a crítica ao racismo e ao proto-fascismo introjetado em determinados segmentos do modernismo europeu percebida em Parede Loos, Ana Maria Tavares.

Estou certo de que essas e outras proposições de artistas surgidos na cena brasileira antes dos anos 2000 formaram uma base para as instalações e intervenções que, nos últimos anos, fazem emergir a virada decolonial detectada por Alessandra Paiva. As propostas de Oiticica, Silveira e outros, como que “prepararam” a cena contemporânea brasileira para a chegada contundente de artistas como Denilson Baniwa, Glicéria Tupinambá, o Coletivo Coletores e tantos outros artistas ou grupos.

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Acima atentei para o fato de que nessa virada decolonial, muitos artistas teriam optado pela produção de instalações e intervenções, em detrimento de obras mais convencionais. O que não significa, portanto, que alguns deles não teriam produzidos obras aparentemente mais tradicionais, mas, nem por isso, menos questionadoras do status quo. O know-how relativo às várias modalidades artísticas possibilitou que obras aparentemente convencionais trouxessem um alto grau de subversão de cânones estratificados, passível de ser percebida pelo observador mais atento.

Essas considerações poderiam ser exemplificadas por algumas obras de Rosana Paulino. Com uma sofisticada formação no campo da gráfica (mas não apenas) – a artista estudou com Regina Silveira, Evandro Carlos Jardim, Claudio Mubarac e Marco Buti – Paulino, sobretudo em suas peças bidimensionais, desconstrói os códigos mais caros ao neoconcretismo brasileiro, acoplando antigas imagens fotográficas de pessoas escravizadas às estruturas dos meta-esquemas de Oiticica.

Essa ironia em relação às projeções utópicas percebidas na estética concreta e neoconcreta, também pode ser detectada na obra Experiência concreta #1, de Jaime Lauriano, que ressignifica uma performance de Lygia Clark – Diálogos das mãos, 1966 – acoplando uma imagem fotográfica do trabalho da artista a outras que documentam a situação desvalida de jovens pretos, atormentados pelo racismo vigente no país.

Clark e a estética neoconcreta também é semantizada com as peças tridimensionais concebidas por Lyz Parayzo que se comportam como armas de defesa/ataque pra a comunidade LGBTQIA+, sempre acossada pela homofobia.

Não se trata aqui de relativizar o impacto que significou e significa entre nós a virada decolonial na arte, associando-a ao passado recente da arte brasileira. Trata-se, isso sim, de chamar a atenção para a potência da arte contemporânea brasileira surgida a partir dos anos 1960 que não pode, não deve e que não é ignorada por muitos dos mais destacados artistas decoloniais.

A meu ver, não é gratuito que Paulino, Lauriano e Parayzo, por exemplo – todos ligados ao discurso decolonial – dirijam seus interesses na desconstrução, justamente, do concretismo e do neoconcretismo. Essas vertentes modernistas da arte local que receberam (e continuam recebendo) os créditos como supostamente as principais vertentes da arte contemporânea brasileira – assim como outras vertentes artísticas aqui introduzidas – possuem uma relação problemática com a realidade social e política do Brasil, podendo e devendo ser criticadas. Não é à toa que, a meu ver, é justamente a partir dessa crítica ao (melhor) passado da arte contemporânea, que se localizou até o presente, uma das partes  mais significativas da produção decolonial brasileira[28] .

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Finalizada a leitura de A virada decolonial, e tendo estabelecido aqui essas longas considerações, de Gonzaga Duque às produções de Lyz Parayzo e outros, gosto de pensar o seguinte:

Passados quatro anos de obscurantismo cotidiano, creio que tenha chegado finalmente o momento em que essas novas gerações de artistas e críticos poderão continuar dando vazão às suas poéticas, agora em um ambiente mais propício e acolhedor. Não que essa produção deva parar de apelar para o dissenso e mesmo para o confronto. Mas que o façam a partir de um desejável conhecimento do que foi feito antes e, sobretudo, de como foi feito. Afinal, mesmo com demandas políticas e sociais, quando nos referimos à arte decolonial, antes de qualquer coisa, estamos falando de arte. E nada irá retirar, dessa área tão abrangente do conhecimento, a peculiaridade de seu discurso.

Que a virada continue.

[1] – PAIVA, Alessandra Simões. A virada decolonial na arte brasileira. Bauru, SP: Editora Mireveja Ltda, 2022. Publicação lançada com o apoio da Universidade Federal do Sul da Bahia, onde Alessandra Paiva é docente.

[2] – Que, como será visto a seguir, teria ocorrido a partir da segunda metade dos anos 1990.

[3] – GONZAGA DUQUE, Luiz. Mocidade morta. Rio de Janeiro, Oficinas da Livraria Moderna, 1899, pp.41-42. Com o tempo, o crítico oscilará sobre o que pensava a respeito de uma arte nacional para o Brasil[3]. Porém, sobre a superioridade inconteste e sobre o papel matricial que a arte e cultura europeias exerciam na cena brasileira – em detrimento das outras culturas para aqui trazidas ou que aqui se processavam – nada jamais mudou.

[4] – Washington Luís, entre outros cargos políticos no estado de São Paulo, foi prefeito da capital (1914-1919), governador do estado (1920-1924) e presidente do país (1926-1930).

[5] – Menotti Del Picchia. “Ideias orgânicas de um discurso”. Correio paulistano. São Paulo, 6 de abril de 1924, p. 3.

[6] – O primeiro é um romance, o segundo, um artigo de jornal. Entre ambos, um espaço de tempo de quase 25 anos.

[7] – No livro não existem indicações sobre os locais e as datas em que os artigos foram publicados pela primeira vez.

[8] – Logo no início da apresentação do livro, Alessandra Paiva escreve: “Uma verdadeira revolução está em curso nas artes brasileiras. Trata-se da virada decolonial, fenômeno marcado pelo crescimento exponencial de poéticas que expressam questões como raça, etnia, classe, gênero e geopolítica articuladas de forma interseccional”. PAIVA, Alessandra S. op. cit. p.15.

[9] – PAIVA, Alessandra, Idem, p. 23. Seria o caso de nos perguntarmos aqui se foi a oferta de obras decoloniais que gerou esse interesse das instituições brasileiras ou o contrário. Mas não é objetivo deste texto adentrar nesta seara. Ficará para uma outra oportunidade.

[10] – PAIVA, Alessandra, Idem, p. 25.

[11] – PAIVA, Alessandra S. op. cit. p. 27.

[12] – PAIVA, Alessandra S. op. cit. p. 29.

[13] – Respectivamente os textos “Aiesthesis decolonial” (Calle 14. Revista de Investigación em el Campo del Arte, 2010). https://www.academia.edu/13524090/Aesthesis_decolonial e “Reconstitución epistémica/estética: la aeshesis decolonial uma década Después” (Calle 14. Revista de Investigación em el Campo del Arte, 2019) https://revistas.udistrital.edu.co/index.php/c14/article/view/14132

[14] – PAIVA, Alessandra S. Idem.

[15] – Atento para o fato de que em seu primeiro ensaio, o pesquisador grafará aiesthesis para se referir ao termo que dá origem à palavra “estética”. No segundo trabalho, Mignolo se valerá da grafia aesthesis. Esta resenha respeitará a atitude de Mignolo, grafando aiesthesis ou aesthesis conforme a escolha do autor.

[16] – Daqui viria o termo “sinestesia”, tão usado por vários artistas modernos.

[17] – MIGNOLO, Walter. “Aesthesis decolonial”, op. cit. p. 14.

[18] – Idem, p. 14.

[19] – O artista negro norte-americano Fred Wilson; Pedro Lasch, nascido no México e ativo nos Estados Unidos, e Tanja Ostojic, artista nascida na ex-Iugoslávia, residente na Alemanha.

[20] – Wilson apresenta instalações que discutem o passado escravocrata norte-americano; Lasch, o confronto entre a cultura imperialista espanhola e as culturas pré-colombianas; Ostojic discute a migração forçada de mulheres do leste europeu para países da Comunidade Europeia.

[21] – MIGNOLO, Walter. “Reconstitución epistémica/ estética…”. op. cit. p.20.

[22] – PAIVA, Alessandra S. “A visão decolonial nas artes a partir de dois artigos antológicos de Walter Mignolo” IN PAIVA, Alessandra S. A virada decolonialop. cit. p. 153 e segs.

[23] – Idem, p. 164.

[24] – PAIVA, Alessandra S. “A Virada decolonial na arte Brasileira”. IN PAIVA, Alessandra S. A virada… op. cit. págs. 35-36.

[25] – Idem. P. 36.

[26] – Idem, págs. 36-37.

[27] – E, portanto, toda a arte moderna, mesmo aquela mais “conceitual”.

[28] – Sobre o assunto, consultar um texto desta coluna, publicada em 02 de outubro de 2019, “Concreto, neoconcreto: a semantização continua”. https://artebrasileiros.com.br/opiniao/concreto-neoconcreto-a-semantizacao-continua/

 

Em ‘Carimbos’, IAC revela processo criativo de Carmela Gross para mostra realizada em 1978

Carimbo para o convite da exposição "Carmela Gross: Carimbos", Gabinete de Artes Gráficas, São Paulo, 1978
Carimbo para o convite da exposição “Carmela Gross: Carimbos”,
Gabinete de Artes Gráficas, São Paulo, 1978

O Instituto de Arte Contemporânea (IAC) apresenta a partir deste sábado (4/2) a exposição Carimbos, em que retoma 12 dos 80 trabalhos apresentados por Carmela Gross em mostra homônima, realizada em 1978, no Gabinete de Artes Gráficas, em São Paulo. Feitos de repetidas carimbadas sobre papel, as obras estão agora acompanhadas de uma farta documentação – mais de 300 itens – que revela o processo criativo da artista, que fizera sua primeira experimentação com carimbo em 1968, no IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal, em Brasília, com um trabalho que formava o desenho de um murro sobre a mesa.

“Cada carimbo, com sua marca, repete-se muitas vezes numa mesma prancha, de 70cm x 1m, formando um padrão. Eu carimbava uma coisa ao lado da outra, até formar este campo de imagens repetidas”, conta Carmela, a respeito da exposição de 1978. “É um grande arquivo que estou doando ao IAC, e a instituição quis mostrar o processo, com começo, meio e fim”.

 

O conjunto (obras e documentos), diz a artista, revela todos os experimentos feitos à época, “que resultaram na produção dos carimbos de borracha, a matriz para pensar os trabalhos”. Segundo Carmela, a mostra é uma “arqueologia” do projeto original, que apresenta “como foi ele foi pensado e feito, com todos os passos da produção”.

Ricardo Resende assina a curadoria, firmemente lastreada pela documentação sistematizada que a artista faz de sua própria produção, algo que também se pode ver em seu site. “Trabalho intensamente nos meus arquivos”, diz Carmela, “então essa organização foi feita ao longo de anos e anos. É algo que não daria para se fazer em um ou mesmo seis meses. Muitos dos carimbos precisaram ser restaurados, o que aconteceu em 2015. Os documentos, por sua vez, estavam já organizados em pastas. Todo o material que se vê agora no IAC tem uma certa organização, minha, pessoal, que agora se torna visível”.

Para Resende, “em termos de arquivo e também de montagem”, a curadoria estava pronta. “A Carmela é a curadora de fato, por sua sistematização desse arco de produção, da ideia à conclusão, vista originalmente em 1978”, afirma. “A exposição do IAC é eminentemente museológica e traz à tona a característica processual da obra original. E a obra da Carmela é o pensamento, é reflexão, é ideia. É desenvolvimento de ideia. Portanto, processual”.

Entre os documentos presentes está um texto do historiador da arte Flávio Motta – o original e sua transcrição –, além de matérias jornalísticas que saíram à época, com títulos que se referem ao gestual da artista: “Tudo isso num soco”, “Os complicados rabiscos de Carmela” e “O traço sob uma visão radical”, entre outros. Para Resende, os títulos “certamente descrevem e definem o que ela fez” à época.

Carmela destaca a expografia que criou para a mostra, em parte organizada em três paredes forradas com folhas de zinco galvanizado, onde ela prendeu cada documento por meio de um imã. “As duas salas que foram oferecidas são de tamanho regular, e os documentos que seriam colocados lá, muitos deles são pequenos, com apenas 3cm x 5cm. O material era muito heterogêneo”, conta. “Para conseguir que isso virasse uma leitura de um conjunto, que mostrasse essa arqueologia, com as folhas de zinco, pude colocar itens de qualquer tamanho, sem qualquer anteparo, sem moldura ou vidro”.

As últimas exposições de Carmela Gross aconteceram em 2021, com obras inéditas na Galeria Vermelho (Fendas, fagulhas) e sua participação na 34ª Bienal de São Paulo, em que mostrou o painel Boca do inferno, composto de 160 monotipias. No momento, a artista trabalha em novos projetos, que serão apresentados em 2024, em espaços institucionais. Carmela ressalta que suas criações “são fechadas em ciclos” e que seria difícil fazer uma “conexão por semelhança ou continuidade” entre Carimbos e as obras mais recentes, por exemplo.

“Esse longo ciclo dos carimbos forma um conjunto exposto em 1978, e pronto. É conceitual, que vem do desenho, e em seguida fiz outras coisas, como o Projeto para a Construção de um Céu, que foi minha tese de mestrado [na ECA, em 1981, sob orientação do crítico de arte e curador Walter Zanini], e apresentado na Bienal de São Paulo naquele mesmo ano”.

Para a artista, as eventuais “semelhanças se dão muito mais nos bastidores, pelo conceito que está embutido neles, do que pela visualidade”, diz. “O contexto é diferente, a armação do pensamento é diferente e se liga a uma preocupação conceitual, com o desenho, com a cidade”. Segundo Ricardo Resende, a produção de Carmela Gross é marcada por uma “ação construtiva que atravessa toda a obra dela, assim como um pensamento gráfico”.

Para a exposição que o IAC abre neste sábado, Resende chegou a perguntar a Carmela se ela não poderia refazer algumas das pranchas, “repetir as carimbadas”, a partir dos carimbos restaurados. “A resposta foi muita bonita: ela disse que não poderia, porque a sua força daquela época não é a mesma hoje”, conclui.

SERVIÇO

Carmela Gross: Carimbos
Abertura: 4/2, às 12h; visitação: de 6/2 a 6/5
Curadoria: Ricardo Resende
Instituto de Arte Contemporânea (IAC) – Av. Dr. Arnaldo, 120/126, São Paulo (SP)
Horários: terça a sexta-feira, das 11h às 17h; sábado; das 11h às 16h
Entrada gratuita