Retrato de Darcy Ribeiro, 1995. Foto: Bob Wolfenson
“A utopia brasileira é singela: comida, casa, escola e remédio” lê-se na parede do Sesc 24 de Maio. A frase é de Darcy Ribeiro, antropólogo, educador, historiador e ensaísta brasileiro que completaria seu centenário em 2022. Em comemoração à data, o Sesc São Paulo inaugura Utopia brasileira, exposição que evidencia a atualidade do pensamento deste intelectual, apresentado em suas várias facetas de atuação pública.
“Mais do que uma homenagem, mais do que algo memorialístico, eu quis trazer a potência e a atualidade de muitas das coisas que ele falou, sobretudo se pensarmos no que estamos vivendo hoje no País. No meu entender, Darcy Ribeiro é extremamente atual e essa é uma exposição sobre o Brasil”, diz a curadora Isa Grinspum Ferraz.
Em entrevista à arte!brasileiros, ela completa: “Num certo sentido, chegamos ao fundo do poço. Hoje há uma tremenda desigualdade social, como dizia o Darcy: rompeu-se o nervo ético da sociedade”. Para a curadora, nesse contexto, há de se retomar uma máxima do pensador: “É preciso conhecer o Brasil em profundidade para poder inventar o Brasil que a gente quer”.
Assim, a exposição nos permite caminhar entre o passado, o presente e o futuro da nação, guiados pelo olhar e pela trajetória de um de seus mais importantes intelectuais. “Nós tivemos como um parceiro fundamental a Fundação Darcy Ribeiro, que reúne todos os arquivos dele – os documentos, as correspondências. Então, pudemos mergulhar nesse material e encontrar pérolas. E eu trabalhei dez anos com ele, então conhecia muito bem seu pensamento. Não com a profundidade acadêmica, mas com essa convivência”.
A arte!brasileiros visitou a exposição e conversou com Isa Grinspum Ferraz. Confira:
A mostra reúne fotografias, correspondências, documentos, filmes feitos pelo antropólogo junto aos indígenas nos anos 1940, peças de sua coleção pessoal, obras de arte contemporânea, livros, música, uma instalação inédita desenvolvida por Eryk Rocha e Marcelo Ferraz e pequenos trechos de seus escritos. “Selecionei trechos muito fortes, que são quase manifestos sobre o Brasil”, destaca a curadora.
Utopia brasileira – Darcy Ribero 100 anos fica em cartaz até 25 de junho de 2023 no Sesc 24 de Maio. As visitas ocorrem de forma gratuita, de terça a sábado, das 9h às 21h, e aos domingos e feriados, das 9h às 18h.
A pintora Marina Rheingantz, em seu ateliê. Foto: Eduardo Ortega/Cortesia da artista e da Fortes D'Aloia & Gabriel
Em meados de 2019, quando estava em cartaz com duas exposições simultâneas – Todo mar tem um rio, no Galpão da Fortes D’Aloia & Gabriel, em São Paulo, e Rebote, na Carpintaria, espaço da galeria no Rio de Janeiro – a paulista Marina Rheingantz era saudada como uma pintora em ascensão, sobretudo à sua escalada no mercado internacional à época, após realizar mostras no Japão, na Bélgica e nos EUA, e a seu bom desempenho em leilões – telas como Pelada caipira (2016) haviam sido arrematadas por cifras acima da expectativa em casas como a Philips.
Em cartaz até 21 de dezembro com Sedimentar, novamente no Galpão da FDAG, na capital paulista, a artista consolida uma transição também apontada no período pré-pandemia, uma virada da representação de paisagens, vista em obras como Forrest row – de 2011 e pertencente ao acervo Banco Itaú – para telas monumentais, em que, numa prática marcada pelo gestual, camadas generosas de tinta e breves pinceladas podem até sugerir, a distância, alguma figuração. Mas Marina, ela mesma, prefere deixar em aberto eventuais leituras:
“Tenho dificuldade de verbalizar sobre meu trabalho, de criar narrativas a respeito do que faço. Nem acredito que elas devam haver. A pintura tem esse lugar onde você pode inventar situações”, diz, em entrevista à arte!brasileiros. Logo em seguida, curiosamente, elabora com clareza o desenrolar de sua produção artística em anos recentes. A abstração vem de um processo mais longo, iniciado ainda na primeira metade da década passada.
“Num certo sentido, minha pintura sempre flertou com uma ideia de ficção, uma mistura entre a figuração e a abstração. Ela nunca foi uma representação fidedigna de algo, sempre misturou a ideia de um lugar com a pintura abstrata. Sempre esteve claro que era tinta, que ela estava ali, sua materialidade presente, impondo-se”, afirma.
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Marina Rheingantz, "Rastro" (2022). Foto: Eduardo Ortega/Cortesia da artista e da Fortes D'Aloia & Gabriel
Marina Rheingantz, "Magma" (2022). Foto: Eduardo Ortega/Cortesia da artista e da Fortes D'Aloia & Gabriel
Marina Rheingantz, "Verde e Rosa" (2022). Foto: Eduardo Ortega/Cortesia da artista e da Fortes D'Aloia & Gabriel
Sobre as obras apresentadas logo antes da pandemia – como Rabetão de ouro, tela em parecia haver uma alusão aos crimes ambientais cometidos em Mariana (2015) e Brumadinho (2019), ambos em Minas Gerais – e na nova exposição, em que o distanciamento da representação de paisagens parece mais demarcado, Marina fala:
“O Rabetão de ouro foi feita logo após a eleição Bolsonaro para a presidência. Eu comecei a pintar umas fontes de lama. Como se o país estivesse imerso nelas. Era um momento pós-eleição, de desespero. Até sempre fico na dúvida se essa mudança no meu trabalho não tem a ver com estes últimos quatro anos, com esta situação tão difícil no país”, reflete. “Abstrair seria quase como abrir uma janela para outro lugar. E, de fato, essa transformação aconteceu nesse período. As coisas se relacionam. Não que seja algo tão objetivo, mas há uma tensão que aparece forte naquelas obras.”
Marina nasceu em 1983, em Araraquara, a pouco mais de 270 quilômetros de São Paulo. Filha de um engenheiro e uma socióloga, teve, na vivência no campo e na educação pelo método Waldorf – criado pelo austríaco Rudolf Steiner (1861-1925), e em que a aprendizagem tem forte inclinação para a manualidade e a expressão artística – dois dos estímulos criativos para o que viria ser a sua produção como pintora. Mas a carreira, em si, não ocorreu de forma tão óbvia.
Filha de um engenheiro, como já foi dito, e neta de um arquiteto, Marina conta que viajava o interior de São Paulo inteiro na infância, visitando obras. “Eles sempre apontavam os detalhes das construções, e tudo isso era algo que me interessava muito. Meu trabalho sempre teve alguma conexão com essa ideia de construção também”, avalia.
Em 2001, Marina passou seis meses na Inglaterra, fazendo intercâmbio numa escola baseada na Antroposofia, outro conceito de Steiner, que alicerça sua pedagogia Waldorf. Lá, tinha muitas aulas de trabalhos manuais, como escultura em metal, pintura, desenho, cerâmica, entre outros.
“Para mim foi uma descoberta impressionante ver a possibilidade de abrir outros caminhos, trabalhar de outras formas, de uma forma humanizada”, ressalta. “Ao voltar, comecei a pensar em estudar artes. Tinha desde a adolescência, um amigo mais velho, que já estudava artes na Faap, e ele falava diversas vezes que eu deveria fazer o curso também”. Marina iniciou seus estudos em 2003, na própria Faap. De início, no entanto, ela conta que pensava em seguir um caminho mais pedagógico, em vez de atuar como artista, profissionalmente, para o seu sustento.
“Cheguei a trabalhar como assistente de professores de artes para crianças, assistente de florista etc. Nunca imaginei que fosse um vender uma pintura. Naquela época, nem havia um mercado consolidado no Brasil. As coisas começaram a acontecer mais a partir de 2007 em diante”, conta artista, cujos trabalhos estão hoje em acervos de peso, como a Pinacoteca de São Paulo, o Inhotim e o MAM Rio, no Brasil; e, lá fora, no Rubell Museum, em Miami, assim como na coleção Pinault, em Paris, entre outros.
Durante todo o tempo na faculdade, Marina trabalhou em diversas atividades, algo que tinha em comum, ressalta ela, com seus colegas de ofício no ateliê da Casa 7, grupo formado nos anos 1980, no bairro paulistano de Pinheiros, por artistas como Nuno Ramos e Carlito Carvalhosa. “Todos tinham um trabalho paralelo: o [Rodrigo] Andrade era capista da Veja, o [Fabio] Miguez fazia livro. Então, eu também pensava em dar aulas para crianças, e paralelamente fazer meu trabalho”, conta.
As coisas começaram a mudar de figura depois que Marina passou uma temporada no departamento educativo do Instituto Tomie Ohtake e, em seguida, fez outro intercâmbio, desta vez acadêmico, numa universidade do Chile, que tinha parceria com a Faap. “Quando eu voltei, pensei: ‘Bom, agora que eu já que não gosto de fazer tudo isso, vou tentar um trabalho de assistente de produção em museu ou galeria’. Trabalhei um pouco como assistente de montagem e, na sequência, a Fortes D’Aloia & Gabriel estava abrindo vaga de estágio, e eu entrei em 2006”, conta. Na galeria, todos a conheciam como Marina Barbieri, o sobrenome de meu pai. Quando começou a pintar, assinava com o sobrenome da mãe, Rheingantz. Inclusive nos salões realizados pela Faap com seus alunos.
“No fim daquele ano (2006), [a galerista] Márcia Fortes viu a exposição anual da Faap, deparou-se com uma obra de uma Rheingantz, mas não ligou os pontos. Ela descobriu que era eu, me mandou para casa, porque só teria exposição no ano seguinte e disse para eu ir pro ateliê trabalhar”, conta Marina. “Neste começo, eu tinha muito frio na barriga. Mas como dividia o ateliê com um amigo, o Bruno Dunley, havia, de certa forma, um ambiente mais acolhedor, fazia com que eu acreditasse mais que aquilo, de fato, viria a ser o meu trabalho.”
As paisagens
Terminados os estudos na Faap, em 2007, Marina fez já no ano seguinte sua primeira individual, Algum dia, na então Fortes Vilaça. Nela, fazia “uma redução geométrica da paisagem realçando elementos que se identificam individualmente como a cerca, a casa ou o toldo”, segundo o texto curatorial que acompanhou a mostra.
“No começo, e por muitos anos, minha pintura teve uma relação bem forte com a arquitetura na relação com a paisagem”, conta Marina, lembrando de uma entrevista que deu à curadora e crítica Luisa Duarte, para o livro Pacto Visual 2 (2016). Na conversa, ressaltava-se como sua produção tinha uma forte relação com a infância no campo, quando “o mundo era enorme” e Marina vivia solta no pasto, andando muito a cavalo. Para a pintora, no entanto, esta relação depois se amplia, para a paisagem nacional.
“Eu cresci viajando o interior de São Paulo. Meu irmão era uma pessoa que viajava muito pelo Brasil todo, trabalhando numa multinacional ligada ao agronegócio, à soja, como engenheiro agroindustrial. Ele também sempre mandava muitas fotos. Uma vez, fizemos juntos uma expedição para estudar a paisagem do Piauí”, lembra. “O que me interessava de fato era a identidade do país e sua potência cultural”.
A ascensão da carreira anunciada em 2019 foi pausada pela pandemia no ano seguinte. Marina então passou um mês com a mãe em Botacatu, também no interior de São Paulo, logo no começo da crise sanitária. Com dificuldade de se concentrar no trabalho, conta que, lá, fez alguns retratos e pinturas de cavalo, para “ter alguma coisa mais palpável”. “Foi a primeira vez que eu pintei pessoas ou animais. Acho que justamente por estar vivendo aquele isolamento”, conta.
As obras mais monumentais, como Rastro, um dos destaques da mostra Sedimentar, surgiram quando Marina mudou de ateliê – em 2015, de Perdizes, onde ela chegava a fazer telas de 2mx3m, para um novo espaço, na Vila Ipojuca. O objetivo era aumentar as dimensões de suas obras. “Hoje, gostaria de ter um galpão para fazer pinturas ainda maiores, chegar a dimensões como 5mx10m, por exemplo, criações mais próximas de murais, mesmo”, diz.
Nos últimos anos, conta, tem procurado dar mais atenção à sua saúde. Há 20 anos faz análise, hoje com um terapeuta “freudiano, mas não tão cartesiano”. Para as sessões, conta que leva, com frequência, questões ligadas à sua prática. “Porque eu vivo certa angústia de como lidar com o meio de arte, no sentido do trabalho, não eu, pessoa física”, explica. Ao mesmo tempo, a pintora ressalta que acha “saudável vislumbrar um lugar aonde se quer chegar” como artista, “pensar em exposições fora, para não somente mostrar meu trabalho, como levar a cultura brasileira adiante, mostrar sua importância, a riqueza que temos aqui. A arte no país é muito forte.”
Porém, diz Marina, o mais importante para ela é sua relação com o ateliê, “o que mais me entusiasma no dia a dia.” Seu trabalho, salienta, “é fruto de muita prática, de muito exercício, muito trabalho. Mais suor que inspiração. A exposição que fez no ano passado, na galeria Bortolami, em Nova York, se chamou Suor, por causa de uma pintura que demorei muito, muito para fazer”, conta.
Ultimamente, diante de crises institucionais que têm marcado o cenário artístico brasileiro, como a ocorrida – e posteriormente sanada– entre o Masp e as curadoras do núcleo Retomadas, da exposição Histórias Brasileiras, Marina tem também refletido sobre a importância de se estar em espaços que acolham. “Afinal, a arte é isso: é poder levar para as pessoas o que quer que seja, afeto ou indignação. Qualquer relação que surja entre o público e o trabalho de arte é saudável”.
Ela, porém, acredita que tudo tem sido “muito racionalizado, relacionado objetivamente a um ato político, a uma determinada situação” no panorama das artes. “Às vezes, mesmo que por uma espécie de oposição, meu trabalho acaba sendo também político, nesse sentido: ele não precisa levantar uma bandeira. É mais próximo ao afeto, mesmo. Ligado à importância de se olhar para o outro”, conclui.
SERVIÇO
Sedimentar Até 21 de dezembro de 2022
Galpão Fortes D’Aloia & Gabriel R. James Holland, 71 – Barra Funda, São Paulo – SP
Visitação: de terça a sexta-feira, das 10h às 19h; sábados, das 10h às 18h
Em um ano de grandes mudanças estruturais e de recorrentes violências à estabilidade social, o VII Seminário Internacional, promovido pela arte!brasileiros em parceria com Sesc SP, ressaltou a importância de entender o papel da arte em defesa da democracia e de pensar estratégias de reparação após o apagamento das diferenças, econômicas, sociais, raciais e religiosas.
Para aprofundar a reflexão, conversamos com importantes figuras da contemporaneidade sobre o papel da arte na articulação dos três conceitos-chave do seminário: cultura, democracia e reparação. Confira o conteúdo inédito:
Christian Dunker
Psicanalista, escritor e Professor Titular do Instituto de Psicologia da USP, junto ao Departamento de Psicologia Clínica. Obteve o título de livre docente em Psicologia Clínica, após realizar seu pós-doutorado em Manchester, na Manchester Metropolitan University. É autor de diversos livros, incluindo “O Mal Estar: Sofrimento e Sintoma” e “Estrutura e Constituição da Psicanalítica: Uma Arqueologia das Práticas de Cura, Psicoterapia e Tratamento”, vencedores do Prêmio Jabuti.
Claudinei Roberto da Silva
Professor, curador e artista visual formado pelo Departamento de Arte da USP. Coordenou, entre outros, o educativo do Museu Afro Brasil e coordena o núcleo artístico pedagógico do projeto multinacional A journey through African diaspora, do American Alliance of Museums em parceria com o Museu Afro Brasil e Prince George’s African American Museum. Faz parte da Comissão de Arte do Museu de Arte Moderna de São Paulo, onde também é co-curador, atualmente, do 37º Panorama da Arte Brasileira.
Farid Rakun
Artista, escritor, editor e professor baseado em Jacarta, na Indonésia. Formado em arquitetura, atualmente atua como editor e pesquisador da iniciativa de artistas ruangrupa, coletivo de artistas que assina a documenta quinze. Projetou e construiu edifícios, produtos, instalações e intervenções, além de escrever e editar livros e publicações diversas. Trabalhou com várias instituições culturais e educacionais, como a Universidade da Indonésia, o Departamento de Arquitetura, a Cranbrook Academy of Art, a Universidade do Michigan, Hong Kong University e Goethe-Institut, dentre outras.
Graziela Kunsch
Artista, mãe e educadora, desenvolve o projeto Creche Parental Pública na documenta de Kassel. Além de seus projetos em performance vídeo, assume formas educativas, editoriais e curatoriais na sua prática artística e a editora da Revista Urbana, entre exposições coletivas estão a 19ª e a 31ª Bienal de São Paulo, em 2010 e 2014, e a Bienal de Oslo, de 19 e 21. É doutora pela Escola de Comunicações e Artes da USP e, entre 2017 e 2019, foi professora substituta do curso de História da Arte da Unifesp.
Ligia Fonseca Ferreira
Professora associada do Departamento de Letras da Unifesp, doutora pela Universidade Sorbonne – Paris 3. Sua tese versa sobre a vida e a obra de Luiz Gama. Possui pós-doutorado sobre epistolografia em Mário de Andrade e é autora e tradutora de inúmeros livros. Suas traduções mais recentes são “Os Condenados da Terra”, de Frantz Fanon, e “Uma Africana no Louvre: O Lugar do Modelo”, de Anne Lafont.
Paula Macedo Weiss
A escritora tem mestrado e doutorado em Direito pela Universidade de Tubingen. Em Frankfurt, é Presidente da Fundação do Museu de Artes Aplicadas e também membro do Conselho Diretivo do Instituto de Arte Contemporânea em Berlim. No Brasil, é membro do Conselho Consultivo Internacional da Bienal de São Paulo.
Sandra Benites
Nascida na Terra Indígena Porto Lindo, no Mato Grosso do Sul, é mestra e doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), consultora de programação cultural do Museu das Culturas Indígenas, em São Paulo, e é também professora de ensino fundamental e médio. Entre 2019 e 2022, ela foi curadora adjunta de arte brasileira do Masp.
A arte!brasileiros preparou uma lista com três editais que oferecem oportunidades para artistas de diferentes linguagens. Confira.
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A Kombi utilizada para o projeto Dispositivo Móvel para Ações Compartilhadas no JA.CA (2015). Foto: Divulgação
A equipe do JA.CA em sua sede no Jardim Canadá, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Ciclo de residências JA.CA
Em 2022, o JA.CA – Centro de Arte e Tecnologia passou a ocupar um novo terreno no Jardim Canadá, em Belo Horizonte. Agora, a instituição convida artistas e coletivos a desenvolverem propostas e exercícios de imaginação política, social e espacial para o novo lote, que levem em consideração questões como a sua topografia, sua localização, seu entorno e sua vizinhança. A partir de experimentações, de ficções, intervenções arquitetônicas/paisagísticas temporárias ou mesmo outras estratégias, propomos um espaço para uma reflexão sobre modelos e tipos de ocupação que questionem e potencializem formas de interação com a paisagem e a comunidade do bairro.
Para isso, abrem inscrições para um novo ciclo de residências, com duração de
60 dias (6 de março a 6 de maio de 2023) e a participação de dois artistas. Cada selecionado contará com uma bolsa para ajuda de custo no valor total de R$ 4000 e uma verba de até R$ 2500 a ser aplicada exclusivamente na produção do projeto proposto. Os artistas que não residirem em Belo Horizonte receberão um auxílio para despesas de seu deslocamento da sua cidade de origem a Belo Horizonte e ficarão hospedados no JA.CA durante todo o período da residência.
A Feira de Trocas Exusíacas é uma atividade da quarta edição do Escuta Festival, que acontecerá em janeiro de 2023. O evento, concebido e desenvolvido pelo Instituto Moreira Salles em parceria com artistas e coletivos artísticos independentes, tem por objetivo ressaltar e celebrar a arte, a cultura e o ativismo das periferias da região metropolitana do Rio de Janeiro. Três projetos dentre os inscritos serão selecionados para passar por uma banca de curadores, a fim de que um deles seja escolhido para receber participar de um processo de troca e orientação de seis meses.
Podem se inscrever artistas, artivistas, produtores e fazedores culturais moradores das favelas e periferias da região metropolitana do Rio de Janeiro. O projeto/ proposta de ação não precisa ser inédito, nem estar totalmente acabado. A organização incentiva projetos coletivos e sugere que se os candidatos deem um panorama de quantas pessoas podem ser impactadas pelo trabalho.
A primeira fase de seleção acontece pelo preenchimento do formulário de inscrição; a segunda acontecerá em um dos dias da 4a Edição Escuta Festival, que acontecerá nos dias 20, 21 e 22 de janeiro de 2023.
Fotografia de Andrea Goldschmidt exposta na 1a Mostra Internacional Luz del Fuego. Foto: Reprodução
Fotografia de Carla Desiree exposta na 1a Mostra Internacional Luz del Fuego. Foto: Reprodução
Mostra Internacional Luz del Fuego
O ano de 2022 marca os 105 anos de nascimento de Luz del Fuego (Dora Vivacqua), artista capixaba que fez de sua história e de sua arte manifestos da liberdade feminina. Neste ano a Mostra Internacional que a homenageia pergunta: como a produção cultural local pode colaborar para a abertura de mais espaço para mulheres na arte e na fotografia? Como gerar oportunidades culturais democráticas para mulheres, mediante à crise cultural e sanitária que o Brasil vive atualmente? Como inserir, em projetos de editais públicos, mulheres de comunidades marginalizadas como as da comunidade LGBTQIAP+? A segunda edição do projeto traz o tema “Mulheres Brasileiras na Fotografia” e tem chamada aberta a ensaios e fotografias que retratem mulheres brasileiras como protagonistas de movimentos sociais, culturais, religiosos e políticos.
A mostra fotográfica acontecerá na capital do México e em Cachoeiro de Itapemirim, através de intervenções urbanas, mais conhecidas como lambe-lambe, e também através do formato de exposição virtual, no site do projeto. As vagas expositivas serão divididas da seguinte maneira: até 5 vagas para fotógrafas pertencentes à comunidade LGBTQIAP+ residentes no Espírito Santo; até 5 vagas para fotógrafas pertencentes à comunidade LGBTQIAP+ residentes em outros estados’até 5 vagas exclusivas para fotógrafas negras e/ou indígenas residentes no Espírito Santo; até 5 vagas exclusivas para fotógrafas negras e/ou indígenas residentes em outros estados; até 5 vagas exclusivas para mulheres residentes nos bairros atendidos pelo Projeto Estado Presente, iniciativa do Governo do Espírito Santo que busca a redução de taxas de homicídios, principalmente em comunidades onde o índice de violência e mortalidade de jovens apresenta-se elevado; até 5 vagas para mulheres que não se identificam com os grupos acima citados.
Com objetivo de difundir as produções audiovisuais realizadas por piauienses e maranhenses, que residam nestes (PI/MA) ou em outros estados do País, o Centro Cultural Vale Maranhão (CCVM) e Produtora LABCINE Filmes promovem a Mostra Piranhão de Cinema. Esa primeira edição acontece em formato híbrido, com os filmes exibidos presencialmente de 11 a 14 de Janeiro de 2023, em São Luís do Maranhão (MA) e em Teresina (PI), e virtualmente, disponibilizados no site da Mostra vinculado à Produtora LABCINE Filmes e no canal no YouTube do CCVM.
Serão selecionadas 15 obras no total: 2 longas-metragens, 8 curtas-metragens e 5 videoclipes. As obras devem estar sustentadas nos seguintes eixos temáticos: Negritude, Cinema Periférico, Povos Originários e Cultura Regional, tendo como pontos de partida as discussões de memória, identidade e decolonialidade.
Os artistas selecionados no edital de "Contra-flecha" irão compor o programa de exposições da galeria em 2023. Na foto, vista da exposição "Terra e temperatura", na Almeida & Dale Galeria de Arte, parte da programação da casa em 2021. Foto: Reprodução
Vista da exposição "Rodrigo Andrade: Pintura Paisagem", atualmente em cartaz na Almeida & Dale Galeria de Arte. Foto: Reprodução
Contra-flecha, na Almeida & Dale Galeria de Arte
Pela primeira vez, a Almeida & Dale abre chamada para artistas interessados em expor na galeria. Funcionando como um espaço de experimentação crítica e curatorial, interessado em novas perspectivas da história da arte brasileira, o programa Contra-flecha passa a inaugurar o calendário anual de exposições da casa e busca estabelecer diálogos entre obras de seu acervo e rede — majoritariamente compostos por peças modernas do século 20 — e artistas com pouca circulação no sistema comercial ou em início de carreira. Nesta primeira edição, intitulada Arqueia mas não quebra, a curadora e pesquisadora pernambucana Ariana Nuala compõe a comissão curatorial ao lado dos idealizadores do projeto, o curador Germano Dushá e o artista Rafael RG.
O programa é focado em artistas contemporâneos que tenham pouca ou nenhuma circulação no sistema comercial de arte, ou estejam no início de suas trajetórias artísticas. Podem participar do processo seletivo artistas brasileiros com produção em artes visuais, audiovisuais, performáticas, sonoras, textuais, entre outras.
O presidente Jair Bolsonaro discursa durante abertura da Semana das Comunicações no Palácio do Planalto.
Dia 18 de outubro último, quase meia-noite, assistindo aos comentários de jornalistas da Globonews sobre o segundo turno das eleições presidenciais que ocorreriam no dia 30, fiquei surpreso ao saber que, numa pesquisa sobre as razões que levariam os militantes a votarem em um dos dois candidatos, 27% dos partidários de Luiz Inácio Lula da Silva informaram que votariam nele, devido ao seu “desempenho na área social”. Já 27% dos eleitores de Jair Messias Bolsonaro afirmaram que votariam por sua “imagem pessoal”. Outros dados complementavam a enquete, mas, para o que pretendo refletir aqui, me bastam as declarações que assinalei.
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Entendo o que teria levado aqueles 27% dos eleitores de Lula a proclamarem que votariam nele devido ao seu “desempenho na área social”. Por mais que se possa criticar o presidente em seus dois primeiros mandatos, não restam dúvidas de que, durante aqueles oito anos (entre 2003 e 2011), Lula se notabilizou pela implantação de políticas públicas visando a inclusão social.
Mais subjetiva me parece a resposta daqueles 27% do eleitorado bolsonarista creditando seu voto à “imagem pessoal” de Bolsonaro. Segundo comentaristas do programa, alguns desses eleitores teriam associado a “imagem pessoal” do presidente com índices de seriedade, probidade, de respeito aos valores da família tradicional etc.
Essa parte do eleitorado de Bolsonaro, que percebeu em sua “imagem pessoal” (e em tudo o que ela significa), motivo suficiente para votar no candidato, fez emergir um aspecto ainda não captado do embate entre os dois presidenciáveis, que passou despercebido para muitos. Um aspecto talvez óbvio demais para, conscientemente, ser levado em conta: a “imagem pessoal” de Bolsonaro está colada àquilo que, no Brasil, convencionou-se entender como “boa aparência”. E “boa aparência”, apesar de toda a sua ambiguidade, sempre serviu (e serve) para que, no país, inclua-se ou exclua-se indivíduos nas mais diversas áreas.
A imagem pessoal de Bolsonaro, ou sua “boa aparência”, demanda alguma reflexão, pois me parece ter sido ela um fator importante para entender o fenômeno de massa que se tornou Bolsonaro, sobretudo em partes consideráveis do Sul, do Sudeste, do Centro-Oeste e do Norte do Brasil. Sua “imagem pessoal” encobre outra face do presidente e do país que, se analisada, ampliará a compreensão sobre a expansão do bolsonarismo entre nós nos últimos anos, assim como sobre a expressiva votação de Bolsonaro no último dia 30 de outubro.
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O presidente Jair Messias Bolsonaro. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Foto: José Cruz/Agência Brasil
Jair Messias Bolsonaro é ele e sua imagem. Ou melhor, é ele mesmo e é também uma imagem passível de absorver inúmeros sentidos. E o que vemos quando observamos um retrato fotográfico de Bolsonaro ou um vídeo de alguma atividade por ele desenvolvida? Bolsonaro é um homem relativamente alto (1,85m)[1], possui um olhar altivo, olhos azuis e – dado fundamental –, é branco.
No decorrer de sua carreira como político profissional, Bolsonaro acoplou a essa branquitude, índices de inequívoca masculinidade (ou “macheza”) – sobretudo pela demonstração contínua de sua aversão a mulheres e a homossexuais – e um desprezo particular a todos os seres “inferiores” com que tinha de lidar: para Bolsonaro, negros deveriam ser pesados em arroba; indígenas não deveriam ter seus territórios respeitados, e nordestinos não passavam de paus de araras e cabeçudos[2].
Como homem branco, a “boa aparência” de Bolsonaro aciona todos aqueles outros sentidos – ele é machista, homofóbico, misógino, eugênico – que parecem ir ao encontro de muitos de seus apoiadores, que projetam na imagem do “mito” anseios identitários singulares. Sua “imagem pessoal” – ou seja, a fundamental branquitude de Bolsonaro –, num país preconceituoso e de maioria negra e parda, enfatiza sua “superioridade” em relação ao restante dos brasileiros[3]. Assim, tão ou mais importante do que de ter sido militar e deputado federal por quase três décadas, é o fato de que ele é branco. E não um branco “qualquer”, pois descende de italianos do norte da Itália, o que – para uma fração significativa de seu eleitorado do Sul e do Sudeste –, não é pouca coisa[4].
Ser branco no Brasil é distinguir-se da maioria da população, mas é também ser ou estar identificado com aquela parcela de brasileiros que, por sua às vezes antiga ascendência europeia, agem como se fossem exilados italianos, mas também alemães, poloneses, espanhóis e portugueses.
Assim, sua branquitude está acima de todos os outros atributos, que colocam Bolsonaro como líder de uma massa que o segue e venera, sem que nada de negativo que ele faça conspurque sua imagem[5].
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A partir do final do século XIX, mas, sobretudo, nas primeiras décadas do século passado, começou a ser construído em São Paulo o mito do paulista como sendo o grande empreendedor, aquele brasileiro pertencente a uma raça superior de indômitos desbravadores (como os bandeirantes, seus antepassados) – características que justificariam a modernidade de São Paulo, em contraste com a morosidade decadente da grande maioria do Brasil.
Barbara Weinstein, em seu estudo sobe a formação da identidade paulista[6], explica que os brasileiros nascidos no estado de São Paulo, ao tentarem caracterizar sua hipotética excepcionalidade, precisavam escolher aqueles que seriam o seu “outro”. E quem deveria aparecer como o “outro” do paulista, todos os brasileiros restantes? Não propriamente.
Embora nunca tenham reconhecido nos gaúchos, catarinenses e paranaenses a mesma “nobreza” que os tornava tão especiais, os paulistas, embora não os vissem como iguais, os percebiam como semelhantes. Segundo Weinstein, o “outro” do paulista, ou seja, o seu oposto, fundia-se na categoria “nordestino”, uma abstração que personificava a decadência, o atraso, a barbárie.
Já em 1999, Durval M. de Albuquerque Jr. atentava para essa oposição entre São Paulo e o Nordeste, como dois lados opostos do Brasil. Em seu estudo sobre a “construção” do mito do Nordeste, o autor também chamará a atenção para o papel que o imigrante europeu – que então já se concentrava em São Paulo e no Sul do país – representava nesse processo de diferenciação entre São Paulo e o Nordeste, por alguns dos importantes intelectuais do período.
Encantados com a superioridade dos imigrantes e tendo uma visão depreciativa do nacional, intelectuais como Oliveira Vianna (fluminense) e Dionísio Cerqueira (baiano) veem no nordestino o próprio exemplo de degeneração racial, seja do ponto de vista físico ou intelectual (…) Comparando a situação econômica de São Paulo com a dos estados do Norte do país, eles atribuem ao eugenismo da raça “paulista”, à sua superioridade como meio e como povo, a ascendência econômica e política no seio da nação. A superioridade de São Paulo era natural, e não historicamente construída. O Nordeste era inferior por sua própria natureza, sendo o “bairrismo paulista” uma lenda[7].
Voltando ao texto de Weinstein, a certa altura, parafraseando o intelectual Alfredo Ellis Jr. – adepto do “racismo científico” do início do século passado –, a autora afirmava que, embora fosse possível detectar semelhanças entre os louros e castanhos “dos estados mais centrais e meridionais do Brasil”, à tal família (brasileira) não poderiam ser incluídos “cabeças-chatas mongoloides” e “negros” do Nordeste[8].
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Se para o eleitorado bolsonarista dos estados do Sul e do Sudeste, Bolsonaro se distingue por possuir a “boa aparência” de branco paulista de origem italiana, como seria a “imagem pessoal” de Lula, seu opositor?
Para essa parcela dos eleitores de Bolsonaro, Lula, o presidente recém-eleito, não passaria de um “nordestino”, ou seja, um “cabeça-chata mongoloide”, uma espécie de negro. Um “outro” que, por algum descuido ousou concorrer e ganhar por duas (agora três) vezes a presidência do país. Afronta jamais perdoada por muitos brasileiros “louros e castanhos”.
Não importa o que Lula realizou em suas duas gestões, e o que poderá realizar nesta sua terceira, o fato é que ele continuará sendo eternamente o “outro” de metade da população brasileira. Alguém que – se conseguiu renascer depois de terem querido enterrá-lo vivo[9] – deve ser destruído para que Bolsonaro – “tão igual a nós” – possa triunfar em definitivo num futuro próximo.
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Em seu livro sobre a presença do fascismo italiano no Brasil na primeira metade do século passado, João Fábio Bertonha atenta para a presença de um “fascismo difuso” no Sul e Sudeste do país[10]. Segundo o autor, não foram muitos aqueles que, de fato, se inscreveram nas hostes fascistas no país, o que, no entanto, não significa que não existisse, em vários segmentos da sociedade brasileira de então, simpatizantes do regime italiano. Por sua vez, a pesquisadora Ana Maria Dietrich afirma que, por vários motivos, também não foi expressiva a presença de filiados do partido nazista alemão no Brasil, embora também houvesse simpatizantes da “causa”[11]. Os dois pesquisadores afirmam, por outro lado, que muitos italianos e alemães, assim como seus descendentes, preferiram ingressar na Ação Integralista Brasileira, na medida em que o Integralismo aliava às demandas do fascismo internacional, questões ligadas ao nacionalismo local.
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Por esse passado não muito longínquo em que fascismo, nazismo e integralismo perpassaram vários segmentos da sociedade brasileira[12], preocupa perceber o quanto a massa bolsonarista vibra quando seu líder faz uso do jargão fascista/integralista, “Deus, pátria, família e liberdade”[13]. Ao ouvir o “mito” pronunciar tal frase seus prosélitos reivindicam uma supremacia branca, de gênese europeia, sem lugar para o “outro”: o “pau-de-arara”, o “preto”, o “molusco”.
[3] – E a consciência de tal “superioridade” encontra-se em algumas falas do próprio Bolsonaro. Certa vez, fazendo referência ao “desaparecimento” do indigenista brasileiro, Bruno Pereira, e do jornalista britânico Don Phillips, assassinados em junho de 2022, o presidente assim se pronunciou: “Lamento o ocorrido. Os caras entraram, pô, numa área sem segurança. É eu subir o morro… uma comunidade no Rio de Janeiro com esse olho azul e essa cara à noite. Vou para o micro-ondas ou não vou?” Murilo Fagundes. “Bolsonaro diz que morreria se subisse o morro ‘com olho azul'”. Poder360. 23.06.22. https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-diz-que-morreria-se-subisse-morro-com-olho-azul/ (Consulta: 02/11/2022.)
[4] – A assimilação do imigrante italiano no Brasil, apesar de importantes estudos, ainda aguarda maiores aprofundamentos. Embora todos eles fossem chamados de “carcamanos” – termo pejorativo e de origem incerta –, o fato é que os italianos do Sul sofriam mais preconceitos do que aqueles do Norte – o que refletia o preconceito que existia na Itália “branca” contra os meridionais. Segundo um relatório do Office of War Information norte-americano, de 1943 – do National Archives at College Park, de Maryland: “Ele [o italiano] também era chamado [no interior do estado de São Paulo] de ‘mameluco’, termo que é usado tanto para pessoas mestiças, como para aqueles italianos do sul da Itália que têm pele escura…” (NACP/Records of the Office of War Information, RG 208, 208/350/71/12/34, box 437, The Italian Community of Campinas, 23/06/1943, Apud BERTONHA, João Fábio. O Fascismo e os imigrantes italianos no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. Pág. 245.)
[5] – Sabemos que os problemas que ele teve durante seu período no Exército, sua nulidade como quando atuou como Deputado Federal e mesmo as denúncias de corrupção de seu governo, nada parece afetar sua imagem considerada imaculada por seus seguidores.
[6] – WEINSTEIN, Barbara. A Cor da Modernidade. A branquitude e a formação da identidade paulista. São Paulo: Edusp, 2022.
[7] – ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz. A invenção do nordeste. E outras artes. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 1999, pág. 43.
[11] – DIETRICH, Ana Maria. Nazismo tropical? O partido nazista no Brasil. São Paulo: Todas as Musas, 2012.
[12] – Ao que tudo indica, o fato desses partidos terem sido considerados ilegais no Brasil, no final da primeira metade do século passado, não significa que tenham sido extintos, de fato.
[13] – Bolsonaro costuma adicionar a palavra “Liberdade” ao tradicional bordão integralista “Deus, pátria e família”. Tal acréscimo, no entanto, não supera a origem integralista do slogan que, por sua vez, integra uma série de apropriações que faz o bolsonarismo de signos integralistas, fascistas e nazistas (sobre o assunto, assistir “Quem não quer ser comparado a um nazista não se fantasia de nazista”, do Comitê Popular de Cultura do Bixiga, baseado no artigo “Bolsonarismo e Nazismo. Iconografia e Linguagem”, de Jean Goldenbaum. Brazil247, 12/09/2002. https://www.brasil247.com/blog/iconografia-e-linguagem-nazismo-e-bolsonarismo (Consulta: 02/11/2022).
A exposição A Magia do Manuscrito – Coleção de Pedro Corrêa do Lago, em cartaz no Sesc Avenida Paulista,traz ao público brasileiro aproximadamente 180 documentos manuscritos de figuras de destaque da arte, da política, da ciência e da história. São cartas, fotografias assinadas, partituras e bilhetes de personalidades como Juscelino Kubistcheck, Carmen Miranda, Freud e Ronaldo Fenômeno, entre outros grandes nomes.
A curadoria é do próprio colecionador, o economista e ex-diretor da Biblioteca Nacional, Pedro Corrêa do Lago. Seu hábito de colecionar começou quando ainda era pequeno, “como um simples hobby, e o que eu colecionava eram simples assinaturas, que são os chamados autógrafos, mas autógrafo é uma palavra muito mais ampla que significa qualquer coisa escrita na sua própria letra, só que virou sinônimo praticamente de assinatura e não tem mais como mudar isso, então eu uso a palavra manuscrito… na verdade muitas das coisas que estão [na exposição, não são autógrafos], a exemplo de uma página do [Oscar] Niemeyer que não está assinada, mas é muito mais interessante do que uma simples assinatura dele no papel”.
Mesmo depois de 50 anos colecionando, Pedro afirma que sua curiosidade continua muito acesa: “O grande prazer da minha vida foi a aquisição do conhecimento, sob todas as formas. Eu tive a sorte de ter um trabalho que me fazia viajar muito, o fato do meu pai ter me levado nos postos dele como diplomata para viver em outros países quando eu era garoto me ensinou diferentes línguas, culturas e isso abriu muito os horizontes”. A coleção de manuscritos pode ser dividida em seis áreas, a história, a literatura, a música, a ciência, o entretenimento e a arte – “fico fascinado pelas cartas dos pintores, sobretudo quando é uma troca entre um e o outro, o Monet escrevendo pro Manet, por exemplo”. E, na ambição de cobrir todas, a coleção torna-se abrangente e, praticamente, panorâmica de todos esses setores, sobretudo no mundo ocidental e desde 1500, como destaca o colecionador, embora faça a ressalva que “esses documentos são patrimônio da humanidade, estão na minha posse temporária, aprecio muito tê-los, mas eu tenho uma obrigação com relação a eles. A primeira obrigação é conservá-los, a segunda obrigação é divulgá-los” – os documentos da coleção Corrêa do Lago são, não raramente, emprestados a instituições e pesquisadores, seguindo tal mote de compartilhar o conhecimento histórico que eles guardam.
Já em relação à conservação, Pedro observa algo que pode surpreender: “A maior parte desses documentos é mais forte do que a gente imagina; muitos deles estão escritos em papel de trapo que é um papel que era usado até o século XIX, que é muito mais resistente e vai continuar branco daqui a mil anos quando o papel que a gente usa hoje já tiver virado pó”. Ele aponta ainda que os grandes inimigos na conservação de tais documentos são o fogo e a umidade: “Essas peças são conservadas em arquivos à prova de fogo, seu entorno pode queimar a mil graus durante uma hora que o interior [da estrutura] não fica danificado e protege também da água que os bombeiros vão jogar para apagar esse fogo”, e brinca, “[mas] eu nunca testei, graças a Deus”. Quando expostos, no entanto, outro desafio à conservação dessas peças está, na verdade, relacionado ao que está escrito nelas, mais especificamente sua tinta, neste ponto Pedro comenta que “alguns [documentos] vão permanecer iguais, mas a maioria é sensível e pode desbotar, então eu sou muito contrário, por exemplo, a você emoldurar documentos a não ser que você os mantenha em lugares muito protegidos da luz”.
Andy Warhol (1928-1987) | Jean-Michel Basquiat (1960-1988); Josephine Baker (1906-1975; e Touro Sentado (1831-1890). Reprodução Sesc Avenida Paulista.
Entre descobertas e curiosidades históricas, a exposição fornece um olhar sobre a mudança dos costumes e também da sociedade em maior escala. Em meio a tantas cartas de figuras notórias é impossível não refletir sobre a transformação da comunicação nas últimas décadas. “As cartas estão fisicamente desaparecendo, mas a comunicação escrita talvez esteja até mais intensa. É claro através de e-mails, através das mensagens, mas eu tenho a impressão que a minha geração escrevia menos do que a atual”, observa Pedro, “só que a carta era a única opção possível [de comunicação] com uma pessoa distante, foi aliás por isso que os correios se desenvolveram tanto, porque elas eram fundamentais, inclusive para o comércio. Eu confesso que sou de uma geração que ainda escrevia cartas, de vez em quando uma pessoa me apresenta uma carta que escrevi há 40 anos, é uma coisa até engraçada… Isso mudou, realmente, a carta, o correio, a coisa de você escrever a mão e ir pro correio colocar, isso está se perdendo, mas, no fundo, o que não se perde é a mensagem”.
A mensagem, em alguns casos desses manuscritos, pode nunca ter visto a luz do dia antes. Desta forma, elas acabam revelando constantemente, segundo o curador, coisas admiráveis e deploráveis sobre seus autores. “Todas as grandes figuras tem momentos que nós preferimos que não tivessem ocorrido, e elas próprias, muitas vezes, lamentam essas fases… O maior erro é você julgar o que é dito em determinado contexto com a visão de hoje”.
Infelizmente, para A Magia do Manuscrito não foi possível realizar a transcrição completa dessas relíquias, mas parte da coleção foi transcrita quando de sua exposição na Morgan Library & Museum de Nova York, em 2018; embora a seleção de peças seja ligeiramente diferente – considerando sua adaptação e costura para o público brasileiro – o catálogo resultante da mostra de 2018 foi publicado pela editora alemã Taschen, traduzido para o português e pode ser conferido no Sesc Avenida Paulista. Ao comparar as duas ocasiões, Pedro exprime que a oportunidade de apresentar a coleção no Sesc foi “extremamente estimulante”, principalmente no que concerne essa nova seleção, feita junto com a equipe da instituição, para que não faltassem nomes que pudessem tocar mais o público atual, “tudo isso mostra que essa coleção está sempre em movimento, a própria apreciação do que é importante na cultura e na história está mudando constantemente”.
SERVIÇO
A Magia do Manuscrito
Coleção de Pedro Corrêa do Lago Sesc Avenida Paulista – Avenida Paulista, 119 – Arte I (5° andar)
GRÁTIS – Livre
Visitação:
28/9/2022 a 15/1/2023 Terça a sexta, das 10h às 21h30 Sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h30
Em 2020, Jonathas de Andrade fez uma caravana pelo interior de Pernambuco pra itinerar com alguns trabalhos. Nessa viagem, o "Museu do Homem do Nordeste" foi transformado em peça interativa, para que as pessoas construissem os seus museus. Hoje esse projeto deságua na "Caravana Museu do Homem Nordeste", que "enquanto móbile traz esse movimento constante de equilíbrio e desequilíbrio, nesse lugar de uma disputa entre individual e coletivo na configuração dos imaginários", diz Ana Maria Maia. Foto: Christina Rufatto / Pinacoteca São Paulo
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Jonathas de Andrade na Bienal de Veneza. Foto: Ding Musa / Cortesia Fundação Bienal de São Paulo
Jonathas de Andrade, "Educação para adultos". Foto: Christina Rufatto / Pinacoteca São Paulo
Jonathas Andrade, Educação para Adultos, 2010 | foto: Cortesia do artista e da Galeria Vermelho
Vista da exposição "O coração saindo pela boca", de Jonathas de Andrade, no Pavilhão do Brasil na Bienal de Veneza. Foto: Ding Musa/ Fundação Bienal de São Paulo
Um convite para representar o Brasil na Bienal de Veneza, a montagem de uma exposição panorâmica de grande porte na Pinacoteca de São Paulo — uma das mais importantes instituições de arte do País — e os 40 anos completos. Tudo isso, em meio a um Brasil fervilhante de eleições e efemérides históricas. 2022 se apresenta de forma emblemática para Jonathas de Andrade.
Quem visita a Pinacoteca Estação, em São Paulo, tem a oportunidade de conhecer um pouco de seus 15 anos de trajetória artística. O rebote do bote, em cartaz até fevereiro de 2023, reúne 20 das 40 obras produzidas pelo alagoano durante sua carreira, e vai desde seus primeiros trabalhos — Amor e felicidade no casamento (2008) e Recenseamento moral do Recife (2008)— até uma obra inédita, comissionada para a mostra — Decalque Estilhaço (2022), primeiro exercício de autorrepresentação do artista, que sempre se dispôs a mostrar a figura do outro e do coletivo. A expografia, porém, propõe um olhar não cronológico, colocando lado a lado projetos de diferentes períodos, mas que travam entre si diálogos e conflitos. Assim, convida o público a refletir sobre os conceitos, dinâmicas e dispositivos que permeiam essa trajetória artística.
A curadoria de Ana Maria Maia busca, mais do que um enfoque nas obras em si, um olhar para a política das relações que as envolve: “ou seja, o que extrapola as imagens, que por vezes está nos bastidores ou nas sutilezas delas, que diz respeito ao modo dele trabalhar. As abordagens que ele faz, as pessoas com que ele trabalha como colaboradores, como modelos e como fornecedores. Essa espécie de performance oculta, esse jogo de corpos que ocupam certos lugares, para mim é o que existe de mais importante no trabalho do Jonathas”, afirma Maia, que acompanha o artista desde a faculdade de jornalismo, que cursaram juntos no Recife nos anos 2000.
Jonathas de Andrade faz coro: “Olhar pra minha história não é olhar pra história desse autor antigo, que pega a pena e escreve; é uma autoria muito tramada pelo outro”. E completa: “Diante das pautas do hoje, passei a entender que não é falar pelo outro, mas é falar com o outro. Isso que é saboroso, inspirador e desafiador pra mim. É reconhecer a potência da resistência, que é tão múltipla, tão potente, e entender como é que isso de algum jeito me inspira e explicita minhas próprias questões, contradições, privilégios e fragilidades”.
A individual compõe uma programação voltada a revisões históricas na Pinacoteca, ao lado de Ayrson Heráclito: Yorùbáiano, Atos Modernos, Enciclopédia Negra etc. “Achamos que ele era um bom intérprete e um bom aliado nesse gesto de escovar as histórias brasileiras a contrapelo”, diz Ana Maria Maia, atualmente curadora-chefe da instituição. “É um artista com muito fôlego para discutirmos História. Chega trazendo esse aporte de um cara que se arrisca a mexer num vespeiro de narrativas hegemônicas, que são racistas e violentas, que exercem violências de gênero, de raça, de classe.”
À frente, “Museu do Homem do Nordeste”, de Jonathas de Andrade, ao fundo obras de Candido Portinari, Almeida Junior e Paulo Nazareth. Foto: Levi Fanan/Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo
A ambiguidade como palco do mundo
Ao construir um museu dedicado ao homem nordestino, em 2013, Jonathas já dialogava com essa leitura da curadora. Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste retrata 77 trabalhadores da região. Ao fazer referência à instituição criada por Gilberto Freyre em 1979, a obra dá palco às convenções e estereótipos sobre a identidade do nordestino — atrelada à virilidade e ao trabalho braçal —, propõe um olhar às dinâmicas sexistas — ao que faz o uso da palavra ‘homem’ como humanidade, mas, simultaneamente, transforma o trabalho “num museu do homem, do macho e do homoerotismo”, explica Maia — e provoca o público da arte contemporânea a repensar questões de desigualdade social. “Esse trabalho é feito para desestabilizar e constranger, justamente porque é magnético. As imagens são, de fato, muito intensas e problemáticas, falam o quanto a gente não olha para aquelas pessoas”, completa Andrade. A obra, hoje exposta no acervo da Pinacoteca, tem um desdobramento em O rebote do bote: a Caravana Museu do Homem do Nordeste, que estende as reflexões do projeto original a partir da interação com outras pessoas.
Ambas as obras trazem um ponto central do trabalho do alagoano: a ambiguidade. “Assim como a vida, os projetos não precisam ser sobre uma coisa só, são estilhaços de possibilidades e de tensões. São sobre afeto-amor, mas também carregam diferenças, estranhamentos, que são partes das relações humanas”, compartilha. E complementa: “Acredito que é importante que a ambiguidade seja um tempero nos trabalhos, para que as obras possam requisitar de quem vê, do próprio repertório da pessoa, para que ela, então entenda o que vê com amor ou violência, como certo ou errado. Acho que esse meio termo tem um potencial pedagógico e de debate gigante.”
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Em 2020, Jonathas de Andrade fez uma caravana pelo interior de Pernambuco pra itinerar com alguns trabalhos. Nessa viagem, o "Museu do Homem do Nordeste" foi transformado em peça interativa, para que as pessoas construissem os seus museus. Hoje esse projeto deságua na "Caravana Museu do Homem Nordeste", que "enquanto móbile traz esse movimento constante de equilíbrio e desequilíbrio, nesse lugar de uma disputa entre individual e coletivo na configuração dos imaginários", diz Ana Maria Maia. Foto: Christina Rufatto / Pinacoteca São Paulo
Em "O rebote do bote", na Pina Estação, a "Caravana do Museu do Homem do Nordeste" é exposta ao lado de "Batalha de Tejucupapo". Foto: Christina Rufatto / Pinacoteca São Paulo
O rebote do bote explicita ainda mais essa proposta ao que a extrapola para a expografia. Um exemplo é a proximidade entre a Caravana do Museu do Homem do Nordeste e A Batalha de Tejucupapo — obra baseada em um episódio histórico de expulsão dos holandeses por uma comunidade de mulheres na Zona da Mata de Pernambuco, usando seus utensílios domésticos. “É uma história de protagonismo feminino e, até hoje, um conjunto de mulheres que mora nessa cidade encena a batalha, um pouco para deixar vivo esse legado de luta das mulheres da região. A proximidade dos trabalhos tensiona essa narrativa dedicada ao universo masculino”, explica Ana Maria Maia.
Ao propor essas desestabilizações, nas obras e na expografia, o trabalho de Jonathas de Andrade busca expor questões pungentes da realidade brasileira. “Os projetos não têm a intenção de reescrever a história totalmente, mas de revirar ela ao avesso, problematizá-la, dar palco às suas contradições”, diz o artista.
O risco do flerte
Esse olhar para a história tem uma tônica particular: as relações pessoais. A ambiguidade que o artista propõe em suas obras se dá no âmbito dos encontros.
Por um lado, pode-se pensar no contato com o público. “Estou convidando-o a completar e brincar com o que a obra está propondo. É muito saboroso, porque tem uma capoeira aí, é dança e luta ao mesmo tempo. Completar aquilo depende muito do outro, é só a interação que define”, diz o artista. Talvez o maior exemplo nesse sentido seja O peixe, também presente em O rebote do bote. O vídeo mistura documentário e ficção ao retratar pescadores em seu labor diário, mas propondo que eles abracem o peixe até a morte do animal. “Você tem o carinho e a violência”, explica o artista. A depender de quem e como assiste, é possível um efeito distinto do trabalho: “a pessoa pode rejeitar o assunto, bem como ficar completamente inebriado pela paixão que a imagem evoca”.
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Jonathas de Andrade, "O peixe". Foto: Divulgação
Sala "Corpo para jogo", em "O rebote do bote", individual de Jonathas de Andrade na Pina Estação. Foto: Christina Rufatto / Pinacoteca São Paulo
"Abertura de uma casa, como convém" (2009), consiste na maquete destruída de uma casa de repertório modernista tropical em diálogo com fotografias de registro do saqueamento e destruição da mesma casa. O trabalho sugere a destruição como projeto no contexto de hiperespeculação imobiliária na América Latina. Foto: Christina Rufatto / Pinacoteca São Paulo
As relações pessoais também estão presentes na construção dos projetos, ao pensarmos nos corpos que os compõem. Esses encontros carregam suas ambíguidades, trazem uma série de tensões e desconfortos.“No próprio processo de concepção e criação, esses trabalhos trazem mil questões, que é o que me faz de fato crescer. Então não é sobre ser questionado ou não, é sobre como essas estruturas são vivas o suficiente pra me desafiar a me reelaborar, a me confirmar ou reinventar nos processos”, explica o artista.
Questões essas das quais somos lembrados ao andar na exposição da Pinacoteca Estação e ler, numa porta no canto da última sala: “Departamento de ética e culpabilidade”. “Foi muito bonito revisitar o Departamento de ética e culpabilidade, entender que nele tem um processo de aprendizado e o impulso do Jonathas de voltar a tomar seu assento como indivíduo. Isso envolve negociar a aparição da sua própria imagem. Isso envolve entender e cuidar tanto da formulação de trabalhos, quanto da formulação dos seus mecanismos de crédito, de repartição de lucros. Entender a dimensão ética para um artista com visibilidade e que fala dessas feridas coloniais, desde um lugar de homem que nunca se racializou e que sempre teve privilégio socioeconômicos, e também tem a ver com delimitar muito bem o seu lugar como aliado e os seus limites”, diz a curadora Ana Maria Maia.
Para Andrade, a retrospectiva ajuda a compreender como os trabalhos ganham tempo histórico, como a percepção deles vai mudando no passar dos anos, ao que novas discussões sobre o decolonial, o lugar de fala e o olhar antropológico se travam. Assim, os trabalhos parecem ganhar uma nova camada de ambiguidades, ao que dão palco às próprias tensões de seus processos e permitem repensar as dinâmicas do mundo das artes no hoje, criar repertório para esses debates, em especial quando pensamos na relação do artista que retrata o outro e o coletivo.
“O rebote do bote tem a ver com essa dimensão das consequências, do desejo pelo outro, do desejo de abocanhar aquele outro desejo, que é da ordem de um apetite sexual, mas também de aprendizado, de convívio, de revisão histórica”, declara Maia.
“A arte é esse organismo vivo, e eu quero me desafiar a ser esse organismo vivo também. É um desafio gigante, porque a gente cria, mas também reproduz muita coisa. A gente tem consciência e às vezes não tem. Então, o desafio é que a arte me coloque a ser uma célula viva, em transformação o tempo todo”, completa o artista.
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Jonathas de Andrade, "Decalque Estilhaço", 2022. Foto: Christina Rufatto / Pinacoteca São Paulo
"Nó na garganta", mostra um grupo de jovens que trabalham em um zoológico privado performando cenas de interação com cobras. As imagens de tranquilo corpo a corpo entre espécies vai ganhando intensidade narrativa com zooms que agem como botes em diversas partes do corpo. Os cortes cada vez mais ágeis culminam em cenas documentais de desastres ecológicos da natureza, que parecem lembrar da desconexão da humanidade com a natureza. Foto: Reprodução
O artista entra em cena
Com essas questões, chegamos à última sala de O rebote do bote, com a primeira autorrepresentação dessa trajetória, Decalque estilhaço. A obra põe Jonathas de Andrade em foco.
Nascido em Maceió, Alagoas, o jovem cursou anos de Direito em Florianópolis, Santa Catarina. Foi durante a graduação que se envolveu mais intensamente com os movimentos sociais e com temáticas que até hoje traz em seu trabalho. “Entendi um Sul muito intenso socialmente, uma relação muito europeia e conservadora. Foi um momento que me senti muito nordestino, uma experiência que ainda não tinha experimentado sendo um jovem classe média em Maceió. Foi uma hora de tomada de consciência de corpo.” Andrade, então, decide trocar de área, tranca o curso e se matricula na Faculdade de Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco. É nesse momento que conhece Ana Maria Maia – na época também estudante e hoje curadora de sua individual -, passa a fotografar exposições de arte e monta, como trabalho de conclusão de curso, sua primeira exposição individual – Amor e felicidade no casamento.
Na sequência, tem seu portfólio lido pelo curador Eduardo Brandão e é convidado a montar uma exposição no Itaú Cultural, em São Paulo. Através de Moacir dos Anjos e Cristiana Tejo, faz uma exposição no Banco Real do Recife. A partir desses encontros, outros se travam, Andrade viaja pela América do Sul, se une ao coletivo Dois Pontos, participa de sua primeira bienal – do Mercosul – e posteriormente da Bienal de São Paulo, curada por Moacir dos Santos, com assistência de Ana Maria Maia.
Através desses encontros ao longo da vida, cruza saberes e perspectivas. Descobre seus caminhos profissionais no diálogo entre pessoas, linguages artísticas e campos de conhecimento. “Uma série de coisas que podiam ser pra nada, mas que a arte amarrou. Então devo muito a esses encontros, e devo honrar esses encontros”, completa o artista.
Vista da exposição "Desvairar 22", com sarcófago em primeiro plano. Foto: Ricardo Ferreira
“Allah-lá-ô, ô ô ô ô ô ô. Mas que calor ô ô ô ô ô ô. Atravessamos o deserto do Saara. O sol estava quente. Queimou a nossa cara”. É com a famosa marchinha de carnaval que o público tem seu primeiro contato com Desvairar 22, exposição em cartaz no Sesc Pinheiros, em São Paulo. Com curadoria de Marta Mestre, Verônica Stigger e Eduardo Sterzi, a mostra faz um convite à imaginação a partir de quatro marcos de 1922: a Semana de Arte Moderna, o centenário da Independência do Brasil, a primeira transmissão de rádio no País e a descoberta da tumba de Tutancâmon, no Egito.
Mais de 270 itens – entre pinturas, fotografias, livros, excertos literários, vídeos, músicas e um carro alegórico da Grande Rio – nos conduzem pela coletiva, que transita entre fatos e ficção, literal e poético, costurando as efemérides. “Desvairar 22 é um grande convite a colocar a imaginação como um fio condutor dessa relação com o modernismo brasileiro”, diz Verônica Stigger, ao que Eduardo Sterzi dá continuidade: “É em alguma medida invocar a imaginação modernista para se transportar um pouco para aquele tempo”. Stigger completa: “Daí acho também que vem o nome da mostra, é um convite pra que o espectador também desvaire junto conosco esses anos de 1922 e 2022.”
A arte!brasileiros vistou a exposição e conversou com dois de seus curadores, Eduardo Sterzi – escritor, crítico literário e professor de Teoria Literária – e Verônica Stigger – escritora e professora universitária. Confira:
A mostra se organiza em quatro núcleos: Saudades do Egito, Os ossos do mundo, Meios de transporte e Índios errantes. Em Saudades do Egito estão obras de Abdias Nascimento e Tarsila do Amaral (que passou lua de mel no Egito com Oswald de Andrade), projetos “faraônicos” registrados por Marcel Gautherot, fotos de viagem de D. Pedro II ao país africano e um sarcófago original.
A seção Os ossos do mundo é inspirada no livro homônimo de Flávio de Carvalho. Para o modernista, as ruínas e coleções dos museus possibilitam compreender as várias camadas da História, nos ajudando a compreender não apenas o passado, mas o presente e o futuro. “O passado interessa, sobretudo, enquanto imagem a ser ativada no presente. Essa ativação, segundo Flávio, cabe ao ‘arqueólogo malcomportado’, que, ao contrário do ‘bem-comportado’, apreende ‘a força penetrante da elaboração poética’ naquilo que resta: os resíduos, as inscrições, as ruínas”, explica o texto de parede, dando tom ao núcleo.
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Gabriel Haddad e Leonardo Bora, "Exunautas". A instalação, hoje exposta em "Desvairar 22", é parte de um dos carros alegóricos da Grande Rio. Foto: Carol Quintanilha
Gabriel Haddad e Leonardo Bora, "Exunautas". A instalação, hoje exposta em "Desvairar 22", é parte de um dos carros alegóricos da Grande Rio. Foto: Carol Quintanilha
Tarsila do Amaral.
"Bicho-com-triângulo". 1930. Foto: Divulgação
Vista da exposição "Desvairar 22". Foto: Ricardo Ferreira
Meios de transporte, por sua vez, transita entre o real e o poético. “Usamos a noção meios de transporte literal, mas também usamos a ideia no sentido metafórico: como a arte e a poesia são meios de transporte também. Nós entramos nelas e nos transportamos pra outros lugares, pra outros tempos e outras formas de pensar”.
Em Índios errantes, entre diversas variações de Iracema, destacam-se obras de Denilson Baniwa, Anna Maria Maiolino, Carybé, Hélio Oiticica, Lygia Pape e Paulo Nazareth. Sterzi explica que nesta seção, a curadoria buscou “fazer um percurso pelo qual a gente primeiro apresenta essas imagens de povos indígenas tal como figuradas pelos modernistas, mas a gente traz também artistas indígenas. A gente propõe em alguma medida que num determinado momento foi preciso que alguns artistas imaginassem essa presença pra que ela pudesse se fazer efetiva em um país que é racista e excludente. Em alguma medida para que as coisas existam na realidade, é preciso que primeiro elas existam na imaginação. O espaço imaginário abre um espaço político”.
Desvairar 22 fica em cartaz até 15 de janeiro de 2023 no Sesc Pinheiros. As visitas ocorrem de forma gratuita, de terça a sábado, das 10h30 às 20h30; e aos domingos, das 10h30 às 18h.
O pintor fluminense Arjan Martins, em seu ateliê no Rio de Janeiro (s/d). Foto: Pepe Schettino
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O pintor fluminense Arjan Martins, em seu ateliê no Rio de Janeiro (s/d). Foto: Pepe Schettino
O pintor fluminense Arjan Martins, em seu ateliê, no Rio (s/d). Crédito: Divulgação
O recente (e crescente) sucesso de artistas negros no Brasil e no mundo tem levado o pintor Arjan Martins, 62, a uma ponderação. Para ele, a nova geração “ganhou muito dinheiro precocemente”, mas ainda precisa pensar seu projeto artístico e fazer uma reflexão sobre “as grandes galerias, os fortes braços do mercado”. Vencedor do Prêmio PIPA em 2018, objeto de um livro sobre sua trajetória, lançado pela Cobogó, no ano passado, Arjan acumula ainda em seu percurso artístico participações em bienais (São Paulo, Dakar e Mercosul, entre outras), celebra 20 anos de carreira em 2022 – sua primeira individual, em 2002, no Museu da República, é o marco zero – e vem colocando, para si a mesmo, pergunta que faz agora, em entrevista à arte!brasileiros, a seus jovens pares:
“Vocês não gostariam que sua produção migrasse para um colecionismo igualmente negro? E isso levanta outra questão: será que já criamos um colecionismo negro? Temos grandes colecionadores negros no Brasil, colecionando artistas negros?”, indaga. “Vi que minha produção foi muito bem acolhida em Nova York e outros lugares nos EUA. E, para minha surpresa, eu a vi chegando a outras camadas sociais, a afro-americanos, colecionadores. Isso é genial. Quando vamos vislumbrar um afro-colecionismo brasileiro? Isso é quase uma intenção utópica de público alvo para mim.”
Representado desde 2016 por A Gentil Carioca, Arjan está em cartaz na filial paulistana da galeria até sábado (12/11), com obras inéditas, na individual Hemisfério 1. Na capital fluminense, o pintor está presente em três outras exposições: até 22 de janeiro, no Museu de Arte do Rio (MAR), ele é um dos artistas selecionados para a itinerância da 34ª Bienal de São Paulo, com o trabalho Complexo Atlântico (Oceano), que já havia apresentando na própria mostra paulistana, em 2021. Já no Centro Cultural da PGE-RJ, Arjan participa da coletiva Passado Presente: 200 Anos Depois; e no MAM Rio tem uma de suas obras expostas em Atos de Revolta: outros imaginários sobre independência, em cartaz até 26 de fevereiro de 2023.
A partir de 19 de novembro, pela segunda vez, Arjan marcará presença em Inhotim, para onde levou, em maio, sua Instalação de Birutas (2021), no contexto do programa Acervo em Movimento. Desta vez, ele levará a Brumadinho um trabalho de 2019, a ser exibido na Galeria Lago, dentro da exposição Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro, fruto da parceria do instituto mineiro com o Ipeafro. Juntas, as duas instituições vêm pesquisando a obra do artista e ativista Abdias Nascimento.
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Arjan Martins, "Rolê na Quinta" e "Sem Título" (ambas de 2022), presentes na exposição "Hemisfério 1", n'A Gentil Carioca de São Paulo. Foto: Cortesia do artista e de A Gentil Carioca
Arjan Martins, "Complexo Atlântico - Oceano" (2021), itinerância da 34ª Bienal de São Paulo, no Museu de Arte do Rio (MAR). Crédito: Cortesia do artista e de A Gentil Carioca
Arjan Martins, "Sem título" (2020), presente na mostra "Passado Presente: 200 anos depois".
Arjan Martins, "Só vou ao Leblon a negócios" (2016), exposta em "Atos de Revolta", no MAM Rio. Foto: Fabio Souza MAM Rio (1)
Diferentemente de seus jovens pares, Arjan não viu nada acontecer “precocemente”. Nascido em Mesquita, município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Argentino Mauro Martins Manoel fez o ensino básico na Federação Nacional das Associações de Benefícios (Fenaben) e na Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (Febem), atual Fundação Casa. Fosse em casa – criado pela mãe, após perder o pai com apenas 2 anos – ou naquelas instituições, ele não tinha qualquer contato com arte, tampouco se sentia inclinado para o ofício, como costumam relatar muitos de seus colegas.
Arjan começou a trabalhar ainda adolescente. Foi barman, office-boy, assistente de pedreiro. Na passagem para a vida adulta, conta o pintor, ele começou a frequentar, apenas como ouvinte, algumas aulas na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio, que se tornou um “ponto de interesse, de escuta” para ele. Era a segunda metade dos anos 1980 e, em 1990, Arjan iniciou alguns cursos na EAV, agora pagos, com a venda de pães que fabricava em casa.
“Fui parar lá [na EAV] com certa naturalidade, por assim dizer. Quando ainda era viva, minha mãe me apresentou fotografias em que estávamos minha irmã, uma prima e eu, subindo a rampinha do Parque Lage. Eu teria ficado muito feliz se esta imagem pudesse ter sido a capa do livro [Arjan Martins, organizado por Paulo Miyada] publicado em 2021 pela Cobogó, até porque, ela detecta já ali uma convivência com este outro Rio de Janeiro, que é uma cidade multipartida”, conta.
Ainda a propósito do Rio, o pintor se lembra de um amigo, nascido em Marechal Hermes (bairro da Zona Norte carioca), que já vive há alguns anos em Nova York, mas que atravessou o Túnel Rebouças para a Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul, somente aos 17 anos. “Foi ali que ele, como eu no Parque Lage, viu outro Rio de Janeiro. Ele entendeu que havia outro país dentro de uma cidade”, pondera.
As primeiras experiências de Arjan como artista tiveram início em coletivos, “fazendo intervenções na arquitetura de alguns lugares, práticas bem livres com o desenho, como fazer sulcos numa parede”, conta. Ao mesmo, ele passou a visitar exposições com mais frequência.
“Ainda tinha um olhar distanciado, ao mesmo tempo fazia um contato mais pungente com a arte, com as provações que dali surgiam, as fricções. Surgia também aí uma necessidade de, como jovem artista, encontrar um repertório próprio e compartilhá-lo com os pares. Alguns dispositivos recorrentes em minha obra, como uma rosa dos ventos, a simulação dos planisférios e, a partir daí, um mergulho na busca por um Brasil além da história oficial.”
Entre os anos 1990 e o início da década seguinte, participou de coletivas diversas, entre o Rio de Janeiro, sobretudo, e São Paulo. Sua primeira individual, intitulada Desenhos, aconteceu em 2002, no Museu da República. Ainda no Parque Lage, afirma ter ouvido, “de algumas vozes”, que a pintura havia acabado. “Era algo muito duro para um jovem estudante, pesquisador, porque eu não entendia muito bem essa informação. Foi aí que eu quis apostar ainda mais na pintura, eu revalidei a experiência pictórica. É difícil? Ótimo, adoro o difícil. Essas definições são ditaduras provisórias”, diz.
Porém, de alguns professores da EAV – Fernando Cocchiarale, Elizabeth Jobim e Paulo Sérgio Duarte – afirma ter conseguido “uma honrosa atenção sobre sua pesquisa”. Eles incentivaram o artista a fazer uma individual no MAM Rio, ideia abraçada anos depois pelo então curador do museu carioca, Luiz Camillo Osorio. Nascia Américas, realizada em 2014, com curadoria de Duarte, que à época escreveu que o tema da exposição era “o da alteridade, o da solidariedade étnica”. Ali, já apareciam elementos que viriam a ser recorrentes em sua produção, como caravelas, rosas dos ventos e a cartografia, entre outros, alusões a questões caras ao artista, como migração e escravidão.
A propósito de Américas, as experiências que Arjan fizera antes com estruturas anatômicas o ajudaram a “migrar para a representação do corpo negro”. O pintor conta que encontrou, num sebo, fotos em preto e branco, “provavelmente da década de 40, de pessoas anônimas, senhoras numa beira de estrada, vendendo frutas numa bacia”. Ele afirma que aquelas pessoas “muito se assemelhavam a parentes antigos, ancestrais, traziam uma atmosfera boa ao lugar”. E lembra:
“Foi aí que tive um insight de colocar aquelas senhoras nas telas. Pensei que estava a fim de falar daquele corpo, descoberto num antiquário, que não traz a sua identidade, e tampouco a do fotógrafo. Eu aceitei a individualidade deles, o anonimato, e daí começou a surgir a ideia de uma figuração que não é figurada. Não vai para o hiper-realismo, vai tender sempre para uma abstração, a friccionar a experiência da figura. Uma experiência de pintura em que podemos falar de Francis Bacon, Willem de Kooning e outros autores cuja abordagem da figuração é a partir de outro lugar, evita certas convenções”, explica.
Mais recentemente, conta o pintor, ele buscou interpretações distintas sobre a construção do retrato. No ano passado, na mostra Descompasso Atlântico, n’A Gentil Carioca do Rio, ele diz que buscou “passar algo histórico”, nas representações de João Cândido (o Almirante Negro), e de Luiza Mahin, líder da Revolta dos Malês (1835), na Bahia. “Foram obras em que trouxe uma exaltação quase classicista, respeitosa, às duas figuras. Deixando claramente definidos quem eram os personagens”, diz.
Já na exposição Enciclopédia Negra, que aconteceu também em 2021, na Pinacoteca, em São Paulo, Arjan foi convidado para retratar Zumbi dos Palmares. “Mas aí eu abstraí sua figura. Nunca tive de perto um retrato preciso da figura dele. Portanto, isso me deixou um pouco confortável para poder abstrair. Claro que ela pode ser bem entendida ou criar um ruído visual na retina de algumas pessoas, mas estava sinceramente ali uma ideia de desfiguração, em que se reconhece ele, respeitando um ícone histórico.”
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Arjan Martins, "O Triângulo Atlântico Entre Tempos Distópicos", Bienal do Mercosul (2018). Foto: Thiéle Elissa/Cortesia A Gentil Carioca
Arjan Martins, retrato de Zumbi dos Palmares, para a exposição "Enciclopédia Negra" (2021). Obra do acervo da Pinacoteca de São Paulo. Foto: Cortesia do artista e de A Gentil Carioca
Capa de "Arjan Martins" (2020), Organizado por Paulo Miyada, editora Cobogó
Quanto às cartografias, explica o pintor, vieram da necessidade de olhar para o Brasil e entender de que perspectiva ele é visto historicamente. “Eu, quando jovem artista, não via ninguém arriscando esse lugar. Logo vi que iriam transbordar dali muitos problemas, muitas questões. Isso foi naturalmente sendo incorporado em algumas obras, um olhar que não perde contexto histórico, mas, ao mesmo tempo, uma agenda ligada ao presente, que não é o lugar do coitadismo, é outra proposta. O Atlântico ainda está bastante desajustado e complexo, e é uma fonte preciosa de conteúdos para minha prática.”
Com obras presentes nos acervos do MAM Rio e da Pinacoteca, Arjan se prepara agora para participar de mais uma edição da feira Art Basel Miami, nos EUA, onde apresentará a obra Isto aqui é o Capricórnio. Ele afirma que é “interessante” ser um artista ser reconhecido, mas “também quitar seus boletos”. Sente-se um artista já consagrado? “São muitas variáveis que devem ser equacionadas. Meu perfil, acredito, foi o último: preto, hétero, essencialmente pintor. Foi uma múltipla vitória. E, apesar de ser um pintor hétero, meu trabalho está tratando de gênero também, todo o tempo. Embora minha pesquisa, ainda hoje, tente evitar qualquer resquício de sectarismo”, conclui.
Trecho da HQ "Contra Tempo – Uma Viagem de Duzentos Anos", obra produzida pelo Instituto Ciência na Rua. Crédito: Reprodução
A HQ Contra tempo – uma viagem de duzentos anos, uma distopia em forma de quadrinhos, projeto que questiona a visão cristalizada em torno da Independência do Brasil – cujo bicentenário é celebrado neste ano –, acabou tornando-se foco de debate esta semana, quando a Folha de S.Paulo revelou que a distribuição da revista no recém-inaugurado Museu Paulista havia sido desautorizada pelo conselho da instituição. A interdição vai na contramão da estratégia do museu de privilegiar a memória social, problematizando uma visão congelada e oficialista da história. E revela muito de nosso frágil momento político.
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Trecho da HQ "Contra Tempo – Uma Viagem de Duzentos Anos", obra produzida pelo Instituto Ciência na Rua. Crédito: Reprodução
Trecho da HQ "Contra Tempo – Uma Viagem de Duzentos Anos", obra produzida pelo Instituto Ciência na Rua. Crédito: Reprodução
A instituição garante que não houve veto, mas que julgou melhor postergar uma eventual distribuição, vinculando-a a uma estratégia planejada de divulgação. “Pedimos apenas que a sua distribuição ocorresse com mediadores, dentro do contexto de uma ação educativa, para que fosse possível propor um debate sobre as questões apresentadas na obra”, afirma a comunicação do museu. O fato é que a linguagem direta do material assustou. Sobretudo no que se refere aos desenhos, que mostram a personagem principal inserida num cenário sombrio, que tem muito a ver com a realidade do Brasil atual, com referências a ruas renomeadas em homenagem a torturadores, propaganda de armas e à presença massiva de igrejas neopentecostais nas periferias das cidades.
A revista começou a ser idealizada ainda em 2020 pelo instituto Ciência na Rua, projeto de jornalismo sem fins lucrativos, voltado para o público jovem. O intuito era aproveitar a efeméride para oferecer uma narrativa diferente acerca do processo de independência, conta Mariluce Moura, diretora da associação, que tem por objetivo atingir os alunos de escola pública e conseguiu apoio do SBPC para imprimir a história em quadrinhos. Segundo ela, o museu parecia ser um lugar natural de distribuição. Com autoria coletiva de Ana Cardoso, Hyna Crimson, Igor Marques e João Paulo Pimenta, a revista trata de questões importantes, como a participação popular em diversos movimentos emancipatórios, e enfatiza uma visão da independência como um “processo histórico sem heróis”, impulsionada pela luta de brasileiros anônimos.
Excesso de zelo ou receio de retaliação em um período delicado como o atual? Difícil saber. De qualquer forma, a revista segue à disposição dos interessados em sua versão digital e lançamentos do material impresso também vêm sendo planejados Brasil afora, como o que ocorreu no último dia 21, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, com palestra e distribuição do material.