Reprodução da capa da edição de 19/01/2023, do jornal Folha de S.Paulo
Toda foto é política. Não existem imagens ou olhares ingênuos. Existem a imagem histórica, o contexto e o olhar do período.
O debate que tomou conta das redes sociais a respeito da imagem (não a defino fotografia de propósito) de Gabriela Biló, publicada na capa do jornal Folha de S.Paulo já estava há muito tempo para explodir.
A imagem de GabrielaBiló não é a primeira e nem será a última a criar polêmicas. Com isso dito, é importante ressaltar que discordamos frontalmente do ataque que a fotógrafa vem sofrendo nas redes sociais. Este tipo de ofensa é inaceitável, assim como a violência demonstrada.
Devemos refletir, no entanto, sobre o que poderia ter criado tanto impacto na imagem divulgada: o papel do fotojornalismo e sua função na criação de leituras de histórias tem sido deixado de lado. Nenhuma imagem é unívoca ou tem apenas uma interpretação, mas a decodificação de seus códigos depende do momento sócio-histórico vivido.
Se é verdade queo fotojornalismo ou as fotografias jornalísticas foram desde sempre manipuladas (poderíamos ter uma lista de fotografias que falsificaram a história) e que a fotomontagem foi muito usada por artistas e publicadas em revistas, também é verdade que nem tudo que é publicado na mídia é fotojornalismo. Além disso, estas imagens – sem inocentá-las – estavam dentro de um tempo histórico e de uma circulação restrita e não escancaradas e circulantes pelas redes sociais.
O fotojornalismo por mais expressivo que possa ser tem suas normativas, uma delas é a da noticiabilidade, assim como regras éticas que constam da maioria dos manuais de redação – se é que alguém os lê. No fotojornalismo contemporâneo – que se inicia no final dos anos 1990 e é muitas vezes apoiado por editores de fotografia (quando existiam) – esta busca pela “expressividade criativa” foi muitas vezes estimulada como uma nova forma de linguagem; não era. A partir daí essa vertente “criativa” foi se potencializando com a única função de criar discussões e não debates.
Em que momento sócio-histórico se dá a publicação da referida imagem? O de uma eleição conturbada e da tentativa de golpe acontecida no dia 8 de janeiro, além do recrudescimento das fakes news do sentimento de sermos enganados e vilipendiados pelas notícias ou pela falta delas. Ou seja, não há momento mais inadequado. Já em 2017 “fake news” foi eleita a palavra do ano pelos dicionários internacionais e desde lá se tornou vocábulo comum em todas as conversas.
Em contrapartida, nos últimos anos (que coincidem com a pandemia) o fotojornalismo ressurgiu em seu papel fundamental em tentar restabelecer a ordem dos acontecimentos.Por outro lado, encontramos toda uma “geração TikTok” que usa a imagem sem conhecê-la e que de forma paradoxal não consegue interpretá-la, logo a vive de forma literal. É aí que a imagem se torna perigosa.
A estranheza da imagem de Biló está também na legenda que procura explicar – não se sabe para quem – múltipla exposição. Conceitos vazios para a maioria das pessoas. Não se trata aqui de usartécnicas, mas se trata aqui de encaminhar o pensamento para algo que de fato não existiu. Manipularuma fotografia não é usar editores de imagem, é alterar seu sentido. A escolha criativa se dá na gramática que você utiliza para apresentar um fato e não na sua distorção. Todo jornalista – e, sim, o fotojornalista é antes de mais nada um jornalista e não um artista – é sim responsável por aquilo que torna público e não pode se isentar afirmando que cada um interpreta como quer. Não. Existe uma credibilidade intrínseca em quem procura determinada mídia para se informar.
Quando o jornalista se torna personagem da própria notícia que está buscando, se inserindo por meio de vídeos, selfies e gracejos, transformando tudoem memes – que não é humor, mas alienação – estamos caminhando por um terreno um tanto perigoso. Espanta a estética das redes sociais que se impõe de forma leviana sobre todas as áreas do conhecimento sem a devida reflexão.
Falar que jornalismo se tornou entretenimento já está ultrapassado numa sociedade que trata tudo como espetáculo. Esta discussão foi muito falada pela tão citada Susan Sontag, que cria uma divisão entre estético e político, epela escola francesa pós-estruturalista, que desdenha a fotografia documental, jornalística, a ideia de autoria. Aliás a ideia de autoria ou do reconhecimento do autor pressupõe uma responsabilização.
Como afirma a pesquisadora Ariella Azoulay: “A criação ou a imaginação não são o oposto do político”. Existe sim, uma intencionalidade política na imagem divulgada pela Folha de S.Paulo junto a um texto que leva a uma leitura da imagem.
Foi triste o momento da publicação desta imagem, mas quem sabe desta polêmica não possa nascer umbom debate e reflexão de como estamos construindo nossa história a partir do jornalismo e que retornemos a respeitar a verdade factual dos acontecimentos.
Melissa Oliveira, sem título, 2022. Foto: Divulgação/Galeria Nonada
Em novembro do ano passado, o Rio de Janeiro ganhou dois espaços – em Copacabana, na zona Sul da cidade, e na Penha, zona Norte – dedicados a artistas que estão fora do circuito de galerias. A exposição de abertura, que fica em cartaz até 4 de março, reúne 32 artistas, que trabalham com diversos suportes e materiais, e se debruçam sobre temas como racismo, política e gênero. Pertencentes a uma mesma galeria, batizada como Nonada – neologismo usado por Guimarães Rosa em seu clássico Grande Sertão: Veredas –, seus dois endereços, suas dimensões e as das obras foram, em parte, determinantes da divisão dos artistas e de suas criações em cada espaço.
Em Copa, a Nonada ZS abriga, em seus 70 metros quadrados, os trabalhos sob o tema A palavra: prosa, que tem tintas mais sociopolíticas. Na Penha, a seleção da Nonada ZN se chama A palavra: verso e tem caráter mais lírico. Ainda que haja nomes de fora do eixo Rio-São Paulo, uma descentralização pretendida pela galeria, a maioria dos artistas selecionados trabalha nas duas capitais. Duas exceções são Guto Oca, de João Pessoa, na Paraíba, e Guilherme Almeida, de Salvador, Bahia. De todo o grupo, apenas dois já são representados pela Nonada: os cariocas Melissa Oliveira e Miguel Afa.
O projeto da galeria começou a ser gestado no ano passado, pelo goiano Paulo Azeco, nome bastante conhecido do circuito de artes da capital paulista. No início da pandemia, e até motivado por ela, Azeco, que então estava na Fortes D’Aloia & Gabriel, mudou-se para o Rio, passando a trabalhar na Carpintaria, filial carioca da galeria.
Em abril do ano passado, então trabalhando como art advisor, Azeco vendeu quatro obras de Anna Bella Geiger, numa individual da artista na Galeria Danielian. Foi aí que se aproximou dos sócios do espaço, os irmãos Luiz e Ludwig Danielian, a quem levou o projeto da Nonada, de quem também participara João Paulo Balsini, colecionador de arte e advogado com atuação em políticas públicas. Os Danielian aceitaram participar e ainda trouxeram para a empreitada o espaço da Penha, uma fábrica de lingerie desativada, que pertencia à família dos galeristas.
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Miguel Afa, "Levante". 2022. Foto: Ana Paes
Andy Villela, "Coágulo", 2022. Foto: Divulgação/Galeria Nonada
Bruno Lyfe, "Cuidado com quem fecha a janela pra nos falar da paisagem", 2022. Foto: Divulgação/Galeria Nonada
Antes de fecharem a sociedade, no entanto, Azeco recebeu um “convite irrecusável” da Galeria Millan, que o levou de volta a São Paulo. A temporada, no entanto, foi curta, de poucos meses. As tratativas com os Danielian continuaram, ainda que a distância, até baterem o martelo. Juntos, os quatro sócios fizeram a seleção de nomes e trabalhos destas mostras de abertura, com indicações de outros artistas, de curadores e até mesmo a partir de buscas feitas em mídias sociais. Segundo Azeco, o foco da galeria será sempre trabalhar com questões que são urgentes.
“A arte contemporânea que não discute algum desses temas perde um pouco de sua importância. Acho relevante a gente ter essas pautas. Eu sou um homem gay, então, a partir de meu lugar de fala, quero discutir questões ligadas à arte queer. Nesta exposição inaugural, temos quatro artistas transexuais, por exemplo. E, lógico, também temos artistas negros, mas a intenção não é surfar nessa onda mercadológica”, afirma Azeco.
Para Luiz Danielian, a Nonada é um projeto que entende a arte como instrumento político e social, e as duas escolhas das sedes falam um pouco sobre isso. “Copacabana nós entendemos como a grande mistura do Rio de Janeiro. E a Penha foi uma coisa ainda mais natural. Além de ir para perto de onde estão vários artistas, um lugar em que quase não existem iniciativas culturais, a galeria está no térreo da antiga fábrica da minha família”, lembra o galerista. “Então, de certa forma, também faz parte do pensamento da Nonada, essa devolução daquele edifício para o bairro, mas agora com iniciativas culturais”.
Ainda segundo Danielian, a Nonada é a primeira dessas iniciativas a tomar forma, mas eles já têm um planejamento a longo prazo para que outras ações possam transformar a antiga fábrica em um equipamento cultural para a comunidade. “É como se estivéssemos, de uma forma pequenina, devolvendo para o bairro algo em agradecimento por tantos anos ali”, diz.
A programação do restante do ano nos dois endereços da Nonada está quase fechada. Já em meados de março, a galeria de Copa receberá uma individual de Melissa Oliveira, com curadoria de Victor Gorgulho. Em paralelo, o galpão da Penha terá obras de Siwaju Lima, em diálogo com outro artista, um nome ainda por definir pela curadora Clarissa Diniz. Em maio, a Nonada ZN vai receber uma grande coletiva sobre sexualidade, provavelmente com curadoria de Efrain Almeida.
Em agosto, os dois espaços receberão uma individual de Miguel Afa. No mês seguinte, durante a ArtRio, os galeristas vão abrir um novo espaço dentro do galpão da Penha, dedicado a projetos especiais, ocupações por parte de galerias de fora do Rio ou mesmo do Brasil, que acontecerão duas vezes ao ano. Para o fim do ano, está prevista uma individual de André Barion, na Nonada de Copa.
SERVIÇO A palavra: prosa Nonada ZN – Rua Conde de Agrolongo, 677 – Penha
Visitação: quinta e sexta-feira, das 12h às 17h; sábado, das 11h às 15h
A palavra: verso Nonada ZS – Rua Aires Saldanha, 24 – Copacabana
Visitação: terça a sexta-feira, das 11h às 19h; sábado, das 11h às 15h
Há cerca de um ano, ao receber o convite de seu colega professor Telmo Porto para montar uma exposição em sua galeria, a Arte132, em São Paulo, com um recorte de sua coleção, Miguel Chaia partiu de duas condições: como esculturas do próprio acervo da galeria ocupam lugares de destaque no lugar, Chaia decidiu que a tridimensionalidade seria um dos vetores para a seleção, para que houvesse um diálogo, como um site specific; e, visto que o calendário de mostras dos últimos dois anos vinha sendo dominado por questões de raça, gênero, sexualidade e classe, ensejadas pelas efemérides da Semana de 22 e o Bicentenário da Independência, o colecionador preferiu se debruçar sobre a linguagem artística. Era então concebido o escopo de Tridimensional: Entre o sagrado e o estético, a primeira exposição exclusiva de sua coleção, segundo ele, que fica em cartaz até 11 de março, com co-curadoria de Laura Rago e Gustavo Herz.
O que Chaia não esperava, no entanto, era que os recentes acontecimentos em Brasília – dos ataques incendiários na cidade durante a diplomação do então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e de seu vice, Geraldo Alckmin, e o posterior atentado terrorista aos palácios na Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro – iriam encontrar ecos nos trabalhos da nova mostra. A política se manifestava ali, meses após fechada a seleção de 45 peças, de um universo de quase 250 criações tridimensionais.
Segundo Chaia, que é também membro de conselhos do Itaú Cultural, do Instituto de Arte Contemporânea (IAC) e da Bienal de São Paulo, a polissemia que ele explorava no recorte inicial – um contraponto entre o sagrado e o estético na arte contemporânea – passou a revelar também um sentido político, ainda que a posteriori e de modo não intencional. Coordenador e pesquisador do Neamp (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política) da PUC-SP, ele acabara não escapando do tema, abordado em suas aulas na Faculdade de Ciências Sociais da universidade paulistana, e caro, tanto às suas investigações acadêmicas como à própria coleção, desenvolvida há 45 anos ao lado de sua mulher, Vera.
“Há uma politização intensa da arte. A gente até perde um pouco o tesão para usufruir e curtir. Mas existe um imbricamento muito grande entre ambos. Como sou muito fascinado pelo assunto, resolvi fugir um pouco disso. Queria procurar um espaço de reflexão estética e sobre linguagem, mas não teve como evitar. A exposição reflete sobre o sagrado e deságua na política”, afirma Chaia à arte!brasileiros.
Para exemplificar, o colecionador lembra uma discussão que teria sido suscitada pelo artista norte-americano Donald Judd (1928-1994), segundo a qual a arte contemporânea “está entre a pintura e a escultura e que, nesse sentido, não sendo uma coisa nem outra, o objeto cria uma dimensão muito intensa de simbolismo”, diz Chaia. “E nós temos na exposição um trabalho do Nino Cais, que são duas marretas pesadíssimas na parede e, entre elas, há dois cálices, num equilíbrio muito precário. É uma obra que remete à força do poder, da violência, da opressão”.
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Nino Cais, sem título, 2016. Foto: Divulgação
Marcelo Cidade, "Rompedor de limites, 2006. Foto: Everton Ballardin
André Komatsu, "Encalço", 2014. Foto: Everton Ballardin
Deyson Gilbert, sem título, 2013. Foto: Gui Gomes
Chaia cita outros exemplos, como o taco de beisebol de Rompedor de limites, de Marcelo Cidade; a obra Encalço, de André Komatsu, em que estilhaços de vidro aparecem emoldurados por uma estrutura de madeira e madeirite; e uma obra sem título, de Deyson Gilbert, em que quatro telas brancas estão pressionadas por sargentos, instrumentos da marcenaria usados para comprimir madeira.
“Se você olha a exposição após o 8 de janeiro, você vê os vidros quebrados em Brasília. Vê as marretas quebrando vidraças. O taco vandalizando as casas institucionais da Democracia”, argumenta Chaia. “No caso da obra de Deyson, é a própria pressão sobre a arte, o vandalismo contra a arte em Brasília. É a destruição do Di Cavalcanti, de todas obras que foram afetadas durante os ataques”.
A discussão inicialmente proposta, no entanto, permanece lá, predominante e avistada nas obras, de modo sutil e sensível pelo trio de curadores. Em texto crítico de Chaia, presente no catálogo, o trio de curadores estabelece os três pilares conceituais que guiaram seu recorte: “Será possível perceber na arte contemporânea vestígios do sagrado? O que pode haver de comum entre a arte e o sagrado? E, ainda, a arte contemporânea, ao ganhar autonomia, fortalecendo seu significado estritamente estético, abandona o mítico, a religião e a religiosidade na busca da revolução da linguagem?”, indagam.
Chaia conta que ele, ao lado de Laura e Gustavo, procuraram as respostas possíveis nos objetos, e algumas obras foram chave. “Inicialmente, chegamos a uma meia dúzia que consideramos referenciais. Uma delas é Copo de água benta ao lado de copo de água comum, de Deyson Gilbert. Quando você vê esse trabalho, nada permite saber o que é bento, sagrado, e o que não é. Somente quem montou sabe”, explica. “Outro trabalho importante foi um objeto manipulável da Karin Lambrecht, Uma porta para o perdão, feito com tecidos, em que você coloca um bilhetinho, com papéis que estão dispostos ao lado, pedindo perdão a quem você magoou”. A obra, ressalta ele, alude à relação com o outro, “que é o religar da religião”, em sua etimologia.
O colecionador destaca ainda que o trio conseguiu descobrir o sagrado nos trabalhos de Laura Vinci e de Felipe Cohen, por causa do mármore que usam, “um material que, na arte, veio da Grécia Antiga, passa pelo Renascimento, pelo estatuário. Como diz o Cohen, o mármore forjou deusas e deuses”, conta.
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Deyson Gilbert, "Copo com água benta ao lado de copo com água comum, 2010. Foto: Gui Gomes
Karin Lambrecht, "Uma porta para o perdão", 2010. Foto: Everton Ballardin
Laura Vinci, sem título, da série "Brancusas", 2001. Foto: Everton Ballardin
Felipe Cohen, "Copo", 2004. Foto: Everton Ballardin
Felipe Cohen, sem título, 2004. Foto: Edu Marin
Já o trabalho Lola, de Lucia Koch, traz materiais transparentes, que lembram vitrais de uma catedral, sugere Chaia. “Temos ainda um trabalho da Valeska Soares, uma cápsula de vidro que parece um grande bebedouro de passarinho, e ele é preenchido por vinho e veneno. A água, o sangue, o vinho são uma triangulação de elementos que estão presentes em todos os rituais, do candomblé ao catolicismo. O fogo, por sua vez, é outra questão importante, com sua ideia do inferno, e que está no trabalho Cabeças cortadas, de Nicolás Robbio.
Há também duas obras de Tunga que o colecionador considera relevantes no escopo de sua curadoria: o Tacape, feito nos anos 1980, com imãs, que suscitam a discussão da energia que emana daquele material. E ainda os Vasos comunicantes, “uma ideia de vasilhame, que remete a taças de vinho gregas, ou que pode ser o Santo Graal, envolvidos por um tecido marrom, que é meio um Santo Sudário”, sugere.
Tunga, "Tacape", década de 1980. Foto: Everton Ballardin
Tunga, sem título (vasos comunicantes), 1998. Foto: Everton Ballardin
José Resende, sem título, 1974. Foto: Everton Ballardin
Lucia Koch, "Lola", 2013. Foto: Divulgação
Chaia também encontrou repercussões de seu recorte curatorial em dois trabalhos de José Resende: uma sem título, que é uma cruz de ferro invertida, e um tronco de madeira atravessado por ferros, numa alusão às flechas que atingem o corpo do santo em suas representações, sejam pinturas ou esculturas. “O interessante é o que o próprio Resende, com quem falei, afirma não ter pensado nessas questões ao conceber as obras. Os títulos vieram depois, independentes da vontade do artista”, conta Chaia. “Mas os objetos carregam essa potência narrativa”.
SERVIÇO
Tridimensionalidade – Entre o sagrado e o estético Curadoria de Miguel Chaia, Laura Rago e Gustavo Herz
Até 11 de março
Arte132 Galeria – Av. Juriti, 132, Moema, São Paulo – SP Visitação: segunda a sexta-feira, das 14h às 19h; sábados, das 11h às 17h
Entrada gratuita
O artista plástico brasileiro Tunga (1952-2016). Foto: Daniela Paoliello
Nova York recebe a partir deste sábado (13/1) a primeira exposição com obras de Tunga nos Estados Unidos desde a sua morte, em 2016. Vê-nus tem curadoria de Paulo Venancio Filho, que entre o fim de 2021 e o primeiro semestre do ano passado esteve à frente de uma grande retrospectiva do artista, realizada no Itaú Cultural e no Instituto Tomie Ohtake, em parceria com o Instituto Tunga. A mostra em solo norte-americano acontece na Luhring Augustine, galeria que desde 1998 representa o brasileiro, e reúne mais de 60 trabalhos, muitos deles inéditos. A última exposição de Tunga realizada lá aconteceu em 2014.
Segundo Clara Gerchman, co-fundadora e gestora do acervo do Instituto Tunga, criado em 2017, e que tem como diretor Antonio Mourão, filho único do artista, esta é uma grande oportunidade de poder apresentar as obras bidimensionais de Tunga, segundo ela uma etapa muito importante da trajetória do brasileiro, porém pouco vista.
“A mostra traz pontualmente obras escultóricas, mas o grande corpo dela é composto pelas bidimensionais. Como estamos trabalhando com o acervo, que é a fonte primária, temos descoberto inúmeras fases de um conjunto muito diverso. Nossa missão tem sido justamente essa: trabalhar com um material inédito para o público”, explica Clara à arte!brasileiros, adiantando que ainda neste ano será lançado o catálogo raisonné com os trabalhos bidimensionais de Tunga, um projeto iniciado em 2021.
Venancio Filho destaca que o Instituto Tunga fez questão de levar a Nova York a escultura Vê-nus (1976), que empresta seu nome à mostra, e tinha sido vista poucas vezes, uma delas na própria cidade norte-americana; outra, em São Paulo. “É um trabalho importantíssimo na obra dele, e eu construí toda uma situação em torno desse trabalho, com desenhos da mesma época, mesclando ainda criações recentes com outras mais antigas”, explica. Alguns dos desenhos presentes na Luhring Augustine, por exemplo, haviam sido mostrados originalmente na primeira individual de Tunga, realizada em 1974, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio).
O curador conta ainda que, quando foi convidado para conceber a mostra no ano passado, ele pensou em fazer o que seria “uma sala de museu do Tunga”, onde o espectador poderia entender os aspectos fundamentais de sua obra, questões como o corpo, a sexualidade e os fetiches. “É uma exposição que também traz a multiplicidade dos materiais por meio dos quais o Tunga expressou sua imaginação erótica, grande motor de seu processo criativo”, afirma Venancio Filho, que conheceu o artista quando tinha apenas 19 anos de idade.
Como na retrospectiva de 2021-2022, Venancio Filho não se preocupou em estabelecer uma hierarquia tampouco uma cronologia entre as obras apresentadas. “Isso vai contra o espírito da obra do Tunga, que é algo como a fita de Möbius [um símbolo do infinito, criado em 1858 pelo matemático e astrônomo alemão August Ferdinand Möbius], que vai e volta, elementos que aparecem e reaparecem ao longo de sua trajetória”.
Em exibição, estão desde os primeiros desenhos de Tunga, abstratos – “mais gestuais, menos figurativos”, ressalta o curador –, a trabalhos mais emblemáticos do artista, como os Eixos Exógenos, perfis femininos recortados a partir de troncos de madeira, até sua última série de desenhos, From La Voie Humide e as esculturas da série Morfológicas, ambas de 2014. Entre as surpresas prometidas pelo curador estão três desenhos inspirados na obra de Tarsila do Amaral, “pouquíssimo vistos”, “coisas muito raras”, criadas na virada dos anos 1970 para os 1980.
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Tunga, sem título, série "Tarsila como curvas francesas", 1979-1980. Cortesia: Instituto Tunga
Tunga, sem título, série "Tarsila como curvas francesas", 1979-1980. Cortesia: Instituto Tunga
Tunga, sem título, série "Tarsila como curvas francesas", 1979-1980. Cortesia: Instituto Tunga
A escultura Vê-nus, que nomeia a mostra, foi a primeira obra de grande dimensões de Tunga, lembra o curador. Composta de borracha, lâmpada, material elétrico, metal e mosca de plástico, mede 183 x 250 x 93 cm. “Ela tem esse título que revela muito do pensamento erótico dele, num artifício com o nome em que ele separa ‘vê’ de ‘nus’, com um hífen. E, para mim, quando falávamos sobre esse trabalho, eu via uma certa relação com O grande vidro [1915-1923], de Marcel Duchamp, na separação entre a noiva e os seus pretendentes, que Tunga reconfigura. Porque o Tunga é de um período em que o Duchamp começa a influenciar a arte brasileira. Mas, a maioria foi influenciada pela via conceitual, dos ready made, como é o caso de Cildo Meireles. Ao passo que Tunga foi tocado pelo lado surrealista e pelo erotismo de Duchamp”, explica.
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Tunga, "Vê-nus", 1976. Foto: Paulo Schlick/Cortesia: Instituto Tunga
Tunga, sem título, série "La Voie Humide" (2015). Foto: Jaime Acioli/Cortesia: Instituto Tunga
Tunga, sem título, série "La Voie Humide" (2014). Foto: Jaime Acioli/Cortesia: Instituto Tunga
Tunga, sem título, série "La Voie Humide" (2014). Foto: Jaime Acioli/Cortesia: Instituto Tunga
Venancio Filho espera que a exposição, após uma ausência de oito anos das obras de Tunga do cenário norte-americano, e quase quatro, do internacional – em 2019, a galeria Franco Noero, da Itália, realizou uma individual com seus trabalhos – recoloque o brasileiro dentro da importância que ele tem para a arte contemporânea. E que as obras ali apresentadas possam interessar a grandes instituições nos Estados Unidos ou na Europa. Vale lembrar que Tunga já está presente em instituições estrangeiras como o Guggenheim, o Art Institute of Chicago, o Reina Sofía, a Tate e o Pérez Art Museum Miami, entre outras.
Para Roland Augustine, sócio-fundador da galeria ao lado de Lawrence Luhring, Vê-nus marca uma retomada e também um recomeço da representação do artista pela galeria.
“Fizemos cinco exposições individuais de Tunga ao longo dos últimos 25 anos. Mas incluímos suas obras em muitas coletivas durante esse tempo. A última, de 2014, era uma continuidade do trabalho em que ele estava focado à época, com o uso de cristais, de cerâmica etc. Agora, nosso objetivo era mostrar aspectos de sua obra que muitos não conhecem, a saber, seus desenhos, ao lado de esculturas que estão de alguma forma relacionadas a eles”, destaca Augustine, que também representa Lygia Clark nos EUA.
O galerista conheceu Tunga por recomendação do curador francês Marc Pottier, após a 22ª Bienal de São Paulo, de 1994, em que o artista havia apresentado Cadentes lácteos, um conjunto gigantesco de peças de ferro fundido, em forma de sinos, banhadas por uma matéria viscosa e esbranquiçada. À época, Augustine estava ajudando a família de colecionadores Halle, dos EUA, a montar um acervo de obras latino-americanas, e a obra foi adquirida. Em 1997, ela foi emprestada ao museu do Bard College, para uma exposição sobre o artista.
“Aquilo foi um batismo de fogo. Imergir no trabalho de Tunga. E, desde essa minha primeira experiência e exposição ao trabalho dele, sua obra permaneceu sendo um mistério para mim, porque seus trabalhos não são tão acessíveis, devido à sua natureza poética”, conta o galerista. “Quando começamos a mostrar suas criações em Nova York, sabíamos que eram singulares, esotéricas e autênticas. E elas não se tornaram menos, porém mais complexas ao longo do tempo. E nunca houve de fato um mercado comercial para elas”.
Segundo Augustine, no entanto, a recepção crítica sempre foi positiva em Nova York. Tunga era benquisto por curadores, mas não por colecionadores, o que era um pouco frustrante para o artista. No Brasil, as obras de Tunga ainda alcançavam bons valores, diz ele, mas não se chegava à metade dessas cifras nos EUA. No fim dos anos 1990, por exemplo, a galeria vendeu apenas uma obra da série Eixosexógenos, por cerca de US$ 35 mil na Fiac (Foire internationale d’art contemporain), de Paris, valor que o galerista não considera à altura da produção artística do brasileiro.
O galerista compara Tunga a Bruce Nauman, em termos mercadológicos. Nos anos 1960, afirma, somente quem gostava das criações do artista norte-americano eram seus colegas de ofício. Apenas entre o fim dos anos 1970 e o começo da década seguinte, os trabalhos de Nauman teriam começado a ser apreciados e adquiridos por museus. Ele imagina que, para Tunga, sejam necessários mais dez a 15 anos para que sua obra seja assimilada e compreendida em maior grau.
“Há muitos anos eu torço para que um museu nos EUA abrace a ideia de realizar uma retrospectiva de Tunga. Com essa exposição, esperamos que o curador de uma dessas instituições pense: ‘Meu Deus, agora eu entendo por que este homem tem de ser mostrado de uma maneira significativa ao público'”, diz Augustine.
UMA PRIMEIRA IMPRESSÃO
Desde 2019 curadora de arte latino-americana do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), Beverly Adams começou a acompanhar a carreira de Tunga há mais de 25 anos. Em 1998, fez uma exposição solo do artista no Phoenix Art Museum, com desenhos e a escultura Cadentes Lácteos (1994). Beverly esteve já na galeria Luhring Augustine e destaca a qualidade da seleção de obras e a montagem da nova mostra.
“Ela dá ao espectador uma percepção do arco da carreira de Tunga, de muitos de seus temas e de suas inquietações, mas de uma forma bastante sutil e íntima, por meio dos desenhos e das esculturas escolhidas. Eu aprendi muitas coisas novas”, afirma a curadora. “É muito bom ter seu trabalho de volta a Nova York, na galeria que tem sido uma apoiadora fervorosa de Tunga ao longo dos anos, e permitir com que mais pessoas possam aprender a respeito deste grande artista e de seu universo poético, que entrelaça de maneira brilhante ideias e materiais em sua abordagem singular do fazer artístico”.
Beverly ressalta também a presença de duas criações do artista no acervo do MoMA: Ão e Cooking crystals. “São duas instalações-chave de Tunga, uma de 1981 e outra, feita entre 2006 e 2009. É ótimo ter obras de dois períodos tão diferentes da trajetória dele. Suas criações enriquecem nossa crescente coleção de arte brasileira, que está em constante diálogo com outros trabalhos do acervo”, conclui.
A tela "As mulatas", de Di Cavalcanti, uma das obras danificadas na ação terrorista no Palácio do Planalto do domingo (8/1). Foto: Reprodução da internet
Parte significativa do acervo artístico, histórico e arquitetônico do Palácio do Planalto foi vandalizada nesse domingo (8/1) pelos ataques terroristas ocorridos na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Segundo a Secretaria de Comunicação do Planalto, “ainda não é possível ter um levantamento minucioso” de tudo que foi destruído, mas o órgão divulgou algumas das obras danificadas que conseguiu identificar. Destacam-se, entre elas, a tela As mulatas (1962), de Di Cavalcanti, a escultura O flautista (década de 1950), de Bruno Giorgi, e uma escultura de parede de madeira de Frans Krajcberg, dos anos 1970. As três estavam no terceiro do andar do prédio.
A tela de Di Cavacalnti foi rasgada em ao menos sete pontos pelos golpistas. De acordo com o marchand Luiz Danielian, “atualmente uma obra desse porte poderia ser vendida de R$ 15 a 20 milhões”. Entre setembro e outubro do ano passado, ele organizou a exposição Di Cavalcanti – 125 anos, na Danielian Galeria, no Rio de Janeiro. Já a obra de Giorgi, feita de bronze e avaliada em R$ 250 mil, “foi encontrada completamente destruída, com pedaços espalhados pelo salão”, de acordo com a Secom. Estimada em R$ 300 mil, a escultura de Krajcberg, por sua vez, foi quebrada em diversos pontos. A obra foi feita com galhos de madeira, que foram quebrados e espalhados.
Na noite de ontem, Rogério Carvalho, diretor de Curadoria dos Palácios Presidenciais, divulgou um áudio com suas primeiras impressões a respeito dos ataques ao Palácio do Planalto (ouça abaixo). Carvalho ressaltou a contundência do vandalismo que ele presenciou, sobretudo no segundo andar do edifício, “praticamente revirado pelo avesso”. Além dos danos grandes causados à arquitetura, dos vidros, portas e revestimentos aos lambris. “Por sorte, não conseguiram acessar a sala do Presidente”, diz ele.
Carvalho também destacou a destruição de uma peça histórica, um relógio de pêndulo de Balthazar Martinot, do século 17, presente da Corte Francesa para Dom João 6º. Segundo o comunicado da Secom, Martinot era o relojoeiro de Luís 14 e existem apenas dois relógios deste autor. “O outro está exposto no Palácio de Versailles, mas possui a metade do tamanho da peça que foi completamente destruída pelos invasores do Planalto. O valor desta peça é considerado fora de padrão”.
Ainda de acordo com a Secom, no térreo, a obra Bandeira do Brasil (1995), de Jorge Eduardo, que reproduz a bandeira nacional hasteada em frente ao palácio, “foi encontrada boiando sobre a água que inundou todo o andar, após vândalos abrirem os hidrantes ali instalados”. No mesmo pavimento, a galeria dos ex-presidentes foi totalmente destruída, “com todas as fotografias retiradas da parede, jogadas ao chão e quebradas”. Já no segundo andar, o corredor que dá acesso às salas dos ministérios tem “muitos quadros rasurados ou quebrados, especialmente fotografias”.
Nas redes sociais, Margareth Menezes, ministra da Cultura, afirmou que recebeu do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a incumbência de que o MinC, junto ao Iphan, realizem “a avaliação e informação da destruição cometida nos prédios do Palácio do Planalto, Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal e demais espaços tombados”. Há uma reunião marcada para hoje (9/1), às 16h, entre os dois órgãos.
Há boatos, ainda não confirmados, de que a escultura A bailarina, de Victor Brecheret, que estava no prédio da Câmara dos Deputados, teria sido furtada. A obra de bronze polido de Brecheret, originalmente executada para a decoração do Jóquei Clube de São Paulo, segundo o marchand Max Perlingeiro, da Pinakotheke Cultural, vale em torno de R$ 800 mil. Ainda na Câmara, também teria sido danificado o vitral Araguaia, de Marianne Peretti, autora também dos vitrais da catedral de Brasília. Já no prédio do Supremo Tribunal Federal (STF), há rumores de destruição do busto de Ruy Barbosa, de um crucifico e da pichação da escultura A Justiça, de Alfredo Ceschiatti.
Para Rogério Carvalho, em declaração divulgada pela Secom, “o valor do que foi destruído é incalculável por conta da história que ele representa. O conjunto do acervo é a representação de todos os presidentes que representaram o povo brasileiro durante este longo período que começa com JK”.
"Digo e tenho dito", de Anna Maria Maiolino. Ubu Editora, 2022. Foto: Reprodução
Entre biografias de importantes figuras internacionais, livros de autoria de importantes artistas brasileiros e teorias que questionam os olhares hegemônicos sobre a cultura, muitas publicações que envolvem o mundo das artes foram publicadas em 2022. A arte!brasileiros preparou uma lista com 12 livros lançados recentemente que nos provocam a repensar a arte no Brasil e no mundo.
Digo e tenho dito, de Anna Maria Maiolino
Reconhecida por sua produção nas artes visuais, Maiolino sempre teve, ao longo de cinquenta anos de trajetória, uma produção literária. Neste livro, lançado pela Ubu Editora, a artista reúne um corpo inédito de textos em prosa e poemas, que acompanha e tensiona sua produção plástica. Ela narra memórias ambivalentes da família imigrante; o pertencimento ou não pertencimento às várias terras que habitou, o mais íntimo da relação com amigos e amores de longa data, a pura existência, a feminilidade constitutiva de sua visão e experiência de mundo, a passagem indelével do tempo: “Agarro o minuto/ o segundo/ o átimo/ o milésimo do milésimo do instante/ somo-subtraio tempo/ até o fim”. Em sua escrita, aparece a materialidade de sua obra plástica. Nela se podem ler também as marcas que a psicanálise lhe deixou. O traçado do desejo e a busca da linguagem não se esgotam nem na imagem, nem na palavra, mas insistem em se fazer presentes, no caso de Maiolino, como criação artística. Saiba mais sobre Digo e tenho dito.
A água é uma máquina do tempo, de Aline Motta
“A água é uma máquina do tempo”, de Aline Motta. Fósforo Editora, 2022. Foto: Reprodução
Entre palavra e imagem, entre arquivo e fabulação, o livro de Aline Motta reúne diversas linguagens artísticas e reconfigura memórias ao se valer de uma percepção não-linear do tempo. Construindo um mosaico fluido de épocas a partir de documentos históricos, a artista-escritora cruza diversos planos entre si, num percurso que passa pelo luto por sua mãe e vai até o Rio de Janeiro de fins do século 19, através dos fragmentos que reconstroem as vidas de Ambrosina e Michaela, antepassadas da autora. Ao aliar criação e pesquisa, Aline Motta expõe as várias formas de rasura que a herança colonial impõe à nossa história. Na orelha do livro, Ricardo Aleixo escreve: “No afã de dar corpo a esse ‘tentar narrar’ o talvez inenarrável – as lacunas, fendas, dobras, os invisíveis liames, os desvãos da história –, Aline nos oferta uma obra que, em suas palavras, resulta de um processo de criação tão obsessivo e extenuante que bem pode ser definido como uma espécie de possessão”. Saiba mais sobre A água é uma máquina do tempo.
Uma africana no Louvre, de Anne Lafont
“Uma africana no Louvre: o lugar do modelo”, de Anne Lafont. Bazar do Tempo, 2022. Foto: Reprodução
No quadro pintado em 1800 por Marie-Guillemine Benoist, então uma artista parisiense de 38 anos, uma jovem negra exibe uma pose ao mesmo tempo altiva e serena. A maneira como a bela africana é representada procede de uma construção revolucionária, tanto do ponto de vista artístico quanto do histórico. A obra mudaria de nome algumas vezes, acompanhando mudanças de perspectiva da própria história da arte, até que Madeleine, a modelo, aparece como protagonista de uma historiografia renovada pelas questões da África diaspórica na época do tráfico atlântico. Esta é a história que Anne Lafont quer contar: “Exposta no Louvre em 1800, a obra foi objeto de inúmeros comentários publicados em libelos e jornais da época. Logo, ainda seria possível acrescentar mais uma pedra ao seu edifício interpretativo, uma pedra colonial. É o que me proponho a fazer neste livro.” A publicação, recém traduzida para o português pela Bazar do Tempo, ressalta a necessidade de revermos a história a partir de perspectivas de valorização das personagens negras, da reparação e da decolonialidade. Saiba mais sobre Uma africana no Louvre: o lugar do modelo. Em setembro, a tradutora da obra, Ligia Fonseca Ferreira, falou sobre o assunto no Seminário Cultura Democracia e Reparação, confira.
O futuro do museu: 28 diálogos, de André Szántó
“O futuro dos museus”, de André Szántó. Cobogó, 2022. Foto: Reprodução
Qual o papel dos museus nos dias de hoje? Em um mundo em que a desigualdade se aprofunda, em meio a crises políticas e ambientais, como combinar novas abordagens de curadoria, engajamento de público, tecnologia, inclusão e aprendizagem para expandir o papel da arte e da cultura na sociedade? Para entender os caminhos possíveis para essas respostas András Szántó, escritor e editor baseado em Nova York, entrevistou 28 curadores e diretores de alguns dos mais importantes museus de todos os continentes. O resultado é um livro que mostra uma paisagem museológica em transformação e aponta, de diversas formas, que os museus precisam se reinventar constantemente para, alargando a escuta e incorporando as diferenças, reafirmar o papel transformador da arte. Os museus devem existir tanto como lugares de guarda de patrimônio quanto de experimentação na arte e na sociedade – espaços públicos e plurais dedicados ao diálogo de perspectivas autônomas. Saiba mais sobre O futuro do museu.
Aberto pela aduana, de Eustáquio Neves
“Aberto pela aduana”, de Eustáquio Neves. Origem Editora, 2022. Foto: Reprodução
Produzido a partir da manipulação de materiais de arquivo, desenhos, colagens entre outras técnicas, o novo livro da editora Origem retoma a trajetória do fotógrafo Eustáquio Neves – artista mineiro, descendente de pessoas negras escravizadas, que em seu trabalho traz uma história de diásporas e resistências. A publicação nasceu de seu livro de artista que leva o mesmo nome, que faz parte do acervo do Museu Afro Brasil. “Apesar de ter uma estrutura geral semelhante a um livro, a obra é na verdade um objeto de arte que fala por si próprio. Segundo Eustáquio, o nome Aberto pela Aduana foi escolhido para estimular a discussão entorno das múltiplas violações do corpo negro, desde o tráfego negreiro aos dias atuais”, destaca o texto de apresentação. E completa: “Aduana, vale lembrar, é o nome dado a repartição governamental de controle do movimento de entradas (importações) e saídas (exportações) de mercadorias para o exterior ou dele provenientes. E é justamente neste ponto que as relações envolvendo a objetificação de milhares de corpos negros durante o tráfico atlântico e, na contemporaneidade, com os estratosféricos números de mortes por causas violentas de jovens negros em todo o território nacional, são traçadas.” Saiba mais sobre Aberto pela aduana.
“Arte Indígena no Brasil”, de Naine Terena. Editora Oráculo, 2022. Foto: Reprodução
Arte indígena no Brasil, de Naine Terena
A partir de passagens vividas e escutadas pelo mundo afora, a artista, professora e curadora Naine Terena escreve seu novo livro. Como explica a autora, a publicação não procura listar importantes nomes da cena artística, mas “convidar para tomar um cafezinho e falar de arte indígena e cotidiano […] sem pretensão de ser um referencial, mas apenas uma compilação de pensamentos compartilhados. Este texto nasce do anseio de responder alguns questionamentos que as pessoas me fazem, quando falar de arte indígena parece se tornar um imbróglio. Para isso trago algumas ‘imagens’ mentais como chaves interessantes para se pensar as atuações dos sujeitos locais e globais”. Assim, caminha pelas ideias de midiatização, apagamento das culturas indígenas, ritos de passagem e nos convida a refletir sobre as relações arte e artefato, artista e artesão, cânones artísticos e outras estruturas de saber. A publicação foi produzida pela Oráculo Comunicação, Educação e Cultura, criada em 2012 por Naine Terena com o objetivo de ser um empreendimento gerador de oportunidades e compromisso com temas que impactam na sociedade. O e-book está disponível de forma gratuita, clique aqui para baixar Arte indígena no Brasil: midiatização, apagamentos e ritos de passagem.
Poética do teatro-folia, de Larissa de Oliveira Neves
“Poética do teatro-folia”, de Larissa de Oliveira Neves. Editora Unicamp, 2022. Foto: Reprodução
O que há em comum entre uma peça escrita por Martins Pena em 1842 e uma escrita por Luís Alberto de Abreu mais de um século e meio depois, em 2010? Além de serem dois dramaturgos brasileiros, ambos observaram e projetaram a espetacularidade da Folia de Reis em suas obras. “Tal percepção criativa, a de conjugar performatividades populares com escrita teatral, tem sido utilizada por autores brasileiros desde que peças começaram a ser redigidas no Brasil”, destaca Larissa de Oliveira Neves. Em seu novo livro, a pesquisadora professora do Departamento de Artes Cênicas da Unicamp discorre sobre a poética do teatro-folia, trazendo à luz a possibilidade de pensar em tais formalidades cênicas enquanto uma poética brasileira. “Trata-se da primeira poética que observa as particularidades da escritura cênica nacional a partir de um parâmetro que se desvencilha de conceitos estrangeiros e demonstra como uma série de peças ganham um novo patamar estético quando analisadas por essa nova ótica”, destaca a descrição da editora Unicamp. Saiba mais sobre Poética do teatro-folia.
Macacos, de Clayton Nascimento
“Macacos”, de Clayton Nascimento. Cobogó, 2022. Foto: Reprodução
A editora Cobogó lançou MACACOS: Monólogo em 9 episódios e 1 ato, de Clayton Nascimento. O livro consiste na dramaturgia da peça, apontada como uma das melhores do ano pela Folha de S.Paulo e vencedora de diversos prêmios. A partir de episódios de racismo, a encenação aborda o preconceito contra os povos pretos a partir do relato de um homem que busca respostas para o racismo que rodeia seu cotidiano e a história de sua comunidade. Num fluxo de pensamentos, desabafos e elucidações, a peça traz cenas pautadas na história brasileira, como também em situações vividas por grandes artistas negros: Elza Soares, Machado de Assis e Bessie Smith, até alcançar relatos e estatísticas de jovens negros presos e executados pela polícia militar no Brasil de ontem e de 2022. “A dramaturgia deste trabalho parte da autoficção para estruturar uma narrativa com elementos épicos organizados cenicamente pela figura de um narrador potente, que atravessa tempos, viajando pela parte oculta, perversa, nada heroica da história”, analisa a dramaturga Dione Carlos no prefácio. Saiba mais sobre Macacos.
“Abdias Nascimento: um artista panamefricano”, organizado por Adriano Pedrosa e Aman Carnero. Masp, 2022. Foto: Reprodução
Abdias Nascimento: um artista panamefricano
Organizado por Adriano Pedrosa e Amanda Carneiro, este é o maior livro dedicado à produção artística de Abdias Nascimento – figura fundamental para a vida política e cultural brasileira recente e reconhecida por sua luta em torno da igualdade racial – abrangendo a fase mais prolífica do artista, de 1968 a 1998, e acompanha a exposição do mesmo nome no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand: Abdias Nascimento: um artista panamefricano. O título remete, por um lado, ao pan-africanismo, e, por outro, à expressão “ladino-amefricano”, cunhada pela antropóloga brasileira Lélia Gonzalez (1935-1994) para se referir à cultura negra na América Latina. Ricamente ilustrada, a publicação inclui seis textos especialmente escritos para ocasião e dois textos históricos, reproduzindo 102 pinturas e desenhos, bem como cartazes, documentos e fotos. Trata-se de um livro indispensável para aqueles que desejam conhecer e se aprofundar sobre a excepcional produção artística de Abdias Nascimento e para os interessados na interlocução entre política e cultura visual de movimentos negros, afro-brasileira e da diáspora africana. Saiba mais sobre Abdias Nascimento: um artista panamefricano.
“Pier Paolo Pasolini”, de Maria Betânia Amoroso. Editora Nós, 2022. Foto: Cortesia Editora Nós
Pier Paolo Pasolini, de Maria Betânia Amoroso
O livro é uma coletânea de textos de Maria Betânia Amoroso, pesquisadora que há décadas se debruça sobre o trabalho de Pasolini, artista frequentemente lembrado como cineasta, mas que também foi poeta, romancista, dramaturgo, jornalista, editor, tradutor, pintor e crítico de arte. O texto inicial da coletânea centra-se na vida e obra de Pasolini, relacionando-as com o esforço de atualização da Itália em relação ao capitalismo avançado. Já nos textos subsequentes, a autora concentra-se nos escritos dele. A abordagem caracteriza-se pela articulação sóbria entre vida, obra e história. Para os leitores brasileiros, o livro traz interesse especial: além de destacar um poema sobre o Brasil, também nos apresenta como foi a recepção e a interpretação dos seus livros por aqui, mostrando-nos em quais aspectos é pertinente relacionar centro e periferia do capitalismo, no que concerne à obra de Pasolini. Saiba mais sobre o livro Pier Paolo Pasolini, publicado pela editora Nós, e leia a matéria de Miguel Groisman sobre o centenário do artista.
Lembranças de familiares, com descrições das histórias dos imigrantes italianos e espanhóis que chegavam a São Paulo no final do século 20 e se empenharam pela sobrevivência, criação dos filhos e integração na nova cidade, abrem a autobiografia de Raphael Galvez. O livro oferece um relato detalhado da formação do artista na Escola Profissional e no Liceu de Artes e Ofícios, com foco especial na aprendizagem das técnicas de escultura. Por meio destas memórias se encontram informações sobre o ensino artístico mais tradicional em São Paulo, na primeira metade do século 20, seus métodos e seus mestres predominantemente de origem italiana e apegados ao legado clássico. Dá conta de sua atividade profissional de arte funerária e monumentos, e narra também os intervalos prazerosos com companheiros nos vários ateliês que frequentou e nas incursões a recantos bucólicos para pintar. Evoca lembranças de diversas épocas, desde os encontros com Tarsila, Ramos de Azevedo e Enrico Vio, na juventude, passando pela convivência com os colegas no Sindicato dos Artistas Plásticos e do Grupo Santa Helena, até a convivência, na maturidade, com jovens que dele se aproximaram. Saiba mais sobre a autobiografia de Raphael Galvez clicando aqui e leia a coluna de Tadeu Chiarelli sobre o livro.
“Jair Glass – Introdução a escombros”, de Olivio Tavares Araújo, 2022. Foto: Reprodução
Jair Glass – Introdução a escombros, de Olivio Tavares Araújo
O livro resgata e registra a obra de Jair Glass que, por mais de cinco décadas, vem se dedicando à exploração do desenho, com a criação de um universo e imagética de extrema originalidade. Além de conter texto crítico sobre sua produção, apresenta uma criteriosa seleção de obras e um depoimento do artista sobre sua história. Curador, colecionador, jornalista e crítico de arte, Olívio Tavares de Araújo perpassa importantes momentos da história da arte ocidental, com menção a filósofos, músicos e pensadores que se debruçaram sobre o assunto, para construir um caminho contundente que nos leva ao trabalho de Glass no campo da arte Fantástica. Neste passeio por momentos-chave das artes, o autor menciona técnicas e mestres fundamentais tais como Rembrandt, Van Gogh e Beethoven a Picasso; objeta a mitificação dos artistas e a materialização das artes pelo poder do mercado, para então sobressaltar a singularidade de Glass – tanto em termos do seu conjunto artístico, quanto na forma de ser e estar no mundo, mencionando inclusive sua timidez social. Saiba mais sobre Jair Glass – Introdução a escombros.
Em cartaz até o dia 2 de abril, no Sesc Pompeia, a exposição A parábola do progresso parte de três marcos históricos brasileiros – o Bicentenário do Sete de Setembro (1822), os 100 anos da Semana de Arte de Moderna de São Paulo (1922) e o 40º aniversário da unidade Pompeia – para discutir os ideários de modernidade e independência do Brasil.
A mostra começou a ser concebida no primeiro semestre de 2021, por sua coordenadora curatorial, a crítica Lisette Lagnado, em parceria com a professora Mirtes Marins de Oliveira, mestre e doutora em Educação: História, Política e Sociedade, pela PUC-SP, que, posteriormente, saiu do projeto, por incompatibilidade de agenda. Inicialmente, o foco era mais restrito, buscava refletir sobre “como a Semana de 22 inside sobre os temas contemporâneos”, explica Lisette.
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Vista da exposição "A parábola do progresso", em cartaz no Sesc Pompeia. Foto: Rana Tosto
Emilia Estrada, "El interior es un invento de las orillas" [O interior é uma invenção das beiras], 2022, na exposição "A parábola do progresso". Foto: Rana Tosto
Ani Ganzala, Odoyá, 2016. Foto: Cláudio Colavolpe
Márcio Vasconcelos, série "Juradas de morte", 2018
Em novembro de 2021, com o retorno de Lisette da Alemanha – onde atuou na equipe curatorial da 11ª Bienal de Berlim (2020) – para São Paulo, juntaram-se a ela dois curadores associados: Yudi Rafael e André Pitol. Com eles, a reflexão se ampliou, abarcando a efeméride do Bicentenário. Para Lisette, falar de modernidade implica falar em colonialidade. O que levou o trio de curadores a convidar “agentes coletivos para pensar aquilo que o moderno e a colonização implodiram, que são as vidas, as existências em comunidades”, explica Lisette.
Após uma pesquisa de campo, Lisette, Yudi e André reuniram o que denominam de “cinco espaços dialógicos”: o Acervo da Laje (do subúrbio ferroviário de Salvador, na Bahia), a Aldeia Kalipety (da cidade de São Paulo), a Casa do Povo (também da capital paulista), o Quilombo Santa Rosa dos Pretos (de Itapecuru Mirim, no Maranhão), e o Savvy Contemporary – the Laboratory of form-ideas (de Berlim, na Alemanha).
Os cinco territórios coletivos de A parábola do progresso alinhavam a produção cultural a uma perspectiva de cuidados e hospitalidade em relação às comunidades em seus entornos. Na exposição, esses projetos dialogam, por sua vez, com a proposta de “cidadela” concebida por Lina Bo Bardi (1914-1992) na arquitetura do Sesc Pompeia, “um espaço de convivialidade por excelência”, ressalta a curadora.
Questões de raça, gênero e classe são trazidas à tona pela equipe curatorial, ao confrontar obras de Tarsila do Amaral, Emiliano di Cavalcanti, Cândido Portinari, Vicente do Rego Monteiro, Lasar Segall e Anita Malfatti com a produção de artistas contemporâneos, como Ani Ganzala, Alice Yura, Barbara Marcel, Emilia Estrada e Márcia Falcão, entre outros.
A arte!brasileiros visitou a exposição e conversou com Lisette, Yudi Rafael e André Pitol. Confira:
Leia também a crítica de Maria Hirszman clicando aqui.
SERVIÇO
A parábola do progresso Curadoria: Lisette Lagnado; curadores associados: André Pitol e Yudi Rafael Até 2 de abril de 2023 Área de convivência do Sesc Pompeia – R. Clélia, 93 – São Paulo (SP)
Horários: terça a sábado, das 10h às 21h; domingos e feriados, das 10h às 18h
Visitação gratuita
Marcio Tavares, futuro secretário executivo do Ministério da Cultura. Foto: Reprodução/Página oficial do Partido dos Trabalhadores (PT)
Recém-confirmado no cargo de secretário executivo do futuro Ministério da Cultura, o historiador Marcio Tavares tem atuado em duas frentes para reverter a paralisia no setor imposta pela presidência de Jair Bolsonaro: uma administrativa, outra política. Na questão administrativa, está o desafio de se recriar, logo no primeiro dia do governo Lula, a estrutura do Ministério da Cultura. Em conversa exclusiva com a arte!brasileiros, Tavares adiantou que o corpo institucional a ser criado virá com diversas secretarias novas em relação à antiga estrutura. Uma das áreas será a das culturas populares, que ganhará destaque no novo MinC, agora com o status de diretoria. “Além de resgatar aquilo que já era objeto de atenção do ministério, teremos também uma área específica para tratar de transversalidade de gênero, com uma diretoria de Cidadania e Diversidade, entre outras novidades”.
No ato de reestruturação administrativa, um dos grandes desafios será o equacionamento dos recursos – a área da cultura, atualmente, abriga-se sob o guarda-chuva do Ministério do Turismo. Tavares não crê que isso seja um grande problema. “O orçamento atenta para as funções constitucionais, e a cultura é uma delas. O orçamento não é criado por ministérios, mas pelas chamadas funções constitucionais. Portanto, o Ministério da Cultura terá o seu orçamento composto pelo que está definido na função cultura, e certamente terá de ser aditivado, aumentado, porque o que o governo que está de saída deixou para o setor é extremamente baixo”, ponderou.
No campo político, a Lei Paulo Gustavo foi eleita a maior prioridade. Marcio e a futura ministra Margareth Menezes estiveram na terça-feira no Congresso para instar os parlamentares a liberar os recursos congelados pelo governo Bolsonaro. No início da tarde desta quinta-feira, 22/12, as conversas surtiram efeito: o Congresso Nacional liberou os R$ 3,8 bilhões previstos na lei, e o dinheiro já estará à disposição dos artistas a partir de janeiro de 2023. Será a maior injeção de recursos diretos que a cultura terá desde a criação de uma pasta federal destinada ao setor. “Isso vai abrir um espaço fiscal para o trabalho da cultura”, afirma.
Marcio Tavares abordou também os primeiros ruídos de comunicação que já rondam o ministério em formação, como uma suposta crise na sua nomeação como Secretário Executivo do novo Ministério da Cultura – noticiou-se que o nome de Zulu Araújo era ventilado também, mas foi preterido por Tavares ter ele a preferência de Janja, mulher do presidente Lula. “Nunca esteve posta essa intriga entre nós. A situação aqui é muito tranquila, uma relação de parceria, de amizade. A gente lamenta (as abordagens do tipo), mas estamos nos ocupando da reconstrução. A gente sabe o impacto que foi ter uma gestão cultural marcada pela ação da extrema direita, e nosso objetivo é fazer andar, é deixar tudo muito bem equacionado. Nossa meta é dar provimento a tudo que está negligenciado por paralisia de iniciativa política ou incompetência. Por isso, além do ‘revogaço’ que está sendo pedido ao presidente Lula, estamos prevendo aqui um ‘despachaço’, para fazer andar, dar segurança aos projetos e aos produtores culturais, sair da paralisia”.
Uma outra frente de ação do novo MinC será uma grande auditoria das ações da secretaria de cultura que se despede em janeiro, que conseguiu causar grandes abalos na estrutura republicana de gestão de recursos públicos. Segundo Marcio Tavares, será feito um pente-fino na atuação do período bolsonarista e “todo indício de malversação será encaminhado ao Ministério Público para investigação”, afirmou. A morosidade deliberada no exame e aprovação de propostas culturais para fomento da Lei Rouanet receberá atenção prioritária em janeiro, com o fim de “proteger as instituições culturais que dependem desses recursos” na formulação de seu planejamento anual.
Margareth Menezes também teve questionadas as contas da ONG na Bahia com a qual ela colabora como um tipo de madrinha. A associação foi condenada a devolver recursos ao Tribunal de Contas da União (TCU) em 2020, mas a responsabilidade jurídica não é da artista, não implicando qualquer impedimento para seu trabalho futuro. Ainda assim, o barulho foi grande. “Infelizmente, sabemos que o racismo, a misoginia, tudo isso tem um impacto grande ainda na forma como se aborda a gestão pública, mas estamos muito tranquilos”, afirmou Tavares. Margareth, inclusive, pretende cantar na Festa da Posse, já popularmente chamada de Lulapalooza, na Esplanada dos Ministérios, no próximo dia 1º. Ela tinha sido escalada para o show da posse antes mesmo de ser convidada para o cargo.
A nova direção do MinC informou que ainda não definiu os nomes de quem vai presidir as entidades vinculadas ao ministério, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), a Fundação Nacional de Artes (Funarte) e a Biblioteca Nacional, entre outros.
A liberação dos recursos da Lei Paulo Gustavo projeta um início fora de série para o setor cultural do novo governo, após passar um período de perdas progressivas de recursos e pessoal – segundo o relatório final do grupo de transição governamental, divulgado também nesta quinta-feira, desde 2016 houve uma perda progressiva de recursos da ordem de 85% no orçamento da administração direta e 38%, na indireta. O Fundo Nacional de Cultura (FNC) teve uma redução de 91% em seus recursos no período.
Retrato de Raphael Galvez, no ateliê da Rua Lopes de Oliveira, na década de 1980. Foto: Divulgação
Neste ano em que se comemora o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, com a exceção de dois ou três títulos a ela referentes, um dos principais lançamentos bibliográficos no âmbito da história da arte em São Paulo foi Raphael Galvez: autobiografia. Com organização do estudioso José Armando Pereira da Silva e projeto editorial do empresário e colecionador Orandi Momesso, o livro reapresenta o ambiente artístico de São Paulo de início e meados do século passado a partir de um ponto de vista peculiar: o texto de Galvez – um petit maître da escultura e da pintura.
Autobiografias de artistas brasileiros são artigos raros. Um arrolamento que excetuasse apontamentos para futuros escritos (nunca concretizados), não iria muito além dos nomes de Antônio Parreiras, Carlos Oswald, Emiliano Di Cavalcanti e José Antônio da Silva[1]. Apenas por esta excepcionalidade já me parece evidente a importância do lançamento do texto de Galvez. Mas ela não para por aqui.
Como todas as outras obras do gênero, esta autobiografia projeta um personagem idealizado (o próprio autor), configurando-se, assim, como uma espécie de exercício de autoficção. Acima das cenas rememoradas e descritas pelo artista paira a imagem de um indivíduo incorruptível, ingênuo, puro. Alguém que apenas, sem desejar, fornece algumas pistas de que sua vida não foi tão linear e destituída de erros ou arrependimentos.
Uma dessas pistas se torna visível quando Galvez, já nos últimos parágrafos, escreve:
Espero realmente que haja reencarnação para podermos tirar as diferenças das coisas que não foram realizadas nesta primeira vida.
E, se isso for verdade, gastarei a nova vida com muito mais controle e com mais realizações, pois o que ficam são as obras…[2]
***
A idealização do eu do artista – “desvio inevitável” em todas as autobiografias –, não lhe retira, porém, um componente fundamental: dentro dos limites que esse gênero de escrita impõe (refiro-me a todos os recalques e à autocensura), Galvez não deixa de ser – ou de procurar ser – um intérprete meticuloso de sua vida, de sua carreira, de seus amigos e conhecidos e, igualmente, de sua cidade. São Paulo é uma das principais personagens do livro de Galvez.
***
No texto que introduz a publicação, o Professor José de Souza Martins traça o perfil do artista, sublinhando uma de suas peculiaridades: de origem humilde, imigrante, Galvez era um trabalhador e, em sua produção, arte e artesania se uniam, não havendo desconexão entre o artista e o artesão que nele conviviam. Segundo as palavras de Martins:
Galvez é o ser de uma classe social em que as pessoas não têm biografia senão pelas mediações, o que é diferente do que acontece nas classes sociais egoístas, em que as pessoas são autoras de si mesmas. Essa característica de sua história pessoal tem muito a ver com sua obra, expressão do vivencial e da alteridade.[3]
Mais adiante, em seu esforço em singularizar o escultor/pintor no contexto da arte de São Paulo, o Professor demonstra as diferenças entre os horizontes dos modernistas de 1922 e aquele de Galvez:
Outras diferenças dão sentido a esta autobiografia. A sociedade paulista tinha para os modernistas o tamanho do mundo: começava numa fazenda do interior de São Paulo e terminava em Paris, na Rússia, na Inglaterra. Já a sociedade de Galvez, e dos artistas do Grupo Santa Helena, era paulistana, começava na Barra Funda e ia até o Canindé, a Freguesia do Ó, Santana, a Várzea do Tietê, o bairro do Limão, a Casa Verde, o Pari e, bem mais longe, Santo Amaro, no outro extremo da cidade.[4]
Este é mais um motivo para a leitura de Autobiografia. Por meio dela, é interessante poder pensar como sua experiência se desenvolve fora dos grandes teatros e cafés e dos salões da “aristô” paulistana. Esta peculiaridade traz ao leitor uma São Paulo talvez menos glamourizada, é verdade, mas, certamente, muito mais humana.
Como também sugere Martins, a cidade é outra personagem do texto, é a circunstância do artista, o espaço real e afetivo em que ele, seus amigos, conhecidos e parentes se moveram. Uma cidade entre o passado de província do qual queria se libertar, e seu devir de metrópole; São Paulo como limite infinito do Galvez.
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Durante todo o texto, o escultor/pintor escreve sobre alguns dos principais estabelecimentos de ensino de arte na cidade, sobre o ambiente das marmorarias que vicejavam ao redor dos principais cemitérios de São Paulo, sobre os ateliês coletivos de então (o Grupo Santa Helena), assim como sobre o universo de exposições e salões de arte. Denomina a ruas, avenidas e os parques por onde passou, por onde ele e seus amigos moraram, trabalharam, circularam e se perderam e se encontraram.
Galvez também se preocupou em redigir pequenas crônicas sobre algumas personalidades. Em sua maioria, esses pequenos relatos trazem dados importantes, e talvez esta resenha se alongasse demais se fosse tocar em todos os assuntos ali tocados. Assim, dedico-me à reflexão sobre dois relatos esboçados por Galvez, o que, espero, possa despertar ainda mais o interesse dos leitores. Optei por comentar o que o artista escreveu sobre o escultor Nicola Rollo e da pintora Tarsila do Amaral.
***
Nicola Rollo, apesar de ter sido uma das principais figuras na vida de Galvez (ou justamente por esse motivo) não recebeu uma crônica específica no capítulo Personalidades e amigos, que congrega todos os perfis traçados por ele. A presença do escultor, no entanto, perpassa grande parte texto, porque Rollo serviu como uma referência para Galvez, não limitada à sua primeira formação.
Os vários momentos em que Galvez citou Rollo também valem a leitura de suas memórias porque trazem uma quantidade considerável de dados sobre o artista nascido na Itália, com presença significativa no ambiente de São Paulo, mas ainda praticamente desconhecido do público.
Retrato de Nicola Rollo em sua juventude, na década de 1920. Foto: Reprodução
As informações a respeito de um importante projeto escultórico de Nicola Rollo – a maquete de um monumento em homenagem aos bandeirantes, a ser colocado nas encostas do jardim em frente ao Museu Paulista – é mais um elemento a marcar o interesse da Autobiografia de Galvez.
Com certeza, todos os (prováveis) leitores dessas Conversa de Bar(r) estão cientes do quanto me interessam os aspectos que envolveram o debate sobre a identidade paulistana que, num primeiro momento, culminaria com a construção do Monumento às Bandeiras, de autoria do escultor ítalo-brasileiro Victor Brecheret, em meados dos anos 1930[5]. Assim, antes de comentar algumas peculiaridades dos hábitos de Nicola Rollo reveladas por Galvez, proponho uma pequena digressão para trazer para o debate sobre o Monumento às Bandeiras, as informações presentes em Autobiografia.
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Na arte produzida em São Paulo nas primeiras décadas do século XX, Nicola Rollo é um dos profissionais cuja vida e obra ainda aguardam mais estudos, apesar dos passos já dados nesse sentido[6]. Ao que tudo indica, sua ação no campo da escultura em São Paulo parece ter sido eclipsada por aquela de Victor Brecheret, escultor que contou com o apoio do grupo de intelectuais modernistas paulistanos.
Um dado pouco mencionado na bibliografia sobre a arte em São Paulo, durante o início dos anos 1920, é o fato de que, quando os modernistas “descobrem” Brecheret trabalhando em seu ateliê no Palácio das Indústrias – emprestado pelo arquiteto e empresário Ramos de Azevedo –, Nicola Rollo também trabalhava no mesmo Palácio, em ateliê conseguido nas mesmas condições[7]. E mais: responsável pela decoração escultórica daquele edifício, Rollo então também já trabalhava na concepção da maquete do monumento que deveria homenagear os bandeirantes, a ser colocado nas encostas do jardim do Museu Paulista[8]. Tais dados, pouco divulgados, dão conta de que a não aprovação por Washington Luís – então governador do estado –, do projeto de um monumento sobre o mesmo assunto, concebido por Brecheret, não se deu – ou, pelo menos, não se deu apenas – pelo fato de que a colônia portuguesa já havia mostrado interesse em doar a São Paulo um monumento em homenagem aos bandeirantes, concebido pelo escultor português Teixeira Lopes[9], mas porque já havia, então, outro projeto em produção: aquele de Rollo.
Maria Cecilia M. Kunigk, em sua dissertação sobre o artista, afirma que, segundo Rollo, quando ele estava produzindo sua maquete em tamanho natural para o monumento em homenagem aos bandeirantes em seu ateliê no Palácio, estourou a Revolução de 1924. Tal fato o teria impedido de entrar no seu ateliê para umedecer cotidianamente o trabalho em argila, porque o Palácio havia sido transformado em quartel general dos revoltosos. Sem os cuidados necessários, a maquete foi se destruindo. Quando, após o término da Revolução, Rollo pôde, enfim, adentrar seu antigo ateliê, a maquete estava perdida. Esta versão difundida por Kunigk é contradita pelo arrazoado que Raphael Galvez produziu sobre o mesmo caso. Voltamos, então, à sua Autobiografia.
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Maquete do Monumento aos Bandeirantes. Foto: Reprodução
Palácio da Indústrias e Parque. Foto: Reprodução
Galvez relata que, durante a Revolução, ele – que então era assistente de Nicola Rollo no ateliê do Palácio –, esgueirando-se entre os obstáculos que tomavam conta de São Paulo, então sitiada, ia todos os dias ao ateliê para umedecer a maquete, mesmo arriscando-se a sofrer alguma represália por parte dos revoltosos. Terminado o conflito, e tendo Rollo encontrado a maquete intacta, sem nenhum dano, acreditou que aquele fenômeno na verdade era um grande milagre, o que foi, de pronto, contestado por Galvez. Segundo o relato, se não fosse pela bravura e o senso de responsabilidade do então assistente, Rollo teria perdido o trabalho.
Porém, mesmo tendo sido preservado com dificuldade, a maquete, segundo ainda Galvez, não teria tido um final feliz. Pouco tempo depois, ela foi retirada do Palácio e levada para um galpão no bairro do Ipiranga, de onde teria desaparecido[10].
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Em princípio esses episódios podem parecer um tanto rocambolescos, mas sem real importância, uma vez que o monumento em homenagem aos bandeirantes proposto por Rollo jamais teria sido executado. No entanto, se as afirmações de Galvez forem comprovadas, a não realização do projeto de Rollo deixa de ser explicada pelo incidente proporcionado pela Revolução, levantando outras hipóteses sobre o ambiente escultórico de São Paulo naquela época. Por que, passado o conflito, o projeto do monumento não foi levado adiante, uma vez que aquele de Brecheret havia sido recusado? Por que a maquete foi enviada para um galpão do Ipiranga?[11]. Por trás dessa querela, o que estaria em disputa dentro do âmbito da cultura e da arte de São Paulo?
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Rollo foi uma figura fundamental na vida de Raphael Galvez, mas em suas memórias o mestre assume certo protagonismo não propriamente – ou não, apenas – pela influência que exerceu na formação do escultor/pintor, mas igualmente por seu comportamento excêntrico, o que parece ter marcado o ex-aluno e assistente, na medida em que Galvez, mais de uma vez, voltará a lembrar fatos que comprovem tal excentricidade.
Rollo, além de professor exigente, possuía hábitos que deixavam o pudico Galvez um tanto constrangido, como no período em que o assessorou na produção de uma escultura em gesso, colocada no quintal da residência do mestre, na Alameda Joaquim Eugênio de Lima:
Numa manhã, ele [Rollo] de tanga e com um chapéu branco (…), saiu no quintal para dar início a essa tarefa [a produção da escultura em gesso, na qual comecei a ajudá-lo. Essa sua indumentária foi percebida pelas domésticas e mesmo pelas patroas das casas vizinhas, por serem os quintais apenas separados por buxos (…). E, como naquele tempo o pudor pelo nudismo era um fato manifesto e como a tanga do Rollo era de uma fazenda muito fina, que pronunciava por demais o sexo masculino do mestre, isso provocou um tremendo comentário e um verdadeiro escândalo entre essas matronas e moças da vizinhança, que por muito tempo não apareceram no quintal.[12]
Galvez relata outras “proezas” de Rollo, sempre ligadas ao seu interesse pelo nudismo e pelo atletismo. No entanto, um dos aspectos mais interessantes do pensamento do escultor, algo que extrapolava, inclusive, os limites de sua produção artística – os seus estudos sobre o “moto-contínuo” – não parece ter conquistado o interesse do antigo aluno.[13]
Sobre o assunto, Galvez apenas menciona um episódio ocorrido na Escola de Belas Artes de São Paulo, onde Rollo mantinha uma sala para levar adiante suas pesquisas. Certo dia, conta Galvez, um dos estudantes teria colocado uma placa na porta da sala onde Rollo pesquisava, onde se lia: La stanzzeta del moto continuo[14]. Galvez parece apenas ter citado o episódio para sutilmente sublinhar sua influência sobre o mestre. E isso porque, segundo o autor, o estudante que fez a placa só não foi expulso porque ele, Galvez, teria conseguido aplacar a ira de Rollo, que decidiu não punir o aluno.
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Se o que Raphael Galvez escreveu sobre esse ainda virtualmente desconhecido Rollo traz mais uma justificativa para a leitura de suas memórias, não tenho dúvidas de que as considerações sobre seu contato com a muito estudada Tarsila do Amaral também reforçam a importância de sua Autobiografia ser lida e apreciada.
Galvez relata seu encontro com Tarsila durante a primeira individual da artista em São Paulo, à rua Barão de Itapetinga, em 1929. Jovem estudante do Liceu, Galvez e mais três colegas[15] foram visitar a mostra que marcaria a história da arte no país. O que ele narra traz – a meu ver, pela primeira vez no Brasil – a fala da pintora sobre como seu trabalho deveria ser vivenciado pelo público. E, como corolário, temos também a forma como Galvez, então um artista em formação, recebeu aquela orientação sobre como apreciar uma obra de arte moderna. É interessante refletir sobre a atitude de Galvez naquela ocasião; imerso que estava em um tipo de ensino de arte tradicional, o jovem se esforça para entender e respeitar as proposições daquela artista tão distante da realidade comezinha das aulas do Liceu.
Não transcrevei nenhuma linha sobre esse encontro entre os dois artistas, para não retirar do leitor o desejo de querer acessar diretamente o texto, tão significativo. Só não me contenho em atentar para o fato de que, na troca de ideias entre a pintora e aqueles então jovens artistas, evidencia-se o quanto Tarsila ainda estava ligada à estética de Fernand Léger, apesar de já ter se passado alguns anos de seu contato mais próximo com o artista francês.
A partir do relato de Galvez fica esclarecido que a pintura de Tarsila, com aquele tratamento “anônimo”, pelo seu interesse pela invisibilidade dos toques de pincel etc., atestava seu compromisso com uma visualidade comprometida com a velocidade como indutora de uma nova sensibilidade, o que definia para ela e seu mentor Léger, a própria noção de moderno.[16]
O leitor não terá dificuldade em perceber o quanto aquela lembrança de Galvez poderá trazer de novas considerações sobre Tarsila e sua obra. Vista pela historiografia como uma pintora interessada em trazer, para o campo da arte moderna, uma brasilidade “primitiva”, estática e em muitos casos onírica, Tarsila, nas palavras de Galvez, demonstra-se comprometida com uma recepção estética atrelada à velocidade da vida moderna. Sem dúvida, uma análise mais aprofundada de tal paradoxo pode trazer outro grau de compreensão sobre a obra da artista.
Tarsila, uma das principais pintoras latino-americanas, surge no texto memorialístico de Raphael Galvez como um vento forte a abalar as estruturas da arte paulistana da época. Pode não ter alcançado o sucesso desejável, mas, ao propor aos jovens estudantes uma outra maneira de pensar e reagir à arte de seu tempo, ela se mostrava totalmente conectada com os anseios da Semana de Arte Moderna de 1922, embora dela não tivesse participado.
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Por todas as questões aqui levantadas é que Raphael Galvez: Autobiografia se posiciona, como mencionei, como um dos principais livros sobre arte no Brasil, lançado, neste ano em que se comemora o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. E é justamente por esse fato tão notável que não poderia finalizar esses comentários sem lamentar o fato de que a organização do livro, ao retirar alguns trechos dos originais de Galvez, impossibilitou o leitor de entrar em contato com as considerações que ele teria produzido sobre a Semana e seus participantes[17]. Finalizo mais uma vez parabenizando a todos os envolvidos pelo lançamento tão importante e esperando que, numa segunda edição dessa Autobiografia, tenhamos o prazer de entrar em contado com todo o texto de Galvez, para melhor entender a recepção que um evento tão importante quanto a Semana de Arte Moderna de 1922 teve para um artista tão próximo – e ao mesmo tempo, tão distante – de seus protagonistas.
[1] – Segundo alguns colegas do Comitê Brasileiro de História da Arte, são conhecidos apenas mais dois ou três artistas locais que publicaram suas autobiografias. Aqui está um trabalho de levantamento importante a ser feito.
[6] – Sobre Nicola Rollo, consultar: KUNIGK, Maria Cecília Martins. Nicola Rollo (1889-1970). Um escultor na modernidade brasileira. São Paulo: Dissertação de Mestrado. Depto. de A. Plásticas. ECA. Universidade de São Paulo, 2001.
[7] – Raphael Galvez contextualiza a prática de Ramos de Azevedo, ao ceder salas para ateliês nos edifícios que produzia: “[…] Além da nobre missão de dar um ofício ou uma arte ao jovem para que ele tenha um bom futuro assegurado, o Dr. Ramos sempre teve também a nobreza de admirar os artistas, tanto nacionais como estrangeiros, amparando-os no seu recinto de trabalho, isto é, nas suas obras em andamento, dando a esses artistas um local para instalar os seus ateliês de trabalho. O local mais próprio para esse fim foi a obra do Palácio das Indústrias, por ser muito ampla e mais acessível à instalação de ateliês”. IN GALVEZ, R. op. cit. pág. 168.
[8] – Sobre o assunto ler. CHIARELLI, Tadeu. Menotti Del Picchia e o Monumento às Bandeiras: entre a loba capitolina e a anta. São Paulo: ARS, v. 20, n. 45, 2022. Especial Modernidade Brasileira. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ars/a/PFY5zQhDvLBszBT4RNKn4JR/
[9] – Sobre as polêmicas que envolveram a concepção da primeira maquete do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, consultar, entre outros: BATISTA, Marta R. Bandeiras de Brecheret. História de um Monumento (1920-1953). São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico de São Paulo, 1985. (em tempo: o livro não faz referência ao projeto de Nicola Rollo).
[10] – Em sua pesquisa sobre o Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, a estudiosa Eliane Pinheiro encontrou, no Arquivo da Pinacoteca de São Paulo, um documento datado de 22 de abril de 1933, assinado pelo então diretor da Repartição de Águas e Esgotos de São Paulo. A carta, endereçada ao diretor da Pinacoteca, sugere que “um modelo de gesso, vendido ao Estado pelo escultor Rollo”, guardada na Repartição, na esquina da Avenida D. Pedro I com a Avenida do Estado, fosse transferida para a Pinacoteca, que teria melhores condições para mantê-la. Não foi encontrada resposta a essa carta.
[17] – Segundo José Armando P. da Silva escreve: “Dois tópicos foram excluídos. Um sobre a Segunda Guerra, que se detém em detalhes pouco relevantes. Outro sobre a Semana de Arte Moderna, mais opinativo e seguramente resultado de um momento idiossincrático, que contraria os vínculos, manifestados em outro capítulo, com artistas participantes da Semana: Anita Malfatti, Brecheret, Di Cavalcanti e Tarsila. Outros poucos cortes incidiram sobre digressões e repetições dispensáveis à narração”. GALVEZ, Raphael. Op. cit. p. 8.
Entrada do Grand Palais Éphémère, espaço temporário que abrigou a Paris+ Art Basel em sua primeira edição. Foto: Julien Deceroi
A cena mundial das feiras de arte foi pega de surpresa com o anúncio, no início deste ano, de que a FIAC (Foire Internationale d’Art Contemporain) – criada em 1974, mas que desde 1975 acontecia no Grand Palais, na capital francesa – sairia de cena em 2022 para dar lugar à Paris+ par Art Basel, mais nova empreitada do grupo suíço MCH. O conglomerado realiza desde 1970 a Art Basel original, em Basileia, e ainda as edições de Miami Beach e Hong Kong.
Entre colecionadores e público geral, cerca de 40 mil pessoas compareceram à feira. Compradores internacionais, especialmente instituições dos Estados Unidos, como o MoMA de Nova York e o The Art Institute of Chigago, assim como colecionadores da Coreia do Sul, teriam dado grande impulso às vendas, segundo The Art Newspaper. Não foi divulgado, no entanto, um balanço das transações.
Porém, segundo o jornal francês Le Monde, a nova feira parisiense, que aconteceu de 20 a 23 de outubro, no Grand Palais Éphémère – uma sede temporária, enquanto ocorrem as reformas no Grande Palais – teria provocado abalos sísmicos em sua rival, a Frieze, lançada em 2003 e que acontece na primeira metade de outubro, em Londres. Houve boatos de que alguns galeristas guardaram suas melhores obras para a feira francesa, em detrimento da inglesa.
Ainda segundo a publicação, o impacto não se deveria apenas à novidade da feira em si, mas ao fortalecimento do mercado de arte na França nos últimos anos, com a abertura da Bourse de Commerce, com a coleção Pinault, e a chegada de novas galerias ao circuito da Avenue Matignon, como a Mariane Ibrahim, de Chicago (EUA), cujo foco são artistas da diáspora africana. E, claro, aos persistentes ecos do Brexit sobre a economia inglesa como um todo.
Robert Motherwell, "Je t’aime No II", 1955, obra vendida por US$ 6,5 milhões, uma das cifras mais altas alcançadas nesta primeira Paris+ par Art Basel. Foto: Cortesia da Pace Gallery
Em sua primeira edição, Paris+ teve a participação de 156 galerias, de 30 países – 60 delas são sediadas na capital francesa. Segundo seu diretor, Clément Delépine, a seleção dos expositores foi feita a partir de um universo de proponentes “quatro a cinco vezes maior”. Além das gigantes globais, como David Zwirner e Gagosian, a Paris+ buscou refletir uma personalidade mais parisiense, com a presença de expositores locais, como Jocelyn Wolff e a Mor Charpentier. Expositores menores também marcaram presença, como a ProjecteSD (Barcelona) e a Société (Berlim).
Segundo a Artsy, entre as vendas de cifras mais vultosas esteve um quadro –The dream, 2022 – do pintor americano George Condo, adquirido da Hauser & Wirth por US$ 2,65 milhões (quase R$ 14 milhões) já no primeiro dia da feira. Já a Pace Gallery vendeu uma obra do também americano Robert Motherwell – Je t’aime No II, 1955 – por US$ 6,5 milhões (mais de R$ 34 milhões) no dia seguinte.
Segundo Mathieu Paris, diretor sênior da White Cube, “todo mundo parecia estar em Paris” e a nova feira “definitivamente aumentou o poder de atração do mercado de arte da cidade”, que, segundo ele, já há algum tempo “vem passando por um forte renascimento e ganhou de volta um importante papel como capital mundial da arte. Paris+ foi um sinal forte disso”, disse o galerista, em comunicado da Art Basel.
Ainda no começo do ano, Marc Spiegler, que em 2023 deixa o cargo de diretor da Art Basel após 15 anos, afirmou à The Art Newspaper que esperava promover, com a Paris+, uma ativação de toda a capital francesa, em parcerias com grandes instituições de arte locais, como o Louvre e o Musée d’Orsay – ao todo, foram 20 exposições ou intervenções abertas ao público –, além de criar conexões com os mundos da moda, do design e do cinema.
Isso também refletia, aparentemente, um aspecto interessante das recentes mudanças ocorridas no grupo MCH, cujo controle acionário passou para as mãos de James Murdoch, filho de Rupert Murdoch (magnata da mídia dono da Fox News e apoiador ferrenho de Donald Trump), um empresário com forte presença no mercado de entretenimento nos EUA.
Do Brasil, participaram A Gentil Carioca, que mostrou na Art Basel parisiense 18 trabalhos do pintor carioca Maxwell Alexandre. E a Fortes D’Aloia & Gabriel, que fez em Paris a estreia de sua representação – em parceria com a Gomide & Co – do artista plástico argentino León Ferrari (1920-2013), que até o fim de agosto havia recebido a primeira grande retrospectiva de sua obra em um museu francês, no Centre Pompidou.
No estande da FDAG, os trabalhos de Ferrari foram dispostos em diálogo com criações de artistas contemporâneos brasileiros, como Anderson Borba, Marina Rheingantz, Yull Yamagata e Erika Verzutti. Alex Gabriel, um dos sócios da FDAG, comemorou a chegada do selo de qualidade da Art Basel à capital francesa. Segundo ele, a histórica FIAC vinha “empurrando várias questões de ordem organizacional e de seleção de galerias há muitos anos”.
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León Ferrari, "Juicio final de Giotto", 2006. Foto: Fundación Augusto y León Ferrari Arte y Acervo
Maxwell
Alexandre, sem título, série "Novo Poder", 2021/2022. Foto: Vincent Pouydesseau / Cortesia do artista e de A Gentil Carioca
“Havia barreiras para a internacionalização e uma diversidade maior”, afirma. “Não acho que a maioria dos franceses tenha ficado feliz com um grupo estrangeiro tomando o lugar de sua principal feira, mas a Art Basel possibilitou uma renovação que era necessária, e seu forte foi a qualidade da arte apresentada. De fato, eles conseguiram subir a régua”.
Gabriela Moraes, diretora de A Gentil Carioca, afirmou que a galeria teve um ótimo resultado com as obras de Maxwell. Segundo ela, o sucesso foi reflexo de duas exposições anteriores que o artista havia feito na França: uma no MAC Lyon, em 2019, e outra no início de 2022, com duração de três meses no Palais de Tokyo, em Paris.
“Foi a primeira participação de A Gentil Carioca numa feira na França. Eu trabalhei na FIAC em 2019, em outra galeria, e posso dizer que a Art Basel deu uma nova energia à semana de arte, com mais colecionadores internacionais, um upgrade nas instalações da feira, que está num local temporário, e um setor para galerias emergentes”, disse a galerista.
Quanto à rivalidade com a Frieze, ela argumentou que não se pode desconsiderar o fato de a feira londrina estar “sofrendo as consequências da saída da comunidade europeia, fazendo com que as vendas tenham uma taxa de importação que antes não existia”.
Regina Parra, “Odara (o gosto do vivo)”, 2022. Foto: Cortesia Galeria Jaqueline Martins
Paris Internationale
Em paralelo à Art Basel francesa, a Paris Internationale realizou sua oitava edição, com 60 galerias, de 26 países. Um dos destaques da feira foi o espaço que ela ocupou: o antigo estúdio de Gaspard-Félix Tournachon (1820-1910), conhecido como Nadar, um pioneiro da fotografia na França. O endereço era famoso por ter sediado, em 1874, uma importante exposição impressionista. As galerias foram dispostas em cinco andares, cobrindo uma área de quase 3 mil metros quadrados.
A expografia foi concebida pelo escritório de arquitetura Christ & Gantenbein, da Suíça, com grande expertise em projetos no mundo das artes, como as extensões que fizeram para o Kunstmuseum Basel, o Swiss National Museum e o MACBA, em Barcelona. Para a Paris Internationale, os arquitetos mantiveram praticamente intacta a estrutura crua da construção, adicionando um sistema de iluminação e paredes temporárias.
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Paris International realiza projeto de intervenção ousado e contemporâneo, em prédio antigo ao lado da Ópera de Paris, com a participação de artistas jovens. Foto: Patricia Rousseaux
Paris International realiza projeto de intervenção ousado e contemporâneo, em prédio antigo ao lado da Ópera de Paris, com a participação de artistas jovens. Foto: Patricia Rousseaux
Paris International realiza projeto de intervenção ousado e contemporâneo, em prédio antigo ao lado da Ópera de Paris, com a participação de artistas jovens. Foto: Patricia Rousseaux
Para a galerista Jaqueline Martins, que participou da feira pela segunda vez, a expografia chamou a atenção por “tentar romper com a hierarquia entre os tamanhos de estandes”, apesar da diferença de suas dimensões. “A passagem entre elas ficou bem mais sutil, então cada expositor participante se destacava mais pela qualidade do projeto do que pelo porte de seu espaço”, disse. “Parecia mais uma ocupação da construção do que uma mera distribuição de estandes, o que resultou numa feira com um caráter de projeto coletivo”.
Jaqueline levou à Paris Internationale obras dos artistas plásticos Regina Parra e Hudinilson Jr (1957-2013). Foi a primeira vez que a galeria levou trabalhos de Parra para uma feira internacional, e o resultado não poderia ter sido melhor: todas as cinco obras da artista foram vendidas, para compradores dos Estados Unidos ou da Europa. Já de Hudinilson, foram comercializadas quatro de suas criações, também para colecionadores americanos ou europeus. Jaqueline ressalta que Hudinilson vem tendo grande presença institucional mundo afora, o que também reforça a força mercadológica de sua produção.
*Texto de Eduardo Simões com colaboração de Patricia Rousseaux