José Antonio da Silva
José Antonio da Silva Sem título, 1979. Óleo sobre tela
José Antonio da Silva
José Antonio da Silva Sem título, 1979. Óleo sobre tela
Por Theo Monteiro

Objeto da exposição Duas poéticas, na Galeria Estação, em que sua produção foi colocada em diálogo com a da pintora contemporânea Cristina Canale, José Antônio da Silva, em que pesem rótulos como “primitivo”, “naïf” e “ingênuo”, produziu obra de grande complexidade e que pode oferecer importantes chaves de leitura para que se compreenda um grande momento de virada na história do Brasil, tanto em termos socioambientais, quanto em termos artísticos e formais.

Para compreender melhor a obra desse singular pintor, é importante entender sua origem na cultura caipira. Nascido em 1909, em Sales de Oliveira, noroeste paulista, pertencia a uma família de trabalhadores rurais. Sem posses, os mesmos viviam se mudando de fazenda em fazenda, oferecendo sua força de trabalho para os latifundiários da região. Essa era a realidade de muitas famílias caipiras desse período. Conforme mostrou Antonio Candido em Parceiros do Rio Bonito, amplo estudo que realizou sobre a cultura caipira, a mesma foi formada ao longo do período colonial por sertanistas errantes que se estabeleceram em regiões remotas do sertão paulista. Vivendo em pequenos povoados ou ranchos, baseavam-se na agricultura de subsistência e caça/coleta. Com a expansão do latifúndio ao longo dos séculos 19 e 20, os mesmos foram gradualmente perdendo seu modo de vida e sendo subjugados ao trabalho nessas grandes propriedades. Assim, sua cultura foi progressivamente desaparecendo. Não apenas isso. A paisagem, antes marcada pela presença de florestas, cerrados e agriculturas de pequena escala, foi cedendo espaço para a monocultura e os rebanhos de gado.

José Antonio da Silva
José Antonio da Silva, Sem título, 1966. Óleo sobre tela.

A obra de José Antônio da Silva mostra exatamente essa mudança social e paisagística do interior do estado. A começar que suas pinturas nunca retratam uma natureza selvagem ou intocada. Por mais que a figura humana esteja por vezes ausente, sempre existe algum indicativo de ação antrópica: estradas, plantações, animais de criação etc. Em suas paisagens de monoculturas (algodoais, milharais, pastagens) estão representados sinais de devastação, como árvores mortas, caídas ou tocos de madeira. A presença de boiadas passando, pessoas se locomovendo ou trabalhando indica que nada ali está parado: tudo se move e se transforma o tempo todo, inclusive a vegetação, que foi recentemente alterada e teve sua configuração original destruída. Urubus são igualmente frequentes nas pinturas do artista, como se representassem a morte, que espreita a tudo e a todos. O artista nos narra, portanto, a transformação do campo brasileiro e a desagregação de um tipo de cultura nele existente.

A contribuição de Silva, contudo, não se restringe a um retrato social. Na história da arte brasileira, sua aparição e carreira se dão justamente em meio a um momento de profunda transformação. “Descoberto” pela crítica em 1946, presencia um momento em que o sistema da arte brasileiro começa a se institucionalizar: surgem os primeiros museus de arte moderna em São Paulo e no Rio de Janeiro, é criada a Bienal Internacional de São Paulo e se desenvolve um crescente mercado voltado para a arte moderna. Junto a essas transformações, desenvolvem-se no país as tendências de arte abstrata, que terminam por entrar em rota de colisão com a arte figurativa até então vigente, de viés expressionista e com temática voltada para o social.

Silva estabeleceu interessantes diálogos com esse debate estético vigente na arte brasileira desse período. Em um momento no qual o mundo vivia uma espécie de “ressaca” do pós-guerra, a temática socialmente engajada ganhou muito terreno no campo das artes e da cultura, influenciada por certo expressionismo, e que teve em artistas como Portinari e Goeldi importantes representantes. Grande defensor desse tipo de estética era o crítico Lourival Gomes Machado, que, não por acaso, tinha relação muito próxima com nosso Silva. Ainda que de maneira muito singular, o tom de denúncia social aparece com certa frequência na obra do pintor em questão. Cenas de trabalho, cotidiano e mesmo momentos de sofrimento e tragédia são recorrentes em suas pinturas, em geral com grande expressividade. A própria destruição da natureza pela monocultura é criticada nesses trabalhos, antecipando o debate ambiental em algumas décadas. Como forma de obter a expressividade e dramaticidade necessárias para suas composições, recorre a modelos da arte sacra, possivelmente oriundos de um determinado catolicismo popular. Algumas posições e estruturas compositivas são muito semelhantes, por exemplo, a pinturas de ex-votos. A própria arte sacra era tema também de nosso artista, e ele conta em depoimento que só teria começado a pintar depois de perceber que as imagens que via nas igrejas “eram feitas por mãos de pessoas”.

José Antonio da Silva
José Antonio da Silva, Sem título, 1955. Óleo sobre tela

Num segundo momento, o tema não perde a importância, mas Silva vai reduzindo os elementos pictóricos a pontos, pinceladas ou manchas serializadas, de modo a criar composições extremamente dinâmicas. Tal procedimento guarda muita semelhança com momentos da abstração geométrica (embora o mesmo jamais tenha abandonado por completo a figuração) e chegou a receber elogios de um dos principais representantes do concretismo, Waldemar Cordeiro. Essas escolhas pictóricas levaram ao rompimento de Silva com Gomes Machado, mas coincidem com sua aproximação com o crítico Theon Spanudis, defensor de uma arte construtiva bastante particular.

Ainda que lido como um ingênuo fora de seu tempo, Silva compreendeu perfeitamente não apenas sua época e as tendências nela discutidas, como trouxe uma contribuição absolutamente original para a mesma. ✱

1 comentário

  1. Muito interessante as pinturas!! a vida dura do homem do campo e seus dramas!! a falta de regulação das monoculturas e o desrespeito ao meio ambiente representada nas telas!!

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