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O direito de matar

América-Látex
Marina Camargo, "América-Látex (Pós-Extrativismo)", exposta no 37° Panorama da Arte Brasileira – Sob as Cinzas, Brasa, no MAM São Paulo. Foto: Tiffany Danielle Elliott

Necropolítica, de Achille Mbembe, ensaio publicado originalmente em inglês em 2003, e no Brasil em 2018, começa de forma contundente, lembrando os termos pelos quais Michel Foucault definiu o biopoder nas últimas aulas de Em defesa da sociedade, curso proferido no Collège de France, em 1975-1976: “Ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação do poder”. O que Mbembe então pergunta a partir dessa primeira constatação é acerca das condições práticas que tornaram possível esse poder de matar, de deixar viver e de expor à morte. E, mais ainda, se essa concepção de biopoder ainda poderia ajudar no entendimento das formas contemporâneas do exercício da política, cujo objetivo primeiro seria agora o assassinato do inimigo.

Lembremos então, que Necropolítica foi escrito, não por acaso, à sombra dos ataques às torres gêmeas, em Nova York, ocorrido dois anos antes. A semântica da “guerra”, em especial da “guerra ao terror”, utilizada à exaustão para justificar e legitimar todos os meios possíveis, independentemente do grau de violência e crueldade, para defender, proteger e preservar os valores do Ocidente cristão, assim como o das democracias liberais, ensejou a Mbembe uma reflexão a propósito da política como uma forma de guerra (retomando o conhecido princípio de Clausewitz, de que “a política é a guerra por outros meios”), para perguntar qual o lugar, nessa guerra, concedido à vida, à morte e ao corpo.

Enfim, em que medida vida, morte e corpo se articulam com modos de exercício do poder.
Reunindo Foucault, Carl Schmitt e Giorgio Agamben, Mbembe vai operar um primeiro deslocamento na concepção foucaultiana de biopoder ao pensar a indissolubilidade entre biopoder, soberania, estado de sítio e estado de exceção. Este último aspecto, como sabemos, tornou-se uma espécie de concepção diretriz para o entendimento do nazismo, do totalitarismo, dos campos de concentração e extermínio.

Aos olhos de diversos filósofos importantes de nossa época, como Adorno, Hannah Arendt, Agamben e o próprio Foucault, o campo de concentração se tornou uma espécie de “metáfora central” para entendermos a que ponto pode chegar a combinação entre violência soberana e destruição, o que seria uma espécie de “último sinal do poder absoluto do negativo”.

Os campos de extermínio da Segunda Grande Guerra representariam, assim, seja o horror que ultrapassa qualquer imaginação (Arendt) ou ainda o lugar da mais absoluta desumanização já ocorrida em nossa história (Agamben). Nessa perspectiva, o estado de exceção, como o diz Agamben, deixa de ser a suspensão provisória do Estado de Direito, diante de situações emergenciais, para se tornar o próprio paradigma do governo constituindo, dessa maneira, uma espécie de “zona incerta”, de uma “terra de ninguém”, habitadas entretanto, no caso do processo de colonização, pelo “desejo de inimigo”, pelo “desejo de apartheid”, pela “fantasia do extermínio”, como dirá Mbembe, muitos anos depois, em Políticas da inimizade.

A singularidade de Mbembe nesse debate não é a de desconhecer ou a de subvalorizar o extermínio dos judeus. Mas, é a de produzir um outro deslocamento nos termos do debate, qual seja, o de mostrar que as condições do campo de concentração foram dadas por um acontecimento que antecede o dispositivo biopolítico do século 19, qual seja, a colonização e, por consequência, a experiência da escravidão: “Qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica”, escreve ele, em Necropolítica.

A forma da plantation, por si só, já mostra bem o quanto o regime de escravidão constitui um permanente estado de exceção. Nela, o escravo é desumanizado a tal ponto que só aparece como uma “sombra personificada”, desumanização que corresponde a uma tripla perda: a do seu “lar”, a dos direitos sobre o seu corpo e a dos seus direitos como “cidadão”.

Sem fala e sem pensamento, o escravo é um objeto, uma coisa, uma mercadoria, que pertence ao senhor. Entretanto, a esse processo crescente e avassalador de desumanização, o escravo responde, resiste, por meio de uma reapropriação de si, em especial por meio da música e de seu próprio corpo. Surge aí, em meio a esses paradoxos fundados na figura desumanizada do humano, uma espécie específica de terror, que torna o caminho entre a senzala e a plantation propriamente dita, uma experiência que tangencia, o tempo todo, a da morte. A colônia é assim um lugar do permanente exercício de um poder à margem da lei e onde a “paz” nada mais é do que o rosto sinistro de uma “guerra sem fim”.

Cabe a nós perguntarmos em que medida a análise de Mbembe pode nos ajudar a entender a nossa própria história, marcada pela escravidão e pelo racismo. Sem esquecermos que a escravidão atingiu também as populações indígenas e que o trabalho escravo é uma prática ainda existente no País. Parece que um passo necessário a ser dado de antemão é o reconhecimento que ainda vivemos, em diversos aspectos, num estado de coisas marcado pelas experiências do terror e da morte iniciadas na experimentação biopolítica que foi a colonização.

Depois de tudo

Germana Monte-Mór
Germana Monte-Mór, sem título, 2020 Fotos: João Liberato / Cortesia Galeria Estação

Os primeiros desenhos de Germana Monte-Mór — realizados no fim dos anos 1980 e começo dos 1990 — pareciam verdadeiros hematomas. A artista evitava a presença explícita de um fazer que ordenasse o asfalto sobre a superfície de papel. Tudo se passava como se a uma pancada inicial se seguissem movimentos que independiam da sua vontade. Assim, seus desenhos também tinham o aspecto de algo feito de dentro para fora.

Por mais que a matéria com que desenhava tivesse uma consistência rude e ostensiva, seu tratamento conduzia mais a uma revelação da capilaridade do papel do que à construção de figuras que estabilizassem a área em que surgiam. As formas que víamos eram a configuração precária de um movimento que tendia a uma expansão continuada.

Posteriormente, seus desenhos foram adquirindo maior definição e incorporando áreas de cor. As áreas de asfalto encorparam e passaram a se diferenciar, mais intensamente, das demais regiões do desenho. No entanto, muito daquela instabilidade formal permaneceu, de par com o contraponto com as regiões de cor e relevos. A presença ainda mais acintosa do asfalto se via acentuada pela irregularidade de seus contornos, pelo aspecto orgânico de sua configuração. Com sua inconstância, eles não se revelavam aptos para conter a massa que circunscreviam. Criava-se então uma espécie de tensão superficial prestes a ceder. Esse movimento se intensificou nos desenhos expostos em 1998, pois então passou a haver também, num mesmo trabalho, uma relação entre manchas negras e luminosas que, num jogo de atração, aumentava a expansão das áreas negras.

O mundo que surgia nesses desenhos tinha uma constituição meio violenta e traumática. E, a partir dos anos 2000, como ocorre na vida, introduziu-se a alegria das áreas e relevos de cores luminosas. Para mostrar-se com força, o mundo precisava tornar-se desmedido. A intensidade das superfícies negras advinha da capacidade de extravasar seus limites, mais do que de uma saturação ou de extrema concentração. E decorria disso o caráter traumático dos trabalhos: para afirmar-se, as regiões negras deveriam incessantemente mover-se para além de si e entrechocar-se entre as regiões coloridas, colocando no horizonte uma identidade que jamais poderia ser alcançada. Penso ser essa também a razão de uma espécie de sensualidade dolorida que permeia todos os desenhos de Germana Monte-Mór. O movimento em direção ao que está além de nós — a busca de uma continuidade com o outro implicada no erotismo — revela-se como uma condenação ao degredo, como desassossego e dor. Sem nunca perder a serenidade.

Justamente porque está para além de nós, porque aí a vontade não reina, ainda que prometamos a cada vez não mais bater nessa porta. E ela agora chega aqui novamente. Manteve sua experiência de base e saiu enriquecida. A alegria é também a prova dos nove. Como dizia o poeta levantino, toscamente traduzido por mim: “Não é a água que passa/ que mata a sede/ é a que se bebe / é preciso subir aos céus/ descer aos infernos/ para conhecer uns poucosTenho a impressão de que o reencontro de Germana com a obra de Hans Arp trouxe na bagagem a crítica a seus contemporâneos modernos com seu viés dadaísta, que ironizava a forma marcada que vem de Cézanne. Penso que o ceticismo dos trabalhos de Germana com asfalto – muito bons por sinal – ao cruzar com Arp, produz uma improvável tangência com nossa tradição, com Amílcar de Castro, sobretudo.

Além disso a dimensão vitalista, orgânica de Germana Monte-Mór renovou a escultura de Maria Martins ou de Lygia Clark. Sem a mania pós-modernista de citar momentos importantes da história da arte, a artista mantém com a tradição moderna, uma conversa bem-humorada.

Ancestralidade, território e ciência

Rosana Paulino
Rosana Paulino, detalhe de Parede da Memória, 1995-2015. Foto: Isabella Matheus / Cortesia da Artista e da Mendes Wood Dm

O carnaval está no imaginário de Rosana Paulino, 55, desde a sua infância. Atrás da casa de sua avó, em São Paulo, havia uma fábrica de adereços e, na adolescência, ela assistia às escolas de samba na companhia de uma tia e de suas irmãs. Na década de 1980, uma dessas apresentações marcou bastante a futura artista: o último desfile de uma tríade da Mocidade Alegre, sobre a cultura afro, foi dedicado a artistas negros e reverenciava nomes como Heitor dos Prazeres.

“Pela primeira vez eu vi a figura do negro retratada de maneira digna dentro da História. E eu me dei conta de que a arte negra existia porque, até então, no meu universo de criança, havia somente o que vinha da Europa, ou alguém como Portinari, no Brasil. De modo geral, eu só conhecia os chamados gênios da pintura”, recorda-se. “Então, foi uma experiência estética e política muito importante, para a construção de minha identidade.”

Em abril deste ano, Rosana voltou ao universo do carnaval, desta vez como uma das 30 personalidades negras homenageadas pela Beija-Flor de Nilópolis. No Sambódromo carioca, ela representou as artes visuais, sob o enredo Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor, num tributo que incluía ainda Conceição Evaristo e Abdias Nascimento, entre outros. As fantasias da Ala das Baianas – que, segundo ela, são “a alma de uma escola, seu fundamento” – tinham patuás, inspirados em trabalhos seus. “Já quando eu vi o croqui da fantasia, eu chorei, fiquei emocionada, perdi a fala”, conta.

O desfile foi um dos momentos marcantes de sua carreira em 2022, um ano particularmente agitado do ponto de vista profissional. Prestes a completar 30 anos de trajetória artística, Rosana também foi convidada a participar da 59ª Bienal de Veneza, onde até novembro exibe 25 trabalhos, de três séries: Jatobás, Senhora das plantas e Tecelãs. As obras partem de uma investigação da artista, uma leitora atenta das obras do psicanalista e psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, acerca de arquétipos femininos.

“Dentro da psicologia tradicional, há uma inundação de Heras, Vênus, Atenas etc., que não conversam com as mulheres negras daqui. Quando eu olho o meu perfil, por exemplo, dentro dessa psicologia calcada numa mitologia europeia, não me encaixo de maneira alguma. Eu sou filha de Ogum com Iansã”, diz. “A construção da psique feminina não contempla as mulheres negras, como eu. Não aparece sequer uma deusa negra, africana. É como se a mulher de origem africana não tivesse psique, não tivesse individualidade. É cruel e absurdo. Parece que não temos direito nem à subjetividade.”

Suas criações apresentadas em Veneza tentam refundar ou mesmo sugerir novos mitos, a partir de novos arquétipos. A série Senhora das plantas, ela afirma, refere-se às mulheres na faixa etária de 30 a 50 anos, ao passo que as Jatobás são as grandes árvores, as mulheres em sua maturidade. “Elas remetem às grandes mães de santo, que conseguiram manter a comunidade negra unida ao longo da História, são as detentoras e mantenedoras do conhecimento, são as nossas avós, na realidade”, afirma.

A ancestralidade, como se vê, está intrinsecamente ligada à produção de Rosana Paulino. Paulistana, nasceu e cresceu na Freguesia do Ó, de onde se mudou há dez anos, para Pirituba, um bairro vizinho. Foi na casa da família, na Freguesia, que aprendeu com a mãe a costurar, habilidade que levou para seu ofício, algo visto em trabalhos emblemáticos seus, como Parede da memória (1994), que ela considera como obra inaugural de sua carreira. Ali, aparecem fotografias de familiares da artista, impressas em patuás, amuletos de religiões de matriz africana.

Em 1997, a costura voltou em Bastidores (1997), em que retratava mulheres sobre tecidos, esticados sobre a estrutura de madeira que dá nome à série e é usada para tecer bordados. Nessas obras, as figuras femininas apareciam com riscos, rabiscos, suturas que representam o silenciamento delas na sociedade.

Ainda no ambiente familiar, Rosana e suas irmãs também foram estimuladas pela mãe a criarem seus próprios brinquedos com barro, a desenharem personagens, recursos que também permaneceram na atuação como artista que o futuro lhe reservara.

“Desde muito cedo esta coisa da manualidade, e até mesmo o senso estético, foram sendo desenvolvidos no dia a dia. No entanto, sempre tive também um fascínio pela biologia, principalmente por morar numa casa de periferia, com um quintal grande de frente, outro quintal grande ao fundo. Apareciam bichos selvagens, sapos, rãs, abelhas etc.”, lembra.
De início, contudo, Rosana se sentia, ela ressalta, dividida entre a biologia e as artes plásticas. Já na universidade, não pensava em ser artista. “Entrei porque gosto muito de museus e pesquisa. Eu tinha uma inclinação científica”, conta Rosana, que foi assistente de restauro e conservação no MAC USP, no início dos anos 1990. “Essa inclinação continua até hoje, tanto que me considero uma artista muito técnica, que pesquisa áreas que não estavam presentes na construção da visualidade, da representação negra e da produção brasileira. Eu então comecei a trilhar um caminho diferente, pensando a questão da negritude.”

Educadora, doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Rosana é especialista em gravura pelo London Print Studio, de Londres e bacharel em gravura, também pela ECA-USP. Foi também bolsista do Programa Bolsa da Fundação Ford, de 2006 a 2008, e CAPES, de 2008 a 2011. Em 2014, ela recebeu a bolsa para residência no Bellagio Center, da Fundação Rockefeller, em Bellagio, Itália. Atualmente além da participação em Veneza, está presente em exposições em Austin e Chicago, nos EUA, e em Wolfsburg, na Alemanha.

¿História Natural?, de Rosana Paulino
Rosana Paulino, trabalho série “¿História Natural?”, 2016. Foto: Isabella Matheus / Cortesia da artista e da Mendes Wood DM

O interesse pela biologia – por meio de livros sobre “as formas de cognição, como se elabora o pensamento, essa área ligada ao pensar e ao cérebro” – não apenas prosseguiu ao longo dos anos, como também informa a sua produção artística. Não à toa, afirma Rosana, ela pesquisa e desenvolve em seu trabalho a questão da pseudociência e do racismo científico.

“Naturalmente fui me interessando pela ideia da visualidade e da visibilidade negra, da representação, em especial pela fotografia. E aí entra também a documentação dos artistas viajantes, por exemplo. Minha série ¿História Natural?, por exemplo, o nome já diz tudo. Nada menos natural do que a classificação do outro, dos seres, da fauna e flora. A gente tem que olhar para essa construção que foi feita e que inclusive ainda é usada para justificar uma falsa inferioridade da população negra. E não temos como pensar o país sem levar isso conta, varrendo para debaixo do tapete.”

Há também um elemento da História da Arte no Brasil que lhe causa incômodo: a ideia de uma vocação para a geometria, que ela considera imposta ao país por um ambiente internacional, sem levar em conta as dimensões continentais que temos, com tantas variantes.

“Eu não tenho nada com isso”, reclama Rosana, autora de uma série ironicamente batizada de Geometria à brasileira. “Esta dita vocação geométrica é algo limitado a um grupo muito pequeno de artistas, em sua maioria do Rio e de São Paulo. E os artistas negros brasileiros estão começando a rever isso, desafiando, questionando essa concepção de história da arte do país”, diz.

Outro elemento caro à produção de Rosana Paulino é a territorialidade. Ela considera, por exemplo, que praticamente nenhum outro artista negro influenciou a sua carreira, não apenas pela falta de circulação de conhecimento a respeito deles. “Eu sabia algo sobre Rubem Valentim, Emanoel Araújo, mas desde cedo eu sabia que não dava para seguir essas trilhas porque eu não era baiana”, pondera.

A artista afirma que “troca muito com seu ambiente.” Quando ela estava na universidade, por exemplo, as questões que lhe interessavam era o que significava ser mulher, negra, na periferia de uma cidade como São Paulo, ouvindo Racionais MC’s.

“Então as minhas trocas estão muito mais ligadas a observar este ambiente do que olhar para outros artistas. Logo de cara eu olhei que aquele não era o meu universo. Lembro que uma vez até tentei fazer um desenho relacionado a orixás, mas foi uma coisa absolutamente pavorosa. Eu não fui criada dentro desse mundo. E então comecei a procurar o meu caminho”, conclui.

Diante da crescente onda reacionária da extrema-direita, no Brasil e mundo afora, que ataca negros e povos originários, entre outros grupos minoritários, Rosana acredita que a resistência por parte de artistas, em especial, ainda está muito no começo. Ela salienta que as artes visuais, num país como o Brasil, ainda são um nicho muito restrito. Mas que a internet tenha sido de grande valia.

“Há muitos canais que estão ampliando a questão da visualidade, as reivindicações do povo negro. O que eu recebo de contato de alunos e professores é impressionante. E é uma tendência crescente. As pessoas querem se ver representadas, como constituintes da história, querem saber quem veio antes delas. A onda reacionária é esperada, especialmente aqui, onde a repressão é brutal. Mas é extremamente saudável esta produção de artistas negros que resgata a ancestralidade”, conclui.

Espírito Santo reforça sua cultura

Obra de Elvys Chaves e Carlo Schiavini exposta no Parque Cultural Casa do Governador, no Espírito Santo
Elvys Chaves e Carlo Schiavini, Geoescultura Cybernética. Foto: Leandro Pereira

Existe um crescimento no ambiente cultural de certos estados do Brasil, como Ceará e Espírito Santo, com o surgimento de novos equipamentos públicos como o Complexo Cultural Estação das Artes e o Museu da Imagem e do Som, ambos no Ceará, e o Parque Cultural Casa do Governador, em Vila Velha, no Espírito Santo, todos inaugurados em 2022.
Em Vila Velha, o novo parque ocupa a antiga residência de praia do governador, uma casa modernista em frente a uma praia particular. A vista lá é invejável e, com o parque de esculturas, o local lembra um dos espaços de arte na Europa celebrado por sua inserção na natureza, o Museu de Arte Moderna de Louisiana, na Dinamarca.

Aberto em maio passado, por enquanto apenas com visitas agendadas, o lugar conta com 21 esculturas realizadas como site specific, sendo dez temporárias e 11 permanentes, a um custo de R$ 2 milhões. As obras foram selecionadas após um edital nacional, que contou com a inscrição de 234 propostas. Há uma mistura entre artistas locais, como Geisa Silva e Natan Dias, e de outros estados, como Estela Sokol, de São Paulo, e a mineira Marilá Dardot, que vive no México.

A obra de Marilá é das mais poéticas. Ela instalou placas que, ao invés de conterem típicas frases informativas, reúnem citações de livros de autores e autoras com ampla diversidade, sejam LGBTQiA+, negras, negros e indígenas, publicados ou reeditados no Brasil nos últimos 20 anos, como Djamila Ribeiro, Ailton Krenak e Audre Lorde.

A ideia para o parque de esculturas veio da Secretaria de Cultura, que tem à frente o artista e gestor cultural Fabricio Noronha. Ele tem sido responsável por uma equipe com projetos dinâmicos. Essas iniciativas vêm ocupando os espaços culturais do estado com parcerias, como a realizada no Museu de Arte do Espírito Santo, que sediou a mostra Reviravolta, com acervo da Associação Cultural Videobrasil, realizada também na galeria Homero Massena, que em breve passa a ter nova sede.

Em entrevista à arte!brasileiros, Fabricio conta, a seguir, os princípios que nortearam sua gestão dos últimos quatro anos e a importância das novas leis Aldir Blanc 2 e Paulo Gustavo, para a descentralização das verbas públicas no Brasil.

ARTE!✱ – Enquanto o governo federal fez uma batalha contra a cultura nestes últimos quatro anos, o Espírito Santo atuou com políticas públicas exemplares, como criar o Parque Cultural Casa do Governador, em Vila Velha. Como foi a orientação para a cultura neste governo que se encerra?

Fabricio Noronha – A orientação do governador Renato Casagrande, minha primeira grande experiência na gestão pública – eu, que venho da iniciativa privada, da organização e produção de eventos e curadoria de mostras –, foi o desafio de trabalhar uma política de cultura de forma transversal, entendendo a centralidade da cultura em nossa vida, seus potenciais de desenvolvimento econômico assim como do senso de pertencimento do capixaba. Tudo isso com uma liberdade de criação e de trabalho muito grande. Em quatro anos construímos muitas coisas. O governador sancionou uma lei de incentivo de ICMS, que era um desejo de décadas do setor cultural do Espírito Santo, e um mecanismo de transferência de recursos do fundo estadual para fundos municipais, e com isso conseguimos crescer em quatro vezes o número de fundos e leis municipais de cultura.
Junto a isso veio a ideia dele e da primeira-dama, Maria Virgínia, de transformar a casa de praia do governador em um parque. A Secretaria entrou com o concurso de esculturas que ancora esse parque cultural.

ARTE!✱ – Entre as inovações desta gestão está realmente a criação do parque com esculturas realizadas especialmente para o local. Qual foi a concepção geral deste projeto?

A concepção veio do próprio governador de abrir a residência e um parque para visitação misturando arte, meio ambiente e tecnologia. Criamos um grupo interdisciplinar de várias secretarias e nós entramos com a proposição do parque de esculturas, que hoje totaliza dez obras temporárias e 11 permanentes, um investimento total de R$ 2 milhões. Essa concepção passa pela própria relação da casa e seu significado histórico e político, assim como o local onde ela existe para a criação de obras site specific. Nós recebemos 234 propostas de artistas do Brasil inteiro, foi o primeiro concurso nacional do Fundo Estadual de Cultura, e selecionamos 21 obras. Como dez são temporárias, teremos um novo ciclo para seleção de novas obras, criando assim uma dinâmica para esse parque. Por enquanto, as visitas são agendadas, mas temos eventos quinzenais que misturam música, teatro, poesia e dança, várias linguagens artísticas aos domingos.

ARTE!✱ – A galeria Homero Massena, onde esteve a mostra do Videobrasil, também tem mudança de sede prevista. Para quando se espera o novo espaço e o que se pretende com a mudança?

Estamos trabalhando em uma nova sede para ela, que, por enquanto, está na fase de projeto. Em breve devemos contratar essa obra. Ela fica em frente à atual sede, onde era o antigo Arquivo Público, tombado pelo Patrimônio do Estado. Ela deverá ter uma galeria com o dobro do tamanho atual, uma área de oficina, ateliê para residências, um miniauditório, reserva técnica adequada para todo acervo da galeria, que é o espaço de arte mais antigo do Espírito Santo, que vem dos anos 1970, e tem um acervo muito interessante.

ARTE!✱ – Você liderou, pelo Fórum de Secretários da Cultura, as Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2, a derrubada dos vetos do presidente, mesmo assim a liberação dos cerca de R$ 6 bilhões foi postergada até outubro, e é possível ainda novo adiamento. Qual o significado disso?

Estamos diante de dois avanços históricos do setor cultural, sobretudo a Lei Aldir Blanc 2, que é um recurso permanente de R$ 3 bilhões que, junto com o possível retorno do Ministério da Cultura, dá uma perspectiva muito boa para o setor cultural. São leis que trabalham a partir do pacto federativo, da descentralização de recursos para estados e municípios, fortalecendo a institucionalidade da cultura nesses lugares, fortalecendo os conselhos de cultura e as cenas locais. As duas leis trabalham dentro de uma lógica pelos fundos de participação dos municípios, dos estados e a população de cada local. Assim, dessa maneira, consegue-se um equilíbrio na distribuição de recursos, diferentemente de outros mecanismos, como a própria Lei Rouanet, que concentra muito em Rio, São Paulo e Minas. Essas leis conseguem equilibrar, pulverizar e chegar no pequeno. Um estudo do Observatório da Economia Criativa da Bahia mostrou que 63% dos beneficiados pela lei Aldir Blanc 1, muito parecida com a 2, nunca tinham recebido recursos públicos. Isso demonstra o alcance e a capilaridade dessas leis. E esse processo foi construído pelo Congresso Nacional, pela bancada da cultura, a lei Paulo Gustavo, pelo senador Paulo Rocha, a lei Aldir Blanc 2, pela deputada Jandira Feghali, e estamos muito envolvidos enquanto fórum de secretários. É um movimento bonito que é além do setor cultural, tão coletivo.

Guerra cultural

No Hallenbad Ost, trabalhos de Taring Padi, coletivo que teve um de seus painéis, exposto na Friederichplatz, retirado da documenta quinze após críticas - explicadas no texto. Foto: Patricia Rousseaux
No Hallenbad Ost, trabalhos de Taring Padi, coletivo que teve um de seus painéis, exposto na Friederichplatz, retirado da documenta quinze após críticas - explicadas no texto. Foto: Patricia Rousseaux

As discussões que polarizaram os 100 dias da documenta quinze, em Kassel, encerrada no fim de setembro passado, precisam ser observadas em um contexto mais amplo, dentro de um conceito criado, em 1991, pelo sociólogo James Davison Hunter no livro Cultural Wars, lançado nos EUA, e inédito no Brasil.

Lá, ele aponta como fundamentalistas evangélicos, judeus e católicos conservadores se reuniram em uma batalha pelo controle da cultura secular norte-americana, como ocorreu contra a exposição dedicada ao fotógrafo Robert Mapplethorpe, na Corcoran Gallery of Art de Washington, em 1989, censurada após denúncias de pedofilia.

De certa forma, tiveram início aí batalhas em torno de narrativas que descontextualizam as obras de arte para, por meio de um discurso apelativo, criar a impressão de que a cultura estaria a serviço de desconstruir padrões morais, em sua maioria contra a noção tradicional de família e nação.

Desde então, as ações dentro do que passou a se chamar “guerra cultural” foram ganhando força, inclusive aqui no Brasil, em ocasiões às vezes isoladas, como o cancelamento da mostra de Nan Goldin, no Oi Futuro, no Rio, em 2011, ou a censura à obra Desenhando com terços, da artista Márcia X, na mostra Erótica – os sentidos da arte, no Centro Cultural Banco do Brasil carioca, em 2006.

Já em 2017, essa guerra ganhou contornos mais organizados, especialmente por conta do grupo MBL (Movimento Brasil Livre), que criou nas redes sociais uma onda contra a exposição Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira, no Santander Cultural de Porto Alegre, encerrada quase um mês antes do prazo previsto, por conta de denúncias de apologia à pedofilia e zoofilia. Ainda em 2017, outra exposição sofreu uma avalanche de protestos: o 35º Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna de São Paulo, por conta da performance La Bête, de Wagner Schwartz, apresentada na sua abertura.

Nestes dois casos, as mostras sofreram ataques deliberados para se desmoralizar, por meio de acusações exageradamente falsas e descontextualizadas, a cultura em geral, por ser um campo identificado como de esquerda.

Não por acaso, essa onda conservadora foi fundamental para as eleições de 2018 e, agora, de 2022, no Brasil, e seguiu como plataforma do atual governo federal, que tratou a cultura com descaso – acabando inclusive com o Ministério da Cultura – além de reduzir em muito a abrangência da Lei Rouanet.

O que essa questão tem a ver com o debate antissemita na documenta quinze? Tudo. Desde antes da abertura da mostra, em junho, grupos da direita alemã já se manifestavam em Kassel ameaçando artistas que defendiam a Palestina. Contudo, foi na própria abertura que o tema ganhou dimensão por conta do imenso mural Justiça do Povo.

Exibido sem traumas, em 2002, na Austrália, agora ele fora instalado próximo à tradicional sede da documenta, o Fridericianum. Com 12 metros de largura, o painel contém, entre dezenas de imagens, dois judeus, um com chapéu da polícia nazista e outro como integrante do Mossad, o serviço secreto israelense. Os artistas do coletivo Taring Padi, autores do trabalho, disseram se tratar de uma obra contra a violência da ditadura militar de Suharto, na Indonésia.

Tokyo Reels
Latas de filmes da coleção Tokyo Reels, 2018, presentes na mostra Subversive Film, da documenta quinze.
Foto: Cortesia Subversive Film

Importante lembrar que eles têm a mesma origem do ruangrupa, coletivo responsável pela direção artística da documenta quinze. No entanto, no contexto alemão, tão sensível a questões judaicas após o Holocausto, essas imagens causaram revolta e a obra foi recolhida.

“Não há intenção de relacioná-lo, de forma alguma, com o antissemitismo. Estamos tristes que detalhes sejam compreendidos de modo diferente de seu propósito original”, afirmou o Taring Padi em nota, em que também pediam desculpas.

No entanto, já estava criado um ambiente para a polarização, que favoreceu aqueles que viram a possibilidade de guerra cultural em torno da mostra, seja por meio dos veículos de comunicação, que insistiam em questionar a exposição como um todo, e até da própria instituição: primeiro, Sabine Schormann, diretora-geral da documenta quinze, deixou o cargo em julho, e, no mês seguinte, quando continuavam ainda os ataques, foi criado um Comitê de Apoio Científico, para tratar da questão.

Seguindo a linha de acusações infundadas e exageradas das guerras culturais, o jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung afirmou que um coletivo judeu de São Paulo teria sido convidado e depois desconvidado. A Casa do Povo, em São Paulo, que durante a organização da mostra serviu como ponto de encontro do ruangrupa com grupos brasileiros, chegou a se manifestar a respeito, desmentindo o jornal alemão e dando apoio à documenta.

Em nota, divulgada pelo e-flux, eles lembram que Graziela Kunsch, única brasileira na documenta [leia sobre a participação da artista VII Seminário Internacional promovido pela arte!brasileiros], baseia-se em conceitos de uma pedagoga judia-húngara, Emmi Pikler (1902-1984), além de apresentar fotos de uma artista também judia-húngara, Marian Reissmann (1911-1991), que documentam a prática de sua conterrânea. Veemente, o texto ainda aponta possíveis motivações para os ataques: “A denúncia justa de imagens antissemitas está sendo instrumentalizada para deslegitimar toda a exposição, atacar uma agenda decolonial e se opor ao pensamento crítico.”

Já o Comitê Científico caiu na armadilha de buscar identificar outros trabalhos com a mesma conotação, reforçando, assim, uma generalização. Em uma declaração pública, em setembro, eles pediram que filmes do coletivo Subversive Film não fossem mais exibidos: “O que há de altamente problemático neste trabalho não são apenas os documentos fílmicos, que contêm peças antissemitas e antissionistas, mas também os comentários dos artistas inseridos entre os filmes, nos quais legitimam o ódio a Israel e a glorificação do terrorismo em o material de origem através de sua discussão acrítica.”

Taring Padi
No Hallenbad Ost, trabalhos de Taring Padi, coletivo que teve um de seus painéis, exposto na Friederichplatz, retirado da documenta quinze após críticas – explicadas no texto.
Foto: Patricia Rousseaux

A programação que cita esta nota é o Tokyo Reels Film Festival, assim chamado porque exibia uma série de filmes recentemente restaurados, que estavam sob a guarda do diretor japonês Masao Adachi, dando visibilidade a um arquivo praticamente desconhecido de uma ação solidária e anti-imperialista entre Japão e Palestina.

Contra essa proposta de censura do Comitê, levantaram-se os artistas da própria documenta em nota divulgada pelo e-flux intitulada Estamos bravos, estamos tristes, estamos cansados, estamos unidos – carta da comunidade lumbung.

Além de se opor a todo tipo de censura, a carta explicita a estratégia de guerra cultural: “É óbvio para nós que o mesmo mecanismo de passar a bola de cyberbullies e blogueiros racistas para os principais meios de comunicação, para atacantes racistas no terreno, para políticos e até para acadêmicos, está sendo reproduzido em cada situação”.

Para o conjunto dos artistas, a acusação de antissemitismo merece ser vista sobre outra ótica: “É no contexto da documenta quinze, e nas especificidades do contexto alemão, que vemos que o posicionamento de artistas palestinos é o ponto em que nossas lutas anticoloniais se encontram e se tornaram um foco de ataque. Racismo anti-muçulmano, anti-palestino, anti-queer, transfobia, anticiganismo, capacitismo, castismo, antinegro, xenofobia e outras formas de racismo são racismos com os quais a sociedade alemã deve lidar além do antissemitismo”.

A questão que essa polêmica toda em torno do antissemitismo reforça é como a falta de diálogo acabou impondo uma lógica punitivista, que começou com o encobrimento do painel, seguiu com a saída da diretora-geral e depois com as propostas do Comitê Científico, de forma a acabar encobrindo todo o debate do conteúdo da mostra. Há hoje quem defenda na Alemanha que a documenta não deve mais ser realizada. É a lógica da guerra cultural, onde é preciso eliminar o divergente, no caso, práticas artísticas que condenam as políticas xenófobas do Estado de Israel.

Omah Kendeng Community
Workshop com Omah Kendeng Community em Java, Indonesia, 2021.
Foto: Reprodução do Catálogo da Documenta Quinze, maio de 2022

A carta dos artistas teve apoio do Comitê de Seleção da documenta, composto por um time internacional de curadores de grande respeitabilidade, composto por Amar Kanwar, Charles Esche, Elvira Dyangani Ose, Frances Morris, Gabi Ngcobo, Jochen Volz, Philippe Pirotte e Ute Meta Bauer. A nota de apoio, que também se contrapunha a que obras fossem censuradas, foi divulgada no próprio site da mostra. O grupo também apontou para a questão de fundo: “Rejeitamos tanto o veneno do antissemitismo quanto sua instrumentalização atual, que está sendo feita para desviar as críticas ao Estado de Israel, no século 21, e sua ocupação do território palestino”.

Como em toda tática de guerra, aquela que foi empregada nesta documenta buscou apagar qualquer discussão que apontasse para suas qualidades. Muita gente, inclusive, que sequer viu a mostra, passou a afirmar que não havia arte na mostra, como se leu em textos rasteiros que circularam por aí. Trata-se de um evidente equívoco para quem passou por lá.
Primeiro, porque esse debate de falta de arte é totalmente equivocado. Desde a antológica mostra Live in your head: when attitudes become form, organizada por Harald Szeemann, em 1969, a materialidade não é uma questão de fato, mas a vida na cabeça, sim. E, nesse sentido, a mostra tinha uma vitalidade como poucas que vi.

Esta edição da documenta merece ser comemorada como uma de suas edições mais complexas, que teve a coragem de ignorar solenemente o mercado de arte, que deu visibilidade a uma imensa quantidade de artistas pouco conhecidos, especialmente do sul global, e que criou, com o lumbung, uma nova chave para se pensar a arte contemporânea.

Não por acaso, o curador Charles Esche aponta que essa edição será lembrada como uma das primeiras mostras do século 21 que “aceita que o capitalismo se tornou simplesmente destrutivo e não tenta reformar ele”. E completa: “Ela aponta como a vida pode sobreviver e prosperar em face à hostilidade de um sistema mundial econômico e social catastrófico.”

Um tributo a José Claudio

José Cláudio,
José Cláudio, "Viva Zé Pereira", 1971. Foto: Flavio Freire / Cortesia Galeria Nara Roesler

Olhando pelo retrovisor, o repertório artístico de José Claudio da Silva impõe-se pelas conquistas obtidas ao longo de mais de sete décadas. Aos 90 anos, o artista expõe cerca de 150 obras entre pinturas, desenhos, carimbos, que ocupam toda a Galeria Nara Roesler, em São Paulo. A extensa mostra, realizada com releituras tenazes e encontros disciplinados, consegue o feito de reunir três amigos de longa data, e tudo começa quando a crítica e historiadora de arte Aracy Amaral passa o réveillon no Recife e vai à casa do artista, como faz sempre que está na cidade. “Gosto de estar com José Claudio, ouvir suas histórias de vida”, diz. Ao voltar a São Paulo, ela recebe o convite de Nara Roesler para assumir a curadoria.

Um prodígio de energia e método, Aracy, com idade próxima à de José Claudio, arregaça as mangas e sai a campo. Garimpa obras em museus, coleções particulares, galerias, dentro do um arco temporal entre os anos de 1950 e 1990. Curar uma exposição faz do crítico intermediário transformado em autor, pelo processo de seleção das obras e analogia entre elas. A lógica de Aracy é a lógica do saber acumulado. Sem tropeços, encontra achados como a expressiva série Aventura da Linha (1955), trabalhada com nanquim sobre papel, pertencente ao acervo do MAM SP; Simetria (1982), dança erótica/sensual desenvolvida no solo, com toques matisseanos, e a releitura de obras de Almeida Júnior, entre tantas outras.

O percurso de José Claudio é feito pela paixão por seu território, a mesma paixão do “homem situado” nomeado por Gilberto Freyre, isso exemplifica sua participação no Ateliê Coletivo, dirigido por Abelardo da Hora, e que levava em conta a luta do povo oprimido, destacando as atividades rurais e urbanas a partir do cotidiano do trabalhador. Ele sabia que estava pisando em campo minado por conhecer a famosa frase do modernismo Pernambuco: “regional como opção, regional como prisão”. 

A obra do muralista mexicano Rivera também era inspiração para o grupo que já começa a fazer arte pública. Para Aracy, José Claudio nasce para a pintura no Ateliê Coletivo, quando era um jovem e entusiasta da atmosfera artística do local. Como o artista já repetiu em várias entrevistas, ele considera o Ateliê como divisor de águas na história da pintura pernambucana. 

Motivado por um impulso renovador, José Claudio estava ansioso pela vida de artista e, ao fixar-se em Salvador, de 1953 a 1954, e conhecer Mario Cravo Júnior, Jenner Augusto, Carybé e suas obras, ele muda sua vida. Espírito inquieto, o artista segue depois para São Paulo onde trabalha como assistente de Di Cavalcanti e frequenta a Escola de Artesanato do MAM SP, sob orientação de Lívio Abramo. 

A relação de José Cláudio com a capital paulista vem de longe. Aracy destaca o período em que ele colabora com o Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, sob a orientação de Arnaldo Pedroso D’Horta. A obra do jovem José Claudio, naquele momento, encontra-se ao mesmo tempo na fronteira de alguns movimentos de arte que ele não ignora e na técnica desenvolvida por ele com gestos originais. 

Nessa época desponta o desenhista delicado, atento à linha do nanquim que, segundo Aracy, surpreende na disciplina assumida em sua múltipla observação de exposições e bienais. Nos trabalhos transparece certa influência da obra de Lívio Abramo, Grassmann, ou da abstração linear, quase abstrata, de Pedroso d’Horta. 

Por insistência de amigos, o artista inscreve-se e é aceito na Bienal de São Paulo, em 1957, recebe o Prêmio de Aquisição, além da bolsa da Fundação Rotellini, na Itália, onde vive por um ano e viaja a vários países. Essa foi a primeira de uma sequência de participações dele no evento paulista, em que esteve na 5ª, 6ª, 7ª e 18ª edições.

José Cláudio, sem título, 1968; nanquim sobre papel a partir de carimbos
José Cláudio, sem título, 1968; nanquim sobre papel a partir de carimbos. Foto: Flavio Freire / Cortesia Galeria Nara Roesler

Nos anos 1960, entre várias experimentações poéticas, nasce a série de carimbos em nanquim sobre papel. “Essas composições abstratas com diversidade rica de pura poesia gráfica perduram de 1968 a 1969”, comenta Aracy. No livro Carimbos – José Cláudio está citada a correspondência entre o artista e Walter Zanini sobre os conceitos dessa experiência e o elogio do crítico paulista ao seu trabalho. 

Na virada dos anos 1970, José Claudio faz a série Histórias de um Carimbo e desenvolve um “livro de artista” instigante, no qual mistura seu processo de trabalho, carimbos, desenhos, recortes de revistas, pinturas, colagens e textos. Uma obra que incomoda por criar um pacto com o leitor, suprimindo interlocutores.

Prosseguindo no feito de chegar a uma obra múltipla e singular, em 1975 José Claudio aceita o convite do amigo cientista e compositor musical Paulo Vanzolini, diretor do Museu de Zoologia da USP, para fazer uma viagem de Manaus a Porto Velho, a bordo do Garbe, um barco-laboratório. Para essa empreitada, mais uma vez tem o apoio de Renato Magalhães Gouveia, galerista e amigo de sempre, que lhe dá um rolo com dezenas de metros de tela. 

Essa expedição resultou numa coleta de 170 mil espécies para a coleção do museu paulista e, para as artes, cerca de 100 telas inspiradas na vegetação, fauna, nos personagens ribeirinhas e tudo o mais que ele conseguiu captar em cada dia de viagem, inclusive os pratos com peixes que experimentaram. José Claudio foi incumbido por Vanzolini de escrever um diário que resultou em relatório detalhado, transformado no livro José Claudio da Silva – 100 Telas, 60 Dias & um Diário de Viagem: Amazonas (1975).

Quando retorna ao Recife, seu trabalho se inunda de cores e luz do sol que banha a cidade, com algumas telas exibindo flagrantes do carnaval. Nesse momento de liberdade tonal surge a obra Zé Pereira, alusão ao bloco que arrasta os foliões pelas ruas da cidade, com seu enorme boneco que completa 100 anos. 

Nu é um gênero de pintura que nasce na academia. José Claudio faz uma série com mulheres desnudas que conheceu em bordeis da cidade. Aracy diz que o objetivo dessas visitas era pintar as personagens que ali trabalhavam, e cada um desses quadros leva o nome da moça retratada. Ainda desse período, ele homenageia a esposa com a pintura Retrato de Leonice (1971), e oito anos depois eterniza sua amiga galerista na tela Nara (1979). 

Nos anos 1980, José Claudio mergulha no universo de Almeida Júnior, faz releitura dos quadros O importuno (1898), Descanso da modelo (1882) e Saudade (1899), em que retrata uma moça vestida de preto lendo uma carta. Na versão de Zé Claudio, a mulher está nua igualmente lendo a carta. Nessas obras, o artista pernambucano praticamente elimina a profundidade do plano pictórico e simplifica as formas com tendência geométrica.

Tantas curiosidades permeiam essa exposição motivada pelo respeito que Nara Roesler tem pelo artista. “Devo meu trabalho como galerista a José Cláudio. Sua obra me tocou profundamente e despertou em mim o desejo de ser como uma tradutora do artista”, afirma Nara.

Com ele, a galerista diz ter aprendido a olhar as coisas simples do cotidiano popular. Ver a beleza das roupas coloridas que as lavadeiras colocavam para secar nas margens dos riachos, os raios de sol entre as folhas e a dança dos coqueirais. O sabor da manga madura e o cheiro do caju, os céus do entardecer em Olinda e toda a beleza contida na vida. “Assim, essa exposição é uma homenagem aos 90 anos de meu mestre, esse talentoso artista que tanto me ensinou”, finaliza Nara.

Lenora de Barros: Síntese de uma produção plural

Lenora de Barros FOGO NO OLHO, exposta na Pinacoteca
Lenora de Barros "Fogo no Olho", 1994. Foto: Ciro Coelho

Corpo e experimentalismo são marcos existenciais na produção dos artistas que performam. Os 40 trabalhos que constituem a exposição Minha língua: Lenora de Barros, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, enfatizam a combinação múltipla de linguagens ativadas pela artista ao longo de quatro décadas. De forma espiralada, cognitiva, o conjunto revela as afinidades da produção da artista desde os anos de 1970 até a videoperformance A Cara. A Língua. O Ventre. (2022), nascida durante o processo da mostra, curada por Pollyanna Quintella e comissionada pela Pinacoteca. Como raros artistas, Lenora retira a argila de seu destino utilitário e decorativo e a coloca no centro de um discurso experimental, conceitual, fazendo uma leitura da matéria onde ancora as imagens. A Cara. A Língua. O Ventre. decanta e desvia a sensualidade em várias direções. As três partes que compõem a obra são estratégias para ela experimentar movimentos sensuais da argila no seu corpo. 

Instalada no centro de grande sala, a obra instiga e envolve o espectador, mas permite que ele faça a própria “viagem”. O movimento lento das mãos amassando a argila, na tentativa de “esculpir” uma enorme língua, é sensual. A ideia é que o espectador alcance outra visibilidade, privilegiando fenômenos invisíveis aos olhos e “veja” o objeto saindo de sua boca. Para atingir o ilusionismo, Lenora conta com olhares de parceiros que acompanham a filmagem. Como ela comenta, “executar isso é bem diferente do que fazer uma performance ao vivo”. Há tempos a artista investiga a relação com a língua e com a palavra língua, ao mesmo tempo ideia de idioma, de órgão e de linguagem. Essa definição foi reiterada por ela na Flip deste ano, na mesa O Corpo da Imagem. O pioneirismo da abordagem conceitual da palavra e do corpo nas artes visuais, pela importância simbólica dos elementos escolhidos, transforma alguns de seus trabalhos em contraescrita imagética.

O abdômen também mantém a sensualidade na videoperformance e parte de uma definição do poeta concretista Décio Pignatari. “A mulher tem o relógio da história no umbigo”. Lenora comenta a proximidade do conceito com a obra Por Si, em que uma bolinha de pingue-pongue desliza na mesma área do abdômen. A cara de espanto, um dos fios condutores da obra de Lenora, aparece discreta na videoperformance. 

Os trabalhos gravitam em torno da obra central e mantêm conexões conceituais como a série Não Quero Nem Ver (2005), formada por quatro vídeos projetados em pequenos monitores: Tato do olho, Ela não quer ver, Já vi tudo, Há mulheres. Em Já vi tudo, Lenora é filmada encapuçada por malha tricotada, fechada sobre sua cabeça. Nesse trabalho ela optou por usar o tricô, “uma atividade estigmatizada, por ser uma feminina, eu mesma já fiz tricô”. Mesmo escondida sob um capuz, ela atua numa experiência que se move numa dupla essência: visual e verbal. Os mesmos dedos, anelar e indicador, que perfuram a argila na videoperformance, em Já vi tudo tentam criar orifício na malha de lã tricotada. A sonorização ecoa a linguagem poética sussurrada que chega a murmúrios. Já no vídeo Há mulheres, nascido de texto publicado de 1993 a 1996, na coluna Umas, assinada por Lenora no Jornal da Tarde, a filiação com a videoperformance se dá mais pela experiência estética. O poema Há mulheres é recitado em voz baixa, no mesmo ritmo cadenciado dos demais trabalhos desta série, em que seus jogos de linguagem estão sempre presentes.

A consciência do corpo como percepção poética chega mais forte para Lenora quando participa da exposição Mulheres radicais (2016), na Pinacoteca, com curadoria de Andrea Giunta e Cecilia Fajardo-Hill. A coletiva reunia cerca de 100 artistas com obras produzidas entre 1975 e 1985. “Todas se manifestavam a partir do corpo, corpo suporte de expressão, corpo ideal a partir do corpo”, como define a artista, que se identificou fortemente com elas.

A ludicidade envolve a série A Máscara de Mão (2017), composta por objetos nascidos quando ela frequenta, por acaso, um estúdio nos Estados Unidos. “Eu não tinha a menor intenção de trabalhar com argila, porque até aquele momento eu pensei, não tenho nada a ver com isso”. No entanto, um dia, ao pegar um bloco de barro, foi trabalhando pelo avesso, por trás. Chega aos movimentos de criar orifícios que foram repetidos e fizeram surgir A Máscara de Mão, para ser calçada como luvas, supostamente individual, mas que, ao se sociabilizar performaticamente, ganha chancela libertadora. Com esse trabalho Lenora reafirma a máxima de que qualquer objeto pode falar uma língua secreta.

O conceito que compõe o inventário de Lenora, ora real ora imaginário, traz um repertório de indagações que perpassam de uma obra a outra e coloca o olhar atento em outros registros cognitivos. A artista altera a percepção da arte com questionamentos que se comunicam por meio da centralização do corpo e do eu. A série Procuro-me (2003) surgiu naturalmente quando ela passava diante de um quiosque instalado em frente a um cabelereiro, no Shopping Iguatemi, onde as pessoas podiam ser fotografadas com cabeleiras. “Eu achei aquela situação insólita, engraçada, curiosa e resolvi fazer”. A fotoperformance foi publicada no caderno Mais!, da Folha de S.Paulo, e evoluiu para outros desdobramentos. 

Quando acontece o ataque às Torres Gêmeas, ela assiste pela TV pessoas desesperadas procurando umas às outras. Com isso, inventa diferentes autorretratos que lembram cartazes de pessoas desaparecidas, colados em lugares públicos. As fotos são diferentes entre si e não revelam a verdadeira Lenora. Essas imagens incomodam. Em 2002, alguns cartazes de Procuro-me, colocados na fachada do Centro Universitário Maria Antônia, foram vandalizados pelo grupo Art-Attack, que confessou o estrago. Agora, essa obra assume um protagonismo positivo no processo de implantação da nova montagem do acervo da Pinacoteca. Procuro-me, entre outros trabalhos, está exposta permanentemente em alguns locais do museu. 

Para além da expressividade e do desafio de interpretar a obra de Lenora de Barros, que em cada mostra provoca novas interpretações de acordo com a situação temporal, a exposição se abre para reflexões atualizadas sobre um novo começar. 

SERVIÇO

Lenora de Barros: minha língua
Edifício Pinacoteca Luz: Praça da Luz, 2, São Paulo, SP, 2º andar
8 de outubro de 2022 a 9 de abril de 2023
Visitação: quarta a segunda, das 10h às 18h.
Ingressos: R$ 20,00 (inteira), R$ 10,00 (meia-entrada), gratuitos aos sábados

“Tragédia!” desafia artistas a criarem nexos entre um terremoto, a Semana de 22 e as eleições no País

Mateus Moreira
Mateus Moreira, "Frenesi" (2022). Foto: Eduardo Ortega/Cortesia Fortes D'Aloia & Gabriel

A ideia de destruição, escombros, perdas e assombro atravessa as mais de 30 obras exibidas na exposição Tragédia!, em cartaz até 15 de outubro, no Galpão da Fortes D’Aloia & Gabriel, em São Paulo. Convidado no ano passado para conceber uma mostra que se referisse aos 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, Raphael Fonseca preferiu não fazer uma montagem diretamente conectada ao evento, buscava algo mais sutil e com apelo histórico, elemento caro às suas investigações curatoriais.

Em suas pesquisas sobre fatos ocorridos naquele ano, Fonseca encontrou a menção a um terremoto na cidade de Mogi Guaçu, interior de São Paulo, que aconteceu apenas duas semanas antes do célebre encontro modernista no Theatro Municipal paulistano. O abalo sísmico lhe serviu como “ponto de partida ficcional”, como ele diz, para estabelecer nexos entre a Semana de 1922, o bicentenário da Independência, comemorado em setembro, e as eleições brasileiras, com aquilo que há de trágico e de ruptura nesses três momentos.

“Fiquei conectando os pontos e pensando nessas narrativas. Já tinha em mente, de modo mais claro, que precisaria ter, no projeto, artistas que lidam, em certa medida, com um certo fantasma, uma noção de tragédia. Mas, não me interessava fazer uma exposição literal”, diz o curador. “Então, eu não queria apenas ter obras que ilustrassem a ideia de trágico, mas que a ecoassem, por meio dos materiais, das cores etc.”

Fonseca aponta que, ao fim, muitas das obras dos 13 artistas elencados para a exposição são feitas com “restos de coisas” e, “querendo ou não, elas têm algo de escombros”. A maior parte desses artistas apresenta trabalhos feitos especialmente para a mostra, à exceção de Ivens Machado (1942-2015) e Sonia Andrade, cujo vídeo Sem Título (1977) está em exibição. Segundo ele, a seleção foi um processo “muito orgânico” e, de imediato, alguns nomes lhe vieram à cabeça, como Gilson Plano e a Mayana Redin. Também a ideia de destruição e de restos surge ao se contemplar as obras.

“Muitos desses trabalhos usam materiais encontrados no lixo, em escombros, coisas baratas que você comprar ou mesmo pegar na rua. O Anderson Borba, por exemplo, usou madeiras que vieram do incêndio do Museu da Língua Portuguesa. E tem ainda a Mayana com as grades de ferro, as roldanas de Gabriela Mureb, o cobre e o tijolo na criação da Carla Chain, ou o couro e as pedras do Gilson”, exemplifica, ponderando: “Não é uma exposição de reciclagem, mas os materiais se ligam a certa noção de descarte. O que acaba contribuindo com o campo semântico do terremoto”.

Havia, no entanto, um desafio para Tragédia! na primeira sala do Galpão: exibir os trabalhos de modo que eles não passassem despercebidos diante da arquitetura grandiosa do lugar. Para tanto, Fonseca convidou Renato Pera para criar um papel de parede na primeira e maior sala, sobre o qual alguns dos trabalhos foram dispostos. A ideia, a propósito, vem de uma busca, por parte do curador, de fugir da costumeira disposição sequencial de obras.

“O resultado é um jogo bem cenográfico. Em certa medida, não parece nada do que fiz antes, e revela um interesse que vem crescendo em mim de fazer algo meio espetacular. De pensar a exposição como algo realmente próximo de um pensamento espacial, de um espetáculo, num cenário, e não de um cubo branco ou do interior de uma casa, em que você vai decorar, colocando objetinhos aqui e ali”, afirma.

 

Dois dos artistas selecionados para a exposição participam também da oitava edição do programa de residência artística Bolsa Pampulha, com curadoria de Fonseca e Amanda Carneiro (Masp), e promovido pelo Museu de Arte da Pampulha (MAP), em Belo Horizonte (MG): os mineiros Lucas Emanuel e Mateus Moreira. Ambos pintores, eles levaram trabalhos bem distintos ao espaço expositivo do Galpão, em Tragédia!.

“Lucas é um pintor que trabalha com vídeo também. Ele vai jogando com a relação entre os dois suportes em seus trabalhos. Ele tem uma pintura que lida muito com o corpo humano, mas sempre com uma estranheza. Um tom meio fúnebre, sombrio, misterioso. No vídeo ‘Compasso’, por exemplo, aparece um colchão, ao redor estão sapatos, e tem ainda uma vela, que vai se apagando. Parece meio uma sessão espírita, há a expectativa de que algo aconteça, mas é somente a vela ali, apagando-se”, comenta Fonseca.

Para o curador, Lucas se interessa por um tipo de imagem mais crua, ao passo que Mateus é um “virtuoso”. “Se a pintura do Lucas tem uma relação muito forte com o corpo, a do Mateus busca ter cenas. São imagens muito complexas, com várias coisas acontecendo ao mesmo tempo, num caráter teatral. E, muitas vezes, nesse caráter teatral, tem algo de trágico, violento. Há elementos monstruosos e fantásticos também”, diz.

Sem Título, o díptico apresentado na exposição Tragédia! por Lucas Emanuel, traz um “duelo de imagens, no contexto político das eleições, com as pessoas de costas uma para a outra”, segundo o artista. Em uma das pinturas, o céu aparece numa maior porção da superfície; noutra, é a terra que ocupa mais espaço na tela. Simbolicamente, diz ele, há uma referência a céu e inferno, trabalhada também num uso de tom mais azul, de um lado, e terroso, do outro.

Já no vídeo Compasso, o artista mostra sapatos que vinha coletando na rua ao longo do tempo, “como rastros de uma tragédia, objetos meio mórbidos, mas, ao mesmo tempo, objetos de fetiche”, diz. “A resposta ao argumento da mostra surge no sentido de um enclausuramento, num espaço que poderia ser um velório, mas também uma festa ou um ambiente íntimo. Há a ideia de um fato que parece ter acontecido ou que vai acontecer. No áudio, há também um vazamento de som, de pessoas falando, com uma certa estética de encarceramento. Mas há uma figura ausente, num jogo com a noção de uma perda.”

Já Mateus afirma que, diante do argumento proposto por Fonseca, ele logo associou Tragédia! à ideia de desordem, caos e violência. “Pensando nisso, todos esses conceitos se uniram na pintura em uma atmosfera densa, turva e claustrofóbica. Os vestígios desses acontecimentos, dessa tragédia, emaranhavam-se e se tornavam corpos nebulosos que só eram iluminados pelo fogo, que tanto traz esse estigma da devastação, mas também da renovação”, afirma o artista.

Mateus conta ainda que cada obra criada foi motivada pela “premissa da ruína” que, para ele, tornou-se a “característica cotidiana cada vez mais presente na civilização”. O artista considera que os trabalhos realizados para a exposição são um marco em sua trajetória. “Mas, talvez isso não seria possível se o tema não tivesse se encaixado tanto com os anseios que motivam minha produção. Ao investigar a memória e a imaginação, dentro do contexto atual da minha vida, tem sido quase impossível desvincular do trabalho os sintomas da vivência distópica do mundo contemporâneo”, argumenta.

Além de Machado e Sonia, Raphael Fonseca buscou, para a mostra, obras de jovens artistas contemporâneos, já com carreira consolidada, como Adriana Varejão. Desde o começo, o curador e Adriana tinham em mente fazer algo a partir das experiências dela com as texturas craqueladas. “Ela, então, teve ideia de propor um trabalho em torno do Zé Celso e do Teatro Oficina. Sabendo da relação com o terremoto e o fantasma da Semana de Arte Moderna, do argumento da mostra, Adriana achou interessante estabelecer um arco, uma ligação entre as duas coisas”, explica Fonseca.

Adriana aponta que o craquelado de sua obra, intitulada Homenagem a Zé Celso, “lembra um pouco as placas tectônicas, que são a origem dos abalos sísmicos”, numa alusão ao tal terremoto de 1922. “O trabalho mais ou menos comenta essa lógica, essa mecânica, essa questão da movimentação das placas. Ao mesmo tempo, quando o Raphael fala em tragédia, com um ponto de exclamação, tem um duplo sentido. Porque se refere à Semana de 22, que representaria toda a questão do modernismo, a tentativa de trazer para os trópicos as atualizações modernas, de vanguardas que estavam acontecendo na Europa”, comenta a artista.

Por outro lado, continua Adriana, a tragédia também evoca o teatro grego. Uma tragédia que Zé Celso usa, segundo ela, de uma maneira especial: “Fazendo uma paródia, ao mesmo tempo criando algo muito original. Então, eu pego esse discurso e me aproprio, vou para outro lado. Penso em São Paulo, em tragédia, por livre associação também pode-se pensar no Zé Celso e seu Oficina. O Zé Celso criou esse termo, o Sampã [que está escrito em seu quadro] para o espetáculo Macumba Antropófaga, evocando o mito grego de Pã, brincando com a questão de gênero da cidade. São vários caminhos ficcionais que respondem à provocação que Raphael trouxe”, conclui Adriana.

SERVIÇO

Tragédia!
Até 15 de outubro
Galpão da Fortes D’Aloia & Gabriel: Rua James Holland 71 – Barra Funda, São Paulo (SP)
Visitação: Terça a sexta-feira, das 10h às 19h; sábado, das 10h às 18h

Bienal do Mercosul fala de trauma, sonho e fuga

Pedro Reyes,
Pedro Reyes, "Hypnopedia", presente no Instituto Ling, na 13ª Bienal do Mercosul. Foto: Thiele Elissa

A 13ª Bienal do Mercosul reflete o tema Trauma, Sonho e Fuga, gatilho narrativo da primeira edição presencial em quatro anos. A curadoria é assinada por Marcello Dantas, junto com os curadores adjuntos, Carollina Lauriano, Laura Cattani, Munir Klamt e Tarsila Riso. A presidência é de Carmen Ferrão, aliada à proposta curatorial de fazer uma exposição inclusiva e disruptiva. A empresária, animada com o resultado da mostra, aposta em um público de 800 mil visitantes.

Uma das dimensões utópicas de qualquer curador é colocar em cena todos os seus delírios. Marcello Dantas, criador interdisciplinar, acostumado a pilotar grandes projetos internacionais, avalia que foi um esforço enorme comissionar mais de 60 obras, entre as 100 apresentadas por artistas de 23 países. “O conceito era trabalhar com projetos inclusivos, participativos em face do tempo que acabamos de viver com a pandemia.” Ele fala da ideia de viver junto de novo e de sentir o batimento disso, o que produziria um sentimento de união comum a todas às pessoas, independentemente das origens étnicas, de gênero, cultura. “Enfim, que a gente voltasse a pensar em uma coisa do indizível, aquilo que não dizemos e que fica preso dentro da gente.”

Esta edição teve que superar a perda da Usina do Gasômetro, em decorrência de um processo burocrático que impediu que a reforma do prédio fosse concluída a tempo. Em compensação a Bienal ganhou espaço no Instituto Caldeira, local multiuso, que fica na antiga fábrica da Renner, completamente reformada, somando uma área útil de 22 mil metros quadrados.

Com o enigmático título Transe, a exposição experimental high-tech toma parte desse mais novo espaço da cidade, introduz o visitante à artemídia atual, com obras realizadas com complexas ferramentas virtuais, linguagem tecnológica, liberdade experimental e muita ludicidade. A curadoria é de dois jovens artistas, Laura Cattani e Munir Klamt. Pela primeira vez a Bienal cria um edital de chamada aberta, reúne quase 900 projetos, dos quais somente 19 são escolhidos pelo curador geral e seus adjuntos, sem que nenhum deles soubesse o nome do autor. O que os trabalhos vencedores têm em comum é o idioma tecnológico, atual ou ancestral, como define a curadora Laura Cattani.

 

Os artistas projetam seus trabalhos, mas, para garantir a execução e o funcionamento deles, a Bienal fez parceria com a Tecnopuc, da PUC gaúcha, onde algumas das peças foram executadas.

Nesta exposição, as perguntas se multiplicam diante de uma tecnologia ainda pouco conhecida do grande público. Surpresas, algumas pessoas tentam adivinhar do que se trata a “engenhoca” montada pelos artistas mais jovens dessa mostra, Luis Enrique Zela-Koort e Genietta Varsi, que formam a dupla Esfincter. A instalação tem como título Órgano primo: Condensador de Cuerpos e é inspirada nas cosmovisões pré-modernas, propõe novos futuros ao público a partir de um esfíncter robótico composto por uma caldeira, bomba de água, um resfriador e um gerador de faíscas. Trocando em miúdos a instalação reporta-se a um esfíncter digestivo, que coleta um composto orgânico e destila a putrefação. O projeto alude à experiência científica de Stanley Miller e Harold Urey sobre a hipótese de que a matéria precursora da vida poderia ter se formado espontaneamente.

Entre as obras deste segmento, que trazem complexidade conceitual destaca-se Insurreição Micorrízica, da dupla Cesar & Lois (Cesar Baio e Lucy HG Solomon), que estabelece um canal de comunicação com o público propondo uma reflexão sobre o Antropoceno, nova época geológica caracterizada pelo impacto do homem na Terra. Cattani explica que a instalação é composta por um ambiente controlado no qual a inteligência artificial, micélios vivos (cogumelos) e redes digitais reagem às mensagens enviadas pelos participantes “Além de receber as respostas em seu smartphone, eles podem visualizar nas telas dispostas ao redor da obra dados sobre as atividades dos micélios e intervir nas características do ambiente, que vão oscilando conforme essa comunicação se estabelece.”

Há trabalhos com abordagem lúdico experimental como a instalação de Leandra Espírito Santo sobre a relação entre o corpo e máquina, fragmentação do corpo em ambientes virtuais. Moldes de partes desmembradas de diferentes corpos deslizam sobre  trilhos mecânicos. Por meio da visão monocular de uma câmera, por breves instantes, as partes amputadas de corpos diferentes se juntam e transformam-se num corpo perfeito. Cattani vê nesse trabalho uma alusão à ideia do projeto Vitruviano, de Leonardo Da Vinci que apresenta o corpo humano ideal.

Distante do Instituto Caldeira, bem no centro da cidade, o Santander Cultural exemplifica a ideia de batimento contido no conceito da bienal, com a instalação de Rafael Lozano-Hemmer. Mais uma vez, o artista mexicano-canadense desafia pontos de tensão entre a arquitetura e o espaço. A instalação Pulse Topology toma todo o andar térreo do Santander e capta, a partir de sensores, o pulsar dos visitantes, que o visualiza na sequência repetitiva de três mil luzes que brilham individualmente. O resultado é uma chuva de brilho, experiências cinética e visual contagiantes.

A 13ª edição ocorre num momento de transformação urbana da orla do rio Guaíba, com a recuperação do Cais do Porto, agora com bares, restaurantes e espaços de convivência. Os antigos armazéns ainda permanecem lá, mas só o de número 6, com entrada pelo Cais Embarcadero, acolhe obras da Bienal, sendo algumas mais superficiais e outras mais densas.

No momento político em que vivemos, Ar, instalação de José Bento, provoca empatia imediata com o público, por seu conteúdo crítico. O artista cria uma floresta com 36 peças de madeira, esculpidas em forma de cilindros de oxigênio hospitalares, semelhantes aos que faltaram durante o pior momento da Covid-19, provocando a morte de centenas de pessoas. As peças foram trabalhadas com espécies diferentes de madeiras que representam quatro biomas brasileiros: o amazônico, o atlântico, o cerrado e a caatinga.

Drogas e suas consequências sempre provocaram o imaginário dos artistas, em todas as épocas. Sob o título Placebo, Raphael Escobar inventa um cenário de produção caseira de drogas. Em cima de uma mesa de aço, o jovem artista espalha 20 mil comprimidos prensados nas cores rosa e lilás, que rebatem também um laranja, confeccionados à base de café e açúcar. Ao fundo, um vídeo exibe a produção de drogas legais e ilegais, enquanto as legendas explicam as etapas da produção do café. Tudo parece nonsense, mas a intenção do artista é justamente confundir o espectador sobre os limites entre as duas substâncias.

Política e ativismo atravessam também essa edição. Marilá Dardot, com Zero Tolerance Silver Clouds, instalação confeccionada com elos de corrente preenchida com balões de  fibra de poliéster metalizada que flutuam no espaço, conecta as políticas migratórias estadunidenses à obra Silver Clouds (1966), de Andy Warhol. A artista reporta-se à lei de imigração Tolerância Zero, que em 2018 separou duas mil crianças de suas famílias mantendo-as presas em um cercado de arame num centro de detenção no Texas. Os cobertores prateados usados pelos menores foram confeccionados com o mesmo material empregado por Wahrol em sua obra.

Alguns artistas despertam a atenção do público, mesmo com um trabalho intimista. Marina Abramović apresenta o vídeo Seven Deaths of Maria Callas (2021). A performer cria experiência cinematográfica imersiva impulsionada pela cantora lírica Maria Calas (1923-1977). Para cada uma das sete mortes, Abramović interpreta um solo original de Maria Callas recompondo os finais trágicos das árias. Em vez de estrangulada por Otelo, a Desdemona de Abramovic é esganada por uma serpente. Já o suicídio ritualizado de Madame Butterfly é substituído pela artista se desfazendo do traje de proteção, em meio a uma paisagem de devastação química.

Há motivações que enriquecem o discurso, como prova o artista inglês Tino Sehgal, que já em agosto engajou-se virtualmente à 13ª Bienal, participando do terceiro encontro do seminário Zonas de Contato. A obra, This Element, é uma somatória de suas vivências e, para realizá-la, incorporou samples de música pop e tons vibracionais que, segundo o artista, relacionam-se com as frequências dos chacras. Ainda utiliza fragmentos da banda alemã Kraftwerk e da rapper estadunidense Missy Elliot. Sehgal acredita que o ato de cantar não conecta apenas o corpo e a mente, “muito mais do que isso, mostra conexão com nós mesmos e com os que nos cercam.” A cada duas horas, o “palco” do This Element reúne pessoas para fazerem algo de forma coletiva.

O impacto do imaginário, por meio da ativação do onírico, dos sonhos e delírios estimulou o artista catalão Pedro Reyes a criar Hypnopedia, uma espécie de enciclopédia dos sonhos. O arquivo digital é uma rede semântica de autores, nesse caso o público foi convidado para produzir pequenos registros de memórias oníricas, agora exibidos numa sala zen no Instituto Ling, com os espectadores deitados.

Os dez locais que abrigam a 13ª Bienal espalhada pela cidade, mais do que pontos expositivos, são plataformas onde as pessoas se abastecem no reencontro com a arte e com amigos.

SERVIÇO

13ª Bienal do Mercosul
15 de setembro a 20 de novembro de 2022
Visita nos múltiplos espaços mediante agendamento (clique aqui)

“Outros Navios” traz panorama da obra do fotógrafo Eustáquio Neves

Obra da série
Obra da série "Outros Navios", de Eustáquio Neves. Crédito: Divulgação

No dia 7 de setembro de 1822, o grito do Ipiranga marcava a Independência do Brasil. Porém, apenas 66 anos depois, em 1888, passaram a ser ouvidos os “gritos de liberdade das mais de 4,86 milhões de pessoas que foram escravizadas no País”. Em 2022, um racismo estrutural ainda permeia as relações. É isso que nos explica o texto que abre Outros Navios, exposição individual do fotógrafo Eustáquio Neves no Sesc Ipiranga, em São Paulo. Atravessando quase 40 anos de produção do artista mineiro, descendente de pessoas negras escravizadas, a mostra traz uma história de diásporas e resistências.

“É um trabalho que capta e manipula imagens ligadas às relações étnico-raciais promovidas no passado e no presente, como a violência contra os corpos, a intolerância contra os ritos e a privação de direitos da população negra”, destaca o curador da mostra, Eder Chiodetto.

Fotógrafo e videoartista autodidata, Eustáquio Neves desenvolve seus trabalhos por meio de experimentações na fotografia analógica, utilizando conhecimentos adquiridos na sua formação como técnico em Química Industrial. “A gente pode perceber muito claramente que ele foi construíndo a imagem em camadas, nas quais se interpõem, além da fotografia,  pintura, abrasões, documentos, cartas de alforria [etc.]. Eu costumo ver o trabalho do Eustáquio como uma construção dessas camadas, como se fosse uma forma de desvelar as verdades históricas que foram construídas. Como se ela pudesse revelar os labirintos da história, onde a gente pudesse ouvir também os discursos dissidentes”, diz o curador.

Assim, caminhando pela exposição, nos deparamos com séries como Máscara de Punição – que traz combinados o rosto da mãe do artista e a imagem de uma máscara de tortura que era comumente usada em pessoas escravizadas – e Arturos – que retrata a comemoração da Festa de Nossa Senhora do Rosário, santa protetora de irmandades negras no Brasil colonial.

“As minhas histórias são muito autobiográficas, falo muito de mim, falo muito das minhas origens como uma pessoa negra. Eu basicamente conto uma história através de imagens”, conta Eustáquio Neves a Artérias, série documental do Sesc TV, dirigida por Helena Bagnoli. No episódio sobre o fotógrafo, ele compartilha sua história, a trajetória de seus trabalhos e as motivações que os criam (clique aqui para assistir). “Quem me despertou para o que eu faço foi Arthur Bispo do Rosário. Quando vi uma exposição dele [Registros da Minha Passagem Sobre a Terra, no Museu de Arte da Pampulha em 1989], senti que eu podia fazer o que eu quisesse com a fotografia. Aí que eu entro nessa coisa da fotografia, falei: ‘olha, a fotografia não precisa ser só isso que eu aprendi até hoje, a fotografia pode ser outras coisas'”, completa.

A arte!brasileiros visitou a exposição e conversou com o curador. Confira:

Outros Navios: Fotografias de Eustáquio Neves permeia diversos espaços do Sesc Ipiranga. Com obras na entrada e num painel da área externa, concentra-se principalmente em três salas, que formam núcleos da exposição. A sala 1 reúne um conjunto de trabalhos  que alude às violências e silenciamentos perpetrados contra pessoas escravizadas. A segunda, como nos explica o curador, talvez se proponha como espaço de cura. Nela localizam-se séries que tematizam a resistência por meio de saberes ancestrais e rituais afro-brasileiros, imagens da família de Eustáquio e, ao centro, uma exibição dos processos utilizados pelo fotógrafo em suas criações. Por fim, a sala 3 exibe uma videoinstalação, criada a partir do material bruto de três vídeos do artista: Post No Bill (Nigéria, 2009 – 2022), Bariga (Nigéria, 2009 – 2022) e Crispim: Encomendador de Almas, (Brasil, 2006 – 2022). “É uma sala mais enérgica”, explica Chiodetto, propondo que a visita seja encerrada nesse ambiente que propulsiona a reflexão e move o espectador.

SERVIÇO

Outros navios: fotografias de Eustáquio Neves
6 de setembro até 26 de fevereiro de 2023
Sesc Ipiranga: Rua Bom Pastor, 822, Ipiranga, São Paulo
Visitação de terça a sexta, das 9h às 21h30; sábado, das 10h às 21h30; domingo e feriado, das 10h às 18h
Entrada gratuita

ASSISTA TAMBÉM à série documental Artérias, que capta a essência de artistas visuais de diversas gerações e regiões do Brasil