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No embalo político de Maciel Salú

"Essa canção, para mim, é quase um grito que, durante muito tempo, ficou engasgado. Um misto de revolta e, ao mesmo tempo, serenidade e sabedoria", declara Salú. Foto: Fred Jordão

Já com quatro álbuns solo lançados, Maciel Salú se destacou por suas canções de cunho romântico. Porém, o sertanejo forrozeado do pernambucano também sempre teve um apelo social muito forte. A figura do trabalhador não é difícil de ser encontrada na discografia do cantor. Canções como O vendedor ambulante (2016) e Trabalhador rural (2008) mostram a conexão de Salú com esse universo.

Agora, lançando o quinto CD, Maciel escolheu as voltas e reviravoltas das questões político-sociais do País para abordar em seu primeiro single, Liberdade, que você escuta com exclusividade no PáginaB!. O músico, membro Orquestra Contemporânea de Olinda, já fez parcerias com uma série de artistas, como Chico César, Jorge Du Peixe e Siba.

Neste novo single, Salú faz mais do que reproduzir sua canção, pois convida o público a refletir sobre várias questões que se colocam como empecilho para que o Brasil saia da crise que vive hoje. O uso de bateria e guitarra apontam para influências do rock, que transparecem uma inquietação do músico que clama por revolução.

Além disso, o pernambucano enfatiza a aversão à ideia de volta da ditadura e defende o fortalecimento da democracia como chave para resolver questões. O preconceito, as brigas religiosas, o autoritarismo e justiça tendenciosa também são temas abordados por ele.

A sequência frenética desses assuntos no desenvolvimento da música manifesta a turbulenta situação ao qual o povo está submetido. Tudo isso, para ele, torna a sociedade mais desigual: “Infelizmente, tudo isso ainda está presente em nossa sociedade. Percebam, como exemplos, os ataques aos terreiros de Candomblé e Umbanda, além da proibição das sambadas de Maracatu Rural”, comenta. As vivências de Maciel contribuíram para que se manifestasse dessa forma: “São coisas que vivi e lutei contra nesses últimos anos, sem contar muitas outras situações que precisei passar pelo único e exclusivo fato de ser negro, vindo de uma família simples, nascido, enquanto músico, no berço da cultura popular e não na academia, nem no conservatório.”

Apesar de recorrer a um estilo mais próximo do pop-rock, não deixou de lado sua rabeca, que aparece vigorosa nos interlúdios da canção. É com o grito de Liberdade que Maciel Salú contribui para potencializar a conversa pelos rumos do País. Para isso, inspirou-se em Nelson Mandela: “Essa canção, para mim, é quase um grito que, durante muito tempo, ficou engasgado. Um misto de revolta e, ao mesmo tempo, serenidade e sabedoria”, declara o músico.

Liberdade, música que estará no CD homônimo que Maciel lança este ano, pode ser conferida com exclusividade abaixo:

 

O brilhantismo descontente de Jards Macalé

Caso seríssimo o primeiro álbum solo de Jards Macalé. Marcado por parcerias com letristas insuspeitos – os poetas José Carlos Capinam, Torquato Neto, Duda Machado e Waly Salomão, e os compositores Luiz Melodia e Gilberto Gil – o biscoito fino, lançado pela Philips, em 1972, contou ainda com a participação de dois dos mais expressivos músicos da geração que modernizou a música popular do País na virada dos anos 1960 para a década de 1970: o baterista Tutty Moreno (marido da cantora Joyce, então casada com Nelson Ângelo) e o incendiário Lanny Gordin, que deixou o posto de guitar-hero da Tropicália para assumir violão e contrabaixo elétrico no LP.

Mas, antes de falarmos de Jards Macalé, como singelamente foi intitulado o début epônimo do compositor, façamos um breve retrospecto dos caminhos que levaram o artista carioca até este primeiro registro solo impregnado de brilhantismo e do ímpeto de “desafinar o coro dos contentes”.

Nascido na zona Norte, no bairro da Tijuca, em 3 de março de 1943, ele foi batizado Jards Anet da Silva. Aos 8 anos de idade, partiu com os pais e o irmão caçula, Roberto, para Ipanema. Na zona Sul logo ganhou o apelido, em alusão ao nome do pior jogador do clube do Botafogo, chacota que adotaria, depois, como sobrenome artístico.

Se nos campinhos de várzea o desempenho do menino Jards era pífio, digno de um Macalé, a vocação para craque da música popular aflorou desde cedo, por influência de dois amadores apaixonados por música: o pai, acordeonista, e a mãe, excelente pianista e cantora. Junto deles e do irmão, Macalé participava em casa de frequentes reuniões musicais embaladas ao som de foxes e valsas. Além dos gêneros de tradição estrangeira, o intruso samba, vindo do vizinho Morro do Formiga, também ia aos poucos fazendo a cabeça do garoto.

Na adolescência, a amizade com Chiquinho Araújo, filho do maestro Severino Araújo da Orquestra Tabajara, foi determinante para transformá-lo no aspirante a artista que se consolidaria nos anos 1970 – não sem muita turbulência, como veremos.

Ao lado de Chiquinho, Macalé teve acesso a espaços restritos da extinta Rádio Mayrink Veiga. Pôde, por exemplo, conferir de perto concertos regidos por Severino, muitos deles impregnados de maracatus, choros e frevos. Pôde também ter acesso a valiosos registros fonográficos de big-bands de jazz, como as de Billy Butterfield, Ted Heath e Stan Kenton.

Foi ao lado do chapa Chiquinho, baterista, e do amigo Jota, estudante de Engenharia e flautista, que Macalé, assumindo a faceta de violonista, formou seu primeiro grupo, chamado Três no Balanço. De vida efêmera, o trio deu lugar ao Conjunto Fantasia de Garoto. Pouco depois, na primeira metade dos anos 1960, ele decidiu mergulhar nas partituras: teve aulas de piano e orquestração com o maestro César Guerra-Peixe; de análise musical com Ester Scliar; de violoncelo com Peter Dauelsberg; e de violão com Turíbio Santos e Jodacil Damasceno.

Capa do LP epônimo de 1972. Foto: Divulgação / Philips

A imersão fez de Macalé sujeito conhecido entre seus pares musicais de zona Sul. Em 1963, no Rio de Janeiro, ele conheceu Caetano Veloso, a quem chamava “Caio”. Sabendo da ebulição soteropolitana – na nascente cena musical daqueles dias despontavam artistas como Gil, Gal, Bethânia e Tom Zé – lamentou não ter podido seguir com Caetano no retorno deste à Bahia. Dois anos mais tarde, quando o “Grupo Baiano”, como bem definiu Augusto de Campos, se deslocou para o eixo RJ/SP, Macalé passou a assinar a direção musical dos primeiros shows cariocas de Bethânia.

Em 1966, municiado do conhecimento téorico recém-adquirido, começou a trabalhar para o produtor Guilherme Araújo, assinando a direção musical e tocando em shows na boate Cangaceiro. Um desses espetáculos, Pois É, foi escrito por Caetano e Suzana de Moraes e reuniu canções interpretadas por Vinicius de Moraes (pai de Suzana), Bethânia e Francis Hime, sob direção do ator Nelson Xavier. A despeito de tantos atrativos, Pois É não emplacou e Macalé embarcou, então, em um período transitório e instável, marcado pela audição compulsiva do jazz produzido entre as décadas de 1940 e 60 e uma imersão na discografia bossanovista, por influência da amiga Silvinha Telles.

Uma nova parceria artística, com José Carlos Capinam, renderia frutos mais generosos para o compositor. Ao lado do poeta baiano Macalé fundou a produtora Tropicarte e escreveu uma série de canções antológicas, como Pulsar e Quasars, incluída no álbum de 1969 de Gal Costa, o segundo trabalho solo da cantora, informalmente conhecido como Cultura e Civilização. Registrado no final do ano anterior, o explosivo álbum de Gal teve arranjos escritos pelo maestro tropicalista Rogério Duprat, que contou com o trabalho de Macalé, como assistente.

Pouco depois, acompanhado do grupo Os Brazões, de Miguel de Deus, Macalé protagonizou episódio embrionário para sua eterna pecha de “louco” e “maldito”: subiu no palco do IV Festival Internacional da Canção de 1969 para defender nova parceria com Capinam, a apocalíptica Gotham City. Longe de despertar a empatia do público – jovem, porém, conservador e patrulheiro de certo anti-imperialismo – Macalé foi alvo de uma histórica vaia e manifestação de repulsa.

Detalhe da contracapa do álbum epônimo de 1972 com os músicos reunidos no registro, o baterista Tutty Moreno e o guitarrista Lanny Gordin, Foto: Divulgação / Philips

“No sentindo do trabalho, era fantástico, agora, no sentido comercial, era muito violento. Não dava resultado. Rogério Duprat fez um arranjo que, no final, a orquestra tinha que ficar louca, completamente esquizofrênica. O maestro Tavares – que ia reger – ficou puto. Ele estava levando a sério, mas quando viu que a gente estava cantando aos berros, se recusou a reger. E quem acabou regendo foi o Erlon Chaves”, relembrou Macalé, em entrevista ao repórter Wilson Moheardui, da revista O Bondinho, em fevereiro de 1972.

Mesmo vaiado e hostilizado, inabalável, Jards seguiu rumo com um novo grupo, chamado Soma, que incluiu em sua formação um dos poucos divergentes da caretice da plateia do festival de 1969, o percussionista Naná Vasconcelos. Segundo Macalé, logo após a apresentação ele foi abordado por Naná com a seguinte frase: “Meu irmão, eu amo você. Posso entrar nessa?”. Ao que o compositor de Gotham City teria dito: “Você já está, rapaz!”.

A experiência Jards/Naná/Soma rendeu o belo compacto Só Morto/Burning Night, que também contém as composições Soluços, O Crime e Sem Essa. De tão rejeitado nas lojas – “Macalé, aquele louco? Não Quero, não!”, diziam os revendedores – o compositor preferiu ordenar a gravadora RGE que retirasse a obra de circulação. Censura mercadológica que colocou o artista em um longo sabático.

“O negócio era levar a um radicalismo total e passar para o outro lado, tanto em relação a minha música, como em relação ao que estava acontecendo. Dava o estouro logo. Mas aí, depois de Gotham City, eu ganhei uma antipatia incrível. Diziam que eu era louco. Passei dois anos sem nenhuma possibilidade. Nenhuma gravadora queria mais aceitar minha figura”, recordou Macalé na entrevista à O Bondinho.

Foi nesse contexto letárgico que, acompanhado da mulher Giselda, o compositor foi passar o carnaval de 1971 em Salvador, na companhia de Bethânia. Dias antes, ela recebera do irmão Caetano, então exilado em Londres, um recado urgente. O baiano queria que Macalé partisse imediatamente para a capital inglesa para assumir a direção musical de seu novo álbum. Lisonjeado com o convite, no entanto, sem recursos financeiros para aceitá-lo, Macalé mandou agradecer e voltou ao Rio. Uma semana depois do Carnaval veio a boa nova: Caetano arcaria com as despesas dele e de Giselda pois, segundo garantiu a Bethânia, só faria o álbum se fosse com Macalé no comando.

“A gente não tinha nem material para trabalhar. Era tudo improvisado: Caetano com o violão dele e eu com o meu para sustentar harmonicamente o dele. Houve uma grande transa. E não só no sentido musical, que ficou mais apurado. Em termos individuais, o meu enriquecimento foi muito grande. Assistia a tudo e ouvia muito o papo de Gil e Caetano. Aguentava toda a barra da relação de grupo, segurando as pontas pra manter o grupo unido.”

Foi assim, nesse ambiente descontraído, de criação gradativa, que nasceu aquele que é considerado por muitos a obra-prima da discografia de Caetano, o álbum Transa, concluído no Brasil logo após o baiano retornar do exílio, no início de 1972. Transa também tornou-se célebre por dois motivos. Um deles, pouco nobre: o rompimento da amizade entre Macalé e Caetano, porque o baiano propositalmente não teria creditado a direção musical do amigo no encarte do álbum (Caetano até hoje diz que foi um erro de impressão da Philips). Fato positivo: o álbum serviu de aquecimento para a trinca de ases Jards, Lanny e Tutty.

Ouça abaixo a caótica apresentação de Gotham City no FIC de 1969

A aproximação, o convívio regular e os intensos diálogos musicais permitiriam a Macalé entrar em estúdio, finalizar o trabalho e colocar no mercado seu primoroso álbum-solo, uma das estreias mais marcantes da geração de artistas de música popular que surgiu na segunda metade do século 20 no Brasil.

Com arranjos escritos por Macalé, Lanny e Tutty, o álbum reúne repertório cinco estrelas. Compostas a quatro mãos, com Capinam: Farinha do Desprezo, 78 rotações, Meu amor, Me Agarra e Geme e Treme e Chora e Mata e a emocionante Movimento dos Barcos. Escritas com Waly, Revendo Amigos e Mal Secreto. Única, porém memorável, parceria com Torquato: Let’s Play That. O álbum ainda reserva pérolas de Gil e Luiz Melodia: Farrapo Humano e A Morte. Fechando o repertório, Duda Machado assina “apenas” uma, a arrebatadora Hotel das Estrelas, revelada meses antes na interpretação pungente de Gal durante o show Fa-Tal – Gal A Todo Vapor, tema de nossa última coluna.

Apesar de o álbum ter propiciado uma maior compreensão sobre a obra de Macalé, ele continuou seguindo à margem, sem abrir concessões. Entre seus trabalhos mais significativos estão álbuns plenos da mesma energia e inventividade, como Aprender a Nadar (o segundo, de 1974), Contrastes (1977) e Let’s Play That (de 1983, este último foi feito em parceria com o amigo Naná Vasconcelos).

Em 1973, Macalé idealizou também um concerto em celebração aos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O encontro resultou no álbum duplo O Banquete dos Mendigos e reuniu artistas como Paulinho da Vila, Milton Nascimento, Gal Costa, Edu Lobo, Chico Buarque, Raul Seixas, entre outros. Também obrigatória é a parceria entre Jards e o mestre Kid Morangueira, ou melhor, Moreira da Silva.

Boas audições e até a próxima Quintessência!

Originalmente publicado no site da revista Brasileiros em 10.4.2014

Ouça, na íntegra, o álbum Jards Macalé

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Leia a reportagem Diários de Macalé, uma imersão, ao longo de uma semana, no processo de produção do espetáculo Sinfonia de Jards, apresentado, em 2011, no Teatro Oficina, em São Paulo

Diários de Macalé

Nos dias 26 e 27 deste mês, o Teatro Oficina, em São Paulo, será palco de um espetáculo que promete entrar para a extensa galeria dos célebres eventos que acolheu. Revisitando pérolas de seu repertório, como Gotham City, Hotel das Estrelas, Mal Secreto e Vapor Barato, o compositor carioca Jards Macalé promoverá uma experiência sensorial ao lado de Lanny Gordin, rei da guitarra tropicalista e parceiro decisivo para a sonoridade vibrante de seu antológico álbum de estreia, epônimo, de 1972.

Além do reencontro histórico de Jards e Lanny, Sinfonia de Jards – Meditação para a Cosmobaba, deve provocar estímulos com a inusitada interatividade que propõe. Dirigidas por Chico França e Gregório Gananian, peças audiovisuais editadas a partir da captação de cinco câmeras serão projetadas, simultaneamente, em cinco telões, que prometem dialogar com a performance de Macao e Lanny.

As filmagens foram realizadas em janeiro e a reportagem de Brasileiros esteve infiltrada na casa do compositor, no Rio de Janeiro, e nos sets de gravação, ao longo de cinco dias. As impressões dessa rica experiência de proximidade com o homem por trás do autor de real grandeza, obscurecido pela eterna aura de maldito, são narradas a seguir

O morcego patriota do Jardim Botânico                                                                Segunda-feira de calor implacável no Rio de Janeiro, 10h da manhã. Depois de cruzar a ponte Rio-Niterói e enfrentar tráfego intenso no Aterro do Flamengo, seguimos esbaforidos em dois carros até as ruas do Jardim Botânico, rumo à casa de Jards Macalé.

Sob o braço direito do Cristo Redentor, em um pequeno apartamento térreo de uma estreita rua de paralelepípedos em formato de U, Jards nos aguarda, no portãoansioso.

Fixados na parede da entrada de seu apartamento, observo dois signos cultuados pelo músico carioca: uma enorme pipa de nylone m formato de morcego e um relógio de madeira com a bandeira do Brasil talhada à mão e, no espaço reservado ao “ordem e progresso”, a sentença “desordem e regresso”. Um presente do amigo cineasta Nelson Pereira dos Santos e uma remissão à real devoção de Jards pela bandeira brasileira.

Jards Macalé e Vinicius de Moraes em registro de 1962. Imagem afetivamente emoldurada e afixada em uma das paredes do apartamento de Macalé. Foto: Arquivo pessoal

Sem temer a desordem e o regresso, desde que provocou furor público pela primeira vez, em 1969, quando subiu ao palco do IV Festival Internacional da Canção, acompanhado de Os Brazões, para defender Gotham City, parceria com o amigo, poeta, Capinam, Macalé tem perseguido a contramão de caminhos trilhados por alguns de seus ilustres pares dos anos 1960, como Gal Costa, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Jamais conheceu o mesmo êxito comercial dessa “santíssima trindade” tropicalista, mas, desde sempre, defendeu uma condição altiva de estar à margem. Como bem disse em seu álbum homônimo de 1998: “Maldito é a mãe, o que faço é música!”.

Ao som de Wave na voz sublime de João Gilberto, antes de partirmos para a primeira gravação do primeiro dia, Macalé dá uma rápida passada por sua agenda para checar os compromissos dos próximos dias. Fala com entusiasmo do aniversário do amigo Luiz Melodia, que acontecerá na quinta-feira, e recorda que, no dia seguinte, não poderá gravar cedo. Terá de ir à sessão semanal de psicanálise e também devolver o terno de seu analista, gentilmente emprestado para que ele pudesse comparecer com o garbo necessário à posse da ministra da Cultura, Ana de Hollanda, em Brasília, em cerimônia realizada dias antes. Desde 1994, Jards e Ana protagonizam uma amizade colorida que (o cantor sugere) faz linha tênue com interesses afetivos.

Desconfiado, Macalé muda de assunto. Enquanto afina o violão, recorda a hilária tentativa de João Gilberto de roubá-lo, em 1972. De volta ao País – na célebre passagem em que exigiu ser recebido por Caetano Veloso e disputou com ele uma partida de pingue-pongue em pleno saguão do Galeão –, João chegou querendo saber qual era o melhor violão do Rio. Mais de um músico recomendou ao guru baiano que pedisse emprestado o de Jards.

Fã devoto de João, e também conhecedor da fama de seu ídolo de colecionar violões alheios, Macalé hesitou muito, mas decidiu emprestar o instrumento manufaturado pelo renomado luthier uruguaio Juan C. Santurion. Por segurança, exigiu de Octávio Terceiro, inseparável agente de João, a devolução imediata do instrumento, assim que o último acorde fosse tocado no Canecão.

 

Um longo e afetuoso abraço e o pedido sussurrado de “… Vamos com calma, Caetano”, insinuam uma reaproximação gradativa. Qualquer um que tenha escutado ‘Transa’ – a obra-prima do baiano, que teve direção musical de Jards não creditada, motivo este alegado como o estopim da briga – sabe o quanto essa ruptura de laços afetivos foi também uma baixa lamentável para nossa música

 

Quatro dias depois, nada do violão. Macalé conta que, indignado, foi até o hotel onde João se hospedava e só arredou o pé de lá quase cinco horas depois. Depois de subir e descer os elevadores por quatro vezes, Octávio Terceiro, relembra Macao, partiu em nova tentativa, levando consigo alguns doces de banana que Jards havia acabado de comprar na rua. Ao chegar no quarto, Terceiro ofereceu um deles a João que, na primeira mordida, quis saber qual era a procedência da guloseima que fez com que ele se lembrasse dos doces que comia na infância em Juazeiro – esquivo, questionou: “Mas por que o Jards não sobe, Octávio? Traga ele até aqui e, por favor, descubra de onde vem esses doces!”.

Violão resgatado, uma amizade musical nasceria daí. No segundo encontro, uma visita à casa de dona Lygia, mãe de Macalé, que vive em Penedo, no interior do Rio, o convite para um café vespertino foi levado ao pé da letra por João e suas excentricidades. Ao ouvir a campainha Jards seguiu até a porta e deu de cara com o baiano trazendo violão, pó de café e coador à tiracolo!

Jards Macalé e os Brazões apresentam ‘Gotham City’, no Festival Internacional da Canção de 1969. Foto: Arquivo pessoal

A programação da primeira manhã de filmagens se inicia com a produção dos vídeos que acompanharão a execução de Let’s Play That, faixa do primeiro álbum de Jards, com a pena elegante do poeta Torquato Neto.

Em busca de inspiração, Macalé procura o CD homônimo em que regravou o tema com Naná Vasconcelos, em 1983, e coloca a faixa para tocar no repeat, em volume de festa. Ao trancar o apartamento e sair para a rua, observo que ele não desligou o aparelho e que a música continuará ecoando repetidamente pela vizinhança. Ele dá de ombros e conclui: “Deixa tocar, qual o problema?! Sou um rapaz solteiro, não devo satisfação a ninguém!”.

Seguimos para uma viela com extensa escadaria, a uns 500m da casa de Jards que, em alusão a Tarzan, emite um berro gutural que ecoa pela mata úmida e exuberante do Morro do Corcovado. Não tarda para sermos perseguidos por mosquitos e borrachudos sedentos por sangue. Jards recomenda a compra de repelente. Enquanto a equipe prepara o set, pego um dos carros e sigo com ele até a farmácia mais próxima. Ao sair de lá, Jards sugere tomarmos café em uma padaria da Rua Humaitá.

Aguardamos a garçonete tirar o pedido e o jornal do dia, disposto sobre a mesa, desperta a atenção de Macao. Folheando as páginas de cultura, ele dá de cara com uma matéria que anuncia o aniversário de 70 anos do amigo Jorge Mautner. A festa acontecerá, horas mais tarde, no Circo Voador, com direito a show de Mautner ao lado do parceiro Nelson Jacobina, da Orquestra Imperial, e da ilustre participação de Gil, Caetano, Melodia e do próprio Jards, muito embora, para a fúria dele, o jornal sequer mencione seu nome ao longo do texto de meia página.

Macalé dobra o tabloide, o arremessa na cesta de lixo mais próxima e decido partir logo para uma questão polêmica. Comento que o reencontro dele, Gil e Caetano é aguardado há décadas – Macalé esteve distante de Gil e rompido com Caetano, desde a primeira metade dos anos 1970. Ele comenta, entre sorrisos céticos, as tentativas indiretas de reaproximação de Caetano, que frequentemente o elogia e diz, aos amigos em comum, sentir sua falta. Ele também diz gostar de Caetano, mas se mostra melindroso e revela que a gota d’água de suas desavenças veio quando, em uma discussão financeira, após um show em 1974, foi chamado de canalha pelo baiano. Algo imperdoável, para ele.

De volta ao set, muito repelente para conter os insetos e em menos de meia hora, trajando apenas shorts, descalço e empunhando o violão, Jards resolve a filmagem de Let’s Play That, por conta própria, satisfeito com sua performance, no segundo take.

Misturando as vestes de Batman e Super-Homem, com uma canga que estampa a bandeira do Brasil travestida de canga, Macalé grava com a equipe o clipe de ‘Gotham City’ no pier da Lagoa Rodrigo de Freitas. Foto: Luiza Sigulem

Retornamos ao apartamento e começam os preparativos para o segundo registro do dia. O tema é Gotham City e será gravado em duas etapas: um passeio ao Jardim Botânico, caracterizado de Batman, e uma caminhada, fantasiado de Coringa, em pleno sábado, pelas ruas estreitas e apinhadas de gente do Saara, o maior comércio popular do Rio.

Trajando cueca samba-canção, camiseta do Super-Homem, uma canga com a bandeira do Brasil fazendo as vezes de capa e dois itens originais do figurino do homem-morcego – a máscara e um largo cinturão sobreposto na barriga proeminente –, Macalé sai às ruas e canta os versos de Capinam, repetindo aos berros o refrão “Cuidado, há um morcego na porta principal! Cuidado, há um abismo na porta principal“.

Por onde anda, é perseguido por risos e olhares pasmados de vizinhos e comerciantes que o reconhecem e o cumprimentam.

Tomamos o caminho de volta e uma cena impagável é registrada, Jards estaciona no farol de pedestres ao lado de um policial militar que o fita, indiscretamente, da cabeça aos pés. Com seriedade inabalável, ele olha para o homem, acena com a cabeça, espera ele avançar pela faixa e comenta, sorrateiro: “Defendemos a ordem por aqui!”.

Encerramos o dia exaustivo indo direto ao Circo Voador para celebrar os 70 anos de Mautner. Por sorte – e com os equipamentos ainda nos carros –, a equipe é autorizada a entrar nos camarins e acaba filmando o reencontro de Macalé e Caetano, em registro de Chico, Gregório e seu irmão, César.

Um longo e afetuoso abraço e o pedido sussurrado de “… Vamos com calma, Caetano”, insinuam uma reaproximação gradativa. Qualquer um que tenha escutado Transa – a obra-prima do baiano, que teve direção musical de Jards não creditada, motivo este, há décadas, alegado como o estopim da briga – sabe o quanto essa ruptura de laços afetivos foi também uma baixa lamentável para nossa música.

Confissões de um peitólogo
Empresária de Jards, a produtora cultural Maria Braga, tia da atriz Alice Braga e irmã de Sonia Braga (cultuada como uma pin-up tropical por esse escriba em sua adolescência), nos hospeda em Niterói, justamente na casa da atriz, onde ela se instala em suas passagens pelo Brasil. Objeto de desejo de toda a equipe, a enorme cama de Sonia é dividida em rodízio e é nela que desperto de um sono profundo e revigorante.

Depois da maratona do dia anterior, a terça-feira reserva uma agenda bem menos extenuante. De volta à caverna do morcego, enquanto o figurino da tarde é preparado, Macalé põe-se a substituir uma bandeirola retangular fixada na parede que divide seu quarto da sala por uma ilustração com dois anjos.

Quando tira a bandeirola da parede, uma famosa foto em preto e branco de Maria Bethânia – muito jovem, torso nu e seios à mostra – faz-se revelar, para a surpresa de todos. A imagem é rapidamente coberta pela ilustração dos anjos. Macalé justifica a presença da foto na parede, porque, como bom “peitólogo” que é, tem de ter sempre à mão aquela imagem.

Esclarecendo melhor sua obsessão, ao ver uma chamada de Order & Law na TV – um de seus seriados prediletos, defende – ele comenta, entusiasmado, que uma das atrizes é filha de Jane Mansfield e atesta que, como a mãe, ela também tem um belo par de seios. No entanto, ressalva que Jane está em outro patamar, no mesmo cânone onde estão Anita Ekberg e a irmã do amigo Caetano, a quem se acostumou chamar de “Caio”.

Seguimos até o centro do Rio, na estação de embarque das balsas que levam a Niterói, instalada na Praça XV. De terno branco e camisa azul, caracterizado de malandro (ou de Moreira da Silva, seu saudoso parceiro e mestre), Macalé canta e dança Mambo da Cantareira, a composição de 1960, de autoria de Barbosa Silva e Eloide Warthon, que empresta a frase “aprender a nadar” ao título de seu seu segundo álbum, de 1974, LP em que Jards a regravou.

O mambo de Barbosa e Eloide ironiza o péssimo serviço de travessia prestado pelo Grupo Carreteiro, fato que culminou no episódio conhecido como a “Revolta das Barcas” e na estatização do serviço, com a fundação da Companhia Cantareira. Uma forte chuva de verão antecipa o encerramento da gravação e corremos para o Jardim Botânico.

Reunidos em um café de uma das travessas da Rua Humaitá, ouvimos Jards contar, orgulhoso, que foi ele quem redigiu a nota de falecimento fixada na porta do bar ao lado, tocado há décadas pelo grande amigo Américo, morto há menos de 15 dias.

“Aquela ilustração dos anjos, eu tirei daqui (a imagem que cobriu a foto de Bethânia com o torso nu). Vivia dizendo para o Américo que iria levá-la para casa e ele brincava: ‘Só se for por cima do meu cadáver!”. Pronto, levei!”

Café tragado, Jards passa no bar vizinho, o Rebouças, para cumprimentar o garçom e amigo Chico. Questionado por Gregório, que esteve na noite anterior no bar e conversou com o rapaz, se o nome do garçom não era Jorge, Jards dispara mais essa: “Sim, sei disso, mas desde a primeira vez que o chamei de Chico ele respondeu. Pronto, virou Chico!”.

O Rio sem tom e o Brasil mediano
No verão de 1987, uma epidemia de dengue e conjuntivite assolou o Rio de Janeiro. Macalé satirizou a questão no compacto de 12 polegadas que trouxe a impagável faixa Rio Sem Tom (uma paródia de Vamos a La Playa, do Menudo) e uma leitura de Blue Suede Shoes (o clássico de Carl Perkins eternizado por Elvis Presley).

Se o registro de Blue Suede Shoes, arranjado por Lincoln Olivetti, é impregnado de sambalanço, um Jards caracterizado de bluesman e cantando arrastado é quem dá o tom na versão filmada nesta tarde de quarta-feira. Uma das cinco câmeras estava incumbida de registrar um close de seus pés marcando os compassos. Diante da falta de coordenação para cadenciá-los, Jards sentencia: “Não consigo controlar meus pés. O direito é o João Gilberto e o esquerdo é o João Donato”.

Encerrada a filmagem de Blue Suede Shoes, pausa para um café e a leitura de uma nota publicada no site da Brasileiros, onde comento a apresentação de Jards na festa de 70 anos de Mautner. Jards lê o texto, diz, sucintamente, que gostou, e me convida para um cigarro do lado de fora, enquanto a equipe prepara a sala para filmar Choro Esdrúxulo.

“Era só o que me faltava: depois de ser taxado de maldito a vida toda, passar a ser lembrado como o cunhado do Chico buarque ou o namorado da ministra!”

Sentado em um dos bancos dispostos no pequeno corredor, ele traga compulsivamente o cigarro e mantém o silêncio por alguns segundos. Quando decide falar, elogia o trabalho da equipe de filmagem, “esses meninos estão fazendo a coisa certa, estão fazendo o que é necessário ser feito”, e se diz cansado com a imprensa “burra e maledicente”.

Justifica, afirmando que quando houve o anúncio da nomeação de Ana de Hollanda para a pasta da Cultura, passou a ser sondado por repórteres ansiosos por uma confirmação de que eram casados, namorados ou coisa que o valha. “Era só o que me faltava: depois de ser taxado de maldito a vida toda, passar a ser lembrado como o cunhado do Chico ou o namorado da ministra!”

Reservado, ele novamente foge do assunto “Macao e Ana” e migramos o papo para as expectativas sobre o governo Dilma. Ponderado, Macalé prevê uma continuidade do projeto do ex-presidente Lula e dispara: “Até defendo que o Lula fez coisas importantes, mas se seu grande feito foi elevar tanta gente à classe média isso me assusta. Feliz de quem teve ascensão, mas tudo o que é médio é vizinho do que é mediano e medíocre. Esse não pode ser o único projeto do País!”.

As filmagens são retomadas e Macalé protagoniza uma situação absurda. A ideia concebida por Chico e Gregório para Choro Esdrúxulo é uma paródia do programa Roda Viva, da TV Cultura. Ao centro da arena, Macalé é sabatinado por outros quatro entrevistadores, todos o, próprio Macalé.

Nudez estelar / Um coringa na multidão
Exaurido pela maratona de filmagens e também preocupado em guardar energias para o aniversário do amigo Luiz Melodia, encontramos Macalé somente dois dias depois. Se a quarta foi de repouso, a sexta-feira promete uma grade extenuante. Três filmagens, em quatro diferentes locações: o bar do recém-falecido Américo e o vizinho bar Rebouças, onde será registrado Soluços; a Praia do Diabo, onde são feitas as imagens para Vapor Barato; e o apartamento de Jards, onde uma comovente versão de Hotel das Estrelas foi registrada.

Quando Gregório propõe a Jards ficar sem camisa e esclarece que as câmeras estarão orbitando em seu corpo, Macao não hesita: “Porra, sendo assim, vou ficar nu de uma vez por todas!”.

Despido, surge da cozinha trazendo na mão uma gargantilha de São Jorge e pede ajuda para colar a imagem, que ganhou da mãe. Amuleto de Ogum no pescoço, quando começa a cantar, de olhos fechados, os versos do amigo Duda  – o letrista de Jards na composição que ficou célebre na voz de Gal Costa em Fa-Tal  – surgem sublimes e provocam arrepios: “Dessa janela, sozinho / Olhar a cidade me acalma / Estrela vulgar a vagar / Rio e também posso chorar…“.

Encerrado o take, um silêncio impactante invade a sala. Depois do registro de duas inspiradas performances de Vapor Barato, na Pedra do Arpoador, e de Soluços, no bar Rebouças, a equipe conclui que o dia estava ganho.

Jards Macalé e o poeta Waly Salomão, ou melhor, Waly Sailormoon. Foto: Arquivo pessoal

Manhã de sábado. O sol surge impiedoso. Jards nos recebe, bem-humorado, ansioso por transformar-se em Coringa, o vilão inimigo do homem-morcego, mas adverte que o fará quando estivermos no Saara, pois não quer pagar tamanho ridículo nas ruas do bairro.

Observo uma foto dele ao lado de Vinicius de Moraes e pergunto se o violão que ele empunha é o mesmo cobiçado por João Gilberto. Macalé diz que não, recorda que a foto foi feita em 1962 na casa do poeta, e faz questão de narrar a história da compra de seu primeiro violão aos 15 anos, negociado a troco de banana com um bêbado.

Abandonamos os carros em um estacionamento próximo ao Saara. A metamorfose acontece ali mesmo. Macalé tem o cabelo ralo tingido por uma pastosa tinta verde. A boca, em desenho enorme e irregular, impregnada de batom vermelho. Suando em bicas, Macao parte conosco, à pé, até as ruas apinhadas e estreitas do Saara. Embrenhamos na multidão, que se locomove frenética entre as ruelas multicoloridas e barulhentas.

Música de acento popular  – funk carioca, sertanejo e forró  – ecoa por todos as portas de comércio. Vendedores anunciam ofertas. Seguranças observam tudo, solitários em seus assentos de quase 3 m de altura.

Infiltrado nesse caos tropical, Jards berra os versos de Gotham City, desafiando a multidão. Com a profusão de câmeras que o cercam, a maioria dos pedestres do Saara parece mais estupefata por não saber quem é aquele sujeito cercado por câmeras do que chocada por sua tresloucada figura.

Por todas as ruas ouvem-se frases “quem é esse louco?!”, “que maluquice é essa?!”. As lentes da equipe invadem uma loja de artigos religiosos, onde Jards adquire uma imagem de São Jorge e não poupa os lojistas do alerta de Gotham City:Cuidado, há um abismo na porta principal!“.

O passeio é encerrado com a visita a um comércio especializado em pipas que reconhece Macalé como um cliente assíduo. De lá, Jards sai com um novo modelo do Batman em mãos e um sorriso congelado no rosto, expressão ainda mais grotesca pelo suor que escorre e, aos poucos, desfaz sua maquiagem. Imperfeição que em nada reduz a demonstração de sua grande satisfação com as boas experiências daquela atípica semana.

Em novembro, o morcego patriota do Jardim Botânico sobrevoará os céus de São Paulo e um capítulo elementar dessa nova aventura se encerra aqui.

MAIS

Leia O Brilhantismo Descontente de Jards Macalé, resenha do primeiro álbum do artista, publicada na coluna Quintessência

Agenda: Confira os destaques da semana 2 a 9 de março

León Ferrari, A los derechos humanos

Esculturas para ouvir, coletiva no MuBE (Museu Brasileiro da Escultura e Ecoloogia), abertura em 3/3.

Em “Esculturas para Ouvir”, o curador Cauê Alves, busca, a partir do olhar de coleções de arte contemporânea particulares, descobrir como essas peças são vistas hoje dentro do campo das artes visuais. E a ausência de obras pertencentes a museus nesta mostra é proposital, pois a questão que se tenta investigar é: seriam as esculturas sonoras já amplamente aceitas como obras de arte por colecionadores, pelo mercado e pelo público? León Ferrari, Amelia Toledo e Paulo Bruscky são alguns dos artistas que fazem parte da exposição.

hilma klintHilma af Klint, The Ten Largest, No. 7, Adulthood, Group IV, 1907.

Hilma af Klint: Mundos Possíveis, individual na Pinacoteca de São Paulo, abertura em 3 /3

A exposição inclui 130 obras. Destaque para a série intitulada “As dez maiores”, realizada em 1907 e considerada hoje uma das primeiras e maiores obras de arte abstrata no mundo ocidental, já que antecede as composições não figurativas de artistas contemporâneos a af Klint como Kandinsky, Mondrian e Malevich. Além deste conjunto, a exposição em São Paulo contará com algumas séries de obras que nunca foram apresentadas ao público. A mostra da Pinacoteca tem curadoria de Jochen Volz, diretor geral da instituição, em parceria com Daniel Birnbaum, diretor do Moderna Museet, e é uma colaboração com a Hilma af Klint Foundation.

microutopicas

Mesa de exposição da editora uruguaia Microutopicas, na edição da JUNTA de 2017.

JUNTA – Feira de Livro de Artista Latino Americana, feira de livros no Sesc Pinheiros, nos dias 3 e 4/3.

Reunindo postais, livros, zines e pôsteres que são de difícil acesso por questões geopolíticas e econômicas, a feira de arte impressa trará uma grande variedade de formatos e autores. Para o evento, foram convidadas sete editoras nacionais, pioneiras na organização de espaços para a venda de arte impressa. Também haverá representantes de Cuba e da Argentina. Com curadoria de Paula Borghi, a feira ainda contará com mesas de camelô, que poderão ser ocupadas por publicadores autônomos. A feira faz parte da programação do FestA!, Festival de Aprender, que acontece nas unidades do Sesc durante o fim de semana.

livro cildo ubu

Detalhe do livro Cildo: estudos, espaços, tempo, editora UBU.

Cildo: estudos, espaços, tempolançamento de livro na Galeria Luisa Strina, no dia 6/3.

Organizado por Diego Matos e Guilherme Wisnik, o livro Cildo: estudos, espaços, tempo traz acervo iconográfico inédito. Além das fotografias das obras em exposição, traz desenhos e esboços feitos nos processos de criação das obras de Cildo Meireles, um dos artistas mais importantes em atividade no País. Estão inclusas desde obras mais famosas a obras mais desconhecidas. Também apresenta doze textos de críticos nacionais e internacionais sobre Cildo, de 1969 a 2017.

Amanda Mei-Encontro marcadoAmanda Mei, Encontro Marcado, 2017.

Daniel Arsham: ZAZEN e Amanda Mei: Refôrma, individuais na Galeria Baró, aberturas em 3/3.

Nos trabalhos que compõem a mostra ZAZEN, Daniel Arsham propõe ao espectador a experiência de um tempo que não é concreto – apesar da materialidade dos objetos de suas esculturas e instalações. Já em Refôrma, o conjunto de trabalhos trata da dinâmica dos movimentos de transformação e destruição, a ideia de progresso e sobrevivência.

Takesada Matsutani, Cercle, 2006.

Takesada Matsutani, atividades na Japan House, entre os dias 6 e 11/3

O artista contemporâneo Takesada Matsutani é um dos grandes nomes da arte japonesa do pós-guerra. Pela primeira vez no Brasil, a exposição contará com duas obras e duas performances. No dia 3 de março, a galeria Bergamin & Gomide também abre uma exposição sobre o artista. Takesada Matsutani: Selected Works 1972 – 2017 traz cerca de 20 trabalhos com grafite, cola de vinil, colagem e acrílico, entre outros materiais, tendo como suporte o papel, a tela e a madeira.

diadiaDiogo de Moraes, Dia-Dia, 2008

Maria Andrade e Diogo de Moraes, individuais na Galeria Virgílio, aberturas em 7/3.

Diário do busão: visitas escolares a instituições artísticas concebe a mediação como prática documentária de viés artístico. Sua elaboração envolve a infiltração em ônibus que conduzem estudantes da rede pública do ensino a instituições de arte da cidade de São Paulo, por ocasião das visitas agendadas promovidas por seus departamentos educativos. Já a individual de Maria Andradenas palavras de Rodrigo Bivar, tem pinturas que “se baseiam em fotografias, ou são reconstruções efetuadas pela memória. Embora sejam pinturas de paisagens, o uso da cor empregado pela artista não tem a intenção – salvo uma peça – de serem naturalistas”.

spilageII

Francisco Valdés, Spillage II, 2015

Francisco Valdés: Fantasma escandinavo, individual na Adelina Galeria, até 31/3.

A mostra apresenta quadros criados especialmente para esta exposição em São Paulo. Para Mario Gioia, que assina o texto crítico, “Valdés percorre experimentações que podemos avaliar como pintura expandida, na qual outros meios – desenho, tridimensional, fotografia, cinema e performance, entre outros – se amalgamam e, travestidos de novos significados, discutem e renovam atributos típicos do suporte originalmente investigado.”

 

Fusae Uramoto – Vovó do surfe

Dona Fusae é um exemplo de que a idade não é empecilho para nada. Vinda do Japão aos 3 anos de idade, Fusae só fala sua língua natal em casa e não é totalmente fluente no português, mas aprendeu a aproveitar a vida como uma legítima brasileira: curtindo a praia. A nipo-brasileira, que mora em Santos desde os anos 1970, resolveu, há pouco mais de sete anos, frequentar as aulas de surfe na escolinha de Cisco Araña, uma lenda viva do esporte na Baixada Santista. E não para por aí. Quando completou 77 anos, Fusae resolveu comemorar em grande estilo e saltou de paraglide. Além dos esportes radicais, também já praticou inúmeras artes marciais japonesas. Quando não está se aventurando, Dona Fusae cuida de sua casa e já planeja uma nova empreitada, dessa vez, um pouco mais tranquila: aprender a tocar gaita.

Precisamos falar do assédio

van de precisamos falar do assédio
Van-estúdio para receber os depoimentos. De vermelho, a diretora, Paula Sacchetta em ação. FOTO: Divulgação

Era uma van que virou estúdio de cinema. Ela guardava segredos profundos. Ao fechar a porta, o silêncio, a escuridão e uma câmera recebiam mulheres que sofreram assédio. Para muitas delas, era a primeira chance de falar sobre o trauma que envolve a violência de quem passou por esse abuso. Casos que variavam entre uma cantada de mau-gosto até o estupro.

A caixa escura da van recebeu os testemunhos de 140 mulheres, de 14 a 85 anos. Vinte e seis desses depoimentos compõem o documentário Precisamos falar do assédio, da diretora Paula Sacchetta, com produção da Mira Filmes. A película terá uma vídeo-instalação no SESC Santana, exibida de 1 a 31/3, mostrando as oito horas de material bruto do filme.

Em uma sociedade que naturaliza o assédio, a dureza das declarações pode ser notada pelo olhar de medo, pela respiração aflita e pelo desabafo de quem percebe – finalmente – que não está sozinha. “Uma começa a falar e encoraja a outra a falar”, conta Paula, que caminhou com a van por nove locais, em São Paulo e no Rio de Janeiro, oferecendo uma rara escuta. “Por um lado, havia o acolhimento e por outro lado, o grito, a denúncia. Vamos começar a falar, juntas, para tentar mudar alguma coisa.”

Há, por exemplo, o caso de uma jovem mulher que, usando uma máscara azul simbolizando a tristeza, contou ter sofrido abuso aos 13 anos. Ela nunca teve coragem de contar a ninguém a violência que sofreu, nem para a psicóloga, nem para a psiquiatra, mesmo muitos anos depois. “Elas tratam algo que elas nem sabem o que é”, desabafa. “Enquanto eu não tratar isso em mim, não tem remédio que possa ajudar. Eu não consigo”, ela diz. Percebe-se também, ao longo da exibição, que na maioria dos casos os abusos partem de pessoas conhecidas e que geralmente exercem uma espécie de poder sobre a mulher, como professores ou médicos.

O filme é apenas uma parte do projeto “Precisamos falar do assédio”. A ideia de gravar os depoimentos veio da percepção de que muitas mulheres sofreram assédio e se calaram, sem saber que é tão comum. Quando as redes sociais exibiram as hashtags #meuprimeiroassédio e #meuamigosecreto, durante o que se chamou de Primavera das Mulheres, o que ficou explícito foi o fato de que o assédio – e a violência sexual – é muito mais comum do que pensamos.

Em parceria com a Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres de São Paulo, quem participava da gravação também podia ser atendida por uma funcionária da secretaria, que encaminhava os diferentes casos para instâncias de apoio jurídico e psicológico. No site www.precisamosfalardoassedio.com é possível assistir a todos os depoimentos e enviar outros testemunhos. A plataforma também oferece caminhos para denúncia e acolhimento, com endereços de todas as Delegacias de Defesa da Mulher, cetros de referência para a violência doméstica, além dos dispositivos legais que protegem as pessoas desse tipo de agressão.

A culpa é da vítima

O documentário é extremamente atual e relevante diante de uma sociedade que se demonstra machista, misógina e intolerante. Nesta quarta-feira (21), o Datafolha divulgou uma pesquisa sobre violência sexual contra mulheres. Os números revelam que um terço  dos brasileiros acredita que a culpa pelo estupro é da própria mulher. Os dados, encomendados pelo Fórum de Segurança Pública, mostram que o problema é muito maior do que se pode imaginar: a cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. Estima-se que apenas 10% dos casos sejam notificados, o que sugere que anualmente aconteçam 500 mil estupros.

O quadro se torna mais assombroso quando se constata que 70% das vítimas desse tipo de agressão são crianças e adolescentes de acordo com dados do SUS (Sistema Único de Saúde). O estudo aponta ainda que 85% das mulheres têm medo de ser estuprada.

Por isso é tão importante falar sobre o assédio. “Toda mulher, sem exceção, tem uma história para contar”, lembra Paula. “Isso é assustador.” No Brasil, a cultura do estupro está muito viva

O direito vencendo a ciência

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FOTO: Valter Campanato/Agência Brasil

Praticamente não existem ciências humanas antes do século XIX. Quer dizer que sociologia, antropologia, ciência política, psicologia e mesmo história, como ciências, têm no máximo duzentos anos. Houve precursores, mas essencialmente o que hoje conhecemos do ser humano é obra recente. Os avanços nessas áreas foram notáveis.

Acontece que, quando você estuda o indivíduo ou a sociedade, você está envolvido no estudo. Podemos ser mais objetivos quando tratamos de física ou química, mas no caso do ser humano nossos interesses ou desejos se envolvem. E isso traz pelo menos um resultado positivo: quem estuda o ser humano, na maior parte dos casos, quer melhorar a vida de nossa espécie. Haverá divergências sobre o que é melhor para nós, mas a vontade de melhorar será forte. Quem usou as ciências humanas para o racismo acabou no lixo da História.

Isso levou muitos cientistas humanos a se tornarem militantes, sem com isso perderem o rigor científico. Antropólogos, por exemplo, defendem direitos de indígenas, negros e de minorias em geral. E por aí vai.

O problema é que, de um tempo para cá, esse ativismo levou alguns a negarem o próprio espirito científico. Vejam Freud: sua principal batalha foi contra a moral, se quiserem, contra o moralismo. Ele revelou a força de pulsões sexuais que, para sua época, eram algo proibido, de que não se falava. (Agatha Christie, em seus primeiros romances, chega a contar que uma moça em começos do século XX perderia a reputação se a vissem sair de um… banheiro).

Acontece que hoje falar, cientificamente, de certos assuntos suscita, em vários meios, uma reação estranha: é como se a simples menção de algo imoral representasse a defesa dessa imoralidade. Pego diretamente uma declaração de uma signatária do manifesto em defesa da cantada (não do assédio!) assinado por cem francesas, e que afirmou que uma mulher pode gozar durante um estupro. Ela disse que pode gozar, não que goza. No entanto, o que ela disse foi entendido como defesa do estupro. (Não confundi-la com outra que disse que queria ter sido estuprada. São duas declarações bem diferentes). O que ela disse foi infeliz, mas quando se vai estudar a sério a sexualidade o que se descobre pode não agradar aos bons costumes, nem aos antigos da opressão e da repressão, nem aos modernos, da igualdade e do respeito ao outro (e à outra).

E aqui temos o abismo entre a militância e a ciência. O conhecimento científico não pode ter barreiras. Ele lida com o horror, eventualmente. Mas sem se conhecer o que há de pior não se conhece o ser humano. Não há ciência sem a disposição de suspender o juízo moral para se conhecer. Mesmo que nosso objetivo seja combater o horror – no caso, o abuso sexual – precisamos entendê-lo.

E aqui temos o abismo entre a militância e a ciência. O conhecimento científico não pode ter barreiras.

Como é justamente no que tange o sexo (uso essa palavra de propósito, e não gênero, porque quero enfatizar o lado do desejo, da libido) que há ainda um enorme número de abusos e de preconceitos, o que pretendo enfatizar é simples: conhecer as causas ou as razões de um processo não significa elogiá-las. Não significa tomar o partido delas.

Já vi muita gente criticando quem procurava ver, em nosso sistema eleitoral, o que favorece a corrupção. Recusavam a ideia mesma de que a corrupção tivesse causas; para eles, decorria apenas da desonestidade pessoal. Por isso, paradoxalmente, repudiavam qualquer reforma que tornasse mais honesto o sistema, alegando que a pessoa é honesta ou não, como se as circunstâncias não jogassem nenhum papel. (Se houver um sistema em que seja francamente prejudicial respeitar as regras do jogo, elas tenderão a ser desrespeitadas. Imaginem-se num congestionamento na estrada, com motoristas ultrapassando pelo acostamento. Conheço gente corretíssima que, depois de meia hora se sentindo otária, adere à ilegalidade.). Pois bem, conhecer as causas – das ilegalidades pequenas, dos abusos e problemas sexuais, da corrupção e da violência – exige muitas vezes lidar com o que chamarei, para simplificar, gradações do Mal. Pois sem conhecê-lo não há avanço científico.

Ninguém coloca essa questão quando se pesquisam as causas de uma doença. Se um médico descobre o que causa uma gripe, ou um câncer, alguém o acusará de estar defendendo a moléstia em questão? Mas é o que muitos fazem quando se investiga o que causa condutas humanas desaprovadas.

E é por isso que o direito, o melhor direito mesmo, a defesa das causas “do bem”, vai se intrometendo em áreas que não são dele. Vai aplicando uma série de normas, corretas, justas, do bem, mas que por vezes negam até a possibilidade de estudar fenômenos constatados. O que acaba sendo um tiro no pé. Se não soubermos o que anda na cabeça do pior criminoso, como poderemos enfrentar as causas do crime?

FestA! ocupou as unidades do Sesc SP no fim de semana

fernanda sanino e Leticia Piagentini da lumberjills
As Lumberjills, Fernanda Sanino (à direita) e Leticia Piagentini (à esquerda), ensinarão a marcenaria no FestA!. FOTO: Ana Paula Ferreira

As 39 unidades do Sesc espalhadas por São Paulo sediarão durante os dias 2, 3 e 4 de março a segunda edição do FestA!, o Festival de Aprender. A iniciativa tem como objetivo difundir o acesso gratuito a atividades que desenvolvam o conhecimento em diversas esferas nas áreas de tecnologia e artes visuais. As mais de 500 atividades oferecidas serão coordenadas por profissionais de peso em cada setor, como Djamila Ribeiro, Paulo Bruscky, Amadeu Zoe e Araquém Alcântara.

Uma infinidade de áreas são contempladas no FestA!. O público encontrará práticas manuais, digitais e artísticas, dentre outras. Apesar de gratuito, algumas das atividades do festival necessitam de inscrição prévia ou outras de retirada de senha com 30 minutos de antecedência, as demais têm acesso livre. É recomendado observar a classificação indicativa na programação.

A inciativa tem como objetivo, também, trazer o olhar do público para a pluralidade de cursos, oficinas, palestras, vivências e outras tantas opções de atividades de curta duração que o Sesc oferta à população ao longo do ano. Fernanda Sanino, da Lumberjills, projeto de marcenaria e tapeçaria feitas por mulheres, ressalta a dimensão do festival: “Está sendo muito importante para nós participar desse evento, porque ele ajuda a ressaltar, divulgar e incentivar as habilidades com as mãos, que se perderão muito no mundo moderno”.

Fernanda e a sócia, Letícia Piagentini, ministrarão, no Sesc Santo André, oficina
e vivência em marcenaria básica criativa. “Está sendo uma honra poder participar e levar a marcenaria e o empoderamento feminino, que a gente prega tanto, por aí”, finaliza Sanino.

O público poderá participar de uma oficina de desenho de paisagens com a arquiteta Carla Caffé, ministrada dentro de um barco, em Bertioga. Também é possível aprender técnicas de encaixe na marcenaria japonesa com o designer Igor Hideki Hatanda no Sesc Pompeia, além de várias outras opções de práticas ligadas à cultura oriental na unidade. Uma oficina e um bate-papo sobre Xerografia e Poema Linguístico fica a cargo do artista Paulo Bruskcy no Sesc 24 de Maio. Na unidade de Pinheiros, o destaque é a JUNTA!, Feira de Livro de Artista Latino Americana.

Clique aqui para conferir toda a programação e todos os horários do FestA!

 

A sexualização feminina nas artes plásticas brasileiras

Anita Malfatti
Anita Malfatti, "A Boba", 1916).

1. SEMBLANTE DE MULHER

Anita Malfatti tornou-se conhecida a partir de uma tela pintada em 1916 e exposta em Paris, chamada A Boba. Anita nasceu em 1889, ano da proclamação da República, apenas um ano depois da lei que libertou os escravos no Brasil. Ela morreu em 1964, apenas dois anos antes que eu mesmo tivesse nascido. Este fato devia nos surpreender mais. Apenas uma existência separa este que vos fala de uma época de escravidão. Anita pintou mulheres fazendo uso da deformação expressionista e da decomposição perspectiva praticada pelo cubismo. Ou seja, quando mulheres começam a produzir seus próprios semblantes nesta linguagem específica das artes visuais, elas o fazem segundo uma consciência estética às voltas com o tema da perda da coisa. Certo que este é um problema comum para as vanguardas dos anos 1920, ou seja, a coisa só pode ser recuperada se admitirmos estratégias de negativização do Real. Se o realismo romântico e também o certo impressionismo pretendia apreender a relação entre a representação e a coisa, os anos 1920 descobrem que o real se apreende pela via do negativo, pela retomada da experiência perdida, pelo retorno da presença a partir da ausência. Surge então um olhar que capta os acontecimentos em série e que se distribui entre estratégias de negação, repetição e deformação.

Mas perder-se como coisa é deixar a escravidão. É emancipar-se como posição de olhar e lugar de fala. O semblante feminino que Anita constrói terá este traço fundamental de que há uma parte que falta. Ou seja, além de conciliar uma forma estética deformativa com uma contradição social representada pela liberdade que se avizinha, ainda que não se realize, há um detalhe a mais, que dá o tom especificamente singular desta mulher: a ocultação característica do braço esquerdo.

Sabe-se que Anita tinha muita vergonha de um pequeno defeito em sua mão direita. Defeito que teria contribuído para formar seu caráter recluso e talvez tivesse impedido que ela se declarasse ao seu amor improvável, Mário de Andrade.

Semblante é um dos operadores da sexuação. O semblante unifica e compõe uma variedade de traços, em sistemas de linguagens distintos, formando uma unidade. A sexuação é semblante porque ela exige um ato performativo pelo qual cada qual assume, um semblante. No mesmo sentido em que a fala é a assunção de uma língua por aquele que fala. Assumir um semblante não é identificar-se com traços essenciais do que é ser mulher ou do que é ser homem, mas construir uma unidade entre as histórias. Neste caso a história de opressão a deformação estética encontra sua unidade na subtração de um elemento. Um elemento faltante em quase todas as suas telas: a mão esquerda.

Como é possível que um acidente deste tipo crie para alguém o sentido de um sofrimento punitivo? Parece-nos aceitável que alguém se envergonhe das características disfuncionais de seu corpo. Mas como a parte pelo todo tornou-se, neste caso, uma espécie de metonímia feminina. Argumento que isso capta algo que extrapola o caso singular, contendo em si a disposição histórica da feminilidade do Brasil nos anos 1930: o sofrimento com a vergonha do próprio corpo.

O aspecto metafórico deste semblante pode ser encontrado em Tarsila do Amaral. Em seu auto-retrato também encontramos este pequeno gesto pelo qual a mão direita encobre a esquerda. A mão boba desta vez está ausente de outra maneira. Não se trata de deformação ou de desencaixe perspectivo, mas de uma verdadeira ausência. Ausência que nos passa desapercebida porque o vestido vermelho a envolve. Envolta e protegida, por uma espécie de armadura, a tela é composta logo depois da primeira exposição da artista em Paris, na Galeria Percier, em 1926.

Enquanto as obras de Anita envolvem títulos metonímicos e descritivos, como A BobaA Estudante Russaou A mulher de cabelos verdes, os retratos de Tarsila evocam nomeações metafóricas, como as que se poderia criar para seu autorretrato em vestido vermelho: A Mulher FarolA Dama de Ferro. É também pela exageração que as partes do corpo tomarão conta do semblante de mulher em Abapuru, o nosso Antropófago fundador, que não deixemos de lembrar, foi um presente de aniversário Tarsila para seu marido Oswald de Andrade. Nele vemos imensos mão e pé. Nele a boca, órgão antropofágico por excelência está ausente. Vemos ainda uma estranha estrutura que pode ser um nariz, ou um seio, talvez um braço deslocado ou dobrado, sobre o qual o melancólico apoia seu rosto.

O que temos, nos dois casos, Anita e Tarsila, é uma espécie de incompletude da representação de si, de pequena falha no semblante, referida à interferência desta função que Lacan chamou de objeto a: as mãos subtraídas, a mancha ou a nódoa que indetermina o fechamento da forma, a ilusão ou engano na composição da unidade do corpo. Isso contrasta vivamente com o modo como se apresenta o semblante de Mário de Andrade, pintado em toda sua solidez e inteireza, tanto por uma quanto por outra.

2. FANTASIAS DE CORPO

Situação análoga, porém de outra natureza, se encontrará na análise comparativa de duas damas do neoconcretismo dos anos 1960. Na tela Retrato de Regina, de 1949, vemos uma jovem Lygia Clark que parece ter se formado na experiência da assexuação modernista. A tristeza do olhar, a abstinência das mãos, o modelo infantil.

Vejamos o contraste disso com a Lygia Pape de Língua Apunhalada (1968). Não estamos mais na produção de um semblante feminino com seu traço de negatividade, mas na metáfora da impossibilidade de dizer. Novamente temos aqui a conjugação entre uma contradição social, representada pela censura praticada pela ditadura civil militar e uma forma estética, desta vez sem deformação alguma, posto que fotográfica. A forma estética é produzida pela ambiguação metafórica da língua, como parte do corpo e da língua como meio da fala. Apunhalada é o significante que faz interferência. Mas não vemos a faca ou o punhal, apenas o sangue que escorre. Chegamos um segundo depois do ato. Mas percebemos a cena na qual ela nos mostra a língua. Metáfora sobre metáfora, pois agora é um gesto de escárnio e repúdio, que vemos nas crianças, e que sobrevive na mensagem da língua que não se dobra. O que temos aqui é um funcionamento que faz parte da sexuação, não como semblante, mas como fantasia. Na série da fantasia, o essencial é dado pelo enquadre. Este instante que define a montagem de um conjunto de perspectivas, para o qual nosso olhar é convidado a entrar. Ficamos assim
conjecturando sobre o que teria acontecido antes ou o que acontecerá depois.

Reencontramos o tema da negativização de uma parte do corpo em Lygia Clark com Máscara Abismo com Tapa Olhos (1968). Aqui são os olhos que estão vendados, nos impedindo de ver. Mas também é a boca e, portanto, a língua que se direciona para um tubo rumo ao abismo. O tubo reticulado é transparente de modo que podemos ver o batom bem delineado sob os lábios. A mascarada é um conceito psicanalítico trazido por Joan Riviére e desenvolvido por Lacan como uma estratégia feminina de sexuação. Não é que atrás da máscara exista a essência da sexualidade feminina, mas que historicamente ela se apropria da máscara para dizer que a feminilidade é apenas um conjunto de máscaras, como uma cebola infinita onde seu centro interior se comunica com o exterior.

Outra estrutura construída em torno do encobrimento é Divisor, de 1968, onde Lygia Clark coloca um lençol gigante nos quais as pessoas podem cobrir seus corpos e deixar suas cabeças de fora. Lembremos que o lençol é a peça de roupa preferida pelos fantasmas. Ele faz a função de véu, essencial ao trabalho da fantasia. Mas qual divisão? Entre cabeça visível e corpo oculto? Entre a hipótese de fantasia de várias cabeças com um mesmo corpo? Cabeças sem corpo? Como fantasmas assexuados ou no lugar da ausência de corpo mostrado incitação a um corpo por ser construído por nossa fantasia? A fantasia é o divisor do sujeito, a estratégia pela qual ele se apreende como objeto para o outro ou como ele se divide como sujeito em seu próprio desejo. Ela é também o indutor do sintoma: palavra amordaçada, metáfora do desejo, censura de gozo.

Duas mulheres contemporâneas de Simone de Bouvoir que pensam a arte com o corpo, mas também com uso do corpo que parece inquietar-se com a estabilidade de suas imagens representativas. A contraface disso encontramos em Wanda Pimentel. Nela há outro registro construtivo para os mesmos pés e mãos deslocados. A mesma estratégia de assexuação por subtração do corpo todo. São sempre corte, ângulos, perspectivas que produzem este efeito na fantasia, de que a parte ausente, nós mesmos temos que completar, com nossa própria fantasia.

No ponto de cruzamento entre a tradição formalista e na tradição pop temos este ponto comum de abordagem do real da sexuação pela via da sua produção como hipótese de fantasia, conjectura ou paródia, como diria Judith Butler. Como se estivéssemos aqui às voltas com uma crítica da sexualidade como mostração de semblantes. Lembremos a observação simples de John Berger [1] de que a tela é, antes de tudo, um cofre onde o burguês pratica sua arte de apossamento e acumulação da experiência perdida.

Lígia Clark, com sua deriva da arte para a psicanálise e a correlata prática de invenção de experiências, assim como Lygia Pape com sua aproximação com a arte gráfica e do design dos conhecidos biscoitos Piraquê, acrescentaram ao feminino, como problemática do semblante de si, a subjetivação da fantasia como uma tarefa.

Novamente, o que temos aqui é menos do que a exposição de uma sexualidade crua em sua demanda de pleno exercício e acontecimento e mais a tematização de uma assexução, ou seja, de como fracassamos em dizer a sexualidade, tanto porque o objeto a atrapalha o semblante quanto porque ele introduz a fantasia da asexuação. As duas formas estéticas que estavam juntas nos anos 1920, agora aparecem separadas. De um lado, a perspectiva tenta sair do espaço bidimensional da tela (com seus trípticos e suas superfícies de Moebius gigantes). De outro lado a deformação parece tomar consciência dos sistemas de encobrimento: a máscara, o vestido, o envoltório.

Se o semblante faz gênero, a fantasia faz espécie. Por isso há sempre um descompasso entre nossa experiência coletiva do gênero e nossa singularidade de fantasia. Neste caso isso pode ser mostrado pela oposição entre a contradição social, em um momento de silenciamento da palavra, e principalmente redobramento do silenciamento das mulheres e a forma estética que inverte este processo ao colocá-lo em uma linguagem específica desta mulher.

Lygia Pape, ‘Língua Apunhalada’, 1968.

3. GOZO FEMININO

Chegamos assim ao terceiro momento destas histórias. A partir dos anos 2000, muitas artistas brasileiras começam a se interessar pelo traço. Como se nessa diferença mínima, e na sua repetição, algo se escreve sobre o gozo feminino. Isso está nos alfabetos poéticos de Mira Schendel, nas variedades composicionais dos retalhos de Leda Catunda, no grafismo hiperintenso de Teresinha Soares.

Para Lacan, o gozo feminino tem uma propriedade interessante em sua diferença para o gozo masculino na medida em que eles são formalizáveis por meio de dois tipos distintos de infinito. Quando digo formalizáveis me refiro a possibilidade de que o gozo se escreva e nisso ele tem esta primeira característica de que uma vez que ele começa, temos sempre medo de que não vai parar mais. Como se diz, se dou o dedo ele quer o braço e se dou o braço ele vai querer levar as pernas. O gozo é um perigo porque ele sempre quer mais, inclusive o gozo opressivo do supereu. Estamos aqui no registro antropofágico do mal-estar. Um de seus suportes mais fecundos é justamente a metáfora da escrita.

Este problema da infinitude do gozo aparece vigorosamente em Anna Maiolino. Para ela Tudo Começa pela Boca, a boca que devora infinitamente um fio, ou então a boca que regurgita infinitamente um fio em In And Out [2]. Fios que prendem os cabelos da artista, como uma tiara, deixando-a jovem e infantil. Tiara que se desdobra em uma segunda volta, tornando-a uma múmia, prisioneira de seu próprio fio. Múmia que se transforma em um nó que aprisiona e fecha o circuito. Finalmente nó que termina na metáfora sintomática do “embrulhada para presente”, com um lindo laço na ponta. Processo descritivo de como o infinito de uma linha vai se transformando na finitude de uma unidade compacta. Processo que permite mostrar como começamos na série infinita e ambígua, passamos pela fantasia e chegamos ao semblante. A Mulher Presente, a Mulher Embrulhada para Presente … só que não, pois é justamente a Mulher Ausente.

Processo homólogo aparece em Shirley Paes Leme e seus trabalhos sobre ranhuras, gravetos, filamentos como em Fumaça Congelada sobre Tela de 2015, onde a textura e a seriação das letras aparece dando materialidade ao livro, não como forma expressiva, mas como fio de letras que se dispõe como forma estética. Se a sexuação masculina pode ser escrita como uma reta de números naturais, onde podemos contar {1,2,3, … n} a sexuação do gozo feminino é uma reta de número reais onde não podemos contar com suas regras de formação {0, 1}. Não há binário aqui porque a reta dos naturais compreende um elemento anômalo que é o zero e a reta dos reais compreende imprevisibilidade e ausência de fechamento. Com isso, tanto o fechamento do semblante quanto a proporção da fantasia são subvertidos por uma experiência da não identidade, da contra identidade. O malestar do não-todo aparece ainda na obra de Elida Tessler, principalmente no processo de rescrita de objetos historicamente ligados à experiência feminina: prendedores de roupas, chaves, toalhas de mãos, meias de seda, lupas, rolhas, esmaltes de unha. Repetidos indefinidamente e escriturados, eles perdem seu suporte de sofrimento e sintoma, aparecendo como nomeação do mal-estar.

4. CONCLUSÃO

Trouxe aqui três capítulos de uma reta infinita. Capítulos de uma história que subverte seus próprios segmentos, pois não precisa ser contada assim, em ordem ou ao modo de uma série. Temos então outras histórias da sexualidade para contar, pois cada momento em que estamos recria uma história
que o torna ao mesmo tempo possível, nos trazendo para um universo de verdade em estrutura de ficção, mas também para o impossível impensável de cada instante, que é o instante impossível do agora.

Para podermos contar novas histórias, precisamos nos libertar tanto dos semblantes quanto das fantasias e ainda de nossas identidades de gozo. Isso produziria histórias não concêntricas, histórias que não seriam contemporâneas de si mesmas, nem anacrônicas em relação ao Outro. Histórias contingentes. É isso que se poderia esperar da entrada do infinito como conceito crítico para a experiência de gênero e suas fantasias. Histórias que não seriam necessárias, nem apenas possíveis, por representar um ponto de vista ou perspectiva, como qualquer outra.

Nosso tempo de concorrência de narrativas, de histórias feitas às pressas, de retalhos de pós-verdade, precisa levar mais a sério aquilo que ofende sua unidade constituída de capítulos fixos. Precisa levar em conta que a loucura, a miséria e a vulnerabilidade que produz milhares de rejeitados. A história das sexualidades é tensão entre forma estética e contradição social. Ela serve para nos lembrar que usar corpos humanos, tratados apenas como matéria prima para o espetáculo da limpeza social, não é apenas um crime higienista e uma segregação tolerada, mas ela inventa e reproduz gramáticas políticas que depois grudarão em nossos olhos, nos desacostumando com o estranhamento diante do sofrimento.

[1] Berger, J. (1973) Modos de Ver. São Paulo: Rocco (1999).
[2] In-Out (Antropofagia), 1973/74, duração 8’27’’

Gêneros e seus descontentes

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Igualdade de gênero é tratado como ideologia pelos conservadores. Foto: Reprodução / EBC

Quando estive na Inglaterra, em 2001, o ambiente acadêmico fervilhava em torno da herança das teorias feministas dos anos 1970, agora revigoradas em estudos de gênero (Gender Studies), estudos gays e lesbianos e mais tarde pela teoria Queer. Independentemente de seus temas e autores específicos, o movimento incluía uma espécie de retomada da presença da política nas ciências humanas. Mas as teorias de gêneros só podiam ser compreendidas em uma paisagem composta por outras teorias emergentes, como os estudos culturais de Stuart Hall e Raymond Williams, que questionavam a hierarquização entre cultura erudita e popular, e a teoria pós-colonial, de Spivak, que criticava a presença de processos de racialização e subalternidade em sociedades complexas que, aparentemente, teriam deixado isso para trás. Essa paisagem incluía ainda o pós-marxismo de Zizek, Laclau e Badiou, o pós-estruturalismo de Derrida e Deleuze e, fechando o trem, quase saindo do comboio, a psicanálise de inspiração crítica de Juliet Mitchel e Julia Kristeva.

Um dos aspectos mais interessantes dessa tendência nascente era a forma como ela conseguia estabelecer debates transversais bem como unir a pesquisa universitária ao mundo real. Talvez isso decorra das origens bífidas do feminismo, entre intelectuais e sindicalistas. Quem faz academia costuma concordar quanto aos dois problemas que nos assolam: a mania administrativa, que faz com que o pesquisador se dedique mais a preencher formulários do que a aulas ou projetos, e a prisão departamental, que acorrenta cada qual a seu tema, suas revistas, sua comunidade, tendencialmente superespecializante. Recentemente perdemos uma de nossas mais dedicadas neurocientistas, Suzana Herculano-Houzel, para o primeiro problema. Os estudos de gênero, por estarem dispersos pelas humanidades, sem residência fixa na antropologia ou na psicologia, nas letras ou na filosofia, acabaram sendo uma espécie de alívio contra o confinamento da conversa universitária e uma forma de voltarmos ao “mundo real” depois do declínio do que antes se chamava debate político, cujo epicentro era a economia, o direito e a história.

De volta ao Brasil, não entendia por que tais teorias estavam subrepresentadas, com seus pioneiros ainda com pequena visibilidade e a maior parte dos autores de referência pouco traduzida. Contudo, em dez anos as coisas se alteraram substancialmente e de forma inusitada. Hoje não há escola que se preze em São Paulo que não conte com um coletivo feminista. Os movimentos LGBTTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Transgêneros) multiplicaram-se, ganhando visibilidade e reconhecimento, mas o mais importante é que se nota uma crescente alteração de nossos modos de pensar e praticar relações entre gêneros. Quero crer que a grande novidade desse conjunto de movimentos está em pensar que nossas relações mais cotidianas e nossos hábitos mais simples replicam e atualizam relações de poder. Em nossas pequenas decisões linguísticas ou comportamentais, de consumo e de estilo, no campo do trabalho, do saber e do amor, há um jogo envolvendo o poder. Isso traz para cada aspecto do cotidiano a possibilidade de uma transformação dessas relações, ou seja, um caminho real e acessível para que inventemos outro mundo, e para que nos sintamos parte da diferença que faz diferença nesse processo. Se nos anos 1950 o trabalho e a nação definiam o teor dessa diferença e nos anos 1970 o lugar da transformação migra para a sexualidade e o desejo, os anos 2000 convidam a pensar uma encruzilhada, ou melhor, uma intersecção, entre as diferentes formas de minorização do outro e de si mesmo, bem como as políticas de reversão dessa minoridade. Para tanto a profissão e o estudo, as formas de amar e desejar, as modalidades de governo e de família, sobretudo, o corpo e a cultura, devem ser pensados como determinados por opções construídas, e não naturais. Nelas não há nada de essencial, compulsório ou coercitivo.

Ao que tudo indica, os descontentes com a ascensão das demandas de gênero só conseguem ler nesse conjunto de reivindicações perda de espaço e de poder, ameaça à família e ao recato. Uma concorrência entre feminismo e machismo, como se fossem partidos particulares e simétricos em busca de uma fatia de poder. Os descontentes com a questão de gênero a transformam em uma ideologia, como se a verdadeira ideologia não fosse esta que nos impede de ver as desigualdades flagrantes na relação entre homens e mulheres, a discriminação de homossexuais, o horror aos transexuais e até mesmo o sofrimento daqueles que não se definem em nenhum gênero. Quando o intrainterino Temer deixa as mulheres de fora de seu ministério, isso não deveria ser lido apenas como uma ofensa à equidade de participação no poder, nem nos levar a qualquer consideração de excelência comparativa, mas como uma declaração ostensiva de que ele não ”pensa com gêneros”. Ele não pensa com tudo o que essa questão representa em termos de metonímia do problema da violência, da segregação, da iniquidade e da diferença social em nosso País. Assim como ele não “pensa com a cultura”. Sua forma de fazer política é ainda dos anos 1950, parodiando Pascal, “ajoelha e trabalha que a fé virá por si mesma”, como se do progresso da economia brotasse, espontaneamente, a felicidade dos povos. Seu problema não está nas soluções que ele está a praticar, mas no anacronismo de sua teoria da transformação.

A chamada quarta onda feminista, assim como a maior parte dos movimentos adjacentes, sofreu um grande impulso com a internet. É como se tivéssemos passado de uma situa­ção de flagrante atraso discursivo, que retratei acima, para um salto rumo a uma vanguarda de problemas sociais maltratados. Problemas que estavam há muito esperando reconhecimento, tendo como ponto de convergência a violência e a segregação. De certa maneira, a colonização brasileira da internet seguiu rapidamente as etapas do debate sobre o poder. Primeiro foi usada para assuntos estratégicos, científicos e militares de interesse da nação. Depois veio o tempo dos grandes negócios, do ecommerce e da startups milionárias. Em seguida tivemos a fase da pornografia farta, copiosa e massiva. Agora, o vazio de sentido e o excesso de meios formais disponíveis parecem ter encontrado na questão de gênero e no sofrimento de gênero um conteúdo universal. Campanhas como #PrimeiroAssédio, #MeuAmigoSecreto e #AgoraÉqueSãoElas trouxeram uma nova estratégia de tematização da opressão e da violência. Não apenas conscientização e luta por direitos institucionalizáveis, mas uma reforma do cotidiano e uma indignação prática contra a iniquidade entre gêneros. Junto com isso vem a descoberta de uma nova força da palavra, capaz de denunciar e responder na mesma moeda a ofensa recebida. Isso é bastante compatível com a ideia de que o gênero não é apenas uma condição anatômica ou biológica, por exemplo, homem ou mulher, nem uma orientação de desejo ou de afeto, como homoerotismo ou heteroerotismo. O gênero é algo que se faz, não só algo que se é. Ele é uma prática que por meios performativos, ou seja, pela eficácia na repetição de certos padrões, cuja origem ou referência pode ser vazia, referenda ou desconstrói relações de poder.

O atraso universitário na questão de gêneros é um sintoma de como o Brasil pensa ainda seus meios de transformação como excessivamente ligados à institucionalização do tratamento de diferenças. Leis são fundamentais, mas nem sempre elas alteram a substância social dos que são tocados por ela. Quero crer que uma grande novidade e parte da força política do novo feminismo residem nesse ponto. Tocar as relações imediatas, pré e pós-institucionais, a vida privada e a esfera desejante, assim como seu impacto público e econômico. O preço a pagar pela eficácia dessa estratégia é a sedimentação de identidades que se particularizam excessivamente no espaço público. E isso é distinto de fazer valer a singularidade de cada sujeito, objetivo de uma verdadeira política dos despossuídos, inclusive dos despossuídos de sua própria identidade.

Por isso a opressão da mulher pela mulher deve ser pensada junto com todas as outras opressões. Em uma era pós-identitária, e seguindo a tese da essência vazia como forma de resistência ao poder, a militância por um grupo específico exige critérios performativos para saber afinal: quem é uma mulher? Ou seja, a política de identidade pode ser decisiva para criar reconhecimento diante de outras tantas identidades. Mas isso não parece funcionar tão bem para além desse plano estratégico. Separada de uma política que reconheça em todos um fragmento de minoria, tenderá a praticar a segregação e a autossegregação que pretende erradicar. Sem retomar sua função de transversalidade entre os saberes e de interseccionalidade entre minorias, seu destino será o de reificar a posse capitalista desse bem narcísico: a própria identidade.
Para tanto precisaremos de uma quinta onda.