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Miguel Rio Branco, marginal na essência

Em cartaz no MASP até 1 de outubro de 2017, a mostra Miguel Rio Branco: Nada Levarei Qundo Morrer apresentou uma seleção de 61 fotografias da famosa série Maciel, registrada, em 1979, no bairro homônimo em Salvador. Considerado um marco da fotografia brasileira, o trabalho investigou as ambiguidades entre público e privado, além de apresentar a figura feminina como símbolo de resistência.

Em 2011, a vida no ateliê instalado em Araras, na região serrana do Rio de Janeiro, espaço que desde 2006 tornou-se o lar de Miguel Rio Branco, foi tema de reportagem da edição 11 de ARTE!Brasileiros, que também retratou o cotidiano nos redutos criativos dos artistas José Bechara e Bete Jobim.

Escoltado por galos, galinhas, um casal de dachshund que atende pela alcunha de Café e Cacau, e uma basset chamada Capuccino, o artista nos recepciona na soleira de seu portão, na manhã de um domingo nublado que reduziu o belo trajeto de subida de serra a uma frustrante visão contínua de nuvens e rajadas de chuva.

Cansado da rotina das grandes cidades, o fotógrafo, pintor e artista multimídia, célebre pela profusão de cores em suas obras, encontrou refúgio e serenidade em meio a um bucólico vale de um verde predominante, que culmina na gigante Maria Comprida, montanha rochosa de quase dois mil metros de altura, que, reza a lenda, era habitada, em seu cume, por sacis-pererês e mulas-sem-cabeça.

Enquanto coa um café no subsolo da casa repleta de estruturas de madeira e vidro, Rio Branco defende que sempre esteve à margem de convenções: “De certa forma, sou marginal na essência. Uma pessoa que trabalha com fotografia, pintura, desenho, cinema, é também um marginal, porque o próprio sistema, o tempo todo, tenta definir você como uma coisa só”.

Diferentemente de suas fotografias, pinturas, filmes e instalações, que estimulam amplas subjetividades poéticas, Miguel Rio Branco é direto, sem meias palavras, como podemos constatar na entrevista a seguir, registrada na ocasião em que foi publicada a reportagem de 2011 e até então inédita, na íntegra.

ARTE!Brasileiros – Quando você passou a morar em Araras e como tem sido essa nova fase, Miguel?
Miguel Rio Branco – Vivo aqui desde 2006. Queria me afastar um pouco da cidade, mas ainda é algo que tenho de melhorar em mim. Tenho que me desligar ainda mais da questão das cidades e do estresse…

E você ainda vai muito ao Rio?
Não, vou bem pouco. Em média, duas vezes por mês.

Sua filha mais nova mora aqui contigo?
Sim, a Clara vive aqui comigo desde os 13 anos. Hoje, tem 16. Tenho também a Laura, a mais velha, que já está com 21 anos e estuda Produção em Exposições de Arte – eu ainda acho que ela deveria estudar Cinema (risos). A Clara mora e estuda aqui em Araras. Vai ao Rio aos sábados e na segunda-feira, de manhã, volta para as aulas.

Você teve uma vida de muito trânsito. Como foi viver em tantos lugares diferentes e, particularmente, no Brasil?
Nasci na Espanha e cheguei no Brasil com 3 anos de idade. Pouco depois, fomos morar em Buenos Aires, vivemos um tempo em Portugal e retornamos um breve período para cá, até que, dos 10 aos 14 anos, morei na Suíça. Fui alfabetizado em Portugal e voltei para o Brasil com um puta sotaque português e sacaneado por todos, era chamado de “Bacalhauzinho”. Depois, fui para o Colégio Santo Inácio e as coisas por lá também não deram muito certo. Fui ameaçado de ser colocado como interno em Friburgo e tive a sorte de meu pai ser transferido para a Suíça, onde vivi um período muito rico. Foi quando comecei a pintar no Instituto Flaureamont, um colégio, em Genebra, onde havia professores de Desenho que nos incentivavam muito. Foi aí que me preparei para a minha primeira exposição, aos 18 anos, em 1964.

E pouco depois dessa exposição você partiu para os Estados Unidos…
Sim. Em Nova York, vivi também um período muito bom, entre 1964 e 1967, tempos em que Bob Dylan e os Rolling Stones surgiram, uma época culturalmente muito poderosa. Voltei para o Brasil em 1967, e em 1968 ingressei na ESDI (Escola Superior de Design Industrial). Foi então que tive muito contato com o pessoal das artes plásticas. Fiz uma primeira exposição na Galeria Relevo, mas meu trabalho de pintura já não era tão intenso, já estava mais ligado à fotografia e ao cinema. Seguia outros caminhos, apesar de, tempos depois, nos anos 1980, eu voltar à pintura.

Sinais de maturidade também, uma vez que, em Genebra, você ainda era muito jovem… 
Sim. Depois é que percebi que tudo se conectava, que não havia essa questão de fazer apenas isso ou aquilo. Algumas pessoas, às vezes, me dizem: “Ah, não… Você é fotógrafo!”. Daí o cara vai em Inhotim e percebe que minhas coisas podem estar muito mais relacionadas ao cinema e às instalações do que com a fotografia. Atuo com várias conexões: cinema, música, fotografia. O problema é que ainda existem curadores que são muito ortodoxos e querem que sua exposição seja dividida. Teve uma curadora francesa que veio me dizer: “Ah, entendo seu trabalho, você está querendo fazer pintura com fotografia, você quer fazer pinturas”. Ora, mas isso é óbvio, pois eu sou parte pintura também!  A pintura é parte de minha essência e formação. Esse pensamento ortodoxo é uma coisa que, em termos de arte e criação, é profundamente negativo.

E reducionista… 
Reduz e empobrece. E existem poucos críticos com uma visão ampla. O Paulo Herkenhoff – talvez o mais interessante que eu conheço – é um dos poucos que tem isso. Uma pessoa que já foi artista plástico conceitual e tem uma abertura de mente muito interessante. Tem o Mário Pedrosa, que é um cara interessante, mas muito retido. O Paulo é rico em ideias. Fiz um livro com ele (Notes on The Tides, 2010), e pude perceber isso de perto. Tínhamos ideias que levavam a outras e revelavam esse lado generoso da arte, que é muito necessário. A gente não pode pensar em arte somente em termos de mercado e dizer “Não vou fazer isso, porque não vai render o que espero”.

Seu retorno da Suíça ocorreu às vésperas do AI-5, em meio a um turbilhão de acontecimentos. Antes de começarmos essa gravação, você comentou que, por conta das constantes manifestações, teve apenas três meses de aula na ESDI. Qual foi seu grau de engajamento nas questões sociopolíticas daquele período?
Sempre tive muita consciência política, mas nunca fui partidário. Sou talvez uma pessoa muito mais ligada ao sistema anárquico do que a esse sistema polarizado em direita e esquerda. Você pode ser de direita totalitária e também ser de esquerda totalitária. Achava interessante essa movimentação toda por aqui, mas confesso que tudo me parecia muito papo-furado, muito debate e conversa jogada fora. Na ESDI, as aulas pararam para que fosse discutida a possibilidade de refazer o currículo e torná-lo mais adequado à realidade brasileira. Com isso, todo o projeto de design baseado nas experiências da Bauhaus, simplesmente, dançaria. Acho que não dá para ter essa mentalidade de jogar uma coisa fora para construir outra. É preciso absorver as coisas mais ricas de cada parte do mundo. Em 1968, a repressão estava às vésperas de entrar em seu momento mais nefasto por aqui e, na época mais pesada, durante o governo Médici, entre 1970 e 1972, eu estava em Nova York. Sempre fui muito individualista, e meus protestos, minha raiva contra as injustiças sociais eram sempre colocadas nas minhas fotografias e nos meus filmes. Minha maneira de mostrar minhas convicções políticas era essa. Não era uma coisa panfletária, partidária. A riqueza do indivíduo tem de ser mantida sempre. Você, obviamente, tem de respeitar certas questões da sociedade em que vive, mas penso que existem maneiras inteligentes de se protestar, não acho que seja preciso pegar um revólver e sair dando tiros por aí.

Miguel Rio Branco e a dachshund Cacau, em seu ateliê. Foto: Luiza Sigulem

O fato de você ter se isolado aqui em Araras tem a ver com esse seu senso de individualidade?
Eu, de certa forma, sou marginal na essência. O fato de ser filho de diplomata, por si só, já atribui a alguém a marginalidade de nacionalidade. Ser uma pessoa que trabalha com fotografia, pintura, desenho, cinema, é também uma marginalidade em relação ao próprio sistema, que o tempo todo tenta definir você como uma coisa só. Eu estou aqui e continuo me sentindo marginal. Estou rodeado de pessoas de classe média alta com quem não tenho absolutamente nada a ver. Quando fiz o trabalho com os Caiapós e com outros índios, quis expor uma sociedade que oferecia alternativas à sociedade estabelecida. Várias ideias não consegui realizar, mas fiz fotografia de vários filmes de um cara chamado Alceu Massari. Filmes bem políticos, de denúncia de situações absurdas nas aldeias. Em 1983, convidado pelos chefes, eu consegui entrar em uma aldeia de Caiapós porque já tinha ido lá para fotografar um garimpo de ouro que havia na região. Foi uma experiência muito rica em termos de contrastes de sociedades. Dez anos depois, havia na aldeia uma cisão interna. Naquele período anterior, eles eram como guerreiros imperialistas e sobreviveram assim por muito tempo, mas dez anos depois já havia índios andando de helicóptero e avião.

Inevitável falar sobre o que está acontecendo em Belo Monte, com várias tribos sob risco de dispersão em massa.
Obviamente, a questão da energia limpa é fundamental. Não dá mesmo para encontrar saídas que impliquem sempre na devastação dos recursos naturais. Acho essencial desenvolver e investir em pesquisas de energias alternativas. Mas é uma grande violência querer levar conceitos de uma sociedade como a nossa, que já está tão decadente, para uma que ainda tem noções tão diferentes do que é o convívio em grupo. É uma coisa extremamente ruim o que está acontecendo em Belo Monte. Não vejo nada de positivo nisso. E tem outra questão fundamental: gerar mais energia para que? Para alimentar mais geladeiras e eletrodomésticos?! Vivemos em um sistema de desperdício, e essa obsolescência é um dos piores hábitos que a gente pode ter. Eu, por exemplo, que trabalhei muito com fotografia, aprendi a linguagem praticando e nunca tive fetiche por máquinas. Hoje, há uma enorme obsessão em relação às câmeras digitais. Tenho até problemas de conversar com outros fotógrafos, por conta desse fetiche.

O assunto é recorrente?
Sim, tem sempre alguém extasiado porque saiu uma nova câmera que faz isso, outra que faz aquilo. Na minha vida profissional nunca fiquei discutindo essas questões e não vai ser agora que vou entrar nelas. Isso é algo que está intimamente ligado a esse consumo desenfreado. O equipamento é uma coisa básica, que você precisa ter para produzir o que quer mostrar ou dizer. Ele não é o fim. É um simples meio e ponto final. Comecei a paginar no primeiro Photoshop e, pouco tempo depois que dominei tudo, veio a Adobe e lançou uma nova versão, com todas as ferramentas trocadas de lugar. Uma tremenda sacanagem, mas, claro, uma maneira de tirar nossa concentração, porque estamos vivendo a era da desconcentração. Então, voltando a Belo Monte, construir uma usina para gerar mais energia em um lugar que implica detonar a vida de várias aldeias é uma ideia criminosa. A população tinha que ter acesso a essas questões e participar do debate e das decisões. Não se pode começar um projeto desses já sabendo que existe uma porrada de mutreta, um monte de gente envolvida que vai levar muito dinheiro com isso. Nossos serviços públicos e privados são uma porcaria. Não tem um livro meu que tenha logotipo de grandes empresas e pretendo manter isso até o fim. Tem gente que quer produzir meus livros, me propõe um patrocínio xis, e digo francamente: “Esse cara não vou colocar em meu livro, de jeito nenhum! Meu telefone não funciona, como é que vou aceitar o apoio dele?!”. Lembro de uma ocasião em que estourou minha caixa de luz e os caras vieram no mesmo dia “resolver” o problema. Fizeram um gato e demoraram três meses para, de fato, trocá-la. Claro, substituíram por uma caixa eletrônica pior que, ainda por cima, aumentou meu consumo. Ou seja, estava melhor com o gato! Como posso receber dinheiro de uma empresa dessas em um projeto meu?! Simplesmente, não dá!

Além dessas questões, você também considera que o financiamento privado impõe concessões demais aos artistas?
Felizmente, ao menos o meio audiovisual tem hoje maneiras de não depender disso, porque a produção de cinema, por exemplo, barateou demais. Você faz um filme com uma câmera digital, monta no computador e consegue fazer um produto de qualidade. O grande problema é a distribuição. Como é que essa produção vai chegar ao grande público?

Uma independência que, no entanto, não atinge a esfera da cultura de massas… 
O problema é que a cultura de massas também é fascista e totalitária. Serve de controle. Os Estados Unidos provam isso. Propaganda descarada. Lógico que tem os meios alternativos de distribuição, como a internet. Essas coisas evoluem dia após dia, mas aqui, por exemplo, o fato de ainda termos uma internet tão lenta tem a ver também com esse controle. Não existe o interesse de que as pessoas interajam muito. Quanto menos, melhor. É a mesma questão do controle da educação.

Voltando a questão geracional, você, que assistiu todo o processo de perto, que balanço faz do período democrático recente?
Podemos fingir que a democracia existe, mas, na verdade, ela não existe. Quando George W. Bush foi eleito nos Estados Unidos, por exemplo, o mundo todo se deu conta de que nem mesmo nos Estados Unidos a democracia é tão democrática. O que houve ali foi uma eleição roubada.  Até hoje não entendo por que o Al Gore não teve culhão para reverter isso. A questão é que o interesse dessa gente está todo ligado a grana. O ideal americano é o dinheiro. Existe uma parte menor da população que realmente defende os ideais de liberdade do país, a liberdade de expressão, de se fazer o que quer sem ser interferido, mas, desde 2001, essas questões foram abandonadas e deram lugar a toda essa propaganda em relação ao medo da invasão do outro. Uma postura completamente fascista, de um país que se tornou fascista ao defender a luta contra os fascistas. Na Segunda Guerra Mundial, se os japoneses não os tivessem atacado, os americanos, muito provavelmente, ficariam neutros, pois eles tinham fortes alianças comerciais com a Alemanha. Por aqui, conseguimos instituir governos democráticos. Acho legal o fato da Dilma estar mostrando personalidade própria. Tem gente que diz que não, que é o Lula que continua por trás, mas discordo. Esses dias vi o mapa-astral dela no Globo e achei bem interessante. Ela é considerada uma sagitariana não ortodoxa, uma pessoa de poucos amigos, que está a fim de fazer as coisas certas. Vejo essa aproximação dela com o Fernando Henrique, por exemplo, como algo positivo. Eu, particularmente, não acho o Fernando Henrique nenhum santo. A própria questão da reeleição dele já foi um verdadeiro golpe. Mas isso tudo faz parte de um longo processo. Veremos o que vem pela frente. Não sabemos nem se, em 2012, virá um tsunami engolir tudo…

Você falou, há pouco, em mapa astral e agora no mundo engolido por tsunamis… O que pensa dessas coisas, Miguel?  
Todas essas questões fazem parte do autoconhecimento. São informações que você vai encontrando ao longo da vida e se perguntando se aquilo pode ter alguma verdade ou não. Essas questões não vêm só de gente picareta, não. Tem gente que consegue dizer coisas surpreendentes. É como o candomblé. Você pega um pai de santo e uma mãe de santo e eles são capazes de promover experiências que vão além da nossa compreensão. Estimulam essa parte toda do cérebro que a gente insiste em não aprender a usar. A sociedade faz com que a gente perca essas coisas, mas desde criança sabemos utilizá-las de forma intuitiva. O Museu do Inconsciente, por exemplo, criado pela Dra. Nise da Silveira, é para mim mais importante do que muitos museus de arte. É preciso conseguir um espaço que possibilite ao público ver direito o que é o acervo do Museu do Inconsciente. Estão agora fazendo um monte de novos museus e aposto que todos eles serão entregues na mão de publicitários. Para que fazer novos museus no Rio, se você tem, por exemplo, o Museu de Arte Moderna, que tenta retomar a vida depois de um incêndio e não consegue?! Para que mais museus? Claro, porque eles querem erguer monumentos para poder dizer “fui eu que fiz!”, mas entupirão esses museus de bobagens, como dar cursos para ensinar as pessoas a fazer arte. Ok, isso é válido, mas eles nem desconfiam que arte não é algo que necessariamente precise de curso. É preciso, isto sim, ensinar as pessoas a pensar de outras formas e a criar de outras formas. Receitas de “como se faz” podem ser uma questão de culinária, não de cursos de arte. Você não pode dar cursos unicamente para ensinar o camarada a se inserir no mercado. O mercado não comporta tanta gente formada só para isso.

Essa mentalidade pode levar o mercado a um esgotamento?
Acho que existe uma dose maciça de oportunismo. E quem ganha mais dinheiro são os produtores, agitadores culturais e intermediários que estão ali só para lucrar e ter cada vez mais poder. Pela Lei Rouanet o artista faz um livro e ele mesmo não pode ganhar dinheiro com sua obra, porque a contrapartida é a divulgação. O artista está sempre “promovendo” o trabalho dele e quem ganha mais é o produtor e o intermediário. Passou aqui pelo Rio, por exemplo, uma exposição sobre o Miles Davis, no Centro Cultural Banco do Brasil, em que a obra dele foi completamente diluída. Não deve ter vindo um terço do que havia na exposição original, que veio da França. Não parece uma exposição, parece um parque temático. Não havia, por exemplo, uma sala da exposição em que você pudesse entrar e passar o dia vendo vídeos do Miles Davis. Tudo muito fragmentado, detonado e diluído, porque até mesmo essa diluição faz parte do controle das pessoas. Você diminui as questões e controla as pessoas, para que elas não pensem demais, apenas se divirtam. Andy Warhol inaugura essa questão de colocar a publicidade como ato de criação, mas, a meu ver, 90 % da arte contemporânea de hoje é porcaria. Não dá para defender. Você entra em uma exposição e sai dela absolutamente sem nada na cabeça, um vazio enorme, não tenho mais saco para isso. Não tenho visto quase nada.

E o que você pensa sobre o fotojornalismo praticado hoje?
Hoje, o fotojornalismo é feito por qualquer um. Quem tem um telefone celular com câmera pode fazer fotojornalismo. Como isso também já está totalmente controlado, o que sai na televisão é o mesmo que sai nos jornais. Nunca achei que fazia fotojornalismo. Para mim, o que fazia era mais uma espécie de “fotodocumentarismo” com uma interpretação poética, uma construção diferente, como em uma exposição que eu fiz no Parque Lage, em 1978, chamada Negativo Sujo, que já era isso. Trabalhei para a National Geographic em 1979, fazendo um trabalho sobre menores abandonados que me levou a conhecer, depois, o Pelourinho e a fazer o trabalho com as prostitutas. Eu estava morando em Salvador, casado com a irmã do Mário Cravo – com quem eu tenho um filho, que é músico e tem 33 anos, Gerônimo Cravo Rio Branco, ele é baterista, vivia na Bahia e há onze meses foi para o Canadá. Nunca fiz, realmente, fotojornalismo. Tem uma moça, que era jornalista e hoje virou uma respeitada curadora, que uma vez me chamou de “fotorrepórter”. Fotorrepórter é a vovozinha dela! Eu nunca fiz fotorreportagem. Se a pessoa não tem capacidade de enxergar isso, como é que consegue se tornar curadora?!

As divisas entre a foto publicitária, o fotojornalismo dos veículos diários e das revistas semanais, defendem alguns críticos, parece estar cada vez mais tênues. Você concorda?
Concordo e digo mais: essas coisas se misturam há muito tempo. Vem também da paginação das revistas americanas, que sempre foi assim. Se você pegar uma das primeiras edições da Playboy americana verá que já naquela época tudo era misturado. Naturalmente, a única coisa que não era misturada era aquele folder do meio com o poster da playmate. Minha cultura fotográfica veio justamente de revistas como Playboy, Timelife, Elle. Era o que eu via de fotografia. Cartier Bresson, por exemplo, eu fui saber quem era por volta de 1979, 1980, por meio de amigos de São Pulo. Meu primeiro contato com a agência Magnum foi em 1972. Fiz um trabalho para eles em 1973, mas ninguém sabe disso, porque foi um contato passageiro. Eu estava voltando de Nova York e levei um portfolio para a Magnum, várias pessoas viram meus trabalhos, e Charlie Harbutt, não sei se ele era o presidente na ocasião, não me recordo, gostou muito do que viu. Mas não cheguei a entrar para a Magnum naquela ocasião, muito embora tenham encomendado um trabalho, mais voltado a uma antropologia visual que fiz, em 1973, em São Fidélis, no estado do Rio. Durante um ano, fiquei registrando a vida de uma família. Ia para lá, de dois em dois meses, e passava 15 dias com eles. Estudei fotografia em Nova York por apenas um mês – o suficiente, para mim – e nesse período que vivi lá, de 1970 a 1972, não tive contato algum com pessoas do meio da fotografia. Meu contato era com o pessoal das artes plásticas. Americanos e brasileiros como o Hélio Oiticica, que morava lá e chegou a me acolher por oito meses.

Nesse período você teve uma produção intensa de filmes em Super 8 que foram perdidos em um incêndio. Quantos eram ao todo? 
Em Nova York, fiz oito filmes em Super 8, mas perdi todos eles nesse incêndio. Filmes feitos de situações que eu criava e outras que eram tomadas ao vivo mesmo. Tinha um, de três minutos, só com luvas que eu ia achando no inverno da cidade e depois tacava fogo nelas. Tem um outro, que fiz quando morei na rua 3, em cima de uma base dos Hell Angels. Eu vivia com minha amiga Patricia Nolan, que também é fotógrafa, e certa noite ela estava sentada na janela, meio lânguida. Lá embaixo, um hell angel tentava fazer a motocicleta andar, querendo impressioná-la, e a moto não pegava. Um filme de três minutos, mas uma coisa muito interessante porque dizia muito sobre machismo e impotência.  Esse filme era lindo, se chamava Waiting for The Man, que era uma música do Lou Reed.

Sei, composta por ele nos tempos do Velvet Underground…
Sim, da fase Velvet Underground. Aliás, não conheço todo o trabalho do Andy Warhol, mas suspeito que a melhor coisa que ele fez foi justamente ter lançado o Velvet Underground, porque os filmes que ele produziu, simplesmente não dá para ver. Nem naquela época nem hoje. Eram tempos em que surgia também a body art. Hoje, o pessoal da body art está pegando aquelas imagens, trabalhos que não eram para ser comercializados, e estão vendendo tudo. Um absurdo! Por exemplo, aquele filme meu Nada Levarei Quando Morrer, Aqueles Que Me Devem, Cobrarei no Inferno não é comercializável, mas já houve mais de um galerista querendo fazer daquilo uma série limitada. Eu me recuso. Não tem nada a ver. O mundo todo só pensa em dinheiro e essa coisa ainda vai dar merda. Aliás, já está dando muita merda, e é por isso que eu acho que esse é o momento mais indicado de pensar – ao menos as pessoas que estão realmente interessadas em ter um mundo um pouquinho mais interessante – em todas essas coisas. Uma das grandes proteções que, a meu ver, ainda existe, é ficar fora das cidades, voltar para a natureza e não entrar numas de guerra, porque não vamos chegar a lugar nenhum. Não adianta confrontar. Aliás, falo isso, mas confronto muito, justamente por defender todas essas questões. É por isso que escolhi viver aqui… Esse lugar serve muito para eu tentar me acalmar um pouco.

O Carnaval já foi lambuzão

Cena do entrudo em rua do Rio de Janeiro, retratado por Jean Jean-Baptiste Debret – Foto: Reprodução

Entrudo. Parece um palavrão, mas é só o nome da festa precursora do Carnaval no Brasil. Inspirado em práticas medievais, o entrudo não tinha nada a ver com os bailes de máscara da Europa. No Rio de Janeiro, os foliões saíam às ruas para molhar e lambuzar os outros, em princípio com limões-de-cheiro, como eram chamadas as bolas de cera cheias de água perfumada, produzidas especialmente para a ocasião.

O problema é que, em vez de limões-de-cheiro, alguns espirravam outros líquidos, como groselha, café e até mesmo xixi. Para completar, jogavam farinhas, polvilhos ou outro pó que tivessem à mão. Nas ruas, o entrudo era uma brincadeira que reunia apenas escravos ou negros libertos. Uma das mais conhecidas imagens da festa é a aquarela Cena de Carnaval, de 1823, do francês Jean-Baptiste Debret.

Debret não só pintou a aquarela, como descreveu a imagem no livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil: “A cena se passa à porta de uma venda, instalada como de costume numa esquina. A negra sacrifica tudo ao equilíbrio de seu cesto, já repleto de provisões que traz para seus senhores, enquanto o moleque, de serina de lata na mão, joga um jato de água que a inunda e provoca um último acidente nessa catástrofe carnavalesca”.

Parte da elite também festejava, mas dentro de casa, como mostra gravura de Earle – Foto: Reprodução

“Sentada á porta da venda, uma negra mais velha ainda, vendedora de limões e de polvilho, já enlambuzada, com seu tabuleiro nos joelhos, segura o dinheiro dos limões pagos adiantado, que um negrinho, tatuado voluntariamente com barro amarelo, escolhe, como campeão entusiasta das  lutas em perspectiva”, continuou Debret.

Coube a outro renomado artista, o inglês Augustus Earle, deixar entre o seu legado uma gravura (acredita-se que de 1822) sobre o entrudo entre integrantes da elite da época. Isso porque parte da elite também entrava na brincadeira, mas dentro de casa. Considerado violento e ofensivo, o entrudo acabou proibido em meados do século XIX.

Elas são o samba

Tamara Ferreira é diretora de chocalho na concorrida bateria da Va-Vai, tradicional escola do Bixiga. Foto: Luiza Sigulem

Faltava pouco mais de um mês para o Carnaval de 2017 e Rosemeire Marcondes cortava dezenas de fantasias para o desfile da Lavapés em seu apartamento no bairro do Glicério. Uma das 40 crianças criadas pela fundadora da agremiação, ela tem uma trajetória que se confunde com a do samba em São Paulo. “Pela minha história de vida, eu tinha que odiar o samba: meu pai morreu por causa de uma baqueta de ouro num concurso. Mas acabei ficando, sendo criada nesse mundo”, conta.

Deolinda Madre, a Madrinha Eunice, foi quem passou a tomar conta de Rose após a morte de seus pais. Mulher negra, dona de quatro bancas de frutas na cidade, ela foi responsável pela fundação da mais antiga escola de samba em atividade em São Paulo. Era 1937 e a cidade tinha cordões, mas não escolas. “O que diferenciava era o estandarte”, explica Rose.

Nascida no interior de São Paulo, filha de africanos escravizados, Madrinha Eunice é mulher pioneira e figura notória no samba, apesar de não tão conhecida fora dele. Fundou a Lavapés após uma viagem ao Rio de Janeiro com o marido, onde se encantou com o desfile da Deixa Falar (hoje Estácio de Sá). Voltou à capital paulista decidida a fazer algo parecido.

Passou quase seis décadas comandando a agremiação que venceu sete Carnavais entre 1950 e 1964, desfilando como baiana e cultivando o samba entre a família, levando os netos, como os chamava, para a festa do Bom Jesus de Pirapora, base do samba paulista. “Ela falava muito da cultura dela, do negro no interior. Falava dos bailes, que o melhor baile de negro era em Piracicaba, o 13 de Maio. E falava da religião: ela envolvia muito o samba com essa mistura, dizia ‘eu sou católica apostólica, mas sou da quimbanda’”, diz Rose.

De 1990 em diante, Madrinha Eunice avisava a todos que estava para morrer. “Em 1995 ela disse: ‘Deste ano não passo’.” A morte veio mesmo naquele ano depois de complicações de diabetes que a fizeram ter as pernas amputadas. Um dia, desanimada por não poder andar, cantou sambas o dia inteiro, a noite toda. “Quando parou, dormiu e não acordou mais”, lembra-se a neta. O falecimento gerou discordância na família. “Na hora de enterrá-la, falaram: ‘Vamos enterrar com o pavilhão’. E eu disse: ‘Não! Vai enterrar a escola?’.

Verônica Borges, 32 anos, é socióloga, antropóloga e ritmista na bateria da escola que fica na zona leste de São Paulo. Ela toca caixa. Foto: Luiza Sigulem

Desde criança, Rose era apontada por Eunice como sua sucessora, e assim se tornou. A personalidade forte da avó foi a chave para seguir com a escola, com todas as dificuldades que a agremiação enfrentou ao longo dos anos. “Ela era demais, aonde chegava era mão de ferro. E quando ela falava ‘se vocês não me derem o que eu quero, vou contar o que sei’, ahhh… Aí era rápido!”, gargalha Rose. “Ela foi uma figura marcante, como mulher, trabalhadora e guerreira. Dona do seu próprio eu, ninguém mandava nela. E sendo negra, que na época era complicadíssimo e até hoje é, né?”

Rose hoje é uma das presidentes que atuam no Carnaval paulista, pelo Grupo 3 da Uesp (União das Escolas de Samba de São Paulo). A Morro da Casa Verde, do Grupo 1, é representada pela figura lendária de Dona Guga. Já no Grupo Especial, três escolas têm mulheres na liderança: Mocidade Alegre, com Solange Cruz; Rosas de Ouro, com Angelina Basílio; e Tom Maior, com Luciana Silva. No Rio, Regina Celi comanda o Salgueiro.

Para manter a agremiação, Rose segue a tradição ensinada pela avó: faz rodas de samba com comida. “Tem a ver com as tias baianas, com tudo o que vivi. As mulheres comandando na cozinha, e comandando tudo depois. Em Pirapora a mesma coisa: a mulher punha a mão no bumbo, e só aí que o samba ia embora.”

Das raízes dessa história

A fala de Rose evidencia a importância da figura feminina como fundamento das escolas, seja em São Paulo, seja no Rio, embora em muitos postos a presença de mulheres siga rara. A pesquisadora carioca Rachel Valença, que foi componente, diretora da ala infantil, ritmista e – após décadas de quadra – presidente da Império Serrano, explica um pouco essa questão por meio de sua própria experiência enquanto mulher branca e de classe média, que conheceu a agremiação da zona norte do Rio na década de 1970.

“Quando cheguei, estranhei muito como se dava a participação das mulheres. Em toda a cultura afrodescendente, a mulher tem uma importância grande porque se trata de uma cultura matriarcal. Então, a pessoa mais influente na Império era uma mulher, a dona Eulália. Ela nunca teve cargo, mas até morrer dava palpite na bateria, sentava com carnavalesco. Cheguei de fora, com outra cultura, e logo me convidaram para o departamento feminino, que organizava as festas, fazia os salgadinhos. Achei aquilo um absurdo. Só depois fui perceber que isso era uma coisa importantíssima, porque a preparação da comida é um ritual, a pessoa que alimenta na cultura negra tem o poder. Aprendi muito e acho que em todas as escolas de samba as mulheres têm uma importância enorme”, afirma Rachel, autora, com Suetônio Valença, do livro Serra, Serrinha, Serrano: O Império do Samba.

“As escolas jamais poderiam existir se não fosse a mão feminina orientando. É importante que as pessoas saibam que as tias baianas são as matriarcas, muitas ajudaram a fundar as escolas”, ressalta Leci Brandão, cantora e compositora pioneira no Carnaval carioca.

“A presença da mulher nesses espaços, por conta da posição da mídia, fica muito focada na corporalidade das mulheres negras, das passistas e rainhas de bateria, e não se contextualiza a escola de samba como um território de resistência e permanência política, e o papel das mulheres tanto na preservação dessa memória como ocupando diversos lugares”, diz a pesquisadora Kelly Adriano de Oliveira. Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, Kelly estudou as escolas paulistas e questões de gênero, raça e religiosidade.

Ela explica que o contexto pós-abolição é a chave para compreender a importância feminina no samba. “As mulheres continuaram o trabalho doméstico, enquanto os homens que trabalhavam nas fazendas ficaram sem função. Do dia para a noite, todo mundo ficou livre, mas não foi incorporado como força de trabalho. Dez, 15 anos depois, foi criada uma lei chamada Lei da Vadiagem. Se os homens ficassem nas ruas sem fazer nada eram presos. Quer dizer, eram presos porque não conseguiam colocação de trabalho. E as mulheres viravam chefes de família, elas que mantinham as tradições. Nesse movimento todo, entra o samba.”

Quando o samba começa a sair do ambiente doméstico, as mulheres perdem poder. “Ele vai para a rua,  se tornar algo mais do espaço público, e as mulheres começam a ser afastadas. Depois, aos poucos, foram se inserindo nesse espaço externo também”, diz Kelly, ressaltando que, no Rio, essa mudança do privado para o público começou mais cedo.

No galpão da Lavapés, Rosemeire Marcondes corta tecidos para as fantasias da escola da região central paulistana. Foto: Luiza Sigulem

Quem conduz e quem compõe

Assim como Rachel, da Império Serrano, que, além de presidente, tocou na bateria, Rose também atuou em uma área artística, entoando o samba da Lavapés por muitos anos. Mulheres intérpretes não são novidade – cantaram na avenida Leci, Dona Ivone Lara, Clara Nunes, Tia Surica e Beth Carvalho, só pra citar nomes bem conhecidos –, mas também nunca foram padrão.

Em São Paulo, a Unidos do Peruche desfilava nas ruas no fim da década de 1980 com Eliana de Lima na primeira voz, e na sequência veio Bernadete dos Santos. Aos 66 anos, ela traz a lembrança de ter sido a primeira cantora a entrar no sambódromo do Anhembi, em 1991, ao conduzir a Império Lapeano pelo Grupo 3 da Uesp. Esse episódio era apenas o início da carreira da cantora na avenida. Após virar a noite na rua acompanhando os desfiles, mal tinha se deitado quando descobriu, pelo rádio, que poderia cantar novamente. Só que dessa vez pela Peruche, no Grupo Especial.

“A Eliana de Lima (na época a intérprete oficial da escola, onde Bernadete vinha atuando como cantora de apoio) deu à luz na noite anterior ao desfile. Eu achei que eles não iam arriscar me dar a escola na mão, achei que iam trazer o Jamelão, que já tinha cantado aqui. Mas cheguei na escola e me falaram ‘é você quem vai levar a Peruche na avenida’”, conta.

Bernadete também nasceu no samba. “Meu pai era maloqueiro”, ri ela, enquanto aguarda para entrar em mais um ensaio de domingo na quadra do bairro do Limão. “Ele tocava violão de sete cordas, ia pro samba na quinta e voltava na segunda. Tinha um grupo chamado Conjunto em Preto e Branco, eles se reuniam na minha casa. Todos cantavam, minha mãe cantava com eles, mas não saía de dentro de casa. E eu cantava logo quando criança, e todo mundo falava ‘ela tem a voz boa’”, conta. Anos depois, foi essa voz potente que convenceu a diretoria da Peruche a deixá-la conduzir a agremiação no Anhembi.

Ainda no carro de som da escola, mas hoje não mais como primeira cantora, ela acredita que não há mulheres nesse posto por “machismo mesmo”. “Para eles, nenhuma mulher canta mais. No meu tempo vínhamos sozinhas, hoje são dez de apoio. Eu bato na cara deles todo dia, porque quando é para fazer evento sou eu que vou”, diz ela.

Além de cantar, Bernadete é presidente da ala dos compositores da escola. “Eu tenho muitas compositoras, trago elas pra cá, presto atenção nisso. Acho que temos que agregar.”

Paulo Sérgio Ferreira, diretor da Liga SP, que reúne as escolas do Grupo Especial e de Acesso, avalia em menos de 5% a porcentagem de mulheres na ala de compositores. No Rio, nos dois últimos Carnavais nenhum samba do Grupo Especial foi assinado por mulher. Embora no mesmo Rio, no fim da década de 1950 a Unidos da Ponte tivesse Carmelita Brasil como presidente e compositora. Já em 1965, Dona Ivone Lara entrava para a ala de compositores da Império Serrano, e em 47 ela havia composto, em conjunto, um samba para a Prazer da Serrinha.

Outra referência feminina, Leci Brandão chegou na ala de compositores de uma escola em 1971. Neta, filha e afilhada de mulheres mangueirenses, ela compunha havia sete anos quando foi apresentada pelo compositor Zé Branco na agremiação do Rio. “O presidente na época disse o seguinte: ‘Mas por que você está trazendo ela aqui?’. E ele: ‘Porque eu acho que seria interessante se vocês dessem essa oportunidade, ela já compõe’. O presidente então pediu que eu escrevesse uma carta  explicando os motivos pelos quais eu queria entrar na ala, e eu falei que seria muito importante participar daquela academia – que eu considero uma universidade mesmo do samba. E ali foi decidido que eu teria que fazer um estágio de um ano e, se passasse, receberia a carteira da ala de compositores. E isso aconteceu. Em 1972 eu desfilei na Mangueira pela primeira vez”, conta Leci.

Bernadete dos Santos, foi a primeira cantora a entrar no sambódromo do Anhembi, em 1991, pela Império Lapeano. Foto: Luiza Sigulem

Driblando no batuque

Quando, em 2008, a ritmista Verônica Borges pediu para tocar caixa na bateria da Nenê de Vila Matilde, escola da zona leste paulistana onde tocava agogô, ouviu “não”. “‘Você sabe, mulher não pode’ foi a resposta”, conta ela, que já tocava o instrumento havia alguns anos em blocos, “‘mas se quiser voltar pro agogô será sempre bem-vinda’”. Apesar da maior exigência de uma bateria do Grupo Especial em relação a de um bloco, ela sentiu que havia espaços predeterminados. Apaixonada pelo batuque, queria estar tocando onde fosse, e seguiu no agogô, instrumento cuja ala chegou a coordenar por um ano na Acadêmicos do Tucuruvi.

Socióloga e antropóloga, Verônica chegou ao samba via bateria Alcalina da Unicamp, onde estudou. Aprendeu ali a tocar todos os instrumentos, começando pela caixa e indo para o surdo. Em 2011, decidiu tentar a caixa de novo na Nenê. Para isso, arriscou uma estratégia ousada antes de falar com o mestre: na parada da bateria, ao som do coro da escola, pegava o instrumento de um amigo e solava. Diretores vinham do seu lado, percebiam que ela estava tocando certo e ficavam surpresos. Pediu novamente e ouviu um “sim”. Já no primeiro ensaio foi para a peneira (seleção de ritmistas) e passou.

“Hoje sinto que sou muito respeitada pelo ritmo que faço lá dentro, mas ainda vejo caras de espanto e admiração. Esses dias lembrei que, logo que comecei, tinha a lista com os nomes dos ritmistas e eu vi que tinha sido apelidada de ‘mina da caixa’”, conta ela, primeira mulher a tocar um instrumento pesado na escola. Assim como Bernadete, Verônica participa do documentário Bambas  (2017) sobre mulheres e samba, de Anná Furtado, uma das iniciativas recentes que aborda o tema, presente hoje em blocos (como o Ilú Obá de Min), grupos (como o Sambadela, do qual Verônica faz parte, ou o Mbeji) e rodas de conversa.

Apesar do frescor da pauta, ainda mais quando se pensa em bateria, registros apontam uma ritmista no couro da Portela (Dagmar do Surdo) lá atrás, em 1954, outra no tamborim da Vai-Vai em idos dos anos 1970 (Terezinha Benedita de Moraes, como conta o blog Batucada Feminina). A Mangueira foi a última escola a ter mulheres em seus naipes, em 2007.

“Temos que pensar que quem está indo além e quem chegou primeiro teve de derrubar mais portas”, diz Verônica. “Acho que consegui ficar tranquila na Nenê com o primeiro ‘não’ porque venho de uma bateria universitária, em que pude me fortalecer como ritmista.”

Foi a ideia de um ambiente acolhedor que a fez mudar de opinião em relação a baterias femininas, que se reúnem em ensaios. Como projeto do curso de Antropologia, já imersa nas batucadas, ela resolveu estudar a bateria de mulheres da Águia de Ouro. “Antes eu não curtia muito essa ideia, hoje acho que é fundamental ter um espaço para que as mulheres possam aprender, se desenvolver e fortalecer, contanto que esse espaço modifique a bateria geral. Porque o que eu vejo muitas vezes é na bateria feminina as mulheres tocando tudo, e na bateria geral tocando agogô, chocalho, mas não tocando surdo nem caixa”, pondera ela, que já ouviu como justificativa para a ausência feminina em certos naipes a força física, ao que rebate: “Resistência se adquire”.

Diretora na concorrida bateria da Vai-Vai, junto a Cintia Adelaide (no agogô) — as primeiras mulheres a ocupar esse cargo na escola –, Tamara Ferreira rege ali ala de chocalhos, mas toca quase tudo. Quis inicialmente tocar tamborim, hoje em dia quer aprender timbau. Aos 28 anos, a ritmista também acredita na importância das referências femininas. “Ao ver outras mulheres tocando a gente tem em quem se espelhar. E hoje a gente tem que tirar uma onda. A gente é mulher, está tocando e tem que tirar onda”, ri ela, que está sempre cheia de energia caminhando entre o grupo que ocupa as ruas da Bela Vista nas noites de ensaio

A morte como pena

Por dentro do PCC - A facção criminosa,
"Por dentro do PCC - A facção criminosa", que surgiu em São Paulo, foi tema da tese de doutorado de Camila Dias na USP. FOTO: Arquivo Pessoal

A editora Todavia acaba de lançar o livro A Guerra – Ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil, escrito pelo jornalista Bruno Paes Manso e pela socióloga Camila Nunes Dias. Os dois pesquisadores e estudiosos da área se segurança pública e direitos humanos usaram como ponto de partida para o livro as rebeliões sangrentas que ocorreram no Brasil nos últimos anos.

Leia entrevista de Maria Carolina Trevisan com a autora Camila Nunes Dias, publicada na edição 114 da revista Brasileiros, em fevereiro de 2017:

O Primeiro Comando da Capital, PCC, nasceu oficialmente em 1993, quase um ano após o Massacre do Carandiru, em que 111 presos da Casa de Detenção de São Paulo foram mortos. O grupo foi constituído a partir de um “estatuto” que define princípios e valores, como lealdade, respeito e solidariedade, e luta por liberdade, justiça e paz , tendo regras e normas de conduta – “o Partido não admite que haja assalto, estupro e extorsão dentro do sistema”– e de comportamento –“jamais usar o Partido para resolver conflitos pessoais”.

O que pode parecer um código de ética em nome da paz da facção também indica penalidades violentas para quem não seguir os preceitos da carta.“Vida se paga com vida”, dizem os “irmãos”, como os integrantes se referem uns aos outros. As penas para os desobedientes podem ser humilhação pública, agressão física e execução. “Quanto mais alto o escalão e mais importante o seu papel na estrutura da organização, maiores os riscos de que a exclusão seja acompanhada de execução”, explica Camila Caldeira Nunes Dias, professora de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC e uma das mais respeitadas estudiosas do País sobre o grupo criminoso.

Camila conta que o PCC foi criado em São Paulo e os governos subestimaram a presença do grupo como organização. “O governador Geraldo Alckmin disse que São Paulo não tem nada a ver com isso. É claro que tem. As lideranças estão em São Paulo”, ela afirma.

Em sua tese de doutorado Da Pulverização ao Monopólio da Violência: Expansão e Consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no Sistema Carcerário Paulista, no departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, Camila define três fases do PCC: sua constituição e seu fortalecimento dentro dos presídios paulistas, entre 1993 e 2001, que culminaram com uma megarrebelião em 29 unidades prisionais; sua força nas ruas, de 2001 a 2006, quando uma série de atentados a bancos, supermercados e aviões pagadores evidenciou o poder da facção para além dos muros das penitenciárias, contrapondo-se à negação de sua importância pelas autoridades de segurança; e o estabelecimento de seu poder, a partir de 2006, quando se inaugurou um amplo conflito entre a Polícia Militar e o PCC, que assumiu a hegemonia do crime no estado de São Paulo.

Diante dos massacres atuais ocorridos nas penitenciárias do País, que já vitimaram 136 pessoas nos primeiros dias deste ano, Camila diz que construir presídios, como o governo responde aos conflitos, não é solução.

Para ela, que também integra a equipe de pesquisadores do Núcleo de Estudos da Violência da USP, é preciso uma mudança profunda nas políticas de segurança para resolver a crise penitenciária e o caminho passa pelo desencarceramento.

Brasileiros – Em sua tese de doutorado, a senhora pontua três fases do PCC: o nascimento, o fortalecimento dentro e fora dos presídios e o estabelecimento de seu poder contra as forças de segurança. Diante dos recentes massacres em Manaus e Roraima, seria possível determinar uma quarta etapa?
Camila Caldeira Nunes Dias – Ainda é arriscado caracterizar essa nova fase de maneira mais definitiva, mas ela mostra a nacionalização do PCC e as disputas competitivas em razão dessa nacionalização. A característica não é mais o contexto do estado de São Paulo. Quando se espalhou pelo Brasil, outros interesses surgiram e foi gerado um conflito com outros grupos. A partir dos conflitos recentes, está claro que o PCC é uma organização com presença nacional, mas cujo centro de comando continua em São Paulo. A disputa pelo controle e pelas rotas de tráfico e o comando das prisões brasileiras em outros estados também caracterizam essa etapa.

Que papel teve o Massacre do Carandiru no nascimento do PCC?
O PCC surgiu um ano depois do Massacre, em 1993, a partir de um duplo homicídio que aconteceu na Casa de Custódia de Taubaté, quando os presos envolvidos fizeram um pacto, uma aliança de proteção mútua. Esses acontecimentos não resumem o processo, mas são marcadores importantes. A criação do PCC é decorrente do contexto de extrema violência que o sistema prisional de São Paulo vivia e o Massacre do Carandiru é o mais emblemático desses eventos, mas não é isolado. A política de encarceramento também é decisiva para sua criação.

Em termos de política de segurança pública, desde o Massacre até hoje, houve avanços? Ou estamos no mesmo lugar há 25 anos?
Sim. A única mudança que a gente pode identificar, em São Paulo pelo menos, é o maior cuidado, se é que dá para falar em cuidado, da Polícia Militar na invasão de presídios. Passou-se a evitar a entrada da corporação. A Secretaria de Administração Penitenciária, que ainda não existia, passou por um processo de autonomização da administração penitenciária. Foram criados grupos específicos de funcionários, não só de agentes penitenciários, mas para fazer a escolta de presos, a vigilância das muralhas, intervenção. Isso também é uma decorrência do Massacre do Carandiru e faz parte das consequências do aumento da população carcerária no estado paulista. O crescimento do sistema prisional exigiu uma estrutura burocrática administrativa separada e a criação de carreiras específicas para atuar no sistema.

Sobre os massacres no Amazonas e em Roraima, de quem é a responsabilidade pelas mortes dos detentos?
Independentemente de quem foram os assassinos, se policiais, agentes, funcionários ou outros presos, a responsabilidade pela vida da população carcerária é do Estado.

Ainda é obscuro o papel da Polícia Militar nesses massacres recentes…
É muito inquietante imaginar como todas aquelas armas de fogo foram parar nas mãos dos presos. Eram armas longas, grandes. Sinceramente, não vejo condições de isso ter ocorrido sem que houvesse facilitação ou participação direta de agentes públicos. A participação do Estado vai muito além de simples omissão. Essas armas não entram num presídio se não há conivência, participação mais robusta do Estado. A gente não sabe qual é o grau dessa participação ou até onde vai, se é um funcionário corrupto ou algo mais estrutural.

Que relação há entre políticos locais e facções criminosas? 
Acompanhei por alto uma investigação que ocorreu no Amazonas, a La Muralla, que girava em torno das relações da Família do Norte com políticos. Tudo sugere que esse evento de Manaus não aconteceu por acaso. Além disso, parece que a empresa que administrava o presídio (Umanizzare, que faz a gestão privada do Complexo Prisional Anísio Jobim, o maior de Manaus) tem uma promiscuidade na relação com o governo, com a secretaria. Todo mundo quer lavar as mãos. Há um ofício informando o governo e a secretaria, comunicando a entrada de armas de fogo no final do ano passado. Havia o pedido para restringir. Todo esse conjunto de dados evidencia que existe um componente, cuja dimensão ainda não sabemos, de participação do Estado.

É comum a existência de acordos entre governos e facções? 
Especialmente em São Paulo, não sei se a gente pode falar em “acordo” porque acho que Marcola (líder do PCC) e Alckmin (governador de São Paulo, Geraldo Alckmin) não se sentaram à mesa diretamente. Por isso, chamo de “acomodações”. Construiu-se em São Paulo – e talvez até isso esteja ameaçado – um quadro na segurança pública e no sistema prisional que tem uma estabilidade, em que se confia em alguns consensos. Uma questão basilar desse consenso é o fato de presos tidos como as principais lideranças do PCC nunca terem sido transferidos para o sistema penitenciário federal ou sequer terem entrado no RDD (Regime Disciplinar Diferenciado, que submete o preso a um grau maior de isolamento). Estavam numa penitenciária que formalmente é comum.

O que significaria a transferência para uma penitenciária federal?
As federais têm capacidade muito maior de cortar a comunicação. O Brasil tem quatro desses presídios. São extremamente rigorosos em termos de regime disciplinar. Neles há a área do RDD e da pena que não é RDD. Mas mesmo a área “comum” é muito mais rigorosa que as penitenciárias estaduais: o preso fica numa cela sozinho, tem duas horas de sol, não tem televisão na cela, rádio. Nas estaduais, a realidade é outra. A maioria dos presos apontados como líderes do PCC está em Presidente Venceslau II, em São Paulo, onde há uma segurança rigorosa, mas não tanto quanto nas federais. Lá, os presos têm três horas de banho de sol, estão em celas coletivas, têm televisão e visita íntima. Uma operação do Ministério Público de São Paulo denunciou que os presos têm uma série de regalias. É uma informação significativa que ajuda a entender o cenário (a Operação Ethos aconteceu no final de 2016. Constatou-se que advogados, por meio de pagamento de propina a pessoas envolvidas com órgãos do Estado, visavam concretizar o objetivo de facções criminosas, de financiar o controle de agentes públicos e colaboradores).

Por que é uma informação significativa? 
Porque a imagem que se vende das penitenciárias estaduais é de que elas são muito rigorosas, de que os presos de São Paulo estariam nas penitenciárias de segurança máxima e não precisariam ir para o sistema federal. Com essa investigação do Ministério Público, várias coisas foram reveladas. Uma delas é que os presos gastavam milhares de reais com médicos, com coisas que a população comum do sistema prisional não tem. Fala-se, por exemplo, que Marcola queria colocar botox. Os presos dos outros presídios estão morrendo por falta de atendimento médico. Após essa operação, aqueles presos apontados como cúpula do PCC foram para o RDD. Fico me perguntando se o que aconteceu em Manaus seria coincidência.

No seu trabalho de doutorado, a senhora diz que o PCC tem uma dimensão regulatória. O que isso quer dizer? 
Dentro das prisões, todos os conflitos, as relações que podem carregar algum grau de conflito, são mediados pelos membros do PCC. Qualquer coisa que fuja às normas de convivência na cela é levada aos membros do PCC na unidade. Eles fazem a mediação do que aconteceu, ouvem quem acusa, ouvem o acusado e as testemunhas, e definem o que fazer, seja punição ou não. Isso vale para qualquer coisa que você imaginar dentro de uma prisão, desde as coisas mais banais e cotidianas. Existem unidades prisionais em São Paulo que têm 60 presos numa cela onde caberiam 12. Imagina o grau de conflitos dessa convivência, inclusive violentos. Nessa dimensão é que o PCC tem uma atuação importante em termos regulatórios e de mediação de conflitos. Essa atuação faz com que os espaços sejam mais pacificados do que eram há 20 anos. Por isso, o PCC conseguiu se tornar essa instância central de mediação e regulação. Hoje, um preso num sistema prisional não pode resolver um conflito por ele mesmo, da maneira que achar melhor. Isso é fundamental para entender como a violência física, especialmente os homicídios, caiu muito nos presídios paulistas.

Depois dos assassinatos dos membros do PCC no Amazonas, isso pode mudar?
Não sei. Mas essa dimensão da redução da violência física é uma das características mais importantes dessa terceira fase do PCC, demonstra sua hegemonia. O PCC só passou a prescindir da violência física direta como forma de regulação dos conflitos no momento em que se tornou hegemônico em São Paulo, e não é mais ameaçado por outros grupos.

Em declarações sobre os assassinatos em Roraima e Rondônia no final de 2016, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes (indicado por Temer ao STF no dia 6 de fevereiro), se negou a falar sobre as facções. “Não comento sobre criminosos”, disse. Como enfrentar a questão se não se considera a existência e a importância desses grupos?
Tendo em vista as pessoas que estão à frente dos ministérios, especialmente o Ministério da Justiça, é muito difícil falar qualquer coisa. Essas pessoas não têm a menor capacidade de encontrar uma solução para o problema. Primeiro, por incapacidade, incompetência. Segundo, porque não têm esse interesse específico. O interesse do ministro da Justiça é se eleger, ser um candidato viável eleitoralmente. Nada do que ele diz tem o objetivo de resolver o problema. Fala as bobagens que fala não porque não saiba da situação. Foi secretário de Segurança em São Paulo, portanto conhece o problema do PCC. Mas fala a partir dos interesses que tem de disputar eleições. É evidente. Durante esses 23 anos de existência do PCC, São Paulo nunca reconheceu o PCC como um problema. Desde que pisei pela primeira vez na prisão, em 2001, a presença do PCC já era ostensiva. Nesses anos todos, nunca vi o governador Geraldo Alckmin (que também governou o estado entre 2001 e 2003 e de 2003 a 2006, e está no governo paulista desde 2011) reconhecer publicamente o PCC como um problema. Todos os secretários de Segurança e de Administração penitenciária também não reconheceram, salvo Nagashi Furukawa (foi secretário da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo entre 1999 e 2006), um dos únicos que tinham uma relação muito menos nebulosa e mais transparente com essa questão. Foi no período dele, por não fazer acordos ou acomodações, que ocorreram as maiores turbulências no sistema prisional. Era um dos poucos que admitiam o PCC como problema. Fora ele, todos os outros minimizaram essa existência.

Poderia ser ignorância ou falta de conhecimento dessas autoridades?
Não acho. Se tivessem reconhecido antes que o PCC tem uma atuação tão forte em São Paulo, tão presente e tão incisiva, e que até por isso os homicídios caíram no estado, talvez os governadores do mesmo partido que se sucederam não tivessem se prolongado tanto tempo no poder. Um dos grandes pilares de sustentação dessa continuidade dos governos do PSDB em São Paulo é a política de segurança, que é muito sensível eleitoralmente. Se tivesse claro, no meu entendimento e de outros pesquisadores, que uma das questões centrais que explica a queda de homicídios no estado é justamente a hegemonia do PCC, essa regulação dos conflitos dentro e fora das prisões, talvez a eleição ou reeleição fosse inviabilizada. Por tudo isso é que a questão do PCC, da segurança pública em geral, é muito sensível no que diz respeito a interesses político-eleitorais e não é tratada de maneira honesta, franca, em que os políticos reconheçam o problema para tentar minimizá-lo. Daí, a gente não consegue avançar.

O que São Paulo tem a ver com o que aconteceu no Amazonas e em Roraima?
O governador Geraldo Alckmin disse que São Paulo não tem nada a ver com isso. É claro que tem. As lideranças estão em São Paulo.

Como vê o Plano Nacional de Segurança divulgado pelo ministro da Justiça?
Na verdade, é mais do mesmo. Além disso, é péssimo até em relação ao que sempre tivemos. Como a imprensa em geral não se interessa pela questão prisional fora desses eventos de violência extrema, daqui a pouco as coisas se acomodam e ninguém vai mais falar no assunto, nem discutir daqui a dois, três anos com Alexandre de Moraes quantos bilhões de reais foram gastos nas penitenciárias federais que ele anuncia e por que estão sendo construídas. Ele fala em investimentos para construir cinco penitenciárias federais, sendo que as quatro que existem estão com vagas ociosas.

Construir presídios resolve? Ou piora a situação, que já é calamitosa? 
A cada nova crise desse sistema que está permanentemente em crise, a resposta das autoridades é construir prisões. Foi assim que o PCC cresceu, se expandiu, se fortaleceu e se tornou hegemônico. Foi assim que surgiram as facções em todos os outros estados do Brasil, como o Comando Vermelho. Dizer que vai construir mais prisões, que vai financiar para que os estados construam mais prisões significa dizer que vai aumentar o espaço de atuação dessas facções, vai crescer o número de presos e, portanto, o número de pessoas que estarão sujeitas ao controle das facções. Construir penitenciárias federais significa gastar muito dinheiro porque essas penitenciárias têm uma estrutura cara, e não vai resolver o problema. Gostaria de saber a explicação dele, considerando que as quatro penitenciárias federais têm vagas ociosas. O sistema federal não é para o cumprimento de penas. É voltado especificamente para punição, isolamento de líderes. Vai ficar impossível gerenciar.

Qual o objetivo do sistema penitenciário federal?
Ninguém sabe direito. A forma como vem funcionando é para o preso considerado líder de uma facção. Ele vai e fica um tempo. Inicialmente, não poderia passar de um ano. O sistema não é adequado à Lei de Execução Penal, no sentido de ter trabalho, escola, tudo aquilo que supostamente o detento precisa ter para a ressocialização. É um sistema diferenciado, que deixa o preso em isolamento, com pouco contato com outros seres humanos. O preso não pode cumprir pena ali, embora alguns estejam há muitos anos no sistema federal, totalmente ao arrepio da lei, não sei qual é a manobra jurídica para isso. Um deles é Fernandinho Beira-Mar. Daí, o ministro anuncia a construção de mais cinco desses. Não faz o menor sentido.

O que o ministro pretende com isso? 
Quando ele anuncia, a impressão é que está dando uma resposta ao problema. Temos especialistas que falam que uma das características da punição na sociedade contemporânea é que as autoridades dão respostas muito mais simbólicas do que concretas. Porque isso não vai ser cobrado, em termos de resultado, vai cair no esquecimento. A raiz disso tudo, para mim, é que essas pessoas têm seus interesses próprios, políticos, eleitorais e usam esses massacres para sustentar esses interesses, mas sem qualquer preocupação em efetivamente discutir e reconhecer o problema. Aí não tem como entrar numa discussão séria de política pública porque não é nisso que eles estão interessados.

A situação de violência nos presídios não vai parar tão cedo, não é?
Vivemos um momento de tensão no sistema prisional, que deve durar alguns meses. Mas acho que, para a própria dinâmica de sobrevivência, para não se dizimar, vai acabar encontrando um equilíbrio. Até que isso aconteça, estaremos vivendo turbulências. Uma alternativa seria colocar os líderes desses grupos para conversar. É claro que o governo nunca vai admitir publicamente e a gente provavelmente nunca vai ficar sabendo, caso isso aconteça. Mas acho que é uma saída. Isso aconteceu em outros países, como El Salvador. Em termos de encontrar solução, traria uma pacificação. É claro que não seria a solução do problema, porque novos conflitos poderão vir.

Existe solução para a crise nos presídios?
A solução do problema não pode deixar de passar por uma política de desencarceramento. E, claro, uma política ampla que envolva prevenção e atuação de forma mais específica sobre os presos que ficam encarcerados, trabalhar na reinserção, em um sistema de proteção ao egresso, à sua família. Ou seja, uma série de políticas articuladas que pensem no antes, no cumprimento da pena em si e no depois. É uma solução que precisa considerar médio e longo prazos. Mas não teremos isso. Teremos apostas eleitoreiras, de curto prazo, liberação de milhões e milhões de reais na construção de prisões, um ralo que não tem fim, e não vão resolver nada.

Da parte das forças de segurança, não teria que se repensar esse modelo de guerra às drogas, por exemplo? 
Quando falo que deveria ter uma política de desencarceramento, não tenho dúvida de que um dos elementos presentes numa política como essa teria de passar pela mudança de fato na questão do Estado em relação às drogas. Porque a gente sabe que a guerra às drogas é uma guerra contra os pobres. Os grandes fornecedores, os financiadores do tráfico não estão na prisão. Quando falo em política de descarcerização, um dos elementos centrais diz respeito a uma nova relação do Estado com as drogas, focada na prevenção e no atendimento aos dependentes, e não na punição, na repressão e no encarceramento. Hoje, no estado de São Paulo, cerca de 30% a 40% estão presos por tráfico. Isso representa uma quantidade significativa de pessoas encarceradas por tráfico e as penas podem ser altas. Se formos analisar os casos particulares, a maioria das pessoas é usuária que vendia pequenas quantidades de droga para sustentar sua própria dependência. Boa parte dos presos respondendo por tráfico de drogas é de pessoas pegas com pequenas quantidades. Seria necessária uma ampla discussão e rever toda a política que tem sido feita de guerra às drogas, que só tem contribuído para encarcerar jovens, cada vez mais jovens, que na verdade são pessoas que estão na prisão por conta de uma série de vulnerabilidades que as tornam suscetíveis a cair nas malhas do sistema de Justiça.

O que significam as imagens de crueldade registradas nos massacres recentes e veiculadas nas redes sociais?
Essa forma de matar com decapitação e mutilação é muito comum. Sempre falo que existe um componente forte do simbólico, de expressar publicamente um poder. Essa dimensão simbólica está amplificada com a difusão pelos celulares e pelas redes sociais. O fato hoje de circular as imagens exponencializa a importância simbólica desse tipo de morte, que tem o objetivo de explicitar o poder. A partir do momento que o PCC adquiriu hegemonia e se consolidou, esse tipo de ocorrência deixou de acontecer por que não seria mais preciso demonstrar seu poder, que está estabelecido. Em outros estados, especificamente num momento de disputa, essa dimensão simbólica adquire importância maior.

Acha que vai haver responsabilização do Estado sobre os últimos massacres? 
Acho que não. Para mim, todos aqueles que estavam em cargos de direção no momento dos massacres, teriam de responder criminalmente. As pessoas para as quais foram encaminhados ofícios e que nada fizeram tinham de responder criminalmente, inclusive a empresa que administra o presídio, nas várias denúncias de irregularidade. Acho que não vai acontecer. Nem no Massacre do Carandiru, em que os policiais apertaram o gatilho e atiraram para matar, o Estado foi responsabilizado

Instituto Moreira Salles: Um centro cultural de múltiplas vocações

Foto: Robert Frank

Com a inauguração de sua nova sede paulistana, no dia 20/9, o Instituto Moreira Salles (IMS) inicia uma nova fase. Serão mais de mil metros quadrados de espaço expositivo, dividido em três grandes galerias com pé direito duplo. O prédio, projetado pelo escritório Andrade Morettin Arquitetos, ainda conta com amplos espaços para uma biblioteca especializada em fotografia, com capacidade para até 30 mil publicações (no momento conta com 7 mil livros), salas para realização de cursos, oficinas, espetáculos de música, sessões de cinema, restaurante e livraria. Situado na Avenida Paulista, bem próximo à Av. Consolação e servido por duas estações de metrô, o espaço deve promover um crescimento exponencial do público alcançado pelo Instituto, lançando à organização o desafio de conciliar um trabalho para um público de massas sem perder de vista suas diretrizes básicas.

A instituição, que celebra este ano 25 anos de existência, tem eixos de ação muito definidos, sendo a fotografia sua principal área de atuação, seguida das áreas de música e literatura. A história do IMS está, desde seu nascimento em 1992, intimamente vinculada à ideia de preservação da cultura brasileira e a uma estratégia de aquisição, preservação, restauro e divulgação de importantes acervos, de nomes importantes como Marc Ferrez e Marcel Gautherot (fotografia), Album Highcliffe (iconografia), Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth e Pixinguinha (música), além de cuidar dos arquivos pessoais de 29 escritores brasileiros. Para se ter uma noção da dimensão da coleção, basta lembrar que apenas o acervo de fotografia reúne mais de dois milhões de imagens e não para de crescer. Tem também buscado, nos últimos anos, ampliar seu olhar para a produção contemporânea.

“Nossa ideia é oferecer uma programação que talvez o público não espere”

Outro aspecto importante na trajetória do Instituto, e que deve ganhar um enorme peso com o novo espaço, é o que Flavio Pinheiro, à frente do IMS desde 2008, define por uma “ambição curatorial crescente”. É verdade que anteriormente o Instituto possuía um espaço na Praça Buenos Aires, mas era uma sala acanhada, tímida, que não tinha condições de receber boa parte das exposições organizadas internamente. As exposições maiores realizadas nos últimos anos, com o material dos arquivos ou em parceria com importantes instituições nacionais e internacionais (como as de William Kentridge, Richard Serra, Anri Sala), quando vinham a São Paulo, eram mostradas em espaços parceiros, como a Pinacoteca, por exemplo. A sede carioca, que ocupa a antiga residência da família Moreira Salles no bairro da Gávea, é extremamente charmosa porém mais distante do público. Tem um público cativo, mas restrito. O terreno é amplo (11 mil metros quadrados, o que permitiu que todo o acervo passasse a ser guardado ali), mas seu espaço expositivo é relativamente pequeno. Apenas uma das três galerias de São Paulo já a supera em tamanho. E a sede de Poços de Caldas (cuja inauguração, em 1992, marca o nascimento do IMS) tem alcance apenas regional.

“Esse é o grande desafio. O Instituto tem muito prestígio, mas nunca teve de fato esse público, essa visitação mais rápida, mais variada. O objetivo é manter nosso padrão de qualidade. A gente não quer perder esse rigor”, ressalta Lorenzo Mammì, curador geral de programações e eventos do IMS.

A agenda preparada para a inauguração do prédio já sinaliza o caráter plural que a instituição pretende adotar. A antológica série The Americans, feita em 1955 por Robert Frank (além da exposição de fotografias, haverá também um curso sobre a geração beatnik e uma mostra de cinema), ocupará uma das galerias. O segundo espaço abrigará Corpo a Corpo, uma exposição coletiva de fotografia contemporânea brasileira, que reúne trabalhos de Bárbara Wagner, Jonathas de Andrade, Sofia Borges, Letícia Ramos, Garapa e Mídia Ninja. São imagens recentes, posteriores aos protestos de 2013, que parecem ter inaugurado um novo momento político e social no país, e que lidam com a corporificação da violência, do confronto, das tensões de classe e de poder. A Galeria 1 receberá a videoinstalação The Clock, de Christian Marclay – agraciada com o Leão de Ouro da Bienal de Veneza de 2011.

Exibição de The Clock, de Christian Marclay (Foto: Divulgação)
Exibição de The Clock, de Christian Marclay (Foto: Divulgação)

A tendência – como se pode notar –  é privilegiar as imagens técnicas, produzidas com aparelhos. “A foto renova-se em sua banalidade digital. Ela não acabou, o que torna ainda mais exigente o nosso papel de mediador”, explica Pinheiro. O cinema também terá seu lugar de destaque, ocupando, com uma intensa programação, o auditório multimídia com 150 lugares (que tem condições de projetar tanto filmes analógicos como digitais, bem como preparo acústico para eventos musicais). O objetivo é trabalhar o caráter diverso da produção audiovisual, complementando a já vasta programação cinematográfica existente na Paulista e combinando o novo e o antigo, uma seleção de produções recentes de acesso mais restrito com a divulgação de um vasto e mais desconhecido material de arquivo, de caráter mais histórico. “Nossa ideia é oferecer uma programação que talvez o público não espere”, afirma o cineasta Kleber Mendonça Filho, consultor responsável por essa programação.

A presença de The Clock, que sincroniza em tempo real diferentes imagens de relógios capturadas no cinema, serve de gancho para uma ação ousada: a decisão de manter, um dia por semana, o instituto aberto 24 horas. Mais do que permitir que o trabalho seja apreciado na íntegra e transgredir os limites rígidos de funcionamento, esse horário alternativo tem por objetivo reafirmar o vínculo entre o novo espaço e seu público, dando corpo a um centro de cultura plenamente integrado com a cena urbana, em suas mais diferentes feições, do período comercial à madrugada.

Esse entrecruzamento com a cena urbana e seus habitantes se reflete em outros aspectos do IMS paulistano, com efeitos tanto na programação de longo prazo quanto na própria arquitetura do espaço. O projeto do escritório Andrade Morettin se impõe, com sua roupagem leve, de vidro, na paisagem da Avenida, como é possível constatar nas fotos feitas ao longo de todo o período de construção por Michael Wesely, que também estarão em exibição. E busca integrar-se a este espaço recriando, no quarto andar do novo prédio, um espaço de convivência que funcionará como uma espécie de praça, com a dupla função de acesso e espaço de convívio, enquanto o andar térreo é pensado como uma continuidade da rua, dialogando também com outros dois prédios icônicos da Paulista: o Masp e o Conjunto Nacional.

Essa integração também se encontra na escolha do tema para a primeira de uma série de mostras de longo prazo (um ano de duração), aos cuidados de curadores convidados, que ocupará o último andar do edifício, num sistema de projeção imersiva de imagens. A seleção inaugural, a cargo de Guilherme Wisnik, se debruça exatamente sobre a iconografia da cidade de São Paulo. São três séries, construídas basicamente a partir de imagens pertencentes a coleção do IMS, intituladas Construção/Demolição, Letreiros e Personagens. Com cerca de 8 minutos, cada série propõe um passeio ao mesmo tempo histórico e poético por aspectos importantes do caráter urbano de São Paulo, traduzindo na prática essa “ideia da natureza de São Paulo como lugar de transformação permanente, de lugar de construção e também de destruição”, explica Wisnik.

A sexualidade é sempre difícil de abordar

Imagem da capa do Livro Nudez de Giorgio Agambem

Em cartaz no Masp, a exposição “Histórias da Sexualidade” busca investigar por meio de quase 300 obras um dos temas mais candentes da humanidade. Como sintetiza Lilia Schwartz, uma das curadoras responsáveis pela mostra, a mostra procura entender como “sexo, gênero e desejo” são aspectos “fundamentais em nossas representações sociais, formulações ideológicas, percepções cotidianas e experiências visuais”. Após dois anos de investigações e discussões, a mostra traz um conjunto significativo de obras, que ganham destaque a partir de uma constante estratégia de confronto que, ora explorando sintonias, ora reforçando diferenças, sublinham diferentes formas expressão em torno do sexo.

Por outro lado, a exposição parece pecar pelo excesso de critérios internos, que acabam por conduzir de maneira um tanto forçosa a apresentação e a leitura dos trabalhos. O que foi pensado como uma mostra libertária acaba, em função da sua própria estrutura –  a segmentação em nove conjuntos “temáticos” sem grande coerência interna, a não ser o fato de terem íntima relação com o tema da sexualidade ou expressarem questões muito candentes da atualidade –, adquirindo um caráter engessado. Em outras palavras, se em alguns momentos esse recorte excessivo ajuda a organizar as ideias e dá ao visitante uma série de palavras-chave por meio das qual ele pode “ler” a maioria dos trabalhos, por outro o mesmo esforço ordenador acaba por conduzir demasiadamente a fruição, subjugando a poética a categorias de interpretação externas à obra de arte.

Ana Mendieta, Guanaroca, (Esculturas Rupestres), 1969
Ana Mendieta, Guanaroca, (Esculturas Rupestres), 1969

É difícil saber quais foram os critérios adotados para a adoção dos nove grupos eleitos, que vão do núcleo inicial, intitulado “Corpos nus” (com uma bela seleção de pinturas do gênero), ao bloco final dedicado às “Políticas do corpo e ativismos” – abrigado no subsolo do museu –, passando por capítulos como “Voyeurismos” e “Religiosidades”, mas provavelmente correspondem a temas com presença significativa no acervo do museu.

Em alguns casos a significância e potência dos trabalhos supera as segmentações. É o caso por exemplo de “Lado Feminino/Lado Masculino”, de Chico Tabibuia, e “Sapho”, de Francisco Leopoldo e Silva estão entre as obras que não se restringem à uma categoria específica e abrem simbolicamente a mostra, que pode ser vista  até 14 de fevereiro. A escolha das duas obras revela muito sobre os partidos tomados e as questões que a curadoria procurou iluminar. Em primeiro lugar, há um evidente choque entre as duas esculturas. De um lado temos uma obra clássica, com toda a nobreza do mármore, que se insere no respeito aos preceitos acadêmicos da representação do nu feminino. De outro, um belo exemplo de arte popular, confeccionado por um artista claramente excluído do circuito oficial da arte, cuja representação rudimentar de um homem e uma mulher nus num único tronco de madeira ilustra um dos temas mais significativos nesse mergulho na representação artística da sexualidade: a noção de identidade sexual e o tema da indefinição de gênero.

Talvez seja essa a questão mais destacada ao longo da exposição, presente em quase todos os subnúcleos, com um bloco inteiramente dedicado a ela (“Performatividades de Gênero”) e simbolicamente elaborada no caso exemplar de Gauguin. Tomando como ponto de partida a tela “Autorretrato (perto de Gólgota), pintada por ele em 1896, faz-se toda uma digressão sobre a importância da androginia na obra do artista, num aprofundamento de caráter mais psicológico do que plástico, que destoa um pouco da linha condutora da mostra que, mesmo alinhada com uma perspectiva multidisciplinar, busca a maioria de suas referências na análise dos vínculos entre a sociedade, seus problemas contemporâneos e a cultura visual. Tal abordagem está na base da estratégia curatorial do museu, que há algum tempo vem procurando investigar a relação entre a arte e alguns temas que ganham relevância na atualidade. A mostra dedicada ao sexo é a quarta de uma série de investigações, que no passado se dedicaram aos temas da infância, da loucura e do feminismo, e no futuro abordarão as histórias afro-atlânticas e indígenas.

José Antonio da Silva, untitled, 1971. Collection Vilma Eid, São Paulo, Brasil.
José Antonio da Silva, untitled, 1971. Collection Vilma Eid, São Paulo, Brasil.
A curadoria buscou ativamente implementar ações corretivas de desigualdades, abrindo espaço para trabalhos de origem popular, dando visibilidade a grupos ativistas e buscando um equilíbrio mais justo entre artistas homens e mulheres no conjunto. Quando corporificada na própria obra, a defesa das minorias alcança resultados de grande impacto e adquirem uma potência reveladora de opressões e uso da linguagem como forma de domesticação do outro. É o caso por exemplo da aproximação entre a tela “Moema”, pintada em 1866 por Victor Meirelles e um dos grandes exemplos do indianismo romântico (que se apropria da imagem do índio, mas também anula sua força, mostrando uma Moema impotente, dominada, que morre de amor pelo conquistador branco), e uma fotografia extremamente delicada de Claudia Andujar, na qual se vê um índio real, em seu contexto específico (uma aldeia Yanomami), flagrado em repouso.

Outros diálogos, espalhados ao longo da exposição, merecem atenção, como a contraposição entre a imagem de mulher primitiva criada por Ana Mendieta e a fotografia “O Escultor e a Deusa”, de Ernesto Neto. A sensualidade da imagem da boca do artista “emoldurando” uma pequena divindade feminina não é algo comum na exposição. Evidentemente o erotismo e a representação visual do desejo – tema importante na história da arte – tem seu lugar na exposição, mas se encontra diluído em meio a outras tantas questões mais presentes como a incomunicabilidade, a indiferenciação, o uso do sexo como poder ou como arma política.

Egon Schiele , Autorretrato Nu, 1910
Egon Schiele , Autorretrato Nu, 1910

Há uma série de exemplos de denúncia enfática, como as telas de Descartes Gadelha, que retrata o caráter grotesco do turismo sexual e pedofília na praia de Iracema, em Fortaleza, ou a série “Para Hereges”, de Leon Ferrari, na qual desenhos eróticos são sobrepostos a gravuras de passagens bíblicas de Dürer, explicitando os vínculos entre religião, opressão e perversão. Parecem menos relevantes os trabalhos em que o erotismo e a sensualidade predominam, como no caso de Alair Gomes e Tracey Moffat (outro dos grandes encontros da exposição). Quem for à “Histórias da Sexualidade” em busca de cenas tórridas ou imagens que se aproximam da pornografia, ficará frustrado.

Ao final do percurso, resta ao visitante a sensação de um certo mal-estar contemporâneo diante de uma repressão sexual permanente, que agora renasce com força, e contra a qual os artistas se batem de forma um tanto desesperançada, mas intensa. Ilustra essa sensação a obra de Sergio Zevallos Santa Rosa, associada ao contexto de perseguição aos homossexuais no Peru, na qual se vê um homem de cócoras, atado por cordas reais amarradas diante de sua imagem, cujo título é “Esperar la hora que cambiará nuestra costumbre no és fácil”.

Pode haver Facebook sem ódio?

"A vontade de castigar vai além do ativismo judicial, que está invadindo o espaço da decisão democrática", diz Janine. (foto: Pixbay)

Por que o Facebook virou uma arena que não vive sem o ódio? me pergunto. Não passam dois ou três dias sem que surja uma nova polêmica, mas sempre carregada das piores paixões. O “Tribunal do Feicebuqui”, como disse o compositor Tom Zé, em 2013, depois de ser duramente atacado por uma gravação com a Coca-Cola, conseguiu ficar ainda mais impiedoso.

Faço esta pergunta, e logo me questiono. Como cada facebooker vê um Face totalmente diferente, conforme os amigos que tem, o que ele curte e posta, não sei se minha pergunta vale para toda a rede social. Sei que em Portugal o Face é pouco utilizado para a política. Aqui no Brasil, imagino que as pessoas que postam coelhinhos, flores e sol radiante convivam só com outras pessoas que também postam coelhinhos, flores e sol radiante (mas não sei, não – no meio dessas fofices volta e meia crepita muito ódio). E acredito que, assim como meus amigosFB, que são na maior parte de esquerda, destilam ódio, também os facebookers de direita não percam ocasião de manifestar ódio e raiva. Imagino isso.

Gostarei muito se pessoas com outras experiências do FB, sobretudo no exterior, contarem como é essa rede social em cada país.

Mas volto à pergunta. O que vejo é que cada semana há pelo menos dois assuntos que pegam fogo na minha linha do tempo e geram reações condenatórias. E o mais grave: embora nem todos os meus amigos de esquerda concordem com a condenação, logo surge uma posição hegemônica, que condena todas as outras. Não é uma briga de direita com esquerda. É uma briga de ortodoxia com heresias.

A ortodoxia bem pode ser de oposição ao governo atual, ao machismo, ao racismo. Mas o fato é que ela se torna uma ortodoxia, e contestá-la leva a ataques e a ofensas. E repito, duas vezes por semana ou mais há um assunto a ser tratado, sempre com esse sentido punitivo, e gente a ser condenada e por vezes expurgada dos meios dominantes.

Insisto: quando falo em meios dominantes, quero dizer dominantes nessa mídia, o Facebook. Eles podem ser dominados em outras situações. (Mas sei não. Mesmo oposicionistas radicais ao governo atual, ao machismo e ao racismo podem ser, como eu, professores universitários, com a vida estável, não correndo grandes riscos). O fato é que, em meio aos heterodoxos, porque discordam do neoliberalismo, do preconceito e tudo o mais, surgiu e hoje predomina uma ortodoxia. Por ser ortodoxia, ela se torna tão preconceituosa quanto seus adversários ou inimigos.

E esse se torna um problema grande, que agrava nossa falência em tornar as redes sociais ou a própria Internet um espaço democrático de discussão.

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Antes de mais nada, o que bloqueia o diálogo na Internet, em especial no Facebook – que poderia ser uma ágora, um admirável espaço de debate político e de esclarecimento intelectual – é uma decisão comercial do Facebook, do Google e não sei quem mais: eles estabelecem uma bizarra homeopatia, em que semelhantes procuram os semelhantes. Começa pelos anúncios que nos mostram, baseados em buscas que fizemos antes, mas se estende às escolhas básicas de cada um na vida. Fãs de rock veem fãs de rock e, se o FB for politizado como no Brasil, coxinhas frequentam coxinhas e mortadelas veem mortadelas. Esse é o famoso “algoritmo do Facebook” – em linguagem comum, o procedimento pelo qual só verei quem for parecido comigo.

Mas o problema que aponto vai além de uma escolha comercial das empresas da Internet. É uma escolha “nossa”, ou de muitos frequentadores do FB, ou sobretudo dos seus militantes. Volto à excomunhão e tomo um exemplo destes dias, a polêmica carta assinada por Catherine Deneuve e mais cem francesas contra o que consideram exageros no combate ao assédio sexual.

A carta demorou a ser traduzida ao português. Saiu na França em 9 de janeiro. Nos dois primeiros dias, não a encontrei na íntegra em nenhum jornal. A primeira tradução que vi, e que reproduzi, feita por uma facebooker, estranhamente omitia as duas frases iniciais. Mesmo em francês, era difícil encontra-la fora do jornal Le Monde, que tem um paywall praticamente sem exceções. Sua primeira tradução integral em nossa mídia saiu no El País, diz 12, às 22 horas. Demorou.

É um texto curto mas complexo, com várias ideias-chave. Os jornais brasileiros o resumiram cada um a seu modo – por vezes, em versões conflitantes entre si.

E no entanto, mesmo sem terem lido o texto, muitos começaram a opinar a respeito, oops, a condená-lo. Danuza Leão, num texto de extrema infelicidade, comentou que o assédio é bem-vindo – o que em nenhum momento as francesas afirmaram. Mas vi muita gente dizendo que Danuza tinha dito a mesma coisa que as francesas.

Por outro lado, mesmo Oprah, que tinha feito o discurso politicamente correto contra o assédio, também foi condenada. E estou falando de condenações emitidas por mulheres. Nem entro no que homens pensaram ou disseram a respeito. Aliás, este é apenas um exemplo; cada semana temos pelo menos dois.

O que é tudo isso, se não tornar o Facebook um verdadeiro tribunal? Mesmo pessoas que criticam a forma como nossos tribunais de justiça estão se portando, invadindo o espaço político, se conduzem no FB distribuindo sentenças. O caso Deneuve-Oprah é apenas um; a vontade de julgar vai muito além.

A vontade de castigar vai além do ativismo judicial, que está invadindo o espaço da decisão democrática. Ela também está entre nós, está em nós. Não há defesa, não há debate, há apenas condenação.

E fica a pergunta: isso nos leva a algum lugar?

O capitalismo brasileiro está sob ataque?

Plataforma de exploração de petróleo nos campos do Pré Sal.
Plataforma de exploração de petróleo nos campos do Pré Sal. Foto: Hélio Campos Mello

Grandes corporações nacionais, públicas e privadas, vem enfrentando o que parece ser um cerco jurídico nacional e internacional, com óbvias implicações para a economia brasileira como um todo. A Petrobras, que vive sob um ataque interno e externo desde sua fundação, mas tinha conseguido se firmar como grande empresa em meio a esta adversidade, foi um dos primeiros alvos desta nova onda de investigações, e continua na berlinda. As grandes corporações privadas da engenharia brasileira, desde os anos 1980 players internacionais na área, viraram as vilãs da corrupção mundial.

O programa nuclear brasileiro, bem como seus projetos derivados, também foi arrochado em operações internacionais de espionagem e operações internas contra a corrupção, causando a prisão de um dos seus mais renomados cientistas-empreendedores, o almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva. Recentemente, a indústria da carne esteve no centro de um escândalo internacional, desencadeado por outra operação anticorrupção da Polícia Federal. Até a mídia tupiniquim, que gosta de operações policiais escandalosas e vazamentos seletivos, desta vez ficou do lado do agronegócio, menina-dos-olhos dos nossos arautos liberais.

Ao que parece, a sanha moralista de juízes e policiais federais, com majoritário apoio da opinião pública, na sua luta contra a corrupção sistêmica (da esquerda) e seus aliados fisiológicos, provocou um resultado colateral: aumentou a crise do PIB e fez com que a economia brasileira perdesse espaço no mundo.

Pululam nas redes várias “teorias da conspiração”, algumas delirantes, outras mais bem fundamentadas e comprovadas via wikileaks. Os juízes e procuradores seriam agentes da CIA infiltrados no Estado brasileiro? Dilma Rousseff caiu porque o Brasil iria se tornar uma potência mundial em aliança com os BRICS? Os Estados Unidos querem destruir as grandes corporações brasileiras para abrir o nosso mercado aos “seus” capitalistas?

Delírios à parte, não vejo uma manipulação centralizada de malignos gênios do mal em todo este imbróglio político e geopolítico em que nos metemos e fomos metidos.  Mas é inegável que o cerco às empresas brasileiras está servindo a muitos interesses internos e externos, para além da épica e sempre bem vinda luta contra a corrupção. Trata-se, digamos, de uma janela de oportunidades para os tubarões do capitalismo agirem, aproveitando-se da política de condomínio-treme-treme que tomou conta do Brasil.

***

Além das questões conjunturais deste tumultuado início de século XXI, o conflito entre o projeto desenvolvimentista brasileiro e o capitalismo internacional tem uma história longa, complexa e cheia de nuances, para além do simples embate maniqueísta entre “nacionalistas” e “entreguistas”. Penso que a origem desta querela está no final da década de 1930, quando se delineou um projeto de industrialização e afirmação econômica nacional capitaneado pelo Estado e por alguns atores políticos e econômicos internos, como o Exército e a burocracia federal varguista.

Antes disso, o Brasil era um grande fazendão de café, um parque agro-exportador, com indústrias leves aqui e a acolá. Claro, ninguém, a rigor, era contra a industrialização, só não havia uma política nacional coordenada, nem estratégias claras para que ela acontecesse em condições de atraso e subdesenvolvimento. Os termos de troca comerciais com os países industrializados eram desiguais e a política alfandegária pouco estimulava a indústria brasileira. A vocação agrícola do País era cantada e decantada pelos políticos empertigados da Primeira República, quase todos ligados organicamente ao fazendão. Já os coronéis dos grotões, também proprietários de terra e de gente, pouco se importavam com a economia nacional, desde que pudessem continuar mandando no município, indicando seus agregados para os cargos públicos e nomeando juízes e delegados para controlar a malta.

A moderna política externa brasileira, construída no início da República e consolidada pelo Barão do Rio Branco, se adaptou a esta realidade. Em meio à corrida imperialista do final do século XIX e início do XX, o Brasil confirmava sua vocação como exportador de matérias primas, “potência” regional sem maiores aspirações, subordinada à grande potência mundial em ascensão, os Estados Unidos. Obviamente, não se trata de uma historinha de vítimas e vilões, mas de negociações tanto complexas, quanto assimétricas, que não cabem neste artigo.

Mas no meio desta Casa Grande feliz com a parte que lhe cabia no latifúndio mundial, por volta dos anos 1920, começaram a surgir vozes que defendiam a industrialização planejada e tutelada pelo Estado. Entre estas vozes, um punhado de líderes políticos de corte autoritário, como Getúlio Vargas, e militares que se sentiam os últimos defensores da pátria violada. Depois da chamada “Revolução de 1930”, este grupo tomou o poder, com ajuda de elites agrárias dissidentes, cansadas de sustentar o café paulista. Logo percebeu-se que não era tão simples modernizar a economia, sem modificar a estrutura da sociedade. E, neste sentido, os “revolucionários” de 1930 eram pouco revolucionários. Entre trancos e barrancos, o projeto industrializante começou a ser delineado ao melhor estilo varguista, ou seja, tentando agradar “gregos e troianos”, fazendeiros e industriais, operários e patrões, Alemanha Nazista e Estados Unidos, novas e velhas elites.

Este projeto de desenvolvimento industrial ganhou o debate nacional e se tornou política de Estado entre fins dos anos 1930 e meados dos anos 1950, opondo duas grandes forças na sociedade:  os grandes comerciantes importadores-exportadores e setores da burocracia federal –  civil e militar – capitaneada pelo varguismo, com apoio de alguns grandes industriais. Os dois grupos tinham concepções diferenciadas sobre o processo de industrialização e o papel do Estado na economia. Para os grandes grupos comerciantes e agro-exportadores, encastelados no discurso liberal, a industrialização deveria ocorrer “naturalmente”, sem estímulos cambiais e fechamento de mercado. Para os desenvolvimentistas, era necessário estímulo do Estado, planejamento e alguma intervenção na economia. Este debate sobre a melhor política econômica para o Brasil acabou se conectando a um outro grande debate nacional: qual era, afinal, o lugar do Brasil no mundo?

Os militares, a partir de meados dos anos 1940, tinham uma posição paradoxal. Eram grandes inimigos da política de massas varguista, que julgavam uma porta aberta para a subversão da ordem social, mas, no geral, apoiavam o projeto industrializante conduzido pelo Estado. Dada a posição do Brasil na Segunda Guerra Mundial ao lado dos Aliados, os militares brasileiros esperavam o apoio norte-americano para um projeto industrializante de larga escala, pela simples razão de que sem indústria pesada não haveria Exército nacional forte. Terminada a Guerra, porém, a América do Sul saiu do radar e dos interesses do Tio Sam. A lógica da agenda externa norte-americana voltou a repetir o eterno mantra da abertura de mercados e importação de capitais privados. A industrialização, se viesse, deveria ser a consequência deste processo, e não do fechamento autárquico do mercado nacional às importações.

A política econômica do segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954) sinalizou um papel do Estado mais ativo no projeto de industrialização de base, criando as condições para a ampliação de uma indústria pesada nacional. A criação da Petrobras, particularmente, enfrentou fortes resistências externas e internas, ainda que a estatal não monopolizasse o comércio de combustível, a parte mais lucrativa do negócio.

O suicídio de Vargas fez com que, momentaneamente, a política nacional-desenvolvimentista se visse ameaçada. Mas as forças sociais e políticas que defendiam a industrialização se articularam em torno de Juscelino Kubitschek. Habilmente, JK conseguiu fazer convergir os três atores econômicos que estavam em tensão: o Estado, os capitalistas nacionais e as corporações multinacionais, contando com o apetite do capitalismo europeu em ascensão para contrabalançar excessiva presença norte-americana no mercado de bens duráveis. O modelo desenvolvimentista de JK optou por estimular a indústria de bens de consumo e as grandes obras públicas de infraestrutura a cargo do Estado.

A retórica da era JK era nacionalista, mas a realidade econômica que dela resultou foi um capitalismo “associado e dependente” de recursos financeiros, plantas industriais e tecnologia importada. Isto parecia ser o único caminho possível de industrialização de um país atrasado dentro do sistema capitalista, uma escolha possível diante da realidade geopolítica e econômica do Brasil. O pacto social entre trabalhadores, capitalistas, latifundiários e classes médias garantiu alguns anos de paz e prosperidade, entre um e outro chilique da direita udenista. O capital internacional também ficou feliz.

Além de consolidar um novo modelo econômico interno, no qual a indústria tinha lugar privilegiado, JK lançou, ainda que timidamente, as bases de uma nova política externa. O raciocínio do Presidente era mais ou menos o seguinte: um processo vigoroso de industrialização no Brasil e na América Latina só reforçaria o capitalismo no continente, criando uma sociedade mais rica, diluindo os bolsões de pobreza e subdesenvolvimento e, por consequência, o fantasma do comunismo. Por tudo isso deveria ser apoiada ativamente pelos norte-americanos. Mas até a Revolução Cubana, os comunistas pareciam estar longe demais das Américas para preocupar os Estados Unidos que fizeram ouvidos moucos à Operação Pan-Americana, como se chamou a proposta por JK.

Esta política foi consolidada, paradoxalmente, sob o enigmático e contraditório Jânio Quadros, arqui-inimigo de JK em política interna. Passou a se chamar “Política Externa Independente” e foi ampliada por João Goulart, que estava à esquerda dos dois presidentes que lhe antecederam. Suas reformas prometiam mais desenvolvimento, um capitalismo mais autônomo, distribuição de renda e mais democracia. Se tudo isto era viável ou não, demagogia barata ou reformismo sério, o fato é que a partir de 1962 reacendeu a preocupação norte-americana com uma possível ruptura da aliança histórica entre Brasil e EUA. A queda de Goulart após o golpe de 1964, uma das batalhas da Guerra Fria na América Latina, parecia cortar as asas do nacionalismo econômico brasileiro.

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O alinhamento inicial dos militares com os Estados Unidos, grandes apoiadores do golpe, parecia confirmar as suspeitas de que os “entreguistas” conquistaram o poder para lesar a economia brasileira e recolocá-la na vocação agroexportadora, livrecambista e subordinada ao “imperialismo norte-americano”. Entretanto, passada a lua-de-mel, logo se percebeu que o Exército no poder não tinha um pensamento econômico e geopolítico homogêneo. Se o anticomunismo unia os militares a Washington, o projeto do Brasil Grande que começou a se esboçar em 1968, causava certa tensão com o Departamento de Estado e a Casa Branca. A recusa do Brasil em assinar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear naquele ano foi um dos primeiros sintomas deste estranhamento.

A relação entre os dois países passou a ser um namoro de interesses na era Médici, quando o Brasil se tornou uma peça importante na luta contra as guerrilhas e governos de esquerda da América do Sul e sua economia pujante sugava todos os dólares à disposição. Grande importador de capitais e com uma industrialização voltada para o mercado de consumo interno, a economia do “milagre” não chegava a ameaçar o jogo geopolítico e os mercados internacionais. O sistema estava feliz. A classe média consumia, os operários não reclamavam (até porque não podiam), os comunistas estavam mortos, presos ou exilados.

A relação complicou-se de vez no governo Geisel. A reorientação de investimentos para a indústria de base, a nova onda de estatização da economia, o protecionismo econômico e a projeção do Brasil para mercados nunca antes ocupados, causaram uma das conjunturas de maior tensão com Washington e seus office-boys neoliberais. Para piorar, os americanos passaram a ter certeza de que o Brasil queria entrar no clube atômico ao estabelecer um acordo nuclear com a Alemanha Ocidental em 1974. Além de pressionar por todos os meios diplomáticos o projeto nucelar brasileiro, os Estados Unidos souberam utilizar a sua política internacional de Direitos Humanos contra a ditadura que, por sinal, fornecia todas as razões para ser condenada nesta área. O ponto máximo de tensão foi o rompimento do acordo militar com os Estados Unidos em 1977, mais simbólico do que efetivo naquela conjuntura. Mas ainda assim, eloquente.

O Brasil sob Geisel queria ter um protagonismo econômico e político para além da condição de sócio menor dos norte-americanos. O País se projetava para a África, cuja bandeira foi fincada com o pronto reconhecimento de Angola, independente de Portugal e governada por comunistas, pela nossa ditadura de direita. O País se projetava para o Oriente Médio, passando a vender armas, frangos e expertise em construção civil para ditaduras pró-soviéticas, em troca de petróleo.

Apostando nas Estatais e no fechamento do mercado interno, a era Geisel quis vitaminar o capitalismo brasileiro, não para romper com o capitalismo internacional, do qual o Brasil era, como sempre fora, dependente, mas para alçar o País a um novo patamar no jogo político e econômico internacional. O País ganhou mais autonomia energética, criou novas matrizes, completou a segunda revolução industrial, quando o mundo capitalista já iniciava a terceira. Os militares brasileiros, no apagar das luzes do regime militar, até tentaram pegar carona neste processo, estimulando por decreto a indústria nacional de informática.

O Brasil não explodiu a Bomba Atômica, as usinas nucleares consumiram uma fortuna e demoraram muito para sair do papel, as indústrias de informática nacionais não conseguiram competir com os Gates e Jobs da vida. A crise econômica dos anos 1980 e a dívida externa implodiram o sonho do Brasil desenvolvido dos anos JK e do Brasil Grande dos militares. Nos anos 1990, o Brasil iniciou seu longo caminho de volta para ser uma economia exportadora e primária, campeão das commodities. Hoje, com 100 toneladas exportadas de soja, conseguimos pagar 1 chip de celular.

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A era Lula, mesmo sem ameaçar seriamente esta realidade, tentou conciliá-la com uma nova política social e uma nova geopolítica. Sem a sombra da Guerra Fria, acreditava-se que o Brasil poderia se afirmar como player mundial sem ser considerado uma ameaça ao “Ocidente”. Mas parece que esquecemos de “combinar com os russos”, ou melhor, com os americanos.

A descoberta das reservas do pré-sal pela Petrobras, o programa espacial brasileiro, o programa de reequipamento militar e o submarino nuclear voltaram a preocupar Washington. Além disso, as conversas de Lula com os BRICS, com os hermanos bolivarianos e a ousadia em se arvorar como mediador, ao lado da Turquia, na pacificação do Oriente Médio e na reinserção do Irã na comunidade das nações, foram demais para os brothers. A política dos “campeões nacionais”, simbolizada por Eike Batista em seus tempos pré-Bangu, de glória e glamour, era o caminho para a afirmação do novo Brasil Potência. Dilma Rousseff e sua nova matriz econômica prometiam ir além.

A partir de 2013, o portal da história novamente se fechou. O capital financeiro internacional começou a denunciar a gastança do Estado brasileiro e a ameaça ao sagrado superávit primário. O pacto social lulista, já criticado no andar de cima havia algum tempo, acabara. A classe média branca não quis mais dividir aeroportos com pobres e faculdades públicas com os negros. Os “campeões nacionais” se revelaram apenas o que sempre foram, capitalistas apostadores de cassino, pegando dinheiro barato do BNDES e aplicando no mercado financeiro. Como se houvesse alguma surpresa nisso.

Os casos de corrupção sistêmica facilitaram o cerco ao projeto político petista e à política econômica nacional-desenvolvimentista, que já se revelava insustentável sem uma efetiva reforma política, fiscal e tributária, que aliás nunca esteve seriamente na agenda da esquerda no poder.  Mais do que isso, mostraram o caminho para implodir o símbolo máximo da luta pela industrialização no Brasil, a Petrobras.  A Operação Lava-Jato escancarou as relações perigosas entre a estatal, empreiteiras e partidos políticos. O modelo de financiamento de campanhas eleitorais, construído ainda nos anos 1950, ampliado ao longo dos anos 1990, foi colocado em xeque e foi a tática para varrer a esquerda do comando do Estado. O resto é história.

Ao que parece, o sistema jurídico-político do Brasil e sua sociedade civil enfrentam o dilema de como conciliar a luta contra a corrupção – imperativo que poderia unir várias correntes ideológicas se envolvesse uma reforma política profunda e não fosse escandalosamente seletiva – e a defesa estratégica dos interesses econômicos nacionais, malgrado gostarmos ou não das leis de ferro do capitalismo mundial.

Sob aplauso de uma parte da opinião pública, os nervos podres dos nossos capitalistas e empresas globais são expostos nos autos de fé pela moralidade pública, esta súbita obsessão dos brasileiros, mesmo aqueles que sonegam impostos, subornam guardas de trânsito e apostam no velho jogo do bicho. Os novos empreendedores, adoradores dos deuses de mercado, querem limpar nosso capitalismo a fórceps. Como se o mercado não fosse o grande corruptor da política, como se existisse o “nosso” capitalismo, e como se ele fosse mais sujo do que o dos outros.

Endividamento da Petrobras: mitos e verdades

Detalhe da fachada da sede da Petrobras no Rio de Janeiro. Foto: EBC / reprodução

Pedro Parente, presidente da Petrobras, em entrevista ao Correio Brazilienseem 04.12.2016, afirmou que: “a corrupção destruiu a Petrobras. Faz seis meses que estou na empresa. Acabou a bandalheira”. Aproveitando-se da perplexidade da população a respeito da corrupção na empresa, seu atual presidente construiu e reforçou essa narrativa, criando o seguinte mito: a corrupção teria gerado uma crise financeira estrutural que somente poderia ser resolvida com a venda de ativos (redução do tamanho da empresa).

Esse mito foi utilizado para legitimar a estratégia gerencial da atual presidência (expressa no Plano de Negócios e Gestão – PNG – 2017-2021) que tem como eixos: 1) concentrar suas atividades em Exploração & Produção de petróleo e gás, diminuindo sua participação em outras áreas tornando a empresa “enxuta” (com redução do número de empregados e investimentos); e 2) reduzir de forma acelerada o seu nível de endividamento/alavancagem financeira. Isso está ancorado na estratégia de desinvestimento (venda de ativos, sobretudo para capitais estrangeiros, e redução de investimentos).

As principais metas estabelecidas no PNG (2017-2021) foram: reduzir a relação dívida líquida/LTM EBITDA ajustado de 5,3 em 2015 para 2,5 em 2018; cortar 25% dos investimentos; vender ativos no valor de U$ 21 bilhões em 2017 e 2018; e reduzir em 18% os gastos operacionais.

Será que realmente a Petrobras enfrenta ou enfrentou uma crise financeira estrutural? O que significa estabelecer uma meta de 2,5 a relação dívida líquida/LTM EBITDA para 2018?

Diante disso, pretende-se aqui responder essas questões, buscando apresentar a evolução do endividamento da
Petrobras evidenciando que a empresa enfrenta sim um desafio financeiro de curto prazo que requer estratégias específicas (redução da alavancagem e o alongamento de suas dívidas) sem que isso implique necessariamente a venda de ativos que reduz a geração futura de caixa, desperdiçando potenciais produtivos.

Gestão da Dívida da Petrobras: desafios financeiros de curto prazo
Não há dúvida que a Petrobras vem enfrentando, nos últimos anos, desafios financeiros de curto prazo com aceleração da alavancagem (relação dívida líquida/LTM EBITDA – que cresceu de 2,5 no 2º trimestre de 2012 para 5,3 no 4º trimestre de 2015) em virtude do crescimento da dívida líquida e da relativa estabilidade do LTM EBITDA ajustado (geração de caixa operacional).

DEPUTADOS DA CPI DA PETROBRAS FAZEM VISITA TÉCNICA À SEDE
Os deputados federais da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga irregularidades na Petrobras fazem uma visita técnica à sede da empresa no Rio (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Relação Dívida Líquida: EBITDA – 2º tri.:2012 - 1ºtri.:2017
Relação Dívida Líquida/ EBITDA – 2º tri./2012 – 1ºtri./2017

Em nada esse aumento da dívida da Petrobras vincula-se a questão de corrupção da Petrobras. Parte do aumento do endividamento foi fortemente influenciado pela desvalorização cambial (de 1,56 US$/R$ no 1º trimestre de 2011 para 3,97 US$/R$ no 3º trimestre de 2015), uma vez que cerca de 80% de sua dívida está denominada em moedas estrangeira, sobretudo em dólar. Não é para menos que a partir do no 3º trimestre de 2015 (quando a taxa de câmbio passa a se valorizar – cerca de 40% na comparação com trimestre de 2017) a dívida líquida passou a cair de forma acelerada.

É preciso observar que a outra parte do endividamento ocorreu com o aumento dos investimentos após a descoberta do pré-sal e para ampliar o setor de refino. Naquele momento a geração de caixa da Petrobras não era suficiente para atender ao crescimento dos investimentos necessários que tornaram o pré-sal viáveis e responsável por 50% da produção atual.

Pelo lado do LTM EBITDA verificou-se uma queda até o 3º trimestre de 2014 e a sua recuperação pode ser explicado por três fatores. O primeiro que foi a expressiva redução do preço do petróleo que alcançou US$113,46 em 2011, ao passo que o preço do barril brent caiu para US$ 33,8 no 1º trimestre de 2016 e passou a se recuperar mais recentemente (US$ 53,78 no 1º trimestre de 2017). O segundo foi a política de repressão de preços dos combustíveis entre 2011 e 2015, que impactaram negativamente a geração de caixa. O terceiro decorreu do aumento da demanda de derivados no Brasil entre 2010 e 2014, obrigando a Petrobrás a importar derivados para atender mercado interno, criando a necessidade de investimentos em novas refinarias. Esses dois elementos (importações e refinarias novas) provocaram redução no caixa da empresa.

Apesar desses desafios financeiros de curto prazo (que já estão sendo revertidos em decorrência das mudanças recentes do preço do petróleo e da taxa de câmbio), a Petrobras possui uma situação positiva, em termos de médio e longo prazo, em relação às grandes empresas petroleiras do mundo, uma vez que detém novas áreas produtoras competitivas que poderão gerar fluxos de caixa futuros. Tal situação decorre do Pré-Sal (i) possuir um custo de extração em queda (que alcançou o valor de 8,0 US$/boe) e de (ii) torna-se uma das principais fronteiras de exploração de petróleo no mundo (cerca de 100 bilhões de barris de óleo recuperáveis em reservas ainda não provadas), aumentando as reservas de petróleo no Brasil colocando-o ao lado da Venezuela e da Arábia Saudita.

Portanto, a Petrobras, apesar de possuir sim um desafio financeiro de curto prazo – sem uma crise financeira profunda em decorrência de seu potencial de geração de caixa no médio e longo prazo – propõe uma redução draconiana (em termos de temporalidade) da relação dívida líquida/EBITDA para 2,5 em 2018 que necessariamente força a venda de ativos operacionais.

É preciso ressaltar que essa meta foi escolhida de forma discricionária pelo atual presidente da Petrobras, que afirmou em entrevista à revista Executivos Valor(maio de 2017): “antecipar a meta de desalavancagem […] de 2,5 vezes de 2020 para 2018, foi uma coisa [decisão] minha”. Ou seja, a estratégia de vender ativos foi imposta pela decisão pessoal do atual presidente da Petrobras.

No cenário atual (queda dos preços do petróleo, situação do mercado mundial de petróleo e gás, et.), vender ativos agora implica em perda expressiva de valor desses ativos num momento de discrepância entre vendedores e compradores no mercado de petróleo.

Além dessa possível perda financeira na venda de ativos, estudo recente mostra que caso a meta da relação dívida líquida/EBITDA fosse mudada para 3,1 em 2018, indicador razoável, não seria necessário vender ativos rentáveis para fazer caixa no curto prazo; e que a empresa alcançaria a meta estabelecida de alavancagem de 2,5 em 2021 com os atuais parâmetros públicos (fundamentos) da Petrobras.

O argumento da atual diretoria da Petrobras é que o número mágico de alavancagem de 2,5 em 2018 permitiria, por meio da venda de ativos, uma menor custos de capitação (taxas de juros menores) de novos financiamentos. Isso pode acontecer, significando um ganho em termos do pagamento de juros, no entanto, a empresa não está levando em conta os efeitos das perdas de caixa no médio e longo prazo com a venda de ativos operacionais lucrativos e da sua redução na participação da exploração do Pré-Sal, a nova fronteira de exploração mundial.

Em linhas gerais, a atual meta financeira de 2,5 de alavancagem em 2018 do PNG (2017-2011) esconde uma estratégia deliberada de venda de ativos, independente dos seus efeitos de médio prazo para a firma e para o Brasil. Vender ativos virou uma questão de fé!

Há sim alternativas para a gestão da dívida da Petrobras sem que seja necessário vender ativos e reduzir sua participação no pré-sal. Em primeiro lugar, a meta de financeira de 2,5 de alavancagem poderia ser estabelecida para 2021. Além disso, há outras opções de financiamento com e sem apoio do governo federal. Dentre as quais pode-se destacar: i) a utilização de parte das reservas cambiais para reestruturar a dívida da Petrobras; ii) empréstimo do Tesouro à Petrobras por meio do BNDES, cuja garantia seria a emissão de debentures da estatal brasileira; iii) criação de um instrumento híbrido de capital e dívida, no qual o governo federal faria a captação de recursos; e iv) a capitalização no mercado internacional por meio da emissão de títulos da dívida (entre outros instrumentos financeiros). Recentemente a Petrobras captou cerca de US$ 4 bilhões no mercado internacional.

Eduardo Costa Pinto é professor do Instituto de Economia da UFRJ e Integrante do Grupo de Estudos Estratégicos e Propostas da Federação Única dos Petroleiros GEEP-FUP

Flávio Pacheco – O guardião dos brinquedos

Flávio Pacheco é um misto de colecionador, ufólogo e arqueólogo. Gaúcho, criado em uma fazenda, desde pequeno teve o gosto peculiar pela multiplicidade de objetos. No final dos anos 1970, mudou-se para São Paulo e começou sua coleção de brinquedos. Vendeu grande parte do 1º acervo para um museu belga, ganhou um bom dinheiro e comprou uma terra em São Tomé das Letras (MG), onde montou um hotel fazenda, seu retiro espiritual. Divide seu tempo entre as viagens em busca de raridades, a natureza, as cachoeiras e os animais da fazenda, e o seu mundo de ilusão que construiu em SP. Na fantástica casa dos brinquedos, Flávio passa noites e noites consertando e colocando para funcionar seus quase 10 mil brinquedos, que além de decorarem sua casa fazem parte de um Museu Itinerante de Brinquedos, criado por ele há mais de 20 anos. Algumas peças repetidas ele vende na feira de antiguidade, aos domingos, no vão livre do MASP.