Dias antes da abertura da 1ª Bienal de Veneza, toda cidade discutia a pintura Supremo Convegno, do italiano Giacomo Grosso, sem ainda tê-la visto.
O primeiro grande escândalo de censura a uma obra de arte, envolvendo até o Vaticano, ocorre em 1895, em plena Belle Époque, quando o artista Giacomo Grosso envia à 1ª Bienal de Veneza a pintura Il Supremo Convegno, que retrata um velório dentro de uma igreja, com cinco das amantes do morto nuas, em poses lascivas, tendo uma delas o caixão mortuário entre suas pernas abertas. O então obscuro pintor e professor de Turim quebra a banca, incendia e assanha a icônica cidade italiana com uma ousadia até então nunca vista. O quadro é o instantâneo de um mundo em crise, captado pelo olhar de um artista libertário.
Grosso relaciona o erotismo e a morte e antecipa o pensamento de George Bataille, que nasceu dois anos depois desse episódio, ao atribuir ao erotismo e à “violência” uma dimensão religiosa, fazendo deles os meios para se atingir uma experiência mística “sem Deus”.
Sob o título Prima Edizione della Manifestazione Internazionale di Venezia, a Bienal surge em 1895 como modelo estruturante de se expor arte e, cinquenta anos depois, a experiência se multiplica como “praga” pelos cinco Continentes. A iniciativa da exposição parte de um grupo de intelectuais que se reunia no Café Florian, o mais antigo do mundo, criado em 1720, que ainda hoje funciona na praça de San Marco.
Quando Il Supremo Convegno chega ao Giardini della Biennale, onde até agora acontece a exposição, destrói a grande ilusão hegemônica da arte submissa a reis e papas. Quebra todos os protocolos da Bienal, cria uma ponte para um futuro onde o artista possa sonhar seu sonho e provoca enfrentamentos artísticos, políticos, religiosos.
A tela sobre o velório de um dongiovanni foi liberada para ser exposta em uma sala sem grande protagonismo, mas tornou-se a mais visitada e recebeu o Prêmio de Público: mil liras e acentuada notoriedade.
Com parte da população contra e outra a favor, o falatório toma conta das pontes da cidade. Em outro patamar, políticos, religiosos e intelectuais promovem a dialética que se manifesta frente a frente por meio de cartas ou através de jornais. O cardeal de Veneza, Giuseppe Sarto, o futuro Papa Pio X, também vai conferir a pintura e não gosta do que vê. Imediatamente escreve ao então prefeito, Riccardo Selvatico, um intelectual de prestígio, exigindo que o quadro não seja exposto. Habituado à polêmica, Selvatico, que estava tentando um segundo mandato como prefeito de Veneza, defende o trabalho de Grosso, afinal, não quer saber de confusão na festiva exposição que também comemorava as bodas do rei Humberto I. Chama para uma reunião os intelectuais simpatizantes da pintura, que criam uma comissão de defesa ao direito de liberdade artística e, consequentemente, o trabalho do artista turinense. Para dar força ao movimento, escolhem para representá-los e escrever a carta ao prefeito, o escritor Antonio Fogazzaro, unanimidade no meio político e religioso. A carta que o prefeito entregaria posteriormente ao cardeal, entre outros argumentos diz: “Nos parece forte demais condenar a obra Il Supremo Convegno em nome da moral… Nós, caro Riccardo Selvatico, respondemos unanimemente não à censura. O quadro de Giacomo Grosso não é um ultraje à moral pública, mas sim uma grande obra de arte”.
Depois de vários dias de debates, Il Supremo Convegno é liberada com a condição de ser exibida em uma sala meio escondida. De nada adianta. Uma multidão curiosa, com as mulheres vestidas elegantemente e com sombrinhas de renda e os homens de fraque e cartola, enfrenta horas na fila para ver as graciosas ragazze nuas. Grosso recebe o Prêmio Popular de Melhor Obra, segundo os visitantes, e £1000, além de notoriedade. A pintura é rapidamente comprada por £15.000 pela Venice Art Company, empresa americana que organiza uma turnê para exibi-la nos Estados Unidos, onde o eco do escândalo já tilintava nas caixas registradoras.
Sabendo da itinerância, os turinenses se perguntavam quando e onde veriam o famoso quadro, feito por um artista da terra e que abalou a toda poderosa Veneza. Foi o jornal local quem deu a triste resposta ao publicar o incêndio ocorrido no local onde a controvertida pintura estava guardada, antes de ser exposta aos americanos. Hoje só restam cópias da tela, fotos nos arquivos da Bienal e no livro Biennale di Venezia, mas tudo isso me foi contado por Luigi Carluccio, em 1984, na biblioteca da Bienal de Veneza, quando ele era o presidente da instituição. Ria muito ao lembrar desse episódio que, para ele, foi um dos mais saborosos que a Bienal de Veneza já produzira. Anos depois, em 1991, quando eu era comentarista de arte no programa Metrópolis, da TV Cultura, entrevistei Leo Castelli, o famoso galerista de Nova York e mentor da pop art, no hotel Regina, em Veneza. O câmera era o videomaker e meu amigo Rafael França, do grupo Três Nós Três. Em meio a tantas histórias, Castelli sai com essa: “Muitos italianos como eu gostam de Il Supremo Convegno porque nos remete à alegria, sensualidade e sonho de liberdade até a morte”. Concordei e assinei com ele.
No Brasil de hoje, com certeza Grosso teria sérios problemas com a censura que insiste em nos intimidar. Talvez ele fosse encaminhado à polícia, preso, e sua maravilhosa e ousada tela…execrada!
Há muitas maneiras de definir uma cultura e há quase tantas culturas quanto maneiras de defini-las. Duas distinções podem nos ajudar a reduzir um pouco o problema. A primeira é distinguir cultura e civilização, sendo a primeira um conjunto de saberes que se reproduz segundo um modo específico de transmissão, como a arte, a ciência e a religião e a segunda uma rede de práticas e disciplinas de coerção normativa. A segunda separação possível se dá pelo método dos contrários: o oposto da civilização é a barbárie, o oposto da cultura é a natureza. Dá-se com o conceito de cultura algo análogo ao que encontramos diante da expressão “homem” que indica tanto o ser humano em geral quanto o gênero masculino.
Nesta pequena ambiguidade semântica esconde-se um universo de problemas que remontam à antiga teoria de que existe apenas um sexo, e este é o masculino, sendo a mulher um homem imperfeito, cujo órgão genital é na verdade um pênis dobrado para dentro. Isso converge com um etnocentrismo renitente que nos faz ver, tão frequentemente, a nossa cultura particular como A cultura universal, e a reconhecer a cultura dos outros como uma forma menor, ainda não tão evoluída como a nossa. Quando falamos em cultura do estupro todas estas acepções se combinam. Isso designa a força de coerção que associa a masculinidade com a submissão, dominação ou capacidade de exercer poder e violência contra a mulher. Isso refere-se também à leniência e naturalidade com a qual interpretamos atos de violência particular como uma tendência universal, integrando-os ao cotidiano, naturalizando-os e neutralizando nossa capacidade de indignação e a potência transformativa que esperamos de cada forma de sofrimento.
Faz parte da cultura do estupro a invisibilidade de certos modos de sofrimento feminino, entendido como parte essencial da própria feminilidade, particularmente quando se trata do erotismo feminino. Por exemplo, até meados do século XX médicos franceses evitavam empregar a anestesia em partos porque a dor, especificamente a dor da mulher neste momento, possuía um sentido moral: punição pelo exercício de seu desejo e lição pedagógica inaugural para sua maternidade. É por casos como este que a teoria feminista começa por duvidar da fronteira entre política e cultura, ou seja, do que devemos tomar como espaço de liberdade, ainda que parcial, para criar novas leis e o espaço onde devemos nos submeter, ainda que não passivamente, às leis instituídas. Deduz-se desta problemática uma certa teoria da liberdade, profundamente vinculada à dimensão dos direitos, dependente portanto da lógica do contrato e do assentimento e de nossos conceitos mais ou menos intuitivos de posse, uso e propriedade. A cultura do estupro é inseparável da teoria da mulher como propriedade, seja de um pai, de um homem, de uma instituição ou de um discurso.
O ponto extremo desta problemática, costumeiramente levantado pela cultura machista, muitas vezes levantado como um argumento para perpetuar a cultura do estupro é o que poderíamos chamar de fantasia do estupro. Uma mulher que anda sozinha a noite, com trajes ousados, num beco escuro está deixando-se levar pela fantasia de ser estuprada. Ela não se cuidou suficientemente, ela não se guardou, ela não se protegeu. Percebemos aqui os mesmos termos que encontramos usualmente no discurso da propriedade: seguro, risco, ousadia e conservação.
Ao mesmo tempo nós qualificamos A cultura segundo o gênero ao qual atribuímos mais poder: patriarcal, masculina, misógina, sexista e assim por diante. A cultura feminina é o caso particular, anômalo e deficitário. Mas o que salta aos olhos, neste argumento, é a pobreza conceitual com a qual se entende a noção de fantasia. A tradução da fantasia de estupro, na cultura do estupro é: aquilo que você quer sem ter coragem de assumir que quer. Podemos conjugar declinações desta hipótese: aquilo que você pede sem saber que está pedindo; aquilo que no fundo você gosta, mas não quer admitir; aquilo que você ainda não sabe que quer, mas quer mesmo assim.
A posse do desejo do outro é o problema fundamental da cultura do estupro, por isso ele acontece privilegiadamente em situações nas quais a subordinação de poder leva à tentação do apossamento do desejo do outro
O filme Elle (2016), de Paul Verhoeven é uma discussão qualificada sobre este problema e uma lição didática e preventiva para a cultura do estupro. Muitas feministas consideram o filme machista porque ele mostra uma mulher cujo erotismo, em suas variadas formas, envolve a incitação ou a prática de agressividade. Nesta crítica há certo entendimento de cultura que valoriza o fato de que imagens são exemplos e narrativas são modelos de ação. Nos culturalizamos por identificação e a identificação é a assimilação de traços de pertinência e igualdade. Notemos aqui um conceito proprietarista de canibalismo cultural.
Nossa cultura devora outras culturas ingerindo seus traços e no fundo “você é o que você come”. Filhas tolerantes ao machismo aprenderam isso com suas mães, filhos machistas devoraram isso de seus pais. Filhas e filhos foram criados na cultura machista observando e identificando-se com a forma de tratamento iníqua e desigual ao que foram expostos em seus processos de criação. Observemos também que esta concepção proprietarista de cultura e de identificação redundará em um conceito jurídico e contratualista de liberdade. Liberdade que oscila entre a negação do que é obrigatório (cultura como coerção) e a afirmação de equidade de direitos (cultura como justa distribuição de bens e recursos, simbólicos e materiais).
Se nesta perspectiva o filme pode ser lido como incitação à cultura do estupro, pois fornece e lembra o argumento da existência de fantasias de estupro, quero argumentar que o filme também fornece elementos para uma leitura crítica da experiência do corpo como propriedade (seja de um, seja de outro). Trata-se de uma empresária que ganha dinheiro com a cultura do estupro, produzindo vídeo games envolvendo cenas erótica nas quais mulheres são seviciadas sexualmente. Isso é compatível com sua história, uma vez que ela é filha de um notório assassino e de uma mãe fútil e hipersexualizada.
Clinicamente seria bastante plausível que alguém com experiências deste tipo tivesse que conciliar impulsos de punição e masoquismo como condição necessária para sua satisfação sexual. Muitas pessoas precisam sentir-se odiadas para, nesta situação de rebaixamento moral e de objetivação carnal, autorizarem se ao prazer. Para outras tantas basta um tapa, de leve e bem calculado na hora antes da hora “h”. Para outras ainda será suficiente imaginar-se amarrado, preso ou coagido à uma relação sexual. Isso tem várias vantagens: suspende a responsabilidade e o risco de serem realmente rejeitadas, responsabilizam o parceiro pelo trabalho de produção do prazer e, last but not least, jogam com a transgressão da lei e o exercício arbitrário do poder como afrodisíaco insuperável.
O fato crucial é que isso não justifica, nem legitima nem faz prosperar a cultura do estupro. O problema aqui não deveria ser reduzido à sua versão contraturalista do consentimento livre e esclarecido. O impasse é bem retratado no filme. Depois de descobrir que seu estuprador mascarado é o vizinho por quem ela nutre fantasias sexuais, ela vai a casa dele e ambos tem uma relação no subsolo. Entre tapas e agressões ela diz “vem!”. Neste ponto ele confessa a sua fantasia “assim eu não consigo”.
Assim como o parceiro ideal do sádico não é o masoquista (conforme a piada: masoquista diz: me bate, me bate, ao que o sádico responde: eu não, eu não) a fantasia de estupro não é demanda de estupro. Esta equivalência só existe para uma cultura que acha que somos proprietários de nossos desejos assim como possuímos carros, casas e direitos trabalhistas (no tempo que eles ainda existiam). A falsa compreensão que subjaz a cultura do estupro é de que cada qual tem seu desejo e pode negociá-lo no mercado dos desejos com os outros que também são soberanos senhores de seus desejos individuais. O que escapa a esta concepção é que a nossa fantasia inclui a fantasia do desejo do Outro, assim como nossa cultura inclui as ficções que fazemos sobre as outras culturas.
Uma ótima ilustração disso está na cena em que Michele, a masoquista, masturba-se olhando pelo binóculo seu vizinho retirar do carro estátuas em tamanho real do presépio de Natal, acompanhado por sua esposa beata. Ou seja, não é só o que ela imagina para si, mas o que ela imagina sobre a fantasia do outro que determina seu erotismo. Isso muda tudo. Ela mesma não tem nenhum apreço por jantares de Natal, crenças cristãs na família redentora, nem piedade pelos casamentos alheios, ainda que estes envolvam suas amigas ou ex-maridos. A fantasia é composta por uma dupla volta, aquilo que eu “suponho” que desejo e aquilo que eu suponho que o outro supõe desejar.
O perigo da cultura do estupro não é, portanto, a violência do desejo de um que ultrapassa os limites da vontade do outro. Este é o nível mais banal em que apelamos para o plano jurídico para conter a violência contra a mulher. O plano em que tal violência deve ser coibida com maior visibilidade e intolerância no nível das leis, dos costumes e das práticas. Mas o plano mais profundo de transformação cultural requer um tratamento preliminar da ideia de que é possível “saber o que o outro deseja” (ou reversamente o que ele não consegue aguentar em seu desejo).
O problema da posse do desejo do outro é o problema fundamental da cultura do estupro, por isso ele acontece privilegiadamente em situações nas quais a subordinação de poder leva à tentação do apossamento do desejo do outro: pais e filhos, empregador e empregado, homens sobre mulheres.
O desespero e a impotência que se escondem habitualmente por trás do estupro não decorrem do fato de que alguém sabe o que quer e avança sobre o outro, mas do fato de que em geral estamos falando de alguém que desorientou-se quanto ao que quer e por isso precisa se apossar violentamente do desejo do outro, precisa impor a sua fantasia de desejo do outro ao próprio outro.
Por isso muitos pedófilos, honestamente, afirmam que sua violência é um ato de amor, uma forma de “ensinar” ou de “favorecer” algo belo é bom em suas vítimas.
Sim, isto parece estupidamente trágico, mas não desculpa ninguém.
Ao final do filme, quando o amante-estuprador é morto pelo filho de Michele, em um assassinato acidental, na medida em que ele não percebe a realidade do teatro que se encena na manobra masoquista (aludindo a uma possível repetição dos 27 assassinatos cometidos por seu avô, daqueles que não conseguiam fazer o sinal da cruz), sua esposa religiosa faz uma declaração fundamental: “agradeço por você ter dado a ele, durante este tempo, o que ele precisava”. Aqui está a verdadeira perversão, aquela que não tem dúvida do que o outro precisa, aquela que se apossa do desejo do outro sem vacilo, aquela que se torna cega, surda e muda para o “não” que recebe do outro.
Enquanto nosso modelo de cultura restringir-se à aplicação do individualismo vulgar para pensar a nossa fantasia como o desejo em estado de propriedade, enquanto nosso modelo de cultura basear-se na antropofagia de traços de identidade assimilados por imitação e enquanto nosso modelo de reconhecimento for o contrato de oposição simples entre o livre e o coercitivo estaremos longe de transformar os fundamentos da cultura do estupro.
ARTISTAS Assucena Assucena e Raquel Virgínia da banda As Bahias e a Cozinha Mineira
* Por Pedro Ambra
Um passo histórico na luta por direitos humanos foi dado no Brasil no último dia primeiro de março: o direito ao nome próprio para pessoas trans e travestis. Mas porque algo aparentemente simples é uma conquista tão fundamental?
Para que possamos responder essa pergunta, precisamos nos deter um pouco sobre o que é o nome. Um nome próprio é uma marca irredutível de uma singularidade que congrega o corpo e o conjunto de atos, sonhos e discursos de alguém. Trata-se de uma invenção humana que permite o reconhecimento da experiência de unidade de uma mesma pessoa por mais que ela — contraditoriamente — não seja mais a mesma ao longo do tempo: o nome é a marca da unidade na diferença.
Contudo, em muitas experiências trans, essa singularidade e seu reconhecimento são vetados, na medida em que o nome quase sempre carrega a marca irredutível do gênero. Assim, o processo de assunção de uma identidade transgênera passa necessariamente por uma transformação na relação de uma pessoa com o seu nome. Mais ainda, essa relação com o nome é, por vezes, muito mais central e importante do que qualquer procedimento cirúrgico, pois o que ela sublinha é que toda e qualquer vivência de gênero depende de um reconhecimento dos outros para se efetivar de fato. Em nossa sociedade, portanto, a cada chamada na escola, matrícula na universidade ou preenchimento do livro de ponto no trabalho, afirmamos ou deslegitimamos uma dada identidade. Privar alguém dessa coordenada básica de assunção de si como singularidade é o equivalente social, silenciosamente quotidiano, da violência física sofrida por centenas de pessoas no país em que mais se mata a população LGBTTQI no mundo.
A vitória no STF, obtida por meio da pressão de movimentos sociais, é importante ainda em outro aspecto: ela permite que o nome seja retificado sem a necessidade de cirurgia, de laudos psicológicos ou da contratação de advogados. Beatriz Bagagli lembra que a desmedicalização e desjudialização desse processo são significativas não apenas porque emancipam parte da população da incidência direta desses saberes e poderes médico-jurídicos, mas porque permitem que um grande número de pessoas trans sem condições financeiras possa usufruir do direito ao nome.
Assim, tal como as feministas queimaram sutiãs como ato simbólico de sua libertação, hoje travestis e transexuais, conforme sugeriu Hailey Kaas, podem queimar os laudos que, por tanto tempo, serviram como grilhões de sua vivência plena como sujeitos de direito. Tal gesto não deve ser visto como uma simples demanda identitária que crê cegamente na identidade do eu consigo próprio, tampouco como uma ameaça de fluidez radical que não reconhece normas e limites e alça a liberdade individual à condição de princípio fundamental. Trata-se, antes, da afirmação de que toda realização pessoal depende, inexoravelmente, das coordenadas de reconhecimento jurídico e social e, portanto, do laço com o outro.
Como dizia o psicanalista Jacques Lacan, o fato de haver apenas dois sexos no registro civil não impede que haja, sempre e para todos, uma escolha. Mas essa escolha, sublinha ele, sempre será uma espécie de autorização que passa não só por si mesmo, mas por outros: nos tornamos sujeitos precisamente nesse hiato entre nossa unidade singular e a constelação de outros que nos nomeiam. Celebremos, portanto, a descoberta de mais essa estrela em nosso vasto universo humano.
* Pedro Ambra é psicanalista. Doutor pela USP e pela Sorbonne Paris Cité, é autor de diversos livros e artigos sobre psicanálise, gênero e sexualidade. Colaborador da paginaB
Um museu e uma obra imaginária para refletir sobre o excesso impossível
No filme “The Square – a arte da discórdia” (Ruben Östlund, 2017) acompanhamos o diretor de um museu sueco (Claes Bang) tentando conciliar suas boas intenções com as consequências inesperadas de seus atos. Por exemplo, ele tenta apartar a briga de um casal na rua, para logo depois descobrir que tratava-se de um golpe, e que ao final levaram-lhe a carteira, o celular e as abotoaduras que tinham sido de seu avô. É possível que se não houvesse este toque de pessoalidade envolvendo o legado familiar e suas boas intenções, ou seja, se ele tivesse sido e anonimamente furtado na rua, talvez ele aceitasse o fato. Mas o envolvimento sai caro, sempre. Por isso ele decide acolher a “brilhante” ideia de um subordinado escrevendo uma carta denúncia, colocada na caixa do correio de todos os moradores do prédio onde se podia ver que estava o celular furtado, mas sem que se soubesse sua localização exata. O plano parecia perfeito: o criminoso intimidado por ser reconhecido, sem saber que todos haviam recebido a tal correspondência, devolveria o produto do furto, evitando-se assim a extensa e complexa participação da polícia. Porém, na hora da execução tudo começa a dar errado, a começar pela inconsequência do autor da brilhante ideia, que se recusa a entrar no prédio como havia prometido. Daí em diante inicia-se uma trágica repetição deste mesmo erro e suas consequências devastadoras.
The Square é uma ironia atualizada de nossa moral cubicular, baseada na oposição não dialética entre dois princípios contraditórios de nossa experiência narcísica:
Guarde uma atitude de benévola indiferença com relação aos outros. Como diz o funk: cada um na sua e todo mundo numa boa. Não saia do seu quadrado, seja ele a tela do celular, a tela do computador, a tela do cinema, a tela branca de Robert Rauschenberg ou o cubo azul de Ives Klein. O seu espaço é seu, seja ele definido pelas fronteiras do seu corpo ou pelo uso de sua imagem. Nunca deixe que ninguém se aproprie do que é seu e guarde os muros de sua intimidade como seu capital mais importante. Sobretudo, acostume-se e obrigue-se a ser feliz neste quadrado. Não deixe ninguém saber que você se interessa, precisa ou depende do reconhecimento dos outros fora dele.
Quando alguém entrar em seu quadrado ou quando você sair deliberadamente dele, toda razão lhe será concedida imediatamente. Em nome da justiça ou da vingança, calcado na piedade ou na liberdade de expressar-se, sempre você terá ao menos alguma razão ao fazer o que faz. As consequências de uma ação inespecífica sobre um alvo indeterminado devem ser pensadas como um bombardeio generalizado sobre uma cidade inimiga. Danos colaterais, vítimas de fogo amigo, todos devem compreender que, no fundo, não deveriam ter posicionado seu quadrado naquele lugar.
O excesso na performance
A resposta desproporcional lentamente cobra seus efeitos. Esse é também a sensação que temos cotidianamente quando nos parece que as pessoas perderam o tamanho exato de si mesmas e do mundo. Tudo parece fora de volume. Ou somos excessivamente reativos, sensíveis e ofendidos ou invertemos o sinal e nos mostramos exageradamente apáticos, inconsequentes ou egoístas. Em síntese, quando sentimos que fomos atingidos de modo particular, como efeito de nossas contingências específicas e de nossas fraquezas singulares tendemos a reagir movidos pela necessidade, atacando de forma inespecífica de modo a ostentar nossa potência de intimidação. É assim também que uma ação genericamente boa pode trazer consequências terríveis em termos específicos. O que esquecemos aqui é que nossos atos estão mediados por equívocos e mal-entendidos. Esquecimento típico de quem vive e conversa apenas dentro de seu quadrado.
“Menon” é um diálogo de Platão no qual se propõe a um escravo, sem educação prévia, que este desenhe um quadrado com o dobro da área de um quadrado original. Inicialmente o escravo avança valente propondo a duplicação de cada lado do quadrado, o que Sócrates mostra ser um erro, pois disso resulta um quadrado com quatro vezes a área original e não duas, como lhe fora pedido. Assim o escravo passa da certeza total e equivocada, para o desamparo igualmente genérico no qual ele se declara incapaz de enfrentar o problema. A astúcia do filósofo está em mostrar que ele estava no caminho certo, mas concluiu de modo precipitado. Bastaria notar que o quadrado que ele desenhou era duas vezes o tamanho do quadrado pedido, portanto, bastaria dividir pela metade este quadrado que se chegaria a resposta correta.
Há uma lição clássica aqui sobre a importância da reminiscência na realização do conhecimento. No fundo o escravo sabia a resposta, mas ele não sabia que sabia. Mostrando primeiro que ele esta possuído por uma falsa certeza (ironia) e depois que ele poderia pensar na solução correta por si mesmo (maiêutica) Platão faz o seu ponto.
Contudo, o exemplo permanece atual se o tomamos para enfrentar nossa própria moralidade cubicular. A resposta imediata quando se trata de sair de seu quadrado está baseada em certo excesso. Este excesso moral deriva de duas coisas sobrepostas: estou com raiva porque fui contrariado: furtaram minha carteira, aproveitaram-se de minha boa fé. Mas minha raiva se quadruplica porque escuto uma voz punitiva ao fundo dizendo: “Está vendo o que acontece quando você se preocupa com os outros? Volte já para o seu quadrado e aprenda a ficar lá!”. Até aí estamos como o escravo de Mênon. Desamparados e inquietos porque nossos bons motivos só nos trazem consequências indesejáveis, dando causa a processos que se voltam contra nós. O destino é injusto e o Outro é malévolo, aceite isso, dirão os preguiçosos.
Mas aqui intervém um detalhe que interessa aos psicanalistas. A duplicação é suportável se contamos com a divisão. A duplicação é o princípio do que Lacan chama de imaginário. Achar que o outro é você, age como você e que todos eles são iguais entre si, como os moradores de um mesmo prédio contra os quais você pode ficar latindo e ameaçando por que alguém mexeu no seu queijo, ou melhor, no seu quadrado. A divisão é um correlato simbólico de nossa experiência com o outro. Não se trata apenas da divisão como partilha e circulação da razão e do poder, mas da divisão do próprio sujeito. Como diria Hanna Arendt: prometer e perdoar andam juntos, para o outro e para nós mesmos. Ir e voltar atrás, passar dos limites e constituir limites sobre fronteiras ultrapassadas. Todas estas práticas escassas em nossos tempos de turbulência narcísica. O que fez a ira do protagonista se inflar desproporcionalmente, tema que reaparecerá em vários outros momentos do filme, é o fato de que ele não se perdoa. Ele não admite a divisão e incoerência de seus próprios “bons sentimentos”.
Intervém aqui o terceiro ponto sugestivo na relação entre o quadrado grego e o quadrado contemporâneo. Notemos que a solução matemática passa pelo uso da diagonal do quadrado. Primeiro você quadruplica e depois divide. Para dividir temos que contar com a diagonal do quadrado, o que para os gregos era um problema, pois isso remetia a um número irracional. Um número com o qual podemos operar, mas não calcular integralmente, tipo raiz quadrada de dois. Um número que mais tarde poderá integrar a reta dos números reais. Ora, chegamos assim ao terceiro ingrediente da equação moral de nossa época: não basta deflacionar o imaginário e depois dividir simbolicamente seus efeitos é preciso operar com o Real. O real é o impossível que torna incomensurável nossos quadrados, independente de boa ou má fé. Não precisamos imaginar uma cidade de quadrados perfeitos, com tudo e todos em seus lugares, aliás é possível que esta imaginação esteja nos fazendo mal. Cada um de nós, e pior, cada um dos outros, possui a sua própria diagonal, com seu lado desproporcional com todos os outros e consigo mesmo.
É bom descobrir logo do que é feita sua diagonal, senão ela te pega.
Detalhe da obra "Dupla Dinâmica", de Rosângela Rennó, um dos trabalhos que integram a mostra na Galeria Vermelho. FOTO: Divulgação
Na entrada, a exposição alertava os visitantes: pense bem antes de entrar neste recinto. O material exposto pode lhe parecer ofensivo (…). Se decidir entrar, aja com responsabilidade: aceite o exposto com naturalidade. Disfarce, se for necessário. Contudo, a mostra não apresenta performances com corpos nus ou pinturas com crianças que assustam grupos conservadores.
Segundo Rosângela Rennó, artista e autora da advertência, sua nova mostra na galeria Vermelho, “Nuptias”, buscava por em xeque a instituição tradicional do casamento e suas representações. “Algumas pessoas poderiam considerar as intervenções [em fotografias] cruéis”, ironiza. “Quero seja então para celebrar a desconstrução”.
Desde o início de sua trajetória, nos anos 1980, Rennó vem refletindo sobre a natureza da imagem ao ampliar as possibilidades estéticas e simbólicas da fotografia. No caso da série “Nuptias”, que batiza a exposição, o interesse da artista foi o de questionar justamente a representação tradicional de casais convencionais a partir das correntes discussões sobre gênero. “Quis usar a imagem do casal de noivos para discutir as questões de papéis que, em princípio, são destinados a cada um na futura família nuclear. O que que é hoje a união entre duas pessoas? Totalmente diferente do que já foi”, afirma.
Ela realizou toda sorte de intervenções (“não pintava há quarenta anos!”) sobre fotografias de casais anônimos e fotopinturas inacabadas ou em mau estado de conservação. Entre rabiscos, cortes e adição de objetos, os casais surgem carregando diversas referências da cultura pop, história da arte, iconografia mexicana, indiana, embaralhando e confundindo clichês do masculino e feminino com barbas e maquiagens. “Tudo decorre do meu envolvimento com a fotografia propriamente dita. A partir do tipo de imagem, tamanho, composição, análise da faixa social e econômica a qual se casal pertence. É da observação da imagem em si e dela enquanto objeto, materialidade”, explica.
Enquanto alguns exemplares da série tecem comentários quase anedóticos, como o retrato de Batman e Robin, outros respondem diretamente às polêmicas do campo político – caso de “Bela Recatada e do Lar”, cujo título, segundo Rennó, alude ao tom misógino de uma declaração do presidente interino acerca do papel da mulher na economia do país. Além disso, os recentes episódios de censura e ataques ao circuito artístico por grupos conservadores contaminaram seu processo criativo. “Eu já tinha trabalhado em 80 Nuptias e veio essa bomba [as manifestações de ódio e tentativas de censura]. Os congressistas têm uma cegueira para o que acontece no mundo de hoje. Desconhecem o que são práticas artísticas contemporâneas, não tem o hábito de ver e não enxergam, não sabem discernir o que é uma ação estética de alguma coisa comportamental. A aberração está neles. Essa estreiteza tinha que ser comentada de alguma forma e foi inevitável”. A artista diz que a série permanece aberta, a depender de como seguir a agenda.
A despeito da alta voltagem política, operação já esperada diante da trajetória de Rosângela Rennó, a exposição ganha outro fôlego e, de fato, contornos celebrativos ao rememorar obras que se tornaram pedra de toque na história de artista. Ela apresenta séries inéditas em torno de projetos que completam 20 e 25 anos de existência, reafirmando a passagem do tempo e a construção de memórias como um dos pés de sua poética.
Prata e porcelana
Uma história de amor, ou quase isso, inaugurou o projeto “Arquivo Universal”, em 1992, quando a artista iniciou a coleção de vasta quantidade de negativos, fotos deterioradas, retratos de jornais e relatos com grande expressividade narrativa. Em 2003, as imagens renderam uma grande exposição individual no CCBB do Rio de Janeiro e foram reunidas em uma publicação da editora Cosac Naify, ocasiões que firmaram o papel de destaque de Rennó no panorama da fotografia brasileira. Em “Bodas de Prata”, a artista grava em pequenas placas comemorativas deste material as seis histórias que foram o pontapé do arquivo. A primeira gira em torno de uma camponesa que deseja reaver sua metade do retrato de casamento ao se separar.
No conjunto inédito “Bodas de Porcelana”, Rennó celebra 20 anos da série “Cerimônia do Adeus”, exibida na VI Bienal de Havana. A homenagem consiste na mesma quantidade de casais de pratos de porcelana de diferentes origens culturais carimbados com o nome da série. É que as imagens representam aquilo que a artista nomeia de “ritual fotográfico”: ao fim da cerimônia, casais cubanos posam dentro de carros de modelo americano da década de 1950, símbolo do imperialismo ianque para a ilha comunista. “Este arquivo veio de uma única fotógrafa de Havana que meu deu os negativos deteriorados em 1994. Quando voltei em 1997, ela já tinha ido embora, foi um pouco profético. O nome [da obra] diz a respeito àquele momento em que Cuba passava”, relembra.
Utopia
Ainda neste ano, Rennó prepara um novo corpo de imagens que ocuparão o Instituto Moreira Salles do Rio até meados de abril. A artista novamente se volta para assuntos urgentes da pauta nacional ao reunir, ao largo da mostra, fotografias enviadas por e-mail, instagram e whatsapp de localidades da capital fluminense com nomes utópicos. “Certas zonas cariocas cresceram muito nos últimos anos em função dos eventos que a cidade recebeu. A exposição nasce de um desejo de conhecer melhor a cidade onde vivo há 28 anos”, diz a mineira.
É no desmanche do instante fotográfico e nas possíveis recomposições da imagem que Rosângela Rennó segue expandindo as fronteiras da fotografia, demonstrando que a arte, a despeito do que pensam alguns, é campo essencial para refletir e assentar as transformações do mundo. Sobre o futuro das alianças?
“A celebração existe porque, no fundo, eu ainda acho que é o amor que vai salvar o mundo. É a coisa mais piegas que há, mas ainda é o que faz a humanidade crescer e pode nos salvar da barbárie”, diz Rennó.
Quem nunca se desinteressou em continuar navegando por uma página de futebol ao se deparar com um “belas da torcida”? Quem nunca sofreu pra encontrar a versão feminina daquela edição especial do uniforme do seu clube? Quem nunca se irritou com uma reportagem sobre o perfil do instagram da filhinha mais nova do técnico do Flamengo?
São essas perguntas que movem o coletivo Dibradoras. O veículo surgiu porque suas criadoras sentiam falta de uma cobertura esportiva que incluísse as mulheres. Elas também produzem conteúdo multiplataforma. Além do site, estão no Facebook, Youtube, Twitter e Instagram. Também conduzem um podcast semanal na rádio Central3.
Nesta semana, elas publicaram um vídeo sobre as coisas que mulheres que gostam de futebol não aguentam mais escutas. Vale conferir. O coletivo é formado por: Angélica Souza, Nayara Perone, Renata Mendonça e Roberta Nina Cardoso.
Walleria Suri diz que é preciso ajustar o corpo à mente para eliminar a inadequação existencial.
* Por Walleria Suri
Quando pensamos no ser homem e no ser mulher, estabelecemos a separação mais fundamental de classificação dos seres humanos. Por ser óbvia e se fazer constatada logo no nascimento – e até antes. “Parabéns, mamãe, esse é seu filho.” Ou: “Essa é sua filha”. E daí os pais ou responsáveis se encarregam de ensinar a vida apropriada à menina e a vida apropriada ao menino. E isso deveria seguir dessa forma sem complicações para ninguém. Mas tem um “eu” na história. Um “eu” com vontades, desejos, instintos e elaborações de si mesmo. Elaborações que lhe dão a capacidade de reconhecer o gênero que condiz de forma mais harmoniosa e represente com maior autenticidade seus instintos, vontades e desejos. Dessa forma, ser homem ou mulher ultrapassa a anatomia física do nascimento. E ultrapassa também os condicionamentos sociais convencionais. É algo inerente ao autorreconhecimento do indivíduo.
Eu não sou mulher porque pinto as unhas, uso saltos e tenho vagina. Sou mulher porque todas as minhas elaborações existenciais me associam ao feminino. Por isso é algo que está além do corpo, e não determinado por ele. Minha identidade de gênero é definida por um sentimento de encontro com meus impulsos vitais. A influência do meio pode conduzir as possibilidades de vivência e manifestação da minha identidade de gênero, mas também não é o suficiente para determiná-la. A identificação do meu gênero se dará por meio do reconhecimento dos elementos que me constituem. Reconheço o que sinto como legítimo de minha concepção como ser. Reconheço o que penso como uma elaboração legítima daquilo que sinto. E preciso reconhecer meu corpo como meio de expressão legítima de todos os meus sentimentos pensados e elaborados, na forma de vontades, desejos e emoções.
Então, só poderei vivenciar uma identidade de gênero de forma saudável quando meu sentir, meu pensar e meu expressar (corpo) apontarem para a mesma direção. Não importa qual seja a direção. Basta que esses elementos estejam em harmonia para haver uma identidade de gênero saudável. Pois o grande sofrimento interior das pessoas transexuais é ter de conviver com a constante inadequação existencial, causada por uma imensa sensação de desconforto dentro de si.
Por isso a transformação física é tão necessária e importante para as mulheres transexuais e homens trans. Não há problemas com o sentir e o pensar. Esses funcionam satisfatoriamente. Por isso não dá para falar em transtorno, ou atribuir qualquer tipo de patologia, para essa forma de construção psíquica. Apenas há de se adequar o corpo com o gênero da autoidentificação. Pois o sentir e o pensar se estabelecem de uma forma impossível de serem compulsoriamente modificados. Mesmo que os papéis de gênero sejam construções culturais humanas, o que estabelece a identificação do indivíduo com um determinado gênero, ou com nenhum, é uma escuta interior que foge ao alcance cultural. Diz respeito aos mais profundos instintos humanos que se formam de maneira totalmente livre. Podendo ser por uma vida toda reprimidos, mas nunca condicionados.
Retrato inédito de Hilda Hilst, feito por Fernando Lemos, em 1954, que ficou 60 anos guardado e foi gentilmente cedido à reportagem de Brasileiros pelo fotógrafo português, amigo da escritora.
Em dezembro último, Mauro Munhoz, diretor geral da Flip, a Festa Literária de Paraty, antecipou, em comunicado à imprensa, que a escritora Hilda Hilst (1930 – 2004) será a grande homenageada da edição 2018 do evento literário. Em 2017, ano de estreia da atual curadora, Josélia Aguiar, a Flip teve recorde de escritoras e autores negros, fato aprovado pelo grande público em uma das mais celebradas edições recentes.
Ao anunciar a escolha de Hilst como sucessora de Lima Barreto no panteão de homenageados, Munhoz enalteceu o caráter provocativo e inspirador da autora: “Assim como outros poetas brasileiros (Hilda), leu Brummond, Bandeira e Cabral, mas leu também Fernando Pessoa, o francês Saint-John Perse e o alemão Rainer Maria Rilke. O resutlado e´uma literatura inovadora do ponto de vista da linguagem que exerce, por exemplo, forte influência na cena da dramaturgia brasileira de hoje”, afirmou.
Para aqueles que desejam aprofundar seus conhecimentos sobre a obra e a vida de Hilda Hilst, desnecessário, no entanto, aguardar até o final de julho (a Flip 2018 está programada para acontecer entre os dias 25 e 29): entre os dias 9 e 30 deste mês de janeiro, o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, sediado em São Paulo, realiza o curso Hilda Hilst: presente saiba mais).
Com encontros semanais às terças-feiras, o curso será ministrado pelo jornalista e escritor Flávio Aquistapace, que abordará a prosa tardia e o rico legado de Hilst , com foco em quatro de seus títulos Contos D’escárnio – Textos Grotescos, O Caderno Rosa de Lori Lamby, Cartas de um Sedutor e Rútilo Nada.
Em janeiro de 2014, Hilda Hilst foi capa da edição 78 da revista Brasileiros, em reportagem de Gonçalo Júnior, que trouxe fotos até então inéditas e gentilmente cedidas pelo português Fernando Lemos, amigo da autora. Leia, na íntegra, a seguir.
Nunca houve uma mulher como Hilda
Ela foi linda e teve todos os homens que desejou – exceto Marlon Brando. Escritora e poetisa paulista, rotulada de pornógrafa e consagrada pela crítica, volta agora, dez anos depois de sua morte, em documentário, lançamentos, relançamentos e minissérie. Por aqui, amigos íntimos contam quem foi, de fato, Hilda Hilst.
por Gonçalo Junior
Inteligente, segura, determinada, independente, transgressora. Namoradeira, mas discreta. Jamais vulgar. Dona de uma hipnótica beleza, poucas mulheres tiveram, como ela, os homens que desejaram em seus braços. Hilda Hilst, a escritora brasileira que ficou também conhecida por seus livros eróticos, morreu há dez anos, em 4 de fevereiro de 2004, aos 74 anos.
Ela, que foi representante da alta sociedade, esforçou-se para ser respeitada como poetisa, recebeu prêmios importantes, como Anchieta (pela peça Verdugo, uma das oito que escreveu entre 1967-68), e Jabuti (pelo volume de poemas Cantares de Perda e Predileção) – ao todo, foram sete. No entanto, seus livros nunca foram sucesso de público. Nem quando partiu pelo caminho do erotismo, que resultou em obras-primas (O Caderno Rosa de Lori Lamby e A Obscena Senhora D., entre outras), provocaram polêmica, porém não movimentaram grandes tiragens. Dizia-se que suas sacanagens eram de tão alto nível literário que os consumidores do assunto não se interessaram muito.
Seja como for, Hilda tinha uma maneira peculiar de enxergar o mundo. “Sexo e beleza eram rigorosamente a mesma coisa para ela, a única pessoa de nossa geração que não teve sentimento de culpa em relação a esses temas”, afirma Jorge da Cunha Lima, 82 anos, administrador, jornalista e advogado, um dos amigos mais próximos da escritora durante toda a vida, que confessa ter sido apaixonado por ela. “No começo dos anos 1950, eu era um jovem estudante, e ela, já escritora, dona de uma liberdade que deixava todo mundo perplexo.”
Verdade. Além de linda, Hilda foi uma mulher de espírito livre. Tinha fascínio pelo sexo oposto, mas não cedia a abordagens passivas. Nunca. Seguia um estilo próprio em que ela dominava a cena. Foi assim quando abordou aquele que se tornaria seu único marido. Nos anos 1960, Hilda ia para casa, pela Avenida Dr. Arnaldo, em São Paulo, quando viu um homem no último ponto em frente ao Cemitério do Araçá. Pediu ao motorista que parasse diante do local e disparou: “Por que você vai para casa de ônibus, se pode fazer isso de Mercedes?”. O homem era o jovem escultor Dante Casarini, que sorriu e aceitou a carona. Primeiro, eles foram amantes. Depois, mulher e marido – nessa ordem. Certo dia, ela teria dito a Cunha Lima: “Estou felicíssima vendo aquele homem maravilhoso, com dorso nu, que volta com uma penca de lenha nas costas”.
Paixões e decepções
Apesar do forte sentimento de Cunha Lima, Hilda jamais deu a entender que percebia seu interesse. No entanto, ela contava suas aventuras amorosas ao amigo, como a que a levou a seduzir o ator americano Dean Martin e seu lamento por não ter conquistado Marlon Brando, ícone americano de beleza e masculinidade.
No livro Fico Besta Quando me Entendem (Editora Globo), que reúne 20 conversas mantidas com Hilda entre 1952 e 2003, ela voltou ao assunto com o jornalista Fernando José Karl: “Eu queria muito conhecer Marlon Brando, achava-o lindo. Então, tornei-me namoradinha do Dean Martin, só para ficar perto do Marlon. Mas não conseguia essa aproximação de jeito nenhum. Vi-me obrigada a aguentar Dean bêbado vários dias e, como ele não me apresentava Marlon, resolvi ir ao hotel onde ele estava, dei uma linda gorjeta ao porteiro e perguntei o número do quarto dele. Cheguei lá, bati na porta, esperei uns dez minutos. Marlon Brando apareceu com um extraordinário robe de seda, acompanhado do ator francês Christian Marquand, que, anos depois, revelou ser seu amante. Eu estava acompanhada de uma amiga, Marina de Vincenzi, e meio de pileque. Disse-lhe que queria fazer uma entrevista. Mas eu só olhava para os pés dele e não sabia o que dizer. Aí ele falou: ‘Só porque você é bonita, acha que pode acordar um homem a essa hora da noite?’. Ele achou graça, foi educadíssimo, mas eu não consegui entrar no quarto e dormir com ele. Fiquei decepcionadíssima. Naquela noite, novamente, ele tinha escolhido Marquand”.
Seu comportamento ativo, entretanto, não incomodou mais do que seu talento para a escrita. Só que Hilda nunca se deixou intimidar por qualquer espécie de crítica. “Ela era de uma ousadia inacreditável”, afirma Cunha Lima. O fotógrafo português Fernando Lemos, de quem também foi amiga, reafirma: “Hilda recebia críticas menos por seu lado liberal, independente, e mais como poetisa porque causou inveja aos montes – nos outros poetas, principalmente.”
A escritora posa para as lentes de Fernando Lemos, em estúdio que ficava na rua Canuto do Val, em Santa Cecília em 1958
Lemos, hoje com 85 anos, produziu, em 1954, uma série de retratos da escritora, que ficaram inéditos por quase 60 anos. Ela apenas viu as fotos, que nunca foram publicadas, mas ficaram guardadas. Uma delas está publicada nesta reportagem, mas todas podem ser vistas na versão digital da revista da Biblioteca Mário de Andrade – a edição impressa, número 69, não por acaso com o título Obscena, sairá em fevereiro.
Quando fez as fotos, Lemos morava havia um ano no Brasil. Chegara de Lisboa com a reputação de talentoso retratista de importantes nomes portugueses – políticos e artistas, principalmente. “Quando desembarquei em São Paulo, procurei conhecer gente ligada às artes e passei a ir locais em que todos se encontravam regularmente. Foi assim que fui apresentado a Hilda.”
Os pontos de encontro eram no centro de São Paulo, como o Juão Sebastião Bar, berço da bossa nova e onde Chico Buarque fez suas primeiras apresentações, e a Livraria Jaraguá, de Alfredo Mesquita, o mesmo que dirigiu por anos a Escola de Arte Dramática de São Paulo e incentivou Hilda a invadir a praia da literatura teatral. Havia também o Clubinho dos Artistas – brincadeira com o programa de TV Clube dos Artistas, da Tupi –, que ficava no porão do prédio do Instituto dos Arquitetos do Brasil, na Vila Buarque, e reunia o pessoal das artes. “Ali, todo mundo dançava, brincava, namorava”, diz Lemos. Ele se lembra ainda do Bar do Museu de Arte Moderna, que ficava no prédio Assis Chateaubriand, na rua Sete de Abril, onde eram realizados festivais de cinema e exposições de pintura. “Todo mundo tinha sua garrafa de uísque guardada e podia pendurar a conta.” Cunha Lima não se esquece da Livraria e Editora SAL, sigla da Sociedade Amigos do Livro, que importava obras da Europa e, nos finais de tardes, realizava saraus regados a poemas em francês e doses de conhaque. Impossível não mencionar o bar Vienense. “Nesses locais, todo mundo se tocava de leve”, revela Cunha Lima.
Além de Hilda, Lygia Fagundes Telles (amiga inseparável), Cunha Lima e Fernando Lemos eram assíduos frequentadores dessas rodas artistas como Paulo Vanzolini, Arnaldo Veloso Horta, Aldemir Martins, Massao Ohno, Rebolo Gonçalves. Uma época efervescente, sem dúvida.
Logo, Lemos e Hilda tornaram-se muito amigos. “Eu a convenci a fazer um ensaio no pequeno estúdio, que acabara de montar no bairro de Santa Cecília, região central de São Paulo. Quando se vê o resultado, a impressão é que não havia muita originalidade da minha parte. Mas fiz dessa forma, propositadamente, para compor um retrato com a imagem que eu tinha imaginado de uma mulher que não tinha sex appeal aparente, apesar da elegância, mas era dona de uma beleza protegida, porém interessante.” Ele se nega a dizer se teve ou não um romance com Hilda, mas não desmente nada. “Ela fez alguns sonetos para mim, eram versos mais humorísticos do que literários. Uma brincadeira nossa.” Com orgulho e saudade, mostra dois dos muitos livros autografados pela amiga. “Para Fernando, todo amor de antes, da Hilda”, escreveu ela em um exemplar de Jubilo, Memória, Noviciado da Paixão, de 1954. Na mensagem de Fluxo-Floema, 1970, ela anotou: “Ao querido Fernando, a maior amizade e ternura dos velhos anos”.
É fato. Hilda teve contatos intensos, imediatos e breves que, ao final, levavam-na a um processo doloroso: arrancar da dor ou do tormento de uma relação encerrada versos que descreviam as suas emoções. Depois, os publicava em livros, sempre dedicados ao amor que se foi. Para o poeta e jornalista João Ricardo Barros, por exemplo, ela dedicou Trovas de Muito Amor para um Amado Senhor, de 1959. Em seus versos e prosa, não fazia a menor concessão à palavra. “Ela transformava o sentimento ou o amor perdido em poesia arrancada do fundo da alma”, afirma Cunha Lima.
O extraordinário
Hilda nasceu em Jaú, interior paulista, em 21 de abril de 1930, filha de Apolônio de Almeida Prado Hilst, fazendeiro e poeta, e Bedecilda Vaz Cardoso, dona de casa. A união não deu certo e, ainda menina, foi com a mãe para Santos. Aos 7 anos, recebeu a notícia, pela mãe, de que o pai sofria de esquizofrenia e foi estudar como aluna interna do Colégio Santa Marcelina, em São Paulo. Esse ambiente escolar evocaria nas peças A Possessa e Rato no Muro e em um poema: “Os amantes no quarto/Os ratos no muro/A menina/Nos longos corredores do colégio”. Mais tarde, estudou na Escola Mackenzie e Direito na USP. Mas nunca exerceu a profissão.
Aos 20 anos, publicou seu primeiro livro, Presságio, e nunca mais parou de escrever. No entanto, a doença do pai sempre foi um forte fantasma em sua vida. Ela acreditava que, ao ter sido poupada do distúrbio psiquiátrico, poderia ter filhos doentes. Por isso, rejeitou a maternidade – teria feito mais de 15 abortos.
Nos 28 anos em que viveu na Casa do Sol, em Campinas, Hilda (a única mulher em pé) recebia amigos que ali ficavam por longas temporadas, como Caio Fernando Abreu e a inseparável Lygia Fagundes Telle
Apesar de seu espírito livre, Hilda era uma mulher resguardada, que não gostava de compartilhar seus tormentos. “Ela vivia com certa angústia da contrapartida de seus relacionamentos, no sentido de tudo aquilo que quis fazer e não teve tempo ou não foi correspondida. Não do fracasso, mas sim da completude da relação, do que faltou fazer”, diz Lemos. Parte do seu drama estava na tragédia que condenou seu pai, enlouquecido, a viver sem qualquer noção da realidade. Para Lemos, Hilda sofria com a situação dele, “que vivia quase como um cachorro louco, enjaulado em uma fazendinha perto de Campinas”.
Em 1966, depois da morte do pai, que a deixou em boa condição financeira, Hilda se mudou para um sítio a 11 km de Campinas. Batizou o lugar de Casa do Sol, construído perto de uma figueira centenária. Acompanhada do marido Dante Casarini, estava decidida a se concentrar em seus escritos. Mas longe do glamour da juventude, afastada dos amigos e da vida boêmia de São Paulo, Hilda começou sua travessia ao inferno. Mudava de humor constantemente, brigava com as visitas e os amigos. Passou também a ter o hábito de tentar falar com os mortos por frequência de rádio.
Quem conta essa história é a cineasta paulistana Gabriela Greeb, que pesquisa há mais de cinco anos a vida e a obra da escritora para o documentário Contato, Hilda Hilst Pede Contato, com previsão de lançamento para setembro deste ano. As filmagens foram iniciadas em dezembro último. Gabriela, que morou uma temporada na Casa do Sol, teve acesso a arquivos e documentos, além de ter conversado com amigos e parentes, como Edson Costa Duarte, que morou com Hilda durante muito tempo. Também teve acesso aos diários do artista plástico Jurandy Valença, amigo de Hilda, em que conta o dia a dia da casa durante o período em que viveu na Casa do Sol, que hoje abriga cartas e documentos, além de três mil livros, boa parte deles com anotações.
O foco do filme, explica Gabriela, é reproduzir a atmosfera da Casa do Sol. Será um documentário de criação, não típico, a partir de acervos importantes, como as mais de cem fitas gravadas com a voz de Hilda, ao tentar se comunicar com os mortos. São gravações feitas entre 1976-78, em que ela dizia: “Hilda Hilst querendo saber dos amigos em outra dimensão” ou “Hilda Hilst pede contato com o absurdo”. Fez essas experiências influenciada pelo sueco Friedrich Jurgenson, cientista, cineasta e crítico de arte, que afirmava que os mortos precisavam se manifestar por meio de frequência de rádio ou TV fora do ar, ou ainda pelo ronronar dos gatos. “A busca pelos mortos fazia parte do desejo de Hilda se comunicar de outros modos, além da escrita. Ela estudou física quântica para não chegar burra à outra dimensão”, diz Gabriela. “Hilda era extremamente lúcida e mantinha todo esforço para não enlouquecer.” Especula-se que a mãe da escritora também sofreria de esquizofrenia.
Vale lembrar que Hilda passou a ter sérios problemas financeiros. Até mesmo para alimentar seus cães – ela chegou a abrigar 150 deles. A situação só não foi pior porque a escritora conseguiu aposentadoria da Unicamp – a partir de 1986, ela fez parte do Programa Artista Residente da Unicamp, no qual conversava com os interessados sobre temas ligados à criatividade e imaginação, personalidades históricas e marcantes.
Outras histórias
Hilda morreu de isquemia, mas foi até o fim fazendo o que mais gostava: escrever com imaginação. E, como dizia, partiu em busca do silêncio absoluto. Antes, porém, deixou em testamento os direitos de sua obra para Daniel Fuentes, filho de José Moura Fuentes, grande amigo da escritora, que morreu cinco anos depois dela, em 2009.
É Daniel quem lança, neste mês, a loja virtual Obscena Lucidez (obscenalucidez.com.br), que vai vender livros, traduções e CDs. “A obra dela estará concentrada em um único lugar para os fãs de todo o País”, diz o herdeiro, que pretende criar outros produtos, como pôsteres e capas para celulares. A ideia de abrir o portal de negócios surgiu de uma experiência pela página que Daniel montou no Facebook sobre a escritora, que tem mais de 15 mil seguidores – curiosamente, metade com idades entre 15 e 24 anos. “Colocamos na rede 1,5 mil livros à venda e esgotamos o estoque em duas semanas, sem divulgação.”
Gilka fotografada para a revista O Malho na ocasião da eleição feita para saber quem era a maior poetisa do Brasil, proposta pelo veículo em 1933. Foto: Revista O Malho/Biblioteca Nacional
A literatura erótica feminina ganhou destaque nas últimas décadas com a reedição das obras de Hilda Hilst pela editora Globo. O movimento de mulheres divulgando poesia e prosa carregadas de luxúria abriu margem a uma série de discussões sobre a liberdade sexual da mulher e o machismo na literatura. Embora muitas autoras sejam aclamadas por esse tipo de criação literária – como a própria Hilda, Olga Savary e Adélia Prado – é incomum encontrar quem conheça a precursora desse movimento que deu à mulher autonomia para derramar seus desejos nas linhas de um poema ou um romance.
Faz um século, em 2016, que Gilka da Costa de Mello Machado – ou somente Gilka Machado – lançou seu primeiro livro, com impressão terminada em 31 de dezembro 1915. O espanto causado pelo conteúdo que Cristais Partidos trazia nas 111 páginas era esperado. Seus versos já tinham ocupado páginas de jornais e revistas da época, sendo ela colaboradora de alguns veículos, como a revista Fon-Fon e a Revista da semana. O motivo do assombro era o erotismo que ela empregou a alguns de seus poemas, deixando a sociedade da época incomodada com tamanha ousadia. Uma mulher escrevendo versos de conteúdo sexual era inadmissível para o contexto sociopolítico da República de Hermes da Fonseca. Apenas a hipótese de Gilka imaginar o desejo carnal já era condenável pelo crivo do machismo. Foi a crítica de Afrânio Peixoto, em 1916, que inaugurou a “caça à Gilka”, chamando-a de “matrona imoral”. Além de precursora na literatura erótica feminina e de denúncia da opressão às mulheres no Brasil, Gilka foi sufragista ativa, sendo uma das fundadoras do Partido Republicano Feminino, fundado em 1910 apenas para Mulheres. Gostava de escrever “Mulher” assim, com M em caixa alta, para afirmar a força do sexo feminino. No partido, exerceu o cargo de primeira secretária. Em seus poemas, procurou abordar também a situação das classes sociais menos abastadas, deixando explícito o descaso do governo em relação a isso.
Nascida em 12 de março de 1893, na cidade do Rio de Janeiro, foi depreciada pela sua literatura, mas também muito aclamada por quem buscava compreendê-la. Neta de Francisco Moniz Barreto, baiano considerado o pai do humor obsceno no Brasil, Gilka desafiou a crítica literária machista e racista da época. Em carta enviada a ela em 1915, Lima Barreto destoa dos colegas de profissão e declara: “Admirei muito de sua inspiração, a sua completa independência de moldes, dos velhos ‘cânons’, e a sua audácia verdadeiramente feminina”. Já para Mário de Andrade, a “bacante dos trópicos, como era chamada por Agripino Griecco, era apenas uma menina. A todo o tempo, dirigia-se a ela com chamamentos infantis, embora fossem nascidos no mesmo ano. Isso mostra que a forma de Mário tratar Gilka era para depreciá-la. A história cuida de lembrar que o pioneiro do modernismo não fazia isso apenas por machismo, mas por não aceitar a orientação formal de sua literatura. Os versos simbolistas gilkianos tinham um flerte com o parnasianismo. Anos depois, parece se arrepender ao publicar, no Estado de S. Paulo, que ela era uma ”poetisa ilustre, autora dos mais ardentes versos femininos na nossa língua”.
A pele pálida, carregada por camadas de pó de arroz, escondia sua origem negra, também motivo para a ofensiva de críticos contra ela. O crítico Humberto de Campos – um dos defensores de Gilka junto a Osório Duque Estrada e outros – relatou, em Diário Secreto uma conversa com o também crítico Afrânio Peixoto, na qual este contava sobre o encontro que teve com Gilka ao ir lhe entregar uma carta. Peixoto disse, com desdém, que não imaginava que a poeta era uma “mulatinha escura” e fez questão de enfatizar que o ambiente de sua morada “respirava pobreza”.
Gilka é a mulher à esquerda e seu marido, Rodolfo, é o homem à direita, na parte de trás. Também estão na foto as escritoras Albertina Bertha e Laura da Costa e Silva. Foto: Revista Careta/Biblioteca Nacional
A família também foi considerada culpada pela devassidão daquela moça que, aos 22 anos, se empenhou em se livrar das garras da sociedade. O registro da mãe como prostituta para poder trabalhar com atriz de rádio era motivo de chacota para depreciar suas origens, além de atribuírem culpa ao pai, um beberrão que batizou-a em homenagem a uma vodca alemã chamada Gilka. Assim, a poeta foi colocada à prova do método de Hippolyte Taine, baseado na ideia de determinismo, no qual a pessoa está fadada a se comportar de acordo com sua raça, seu momento histórico e o meio em que vive. Portanto, a culpa da imoralidade de Gilka vinha do fato de ser negra, da família “perturbada” e do momento histórico no qual o feminismo efervescia com as sufragistas.
Gilka não deixou barato as acusações preconceituosas. E também recusou a ajuda de grandes nomes. Recusou, por exemplo, o pedido de Olavo Bilac para escrever o prefácio de Cristais Partidos. Quando Bilac perguntou do por que, Gilka apenas respondeu que queria aparecer para o público sem defesa. “Havia no meu ser um a torrente que era impossível represar: os versos fluíam, as estrofes cascateavam… E continuei, ritmando minha verdade, então com mais veemência”, escreveu na abertura de Poesias Completas, de 1978. Condenou seus críticos diretamente e indiretamente, nas entrelinhas de sua escrita. Era ela, segundo seus censores, a responsável pela depravação moral das moças da sociedade carioca.
Em evento de 1934, brinca com o boneco apelidado de Tupo. Foto: Revista O Malho/Biblioteca Nacional
No poema Comigo Mesma, é possível reconhecer essa característica gilkiana, como no verso “Que importa a injúria hostil de quem te não compreenda?/Dança, porém, não como a Salomé da lenda,/a lírica assassina”, onde a injúria hostil eram as opiniões dos críticos sobre ela e a dança era o seu hábito de escrita. Nos versos de Conjecturando, dedicado a Duque Estrada, desabafa sobre desistir de lutar. “Convenci-me/agora, de que o gozo é um crime” é como ela inicia uma das estrofes do poema, onde fala sobre depor armas e se entregar à morte. Ali estava uma referência clara ao cansaço que a abateu com o passar do tempo, fazendo com que desistisse de continuar rebatendo a crítica e acabasse reclusa.
Foi a única mulher a colaborar, eventualmente, na revista erótica A Maçã. Extremamente machista, a criação de Humberto de Campos escandalizou por trazer conteúdo picante, que colocava a mulher de forma submissa e degradante. E, ao lado de Cecília Meireles, formou a dupla de únicas mulheres a escreverem para Festa, revista lançada em 1927 por Tasso da Silveira e Andrade Muricy.
No centro da foto, Albertina Bertha está acompanhada de outras fortes autoras brasileiras: a sua direita, Gilka Machado, primeira poeta erótica do País, que teve sua obra reeditada neste ano; no lado oposto, a poeta Laura da Fonseca e Silva, que desafiou a sociedade ao contestar o casamento e a maternidade como desígnios femininos. Foto: Revista Careta/ Acervo Biblioteca Nacional
Representativas no que diz respeito ao papel da mulher na sociedade, na política ou na literatura, algumas autoras brasileiras de grande talento, do século XIX e XX, ficaram no limbo, esquecidas. A maioria delas nem sequer teve o devido reconhecimento em vida, destino ao qual muitos escritores medíocres – homens – escaparam com folga. Hoje há diversos trabalhos de amorosa garimpagem para redescobrir essas romancistas, contistas e poetas. Importantes figuras femininas da literatura brasileira, elas têm ganhado reedições de suas obras nos últimos três anos.
É um trabalho de pesquisa que envolve paixão e determinação. Foi assim que o jornalista e escritor Ramon Nunes Mello resolveu colocar Adalgisa Nery (1905-1980) de volta em circulação depois de décadas deixada de lado. Mulher expressiva no jornalismo político do Estado Novo e da ditadura militar, a carioca escreveu em verso e em prosa. “A biografia de Adalgisa é tão forte que se sobrepõe à obra”, pontua o organizador.
Casada com o pintor Ismael Nery e, depois, com o jornalista Lourival Fontes, sua história é repleta de situações aflitivas. “A obra poética da Adalgisa é quase um canto de angústia, embora ela se apresentasse como uma mulher altiva”, destaca Ramon, referindo-se a Cantos da Angústia, título de um dos livros de poesia da escritora, lançado em 1948.
Desde 2015, foram reeditados pela José Olympio, mesma editora que publicou as obras de Adalgisa em vida, os romances A Imaginária, uma autoficção, e Neblina. Por considerar a produção poética de Adalgisa desigual, o organizador pretende reeditar sua poesia em uma antologia. Ligada ao modernismo brasileiro, foi muito amiga de Graciliano Ramos e Murilo Mendes, assim como dos pintores Frida Kahlo, Diego Rivera e Cândido Portinari. “A escrita dela mostra que não há um modernismo brasileiro, há modernismos”, diz Ramon, que considera os textos da também jornalista muito ligados ao pré-existencialismo do primeiro marido.
Quando se fala sobre a angústia de Adalgisa, aliás, deve-se pensar em Ismael Nery. Em A Imaginária, o alter ego da autora narra situações constantes de humilhação pelas quais o marido a fazia passar. A arma que o cultuado pintor surrealista usava era o abuso psicológico, sempre tentando colocá-la em situação de inferioridade. Proibia Adalgisa de participar dos eventos que fazia em sua própria casa para artistas e intelectuais, referindo-se a ela com desprezo, fazendo pouco-caso de sua existência. Não suficiente, Adalgisa também sofreu na maternidade. Teve oito filhos com Ismael, sendo que apenas o primeiro e o último sobreviveram.
Amiga de artistas renomados, Adalgisa Nery foi retratada por muitos dos grandes pintores do século XX. Entre eles, Diego Rivera, companheiro de Frida Kahlo. Na foto à esquerda, de 1945, Frida está no centro, entre Adalgisa e Lourival, segundo marido da brasileira. Nos dois extremos estão o pintor Rufino Tamayo e sua esposa, Olga. Foto: Arquivo Diego Rivera e Frida Kahlo
Só depois de enviuvar, em 1934, Adalgisa se tornou escritora. Lançou seu primeiro livro em 1937, e a partir daí teve uma produção constante até dois anos antes de se recolher, espontaneamente, em uma casa de repouso, onde morreu. O casamento com Lourival Fontes, jornalista responsável pelo Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo, foi outro motivo de controvérsias. Amigos de Adalgisa se espantavam ao ver uma mulher como ela, ligada a ideais de esquerda e que chegou a ser fichada como comunista, casada com um agente autoritário de Getúlio. Alguns, inclusive o dono da editora pela qual publicava, diziam que ela havia se casado com Lourival apenas pelo sadismo de fazer ciúmes para Murilo Mendes, que a cortejava insistentemente.
Ramon perseverou para conseguir que os livros fossem reeditados pela própria José Olympio. “Fico muito feliz em trazê-la de volta pela mesma editora 35 anos depois”, confessa. E completa: “A gente publica tanta coisa nova com qualidade não tão boa, sendo que temos muitos autores antigos bons e esquecidos”. Até o fim do ano, pretende publicar a mencionada antologia poética e um livro de contos de Adalgisa.
Hospício
Outra que ganhou nova projeção em meados de 2015 foi a jornalista mineira Maura Lopes Cançado (1929-1993), depois que uma caixa com seus dois livros foi lançada pela Autêntica, por iniciativa da jornalista Daniela Lima. Entre a loucura e a lucidez, Maura foi muito comparada a Clarice Lispector, especialmente por conta do viés radicalmente subjetivo de sua obra, que discute tanto a esquizofrenia quanto a questão de gênero.
Internada algumas vezes em hospitais psiquiátricos, escreveu o diário Hospício é Deus aos 29 anos, quando internada no hospital Gustavo Riedel, no Rio de Janeiro. O livro só foi editado e lançado seis anos depois, em 1965. Sua segunda e última obra publicada, a coletânea de contos O Sofredor do Ver, é de 1968. Esta já tinha ganhado uma reedição para associados da Confraria dos Bibliófolos, em 2012.
Vítima de abusos sexuais na infância, apresentava tendências suicidas. Ainda na adolescência, teve um filho com seu primeiro e único marido, com o qual se casou aos 14 anos. Um ano depois se separou. Em uma das vezes em que foi internada, assassinou outra paciente numa crise esquizofrênica.
Esses aspectos chocantes de sua biografia são mais lembrados que sua obra. “Talvez a pior das violências seja o esquecimento. E essa violência que Maura sofreu, inclusive em vida, estará sendo corrigida aos poucos por todos que contribuírem para que os seus livros sejam lidos”, escreveu, em 2013, Daniela Lima em uma publicação na página de Facebook criada por ela para preservar a memória de Maura. Desde então, a pesquisadora já recolhia material para uma produção editorial sobre a escritora.
Em uma das vezes que foi recolhida em um hospício, Maura assassinou outra interna. Foto: Arquivo de família
Um pouco mais velha que as duas já citadas, Albertina Bertha (1880-1953) teve seu romance Exaltação colocado à luz pela Biblioteca Nacional e a Gradiva Editorial no começo de 2016. O trabalho da pesquisadora Anna Faedrich evidencia a obra que foi um grande sucesso há um século. Isso porque o título foi considerado o maior romance feminista brasileiro, por debater questões de gênero como nenhum outro havia feito até então. Albertina também se destacava por debater política e direitos humanos.
Foi essa questão do apagamento da mulher na literatura que fez Anna se interessar por Albertina. Depois de estudar as características de estética, técnicas e subjetividade da escrita da autora, decidiu retomar o estudo sobre ela de forma mais sociológica. “Albertina Bertha e sua obra são um bom exemplo, entre muitos, das dificuldades de superar as pressões e opressões silenciosas que empurram os portadores de alguns atributos – o gênero, a cor, a origem ou as preferências – para se tornarem aquilo que queremos que sejam”, aponta Faedrich. Ela também está envolvida na reedição do livro Nebulosas, da poeta Narcisa Amália (1856-1924), e de uma edição dos Cadernos da Biblioteca Nacional sobre crônicas de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934). O primeiro tem previsão de lançamento para abril deste ano.
Por meio da coleção de cordéis Heroínas Negras do Brasil, a escritora cearense Jarid Arraes foi mais longe e resgatou a história de Maria Firmina dos Reis (1825-1917), entre outras. Negra, Firmina é considerada a primeira romancista da literatura brasileira e também a primeira a abordar questões abolicionistas.
Além do machismo, Firmina teve de enfrentar o racismo. O sociólogo e pesquisador Rafael Balseiro Zin levantou em artigo publicado na terceira Revista do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc uma curiosidade: a imagem mais usada para representar a autora não é dela, e sim da escritora gaúcha Maria Benedita Bormann, que era loira de olhos azuis. Segundo Zin, isso reforça o preconceito da época, já que sugere o raciocínio: “se escrevia, era branca”.
Feminismo possível
Também abolicionista e merecedora de destaque, Júlia Lopes ganhou espaço ao ter seus livros reeditados pela Editora Mulheres ao longo das duas décadas que a casa editorial está em atividade. Gerida por um grupo de pesquisadoras e especialmente por Zahidé Muzart, referência na área acadêmica e falecida em outubro de 2015, a Mulheres foi criada justamente para resgatar figuras femininas importantes do ostracismo.
O último livro de Júlia lançado pela Mulheres data de 2014, sendo sua obra um dos carros-chefes da casa. Sua criação é diversa e contém três dezenas de títulos, entre os quais figuram romances, peças teatrais, contos e até mesmo livros escolares. Curiosamente, Júlia foi uma das pessoas que idealizaram a Academia Brasileira de Letras, que só abriu as portas para as mulheres após sua morte.
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Retrato de Júlia Lopes de Almeida, abolicionista e dona de um catálogo com três dezenas de livros de diversas categorias literárias. Foto: Divulgação
A imagem refere-se ao retrato que muitos usam como se fosse de Firmina, mas que, na realidade, é de Maria Benedita Bormann. Foto: Divulgação
Única reprodução mais próxima de quem realmente foi Maria Firmina dos Reis. O busto de bronze foi feito por Flory Gama e está na Praça do Panteon, em São Luís do Maranhão. Foto: Renato Pereira
Estudiosos como Leonara de Luca caracterizam a obra de Júlia como dotada de um “feminismo possível”. Ou seja, a atuação da autora no que dizia respeito à liberação da mulher era significativa, mas não chegava a ferir os padrões da época. Sua atuação como escritora e jornalista se desenrolou por mais de 40 anos, abordando nos textos situações cotidianas nas quais a mulher era subjugada.
Aos poucos, o Brasil vai descobrindo e conhecendo tesouros nacionais deixados de lado durante o processo de construção do que hoje é o cânone literário – isto é, o conjunto de autores e obras que são indispensáveis. Para Nunes Mello, esse processo é carregado de senso de justiça, por dar a essas mulheres o espaço que merecem. Balseiro Zin reforça: vê essa configuração do cânone como fruto do contexto sociológico patriarcal e também escravocrata que sempre existiu no Brasil.
A organizadora da obra de Albertina, Anna Faedrich, concorda: “Resgatar escritoras que se perderam na memória da literatura, durante o processo de sedimentação do cânone literário atual, é um movimento importante, no campo da história literária e da luta política. Esse movimento, me parece, é parte de uma luta mais abrangente por reconhecimento de grupos, setores e histórias, parte da nova institucionalidade democrática brasileira, embora ela esteja sofrendo algum abalo recentemente”. Ela também acredita que “o trabalho de recuperação da literatura produzida por mulheres só pode ser coletivo e, na medida em que ganhe fôlego, permitirá repensar nossa história – e nossa história literária – e as pequenas e grandes exclusões do dia a dia”. Por isso, espera subsídios e contribuições para um projeto que pretende realizar: um site que tenha a história da literatura brasileira reescrita para incluir os esquecidos.