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Miami Art Basel expõe trabalhos de diversas fases da carreira de Wesley Duke Lee

wesley duke lee
Wesley Duke Lee em seu ateliê/casa, situado na avenida João Dias, e agora parte dele remontado e presente em seu instituto, nos Jardins, ambos em SP. Foto: Flávio Pinto Freire

Não faço um texto linear para falar de Wesley Duke Lee, artista multifacetado, cheio de narrativas transterritoriais, inventor de identidades múltiplas fragmentadas, que desde sempre provocam polêmicas. O estilo aristocrático, já presente no sobrenome, o acompanha até a morte em 2010. Filho de pai norte-americano conservador, em 1951 vira a mesa, decide ser artista, frequenta as aulas de desenho no MASP e, no ano seguinte, ingressa na Parsons School of Design, em Nova York.

Pintura, xerox, colagem, escultura, gravura, livro de artista, computação gráfica, quase nada escapou da criatividade de Wesley, pioneiro da linguagem pop no Brasil. Em 1963 adere ao realismo mágico e ensina artistas como Carlos Fajardo, Frederico Nasser, José Resende e Luiz Paulo Baravelli, com os quais trabalha intensamente por dois anos. Alguns anos depois, sua obra sai do plano e ganha o espaço tridimensional. Trabalhos como O Trapézio ou Uma Confusão (1966) e O Helicóptero (1967) já se articulam como ambientes.

Como resgate da produção de um artista imprescindível, é inegável a contribuição do Wesley Duke Lee Art Institute, criado em 2015 pelo galerista Ricardo Camargo com a sobrinha do artista, Patrícia Lee, em espaço anexo à galeria de Ricardo, no Jardim Paulistano. Uma visita ao Instituto coloca o público em contato com o cotidiano do artista, repleto de peças singulares, como o famoso bar onde ele fazia as refeições, além de objetos pessoais, como pincéis, livros, discos e também pinturas, gravuras, desenhos e muitas fotos. A questão central é compreender uma produção que incomoda, transgride, não se deixa domesticar, e que agora está acessível, em escala reduzida, quase uma réplica da charmosa casa/ateliê da av. João Dias, espaço de originalidade e criatividade sedutoras.

Com acesso ao público, o Wesley Duke Lee Art Institute foi criado, na concepção de Camargo, como um espaço para quem quiser ter contato com o realismo mágico, por meio da biblioteca, organização dos objetos nas paredes e do banco de dados com 6.000 documentos. Um dos objetivos do Wesley Duke Lee Art Institute é produzir um catálogo raisonné, para preservação e autenticidade de sua obra. A produção de Wesley é atemporal e transita entre a origem do homem, a sexualidade, a morte, o erotismo e tem a densidade tão forte quanto seu cosmopolitismo vivido entre Brasil, Estados Unidos, Europa e Japão.

Agora, durante a Art Basel de Miami, um público especializado, vindo dos quatro cantos do planeta, pode ter contato com alguns trabalhos e móveis do estúdio de Wesley. A mostra, organizada por Ricardo Camargo e Patrícia Lee, tem a participação efetiva da galeria paulistana Almeida & Dale. Camargo está empenhado na mostra que ocupa um estande de 36 metros quadrados no setor S3 da Feira, onde o expositor só pode exibir um artista. “Escolhemos o Wesley e vamos mostrar nove obras além do seu cavalete principal, um móvel de apoio do estúdio, a máscara de quando ganhou o prêmio na 8º Bienal do Japão, de 1969, fotos, entre outros itens”.

A escolha de obras de várias fases proporciona uma panorâmica da produção de Wesley, como o Capacete do mestre Khyrurgos 1962, o mais antigo entre os trabalhos desta mostra, que marca o nascimento de duas fortes tendências em sua obra: o experimentalismo de cunho mitológico e a colagem. Outra obra pontual é Zona: I Ching, 1964, óleo e colagem s/ tela, que faz parte da série I Ching, composta de seis obras. Com ela, o artista esteve na Wesley Duke Lee Exhibition, na Tokyo Gallery, em 1965, grande momento de sua trajetória, quando vive no Japão por oito meses, e na The Emergent Decade: Latin American Painters and Paintings in the 1960’s, no Guggenheim, em Nova York, em  1966.

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Wesley Duke Lee, ‘Ligas’, 1972.

Assim como vários artistas, Wesley fez todo tipo de experimentação; uma delas resultou na obra A Zona: Arino Boa Viagem, 1969, lápis de cor e colagem, que tem importância especial dentro da sua trajetória. O trabalho foi realizado em 1969, em Los Angeles, durante uma “viagem” lisérgica com dois amigos. Camargo comenta que “apesar dos traços serem delicados, eles carregam uma identidade pictórica forte e definida”. Ao longo de seis décadas Wesley passa por vários “ensaios” e escolhas. Quando chega ao LSD, via experimentação de novos processos, marca uma nova etapa em sua produção. Assim como grande parte dos artistas dos anos 60, ele se interessa em explorar experiências artísticas com a substância.

Wesley sempre teve paixão por mitologias e a leitura da mitologia grega para ele era como se lesse a vida. Na obra O/Limpo: Anima 1971 (arte ambiental) ele agrega objetos variados como papel machê, metal, tecidos, madeira, plástico, ferro, palha, terra, pedra e osso. Camargo comenta que Wesley inicia o projeto O/Limpo, “quando realiza 15 pinturas e esta única instalação, em que retrata máscaras no universo particular ligado às configurações da Mitologia Grega”. O diferencial é que esta obra perpassa por toda a vida de Wesley até sua morte em 2010. Torna-se um work in progress eterno, no qual, de tempos em tempos, ele incorpora novos elementos, como um objeto pessoal de estimação.

Um dos trabalhos que chama a atenção no conjunto é A iniciação do mito de Narcisssus, 1981, lápis, de cor, guache, nanquim, carimbo, colagem, fita adesiva s/ cartão e papelão. Nele, a inspiração de Wesley é a atriz Sônia Braga de quem ele era admirador. É ele mesmo quem comenta esta obra. “Na lenda, Narciso era castigado por admirar sua própria imagem no lago. Eu levo o mito mais adiante: ele olhava o fundo do lago… isso eu captei deste momento de Sonia”. Sensualidade e erotismo são o binômio essencial na obra de Wesley. Com Tantratem, 1999, tinta spray, óleo, cadarço e colagem s/ cartão, ele remete à energia sexual do Tantra, evidenciando o que sempre foi tão importante em sua poética: duplicidade dos seus temas, o real e o mágico, o diálogo entre o mundo presente e o mundo dos sonhos. Com Retrato de Luzia ou a respeito de Titia 1969 (arte ambiental) liquitex s/ tela e planta viva com um vaso, Wesley integra objetos e plantas aos quadros na tentativa de  aprofundar a aproximação de mundos diferentes, criando um jardim sobre o jardim de sua memória.

Camargo fala com entusiasmo sobre o renascimento da produção de Wesley. “No ano passado, a obra  Trapézio ou uma Confissão”, feita para a Bienal de Veneza de 1966,  integrou a coletiva The Word Goes Pop, na Tate Modern Gallery. Soffia Gotti, que colaborou na mostra, diz que descobriu a obra de Wesley quando visitou São Paulo pela primeira vez, durante o processo de pesquisa para The World Goes Pop”, quando conheceu a coleção Roger Wright, que está agora na Pinacoteca do Estado. “Lá eu pude ver pela primeira vez a incrível instalação, uma das poucas que Wesley produziu, chamada Trapézio ou uma confissão. E foi interessante porque nós lemos o título de maneira errada.” Eles não leram confissão, mas sim confusão. “O que é na verdade o elemento chave em toda essa discussão porque há muita confusão sobre o trabalho de Wesley. Mais ainda, essa instalação em particular foi catártica no meu entendimento sobre a sua prática de maneira mais geral, porque é um cubo imersivo em barras, suspenso em painéis, sendo dois de madeira e dois de acrílico.”, comenta Soffia.

Camargo fala da forte presença de Wesley nessa mostra e se diz satisfeito com o conjunto significativo que expõe na Miami Art Basel. Diante de um mercado nem sempre conhecedor da historia da arte, no qual as vezes um artista é considerado importante pelo montante que sua obra atinge, é muito oportuno que se coloque foco sobre a esquecida produção de Wesley Duke Lee. Um paulistano especial na história da arte brasileira, um aristocrata entre nós.

De quem é o corpo da mulher?

Antonio Banderas e Elena Anaya em cena do filme A Pele Que Habito
Antonio Banderas e Elena Anaya em cena do filme "A Pele Que Habito" (2011), de Pedro Almodóvar. FOTO: Divulgação / Paris Filmes

Quando um discurso se faz presente no momento histórico em que vivemos e está incluído em nossa mentalidade, pensamos que sempre foi assim. É o que nos acontece com o discurso sobre a “diferença dos sexos”: estamos acostumados a pensar que existem dois sexos diferentes, mas foi só a partir do século XVIII que o discurso sobre a existência de dois sexos diferentes se impôs como paradigma na sociedade Ocidental. Foi só então que homem e mulher passaram a ser concebidas como duas “essências” diferentes, sendo que esta diferença foi concebida como estritamente biológica; a partir destas “essências” que se desdobraram as funções e os lugares sociais ocupados por cada um deles.

Até então, durante toda a Antiguidade imperava a teoria do “sexo único”, o masculino, pensado como sendo o sexo perfeito enquanto que o feminino não era pensado como um sexo diferente e sim como imperfeição do outro. Era um modelo de superior/inferior, ou seja, de “hierarquia ontológica” e não de diferença. Uma das expressões desta forma de pensar se fazia presente nos desenhos dos livros de anatomia, que até o século XVII eram baseados no corpo masculino – por ser o corpo perfeito permitiria construir o saber perfeito sobre a morfologia do corpo.

A questão da diferença começou a fazer algum barulho no século XVII, mas só se impôs como modelo no XVIII. Se por um lado as descobertas anatômicas do Renascimento colaboraram para sair do primeiro modelo, será no meio da luta pela igualdade de direitos da Revolução Francesa que se fechará definitivamente o espaço possível de existência da teoria do “sexo único”. O reconhecimento das diferenças se impôs, embora a sociedade não tenha concedido naquele momento os direitos iguais pelos quais as mulheres lutaram na revolução.

Em 1792, veio a público a “Reivindicação dos Direitos da Mulher”, considerado o documento fundador do feminismo, de autoria de Mary Wollstonecraft e em resposta à constituição francesa de 1791, que não incluía as mulheres na categoria de cidadãs. A autora foi uma grande lutadora tanto na causa das mulheres quanto na luta antiescravagista, denunciando o enclausuramento feminino na vida doméstica, propondo a igualdade dos direitos da mulher à educação, ao voto, à propriedade privada e à herança. O feminismo de Mary se opunha à escravidão dos africanos, dos indígenas e à escravidão doméstica das mulheres, já que estas eram condenadas a uma eterna “minoridade”, no casamento viravam dependentes legais dos maridos não podendo gerir os bens nem trabalhar sem consentimento deles. Ou seja, não tinham direito aos bens mas eram quase um bem nas mãos dos maridos.

Nos séculos que se seguiram, as conquistas das mulheres foram grandes nos direitos e no espaço social, na política, nas artes e na ciência, no entanto há lugares nos quais o peso hierárquico se mantém com força, o domínio masculino ainda exercita a violência patriarcal. É significativa a violência sobre o corpo das mulheres apoiada no sentido de propriedade e de dominação masculina.

Na corrente das violências – situações de assédios, abusos, estupros e feminicídios –, o feminino como “outro” é apagado, borrado pela apropriação “colonialista” do corpo das mulheres, e o masculino se reafirma como “masculinidade hegemônica”. Enquanto o feminino fica no lugar do que pode ter dono, ser violado, violentado, o masculino não tem que se deparar com a “autonomia subjetiva”.

Como pensar a temática do domínio e da submissão? A partir do caminho da constituição psíquica? A partir do caminho da cultura e das relações de poder? No entrecruzamento entre ambas?

A psicanalista norte-americana Jessica Benjamin estudou as formas pelas quais as relações sociais opressivas se estruturam nos vínculos primitivos e na constituição do psiquismo, sem por isso “naturalizar” a opressão sexual masculina. Pelo contrário, tentou entender como a dominação se apoia no entrecruzamento das relações de amor e de poder. Benjamin estudou a forma pela qual a organização patriarcal e o modo em que dentro dela são pensados o feminino e o masculino se infiltra na própria constituição dos primeiros vínculos.

A autora entende o desenvolvimento do infans com um interesse social desde o início, sendo que o sujeito se desenvolve na relação com outros sujeitos e através deles. Por isso o eixo da mutualidade, do reconhecimento mútuo, é fundamental e precisa ser levado em conta para entender como se pode construir uma conexão que permita depois encontros marcados pela reciprocidade.

Benjamin retoma Hegel para pensar o “paradoxo do reconhecimento”, afirmando que no processo de construção da autoafirmação se precisa, por sua vez, do reconhecimento alheio, criando uma tensão permanente e necessária entre a afirmação de si próprio e o reconhecimento mútuo. Essa tensão precisa ser sustentada para permitir que dois sujeitos se encontrem como semelhantes e é na sua ruptura que se instaura a dominação/submissão.  Na relação entre o sujeito e o outro há um permanente conflito entre a tentativa de reconhecê-lo como semelhante e anulá-lo, incorporando-o como parte de si mesmo. Cada um de nós quer afirmar-se como individualidade única desconhecendo os outros como autônomos ao mesmo tempo em que precisa deles para ser reconhecido.

Na primeira relação mãe-bebê se constroem os primeiros signos de reconhecimento pois a mãe ao mesmo tempo que reconhece o filho como tal tem que reconhecê-lo como outro. Entre mãe e bebê se troca reconhecimento, quando este se deixa acalmar pela mãe ela sente-se reconhecida e fica gratificada quando aos poucos ele a reconhece mais que aos outros. A mãe se liga ao bebê pela gratificação. O filho aos poucos tem que ir reconhecendo a mãe como sujeito independente, mas para isto é necessário que a mãe se enxergue a si mesma como sujeito autônomo.  Para a autora, a “mutualidade” é um eixo central na relação entre filho e mãe, sem que por isso desconheça toda a complexidade intrapsíquica e dos processos inconscientes. Para construir a mutualidade é necessário que se mantenha a conexão com o outro como tal e que se mantenha a tensão entre o reconhecimento de si mesmo e o reconhecimento da dependência do outro.

Quando o conflito entre dependência/independência fica muito agudo, esta tensão pode se romper e primar a fantasia de onipotência; quando alguém quer afirmar a si mesmo sem o reconhecimento do outro segue-se o caminho da dominação. O outro é submetido para arrancar-lhe o reconhecimento sem reconhecê-lo reciprocamente. A autora não dá como inevitável a dominação masculina, pelo contrário, pensa que esta pode ser modificada, por isso a importância de entender a constituição dos lugares no relacionamento mútuo e de pensar na forma pela qual os lugares maternos e paternos se exercitam, assim como as dicotomias, dissociações e hierarquias do social podem influenciar neste exercício.

Na nossa cultura, o masculino se constrói na dissociação e projeção de tudo o que é da ordem da fragilidade, do infantil e do indefinido, que ficam do lado do feminino. Isto tem efeitos significativos na constituição da subjetividade autônoma das mulheres e no exercício dos lugares maternos e paternos, e portanto na forma em que os caminhos seguidos pelos meninos e pelas meninas na construção dos vínculos e da independência se processam. O eixo do domínio/submissão se acompanha do não reconhecimento do “outro como” sujeito diferente, é autônomo.

No filme de Pedro Almodóvar (diretor espanhol) de 2011, A Pele Que Habito, estes dois processos se põem juntos em cena. Um cirurgião plástico, cuja mulher sofreu um acidente no qual ficou com grande parte da pele queimada, produz uma pele muito resistente na tentativa de salvá-la, com a qual vai recobrindo seu corpo. No entanto ela, desesperada ao ver seu rosto refletido no vidro da janela, se mata. A filha que presencia o suicídio da mãe fica extremamente perturbada e é internada numa clínica psiquiátrica. Numa saída durante o processo de recuperação vai numa festa com o pai e acaba sendo estuprada por um jovem, o que piora seu estado levando-a ao suicídio. O médico sequestra o jovem que a estuprou e começa um processo de transformação com uma cirurgia de reversão de sexo, e a partir daí vai esculpindo um corpo feminino de belas formas e pele macia.

Poderíamos entender que esta seja sua vingança com o jovem da qual a filha foi vítima, e também o é, mas certamente o filme diz muito mais do que isto, entendo que diz das relações entre homens e mulheres e dos movimentos de dominação masculina. No filme há um permanente escapar dos corpos femininos seja pela traição ou pela morte, perante o qual ele esculpe um corpo feminino, feito pelas próprias mãos, sua própria criatura pela qual acaba se apaixonando. Ou seja, o corpo feminino feito pelas suas mãos, em cada pedacinho dele e que se mantém preso no seu território e no seu desejo. Quando pareceria ter feito a prisão perfeita, um corpo o qual teve seu desejo anulado, sendo imposto um gênero que o rapaz não queria, um corpo com dono, o qual deveria oferecer-lhe o gozo, este o mata e foge, não sem antes ter sido estuprado pelo meio irmão do médico, o mesmo que estava com sua mulher no momento do acidente. Nesta produção de um feminino preso, nas mãos do escultor, um feminino que perdeu o caráter de “outro”, nesse não desejo e não sujeito, o domínio masculino perdido quando as mulheres lhe escapam se afirma, se consolida.

Nas linhas de fuga, as mulheres do filme se deparam também com outro homem que se apropria de seus corpos e de seus desejos. O filme parece ser uma boa mostra da luta entre a procura da autonomia dos corpos femininos e as recorrências dos movimentos colonizadores sobre o corpo feminino com os quais nos deparamos tantas vezes na história da humanidade e nas histórias singulares.

Entre os muitos movimentos em defesa da liberdade dos corpos femininos, todos lembram de 1968, quando um grupo de ativistas nos EUA denunciou a forma com que os padrões de beleza são impostos às mulheres queimando objetos em praça pública – salto altos, maquiagens, etc. – o que se fez conhecer como “a queima dos sutiãs”, imagem que passou a ser uma metáfora dos movimentos feministas. Mas sem precisar ir longe no tempo, é só lembrar da polêmica que no mês passado circulou na mídia acerca de uma matéria do jornal sobre as vaginoplastias, à qual várias feministas reagiram por entender que a forma com que tinha sido escrita deixava novamente os corpos das mulheres nas mãos dos parâmetros dos homens, que são os que se encarregariam de dizer o que é bom, desta vez se tratando do mais íntimo do corpo da mulher.

No entanto, penso que o campo no qual nos deparamos com a força maior do domínio masculino sobre o corpo das mulheres é o das violências contra o corpo feminino no assédio, estupros e no mais extremo nos feminicídios. Estes se repetem com tanta frequência (!) e parecem ressurgir com mais força após qualquer novo movimento de autonomia e de conquista das mulheres. Segundo um levantamento feito pela Thomson Reuters Foundation, numa pesquisa feita entre as cidades com populações de mais de 10 milhões de habitantes, São Paulo está entre os primeiros lugares no potencial de risco de violência sexual para as mulheres. O crime de estupro aumentou em 10% neste ano em relação a 2016 e o número de casos de feminicídio é imenso.

Entende-se por feminicídios os casos em que mulheres são assassinadas por homens por questões de gênero, ou seja estes matam agindo não só com o ódio e o desprezo pelas mulheres, mas fundamentalmente com a ideia de propriedade sobre elas. Portanto, as razões destas mortes tem que ser procuradas nas relações desiguais entre os gêneros, relação entre alguém que se acha superior e com mais direitos sobre alguém que é considerada inferior e com menos direitos.

Pensando no filme, todas as mulheres que lhe escapam, encontrando uma linha de fuga ou uma janela aberta, parecem produzir no protagonista uma necessidade cada vez maior de que o corpo feminino seja a criatura esculpida por ele próprio.

Ou seja, tratam-se de relações de poder e o que está no fundo é o sentido de propriedade sobre o corpo das mulheres e da “naturalização” que disso tudo é feito na cultura patriarcal. Algo que está presente em toda a corrente das violências sobre o corpo feminino como estupros, esterilização forçada, exigência de maternidade não desejada, mutilação genital, abuso sexual e que chega ao limite nos feminicídios.

As pesquisas tem mostrado que os motivos pelos quais as mortes acontecem com maior frequência são situações de infidelidade, separações, rejeição sexual, atos de desobediência, gravidez, maternidade, ou seja, todas situações nas quais o domínio sobre o corpo feminino se põe em questão. Na cultura patriarcal o corpo da mulher é dele, de sua propriedade. Toda autonomia subjetiva do feminino desafia o domínio masculino e tende a ser abafada com violência. Só que isto está na mentalidade dos homens, das mulheres que educam os filhos e dos legisladores que promulgam as leis que mantém a desigualdade.

* Psicanalista, Silvia Alonso é supervisora do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e coordenadora do grupo de pesquisa “O feminino e o imaginário cultural contemporâneo”. Silvia é uma das colunistas do páginaB!.

Referências bibliográficas

Benjamin, J. Los lazos del amor, psicoanálisis, femenismos y el problema de la dominación. Buenos Aires: Paidos, 1996.

Laqueur, T. La fabrique du sexe. Paris: Gallimard, 1992.

Morin, T. Virtuosas e perigosas. As mulheres na revolução francesa. São Paulo: Alameda, 2013.

A volta do Tim Maia “irracional”

O cantor e compositor Tim Maia, que completaria 75 anos nesta quinta-feira (28). Foto- Reprodução : Facebook
O cantor e compositor Tim Maia, que completaria 75 anos nesta quinta-feira (28). FOTO: Reprodução / Facebook

Há cerca de 10 anos, o Brasil do século 21 enfim descobriu que, em meio ao discurso monotemático de Tim Maia sobre a redenção mística por meio das crenças do Universo em Desencanto, havia pérolas musicais do soulbrother que ficaram obscurecidas por décadas. Para além da inspiração autoral que permeia as composições e arranjos de Racional nos volumes 1 e 2 (há também um terceiro registro lançado, com sobras dos dois álbuns), claro, não foram poucos os que pontuaram que Sebastião Rodrigues Maia estava ali em plena forma vocal por temporariamente ter aberto mão do que ironicamente chamava de triatlhon (o consumo simultâneo e regular de álcool, cigarro e cocaína).

Mas ao se dar conta de que Manoel Jacintho, o famigerado líder da seita Universo em Desencanto, que dizia receber mensagens de seres extraterrenos, não era mesmo o “maior homem do mundo”, como bradou o Síndico em O Grão Mestre Varonil, e sim um notório charlatão, Tim e os músicos da banda Vitória Régia, que, leais ao seu líder, também adotaram a indumentária branca e entraram em abstinência da chapação, decidiram voltar em grande forma no álbum lançado por ele em 1976.

Com a mesma riqueza musical impressa nos dois biscoitos racionais, Tim Maia fez deste seu sétimo LP, epônimo como alguns antecessores, mais um título obrigatório de sua discografia. Melhor: repetiu a dose dispensando o discurso enfadonho em torno de Manoel Jacintho e seu famigerado livro de inúmeras reimpressões oportunistas. Como sugere o título deste texto, abordaremos hoje a volta do bom e velho Tim Maia “irracional”, artista que tanto amamos, na plenitude de seus melhores predicados.

Lançado pela Polydor, com produção executiva da Seroma (gravadora de Tim, que levava as sílabas iniciais de seu nome, Sebastião Rodrigues Maia), Tim Maia(1976) reúne músicos insuspeitos: Tim (bateria, percussão, guitarra, flauta e vocais), Carlos Simões (baixo), Reginaldo Francisco (teclados e voz), Paulinho Roquete (guitarra), Paulinho Batera (percussão e bateria), José Maurício (guitarra), Antonio Pedro (baixo, percussão e voz), Paulo Ricardo Rodrigues Alves, o inseparável “Paulinho Guitarra” (guitarra solo, percussão e voz), Antônio Claudio, Luis Mendes Jr. e Gastão Lamounier (vocais). Impecáveis, os arranjos do álbum foram divididos por Tim, o maestro uruguaio Miguel Cidras e o brasileiro Arthur Verocai, que orquestrou a última canção, The Dance is Over, composta por Tim, Hyldon e o tecladista Reginaldo, também autor de Me Enganei, que abre o lado B do LP.

Capa do álbum de 1976. Foto- Divulgação : Polydor
Capa do álbum de 1976. FOTO: Divulgação / Polydor

Se o álbum é encerrado com a sentença de que a dança chegou ao fim, é justamente convocando todos a dançar, com a canção Dance Enquanto é Tempo, que Tim dá início aos quase 30 minutos de deleite musical do sucessor dos dois volumes de Racional. À mensagem hedonista de abertura, Tim sobrepõe discursos que tratam de questões diversas, como o amor expresso aos filhos em Marcio Leonardo e Telmo(canção composta em homenagem a Leo Maia, seu filho adotivo, e Carmelo Maia, seu único rebento legítimo); a nulidade que ele voltava a dar aos credos religiosos, como em Nobody Can Live Forever e Brother, Father, Sisther and Mother; e a exaltação de sua altivez negra, manifestada na poderosa Rodésia. Outro grande momento do álbum é Batata Frita, o Ladrão de Bicicletas, título que talvez faça referência a um dos clássicos do neorrealismo italiano, o filme Ladrões de Bicicletas, de Vittorio De Sica.

Em dezembro de 2009, os repórteres Marcio Gaspar e Lauro Lisboa Garcia publicaram na edição impressa de Brasileiros uma entrevista inédita com Tim Maia, resultante de um bate-papo com o músico em 1995. Leia, na íntegra

Em setembro de 2012, a repórter Natalia Chiarelli entrevistou Yale Evlev, diretor de marketing da gravadora Luaka Bop, selo criado pelo talking head David Byrne, que então havia lançado a coletânea Nobody Can Live Forever – The Existencial Soul of Tim Maia.

Apaixonado por música brasileira, Evlev enfatizou características de ineditismo na obra autoral de Tim e de um sujeito também amado por nós, que, como ele, ganhou a alcunha de Babulina, Jorge Ben Jor. Segundo Evlev, Jorge e Tim são artistas dotados de artifícios irresistíveis para o público estrangeiro.

“O soul brasileiro é soul de uma maneira tão diferente, dentro de um gênero em que isso parece ser uma impossibilidade. É justamente isso que é tão refrescante na coisa toda que eles fizeram. Tim Maia e Jorge Ben são cheios de soul, mesmo não fazendo música baseada no blues como fizeram os soulmen norte-americanos. Mas, apesar disso, o sentimento e as emoções que dão nome ao gênero, ou seja, a alma, estão amplamente representados em suas obras”, defendeu Evlev.

Boas audições e até a próxima Quintessência!

Texto Originalmente publicado no site da revista Brasileiros em 30.1.2014

Ouça o álbum, na íntegra, no Youtube

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Veja o clipe de Rodésia

Um grito de altivez no salão

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No auge do Movimento Black Rio, os bailes nos subúrbios cariocas reuniam de 15 a 20 mil frequentadores. Foto: Reprodução "Jornal do Brasil" / Editora José Oympio

Nesses tempos obtusos, em que a ascensão do conservadorismo no País faz surgir personagens esdrúxulos como Fernando Holiday – jovem negro, egresso do Movimento Brasil Livre (MBL), que foi eleito vereador por São Paulo com um discurso de combate ao “vitimismo” dos negros, de fim das cotas raciais e de revogação do Dia da Consciência Negra, celebrado neste dia 20 de novembro–, é mais que bem-vinda a chegada às livrarias de um trabalho como 1976 Movimento Black Rio, livro-reportagem dos jornalistas Zé Octávio Sebadelhe e Luiz Felipe de Lima Peixoto.

Publicado pela editora José Olympio, com apoio do projeto Natura Musical, o trabalho de fôlego, também integrou uma série de ações da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro em celebração aos 40 anos do Movimento Black Rio.

Ao longo de 252 páginas, a dupla de jornalistas reconstitui, com o auxílio de muitos personagens que viveram o período, a história desse fenômeno jovem consolidado com a profusão de bailes majoritariamente frequentados pela negritude carioca.

A efervescência em torno de festas que reuniam até 15, 20 mil pessoas foi tão inspiradora que fez surgir uma cena local de bandas e compositores que amalgamavam os ensinamentos do funk e da soul music norte-americana com gêneros da música popular brasileira, como o samba e o baião.

Maior expoente dessa mistura, a Banda Black Rio lançou em 1977 seu primeiro LP, Maria Fumaça (ouça), um clássico das fusões retroalimentadas por essa cultura pulsante advinda dos bailes cariocas, principal alicerce do movimento que deu aos jovens negros do Rio de Janeiro um sentimento inédito de altivez.

Nesse contexto, além da Banda Black Rio, surgiram artistas municiados do mesmo ímpeto de amplificar a soul music à brasileira criada por antecessores como Tim MaiaToni TornadoHyldonCassiano e o grupo Dom Salvador & Abolição.

Na nova safra, destaque para União BlackCarlos DaféGerson King ComboDon BetoBeto ScalaLady ZuMárcia MariaTony BizarroSerginho MeritiCopa 7Junior MendesAlmir RicardiSandra de Sá e a dupla Robson Jorge e Lincoln Olivetti. Com ritmo explosivo, eles fizeram a trilha sonora dos blacks, como se autointitulavam os simpatizantes do movimento.

Mal documentada, tema de muitas reportagens preconceituosas feitas na época, a trajetória desses personagens é contada com propriedade no livro.

No texto de apresentação da obra, Peixoto pontua argumentos que eram recorrentes para deslegitimar a importância do movimento, como a influência estrangeira e a aparente frivolidade de uma articulação movida à festança.

“A história do Black Rio se encaixa, de certa maneira, numa situação parecida com os escassos registros históricos da cultura negra nacional, obliterados pela amnésia reinante da memória imaterial, característica comum deste País. Pouco se sabe sobre o que foi a influência do soul americano nos subúrbios do Rio de Janeiro no início dos anos 1970. Alguns afirmam não ter sido um movimento autêntico, organizado. Outros alegam que foi apenas um momento em que a juventude negra resolveu dançar uma música diferente”, diz Peixoto.

Pelo conturbado contexto histórico em que surgiu, o jornalista reitera a importância da articulação do Black Rio. “Num período ditatorial, a representatividade desse movimento não teve parâmetros. Os negros daqui se mostraram contextualizados num âmbito internacional, estavam em sintonia com o que acontecia pelo mundo. E, através dessa identidade de raça, o Movimento Black Rio se tornou um fenômeno sociológico e político incomparável. Um divisor de águas.”

A crítica de superficialidade da proliferação dos bailes no subúrbio carioca chegou a motivar um protesto do sambista Candeia, manifestado na música Sou Mais Samba (veja vídeo), lançada em 1977.

Provocativo, na letra, o partideiro ironiza: “Esse som que vem de fora não me apavora / Nem rock nem rumba / Pra acabar com o tal de soul / Basta um pouco de macumba”.

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Foto originalmente publicada em reportagem do “Jornal do Brasil” e reproduzida no livro “1976 – Movimento Black Rio”. Foto: Divulgação / Editora José Olympio

Na última estrofe, depois de afirmar “quem presta à roda de samba não fica imitando estrangeiro”, Candeia pondera: “Calma, calma minha gente / Pra que tanto bambambã / Pois os blacks de hoje em dia são os sambistas de amanhã”.

O manifesto anti-Black Rio de Candeia, que contou com a colaboração de Clementina de Jesus e Dona Ivone Lara, é documentado no 15° dos 28 capítulos do livro.

O embate “samba versus soul” chegou a contar com a inusitada opinião do sociólogo Gilberto Freyre, que, em artigo publicado no Jornal do Brasil, alertou “a nação para o perigo da mistura de negros norte-americanos com os brasileiros negros que possuem um movimento chamado Black Rio, com a finalidade de transformar a música negra – o samba, principalmente – em música de protesto”.

Na introdução de 1976 Movimento Black Rio, Sebadelhe reafirma o equívoco de menosprezar as intenções de jovens negros que, ao contrário do que pensavam os que compartilhavam da opinião da velha-guarda do samba e do autor de Casa-Grande & Senzala, não tinham como mote único o hedonismo alienante da dança.

“O Movimento Black Rio teve características tão peculiares que não apenas mudaria as formas de produção cultural da cidade, mas também os hábitos de convivências e as relações do lugar. Essa particularidade uniu jovens negros de outros estados com o mesmo propósito: o direito de se expressar livremente, absorver, produzir cultura e se divertir. Surgia, então, uma mocidade que questionaria veementemente estatutos e modelos arcaicos da civilização brasileira, traços de uma sociedade forjada em severos conceitos da era da escravidão.”

Além da importância textual, o livro também apresenta ao leitor uma rica pesquisa iconográfica, com filipetas, cartazes e fotografias em preto e branco que evidenciam o sentimento de feliz irmandade que havia entre os adeptos da cena difundida em festas promovidas por equipes como Baile da Pesada, Soul Grand Prix, Dynamic Soul, Soul Maior, Cash Box, Black Power e Furacão 2000.

Neste mês de celebração ao espírito aguerrido de Zumbi dos Palmares, temos aqui um livro essencial tanto para desinformados, como o vereador Fernando Holiday, quanto para a negritude que sempre defendeu o direito de trazer à tona sua própria história e, assim, preservá-la.

baile black rio 3
Baile da equipe Black Power, em foto originalmente publicada no “Jornal do Brasil” e reproduzida no livro “1976 – Movimento Black Rio”. Foto: Divulgação / Editora José Olympio

Negro é lindo: história dos bailes black de SP

cabine de discotecagem do Boteco Pratododia
Serjão Discotecário, DJ Dinho Pereira e Seu Osvaldo, seu pai, o primeiro DJ do Brasil, na cabine de discotecagem do Boteco Pratododia. Foto: Luiza Sigulem

“Negro é lindo / Negro é amor / Negro é amigo / Negro também é filho de Deus”, canta Jorge Ben Jor (então Jorge Ben) na primeira estrofe da canção que dá título a seu oitavo álbum, de 1971. Naquele início de década, no Brasil e no mundo, a exaltação à negritude era palavra de ordem.

Em São Paulo, um dos artífices para o levante de autoestima empreendido pela juventude afrodescendente foi a cena de bailes black, como eram chamadas as festas espalhadas pelos subúrbios e periferias da capital paulista.

Por meio de alguns dos personagens que construíram essa história, CULTURA!Brasileiros contará em dois capítulos – o primeiro deles um recorte entre os anos 1960 e 1970 – como surgiu e como foi disseminada a vertente brasileira do Black Power, movimento que marcou a luta dos negros norte-americanos por igualdade de direitos civis e reverberou em diversos países do mundo.

Capítulo 1 – Dos discotecários aos DJs
Em 1958, um Brasil moderno despontava com o surgimento da Bossa Nova, a construção de Brasília e a conquista, na Suécia, do primeiro de cinco títulos mundiais de futebol. Foi também naquele ano que Osvaldo Pereira, um técnico de rádio e TV, nascido em Muzambinho, em Minas Gerais, e radicado em São Paulo, fez história ao se tornar o primeiro DJ do País, ou melhor, o primeiro “discotecário”, como prefere ser chamado.

Em entrevista à CULTURA!Brasileiros, Seu Osvaldo, codinome artístico do veterano, de 82 anos, revelou que sua paixão pela música teve início na adolescência, em festas familiares onde sempre dava um jeito de tocar os discos de 78rpm que continham temas dançantes de artistas como Jacob do Bandolim, Luiz Gonzaga e Jorge Veiga.

Também aficionado por rádios e determinado a desvendar a magia por trás do aparelho, logo que chegou a São Paulo, Osvaldo soube de um curso ministrado à distância pela empresa norte-americana National e decidiu investir na formação de técnico de rádio e TV. O conhecimento adquirido com o curso abriu caminho para um emprego na loja Eletro Fluorescente Harpaco, situada na rua Guainases, no centro de São Paulo, onde passou a construir rádios portáteis e também a cuidar da sessão de discos, como vendedor e responsável pela renovação do estoque

Naquele fim de anos 1950, estavam em voga nos centros urbanos do País os grandes bailes conduzidos por big bands. Com a premissa de música ao vivo executada por grupos de dez a 15 músicos, custava caro produzir festas dessa natureza. Consequentemente, os ingressos eram restritivos, sobretudo para o público negro. Mas, a partir da profissionalização de Osvaldo como discotecário, surge na capital paulista uma alternativa de baixo custo.

“Em 1958, comecei a ganhar dinheiro tocando em domingueiras no Edifício Martinelli. Vendo que o público era crescente, o organizador do baile apostou que também podia lucrar fazendo festas que virassem a madrugada e alugou um imóvel no número 82 da avenida Rio Branco, onde passei a tocar aos sábados das 22h às 4h.”

Por sugestão de Francisco, um grande amigo do trabalho, que cursava Inglês, Osvaldo deu ao baile o enigmático nome de Orquestra Invisível Let’s Dance. Batismo justificado pelo fato de o discotecário, municiado do potente equipamento de som que construiu para as festas, tocar seus discos sempre por trás de uma cortina. Quando menos se esperava, o palco era descortinado e os casais descobriam que não havia orquestra, mas sim Osvaldo a manipular o toca discos que os fazia dançar ao som de big bands lideradas por artistas como Glenn Miller, Ray Conniff e Ray Charles.

O baile de música mecânica deu tão certo que logo surgiram seguidores de Osvaldo. Discotecários pioneiros na cena dos bailes black, como Amauri, Eduardo e o trio Os Carlos, começavam a organizar festas em outras regiões da capital paulista e, cada vez mais, atraíam um público majoritariamente negro.

As peculiaridades entre o discotecário e o DJ, Seu Osvaldo explica, tinham a ver não só com a técnica adotada por ambos, mas também com as nuances de comportamento do público. “Em 1962, eu fiz uma espécie de mixer (equipamento que mistura e faz a passagem das músicas tocadas pelos DJs) e meu patrão me emprestou um segundo toca-discos. Achei que a novidade seria um sucesso, mas fui reprovado, porque aquele intervalo entre a troca dos discos servia justamente para os rapazes continuarem de mãos dadas e de galanteio com as moças. Depois disso, nunca mais fiz bailes com dois toca-discos.”

A decisão de abandonar a vida de discotecário se tornou irremediável para Seu Osvaldo, em 1972. Com a morte de sua mulher, Carolina, ele teve de se desdobrar para trabalhar na linha de produção da fábrica de televisores da Philco e cuidar dos cinco filhos, quatro meninos e uma menina. Dos garotos, dois seguiram o exemplo do pai, o mais velho, Tadeu, de 56 anos, também um renomado discotecário, e o caçula, Luís Claudio, o DJ Dinho, de 43 anos.

Em 2003, Seu Osvaldo ganhou justo reconhecimento ao ser incluído na galeria de personagens perfilados no livro Todo DJ já Sambou, da jornalista Claudia Assef. Na festa de lançamento da primeira edição, o patrono dos DJs brasileiros foi convidado a voltar a tocar. Feliz com a retomada, ele permanece em atividade até hoje.

O ponto de encontro com os entrevistados que compõem essa reportagem foi o Boteco Pratododia, um pequeno clube de música sediado no número 34 da rua Barra Funda, na zona oeste de São Paulo, que é reduto de dezenas de DJs dos mais diferentes gêneros. O local não foi escolhido por acaso. Afinal, o estopim da matéria foi um bate-papo informal com outros dois veteranos, os DJs Claudio Costa e Lula Superflash (vulgo artístico de Márcio Pequeno), que realizam, no clube, um baile mensal chamado Pixaim. Durante uma edição recente da festa, ao ouvir boas histórias contadas pela dupla, este repórter e um dos sócios do Pratododia, Luis Felipe Freitas, também jornalista, chegaram à conclusão de que as trajetórias da dupla e de outros anônimos que construíram a história dos bailes black em São Paulo deveriam ser contadas, sobretudo por seu papel de exaltação à negritude.

O fenômeno foi mesmo significativo. No auge do movimento, festas como a Chic Show, criada por Luizão, outro ícone da era dos discotecários, chegavam a reunir mais de 15 mil pessoas. Empreendedor, Luizão trouxe ao País artistas como os grupos Zapp e Whodini e, o mais emblemático deles, James Brown, que veio a São Paulo, em 1978, e lotou o ginásio do Palmeiras, palco frequente dos maiores bailes da Chic Show.

Claudio estava lá e assegura: “Para resumir, foi sensacional, de tirar o fôlego. Imagine a gente, que não tinha acesso a grandes shows, víamos um Jorge Ben aqui, um Gilberto Gil ali, de repente estar frente a frente com ninguém menos que James Brown…”.

primeira apresentação de James Brown em São Paulo
Flyer – ou filipeta, como era mais comum dizer nos anos 1970 – da segunda apresentação de James Brown em São Paulo, façanha da equipe Chic Show, capitaneada pelo DJ Luizão. Foto: Reprodução / Arquivo pessoal

O efeito James Brown

Mas, se em 1978 o patrono do funk era unanimidade entre blacks da capital paulista, dez anos antes, os organizadores de bailes locais viam com desconfiança a ascensão do novo ídolo. Caso do advogado Sérgio Nogueira Teófilo, o Serjão, discotecário de primeira hora que começou a tocar profissionalmente em 1964.

“Como eu dançava muito, meus colegas ficavam enciumados porque as garotas só queriam fazer par comigo e acabei sendo mandado para os toca-discos. Mas tomei gosto pela coisa e onde havia uma festividade lá estava eu com meus discos. Na minha seleção entravam artistas como Gary McFarland, Trio Esperança, Milton Banana, Lenny Dale, Bossa Três, Elza Soares, Luiz Carlos Vinhas, Bert Kaempfert, Gal Costa, Jorge Ben, Trio Mocotó, Wilson Simonal, Som Três e Os Caçulas. Só parei de tocar por causa de um novo tipo de música que veio com um cara chamado James Brown. Depois de todos esses artistas maravilhosos que eu mencionei vem esse rapaz, gritando alucinado com um ritmo que, para mim, era sempre o mesmo. Parei”, diz Serjão.

Também presente na entrevista, Dinho explica: “Houve uma ruptura geracional. Não foi só o Serjão que não engoliu o soul e o funk. Foi praticamente toda a dinastia oriunda da Orquestra Invisível. Tanto é que esse tipo de som que eles tocavam só foi voltar a fazer sucesso nos bailes dos anos 1980, com a volta da equipe Os Carlos. Foi aí que o estilo ganhou o nome de nostalgia”, diz. Segundo Lula, as divisões dessa fase transitória eram perceptíveis não só nas escolhas das equipes de som que surgiram nos anos 1970, mas também nas preferências do público de cada região. “Na zona leste, nos bailes do salão Guilherme Giorgi, a equipe Zimbabwe só tocava funk e soul. Depois veio a equipe Zambezi, que fazia o mesmo estilo e não rolava nada de samba-rock. Quem voltou a tocar samba-rock foi a Chic Show, nas festas São Paulo Chic, o Clube da Cidade, na Barra Funda, e a Black Mad, na Vila Brasilândia.”

Boteco Pratododia, na foto, Cláudio Costa e Lula Superflash
Egressos dos bailes dos anos 1960 e 70, os DJs Cláudio Costa e Lula Superflash mantém em São Paulo o baile Pixaim, no Boteco Pratododia, onde foram retratados. Foto: Luiza Sigulem

Lula, que foi fundador das equipes WMS, Side One e Master One, e colaborador da Zimbabwe, da Black Mad e da Dinamite, conta agora sua história. “Ao contrário do Serjão, virei DJ porque não tinha a menor vocação para dançar. Aos 14 anos, deixei o emprego de office-boy para trabalhar na loja Fernando Discos, que ficava no Edifício Zarzur, na avenida Prestes Maia, no centro. Na história dos bailes black de São Paulo, todos batem palmas para o Fernando, porque ele foi o primeiro lojista a deixar a gente ouvir os discos. A gente gastava muito dinheiro comprando LPs, mas nem todos serviam para os bailes. Desde que entrei na loja, tive a sorte de ver todas as transições que eles estão contando: os discotecários, as equipes e os DJs. A única diversão que os afrodescendentes de São Paulo tinham era o futebol, o samba e o Carnaval. Os bailes abriram uma nova possibilidade de união.”

A questão racial

“No começo dos anos 1970, toda sexta-feira havia um corpo a corpo no Viaduto do Chá. A negrada se reunia para saber dos bailes que iam rolar no fim de semana e o viaduto ficava tomado de ponta a ponta”, diz Claudio. Ele, que completará 60 anos em julho, começou a tocar, em 1968, em festas familiares e bailes de garagem no bairro da Saúde, na zona sul de São Paulo. Nos anos 1980, foi DJ do Asa Branca, clube de Pinheiros, na zona oeste da cidade, fez muitos bailes da Chic Show e também trabalhou para a Rádio Bandeirantes FM, onde foi produtor e locutor dos programas New York ExpressSweet Love e Até Que Enfim é Sexta-Feira.

Marcados pela despretensão da dança, os encontros dos anos 1960 resultaram no sentimento de coesão que, na década seguinte, estimulou o enfrentamento do racismo, como atesta o relato de Serjão. “As reuniões para divulgar os bailes tiveram início na rua Direita, porque havia a divisão entre os de pele clara, que ficavam no Viaduto do Chá, e os de pele escura. Depois é que, na marra, a rapaziada passou a se reunir no viaduto.”

Lula aproveita o gancho para mapear a migração do movimento black pelas ruas do centro: “Os encontros começaram na rua Direita, passaram pelo Viaduto do Chá e foram para as galerias da rua 24 de Maio na segunda metade dos anos 1970, onde permaneceram até o começo dos anos 1980, quando a Polícia Militar começou a sentar a borracha na turma. Foi então que partimos para a praça Antonio Prado, no lado oposto do centro, e depois fomos para a estação de metrô São Bento, onde surgiu o hip-hop brasileiro. Como a estação tem mais de dez saídas, era ideal para fugir da PM. Se eles viessem por um lado, a gente fugia pelo outro. Até o Djavan tomou borrachada na rua Direita”, recorda Lula. “Também, negro e com aquele cabelo…”, provoca Serjão, que esclarece: “Naquela época, bastava juntar um grupo de pretos na rua para a polícia chegar. Os brancos tinham medo e não se misturavam com a gente. Não iam aos bailes, porque temiam ser roubados. O conceito deles era: naquele lugar só tem ladrão. Hoje a mistura é tanta que tem até japonês.”

O depoimento de Serjão converge com o comentário de outro veterano dos bailes black de São Paulo, o DJ Tony Hits, criador, em 1972, da equipe Verde Amarelo, na Vila Santa Catarina, na zona sul de São Paulo. “Nos anos 1970, você contava nos dedos as pessoas de pele clara que iam aos bailes. Hoje, o público é mais diverso e os lugares que tocamos também.” Além de uma loja de discos que leva seu nome, Tony comanda bailes ao lado de parceiros da velha guarda, como Charles Team, outra figura legendária dos bailes black, e Seu Osvaldo.

Naquele período de cisão entre brancos e negros, vestir-se bem e manter o cabelo impecável, explica Serjão, eram práticas decorrentes do preconceito racial: “O dever do negro era andar alinhado para não ser visto como maloqueiro, como bandido. Aliás, se você fosse mal-vestido ao baile, bastava olhar para a fila para desistir de entrar”, defende. “Era a maior onda. Todo mundo de cabelo black. Homens e mulheres alinhados. Os rapazes de paletó xadrez, camisa de seda, sapato brilhando, calça boca de sino”, relembra Claudio.

Nelson Triunfo, o primeiro b-boy brasileiro
Nelson Triunfo, considerado o primeiro b-boy brasileiro, é erguido pelo público que conferiu a primeira passagem de James Brown no Brasil, via Chic Show, no ginásio do Palmeiras. A capa vestida por Triunfo foi um presente do Mr. Dynamite, mas, como o dançarino relatou em “Nelson Triunfo – Do Sertão ao Hip-Hop”, biografia assinada pelo jornalista Gilberto Yoshinaga, o presente, pouco depoios, foi furtado em seu camarim. Foto: Pena Prearo / Reprodução do livro “Nelson Triunfo – Do Sertão ao Hip-Hop

Herança

De ouvidos atentos aos relatos dos seguidores de sua tradição, Seu Osvaldo retribui a reverência que sempre recebeu. “É tão difícil descrever a alegria que carrego comigo. Agradeço aos DJs de agora e tiro o chapéu para eles, porque são eles que continuam a fazer com que aquela sementinha que eu plantei em 1958 esteja viva.”

Parceiro de discotecagens do pai, Dinho comenta que o ofício do patriarca inspirou, além dele e do irmão, Tadeu, mais de 20 familiares que também são DJs, entre eles um personagem que marcou os anos 1980 e a consolidação do rap na década seguinte, Grandmaster Ney. Para Dinho, em um meio comumente afetado por vaidade, um dos valores mais importantes ensinados por Seu Osvaldo é a postura de humildade. “O DJ é uma espécie de médium. Lida com uma coisa meio espiritual, porque ele tem de captar a energia da pista e traduzi-la em música. Tive o privilégio de aprender com meu pai que é a música que tem de ter holofotes e não o DJ.”

Na próxima edição, o capítulo final desta reportagem. Em pauta: a transição para a cena hip-hop dos anos 1980, a redescoberta do samba-rock pela geração dos anos 2000 e as festas que mantém viva a tradição dos bailes black.

MAIS
Leia Segue o Baile, segundo capítulo desta reportagem
Veja depoimentos de Luizão, criador da equipe, sobre os bailes da Chic Show no Palmeiras

Como fica o home office após a reforma trabalhista

é necessário acompanhar as leis e como estão sendo modificadas
É necessário acompanhar as leis e como estão sendo modificadas

Como uma alternativa para cortar gastos e ao mesmo tempo flexibilizar o ambiente de trabalho, muitas empresas têm adotado e incentivado políticas de home office para seus funcionários. Agora, com a nova legislação trabalhista – que entra em vigor neste sábado (11/11) -, entre as dezenas de artigos que alteram o texto da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) há definições que formalizam e estruturam a disciplina do teletrabalho.

De acordo com levantamento da World at Work, de 2017, nos Estados Unidos, 89% das empresas norte-americanas já possuem políticas estruturadas para o home office. No Brasil, como a atividade não era regulamentada, muitas empresas não adotavam a prática por receios legais. Segundo estudo realizado pela SAP Consultoria, com a reforma, a previsão é que o teletrabalho cresça em torno de 15% ao ano.

Para muitos, trabalhar de casa oferece suas vantagens. Além de redução de custos com aluguel e estrutura para as empresas, funcionários encontram conforto em não ter que encarar, por exemplo, o trânsito de grandes cidades para chegar ao local de trabalho e, consequentemente, tendem a focar melhor em suas tarefas.

“A mensuração de resultados varia de caso a caso. Mas posso comentar um exemplo recente em um segmento nada tradicional em relação a flexibilidade: um órgão público aqui de São Paulo está utilizando as soluções Citrix desde abril deste ano”, afirma Luis Banhara, diretor geral da Citrix Brasil. A companhia de software desenvolve aplicações de virtualização da área de trabalho, incluindo aí aplicativos como o XenApp, XenDesktop e NetScaler. No projeto piloto, 30 dos 90 fiscais do órgão público receberam autorização para trabalhar de casa por até dois dias na semana. Segundo o coordenador do projeto, a produtividade da equipe aumentou de 15% a 40%.

Mas mesmo diante do potencial da adoção do home office, uma das grandes preocupações das companhias diz respeito ao controle de informações. Em um ambiente de trabalho à distância, como ter certeza de que dados sigilosos não ficarão vulneráveis a ciberataques ou ainda ao compartilhamento indevido dos mesmos? À sombra de mega ataques como o WannaCry, Petya e o mais recente Bad Rabitt, empresas têm visto a urgência de aumentar os investimentos em TI.

“Adotar o teletrabalho está intimamente ligado a uma decisão estratégica dentro da empresa. Porque você tem um conjunto de talentos e a questão é como melhor dispor esses talentos, como entregar as ferramentas corretas para que esse talento possa ser produtivo e para que ele possa também te ajudar nessa perspectiva da matriz de custos que a empresa quer ter”, argumenta Banhara. Para o executivo, a tecnologia, então, se apresenta como o grande viabilizador do home office. “Se o empregador utilizar as ferramentas certas, ele não perde o controle sobre as atividades que o funcionário desenvolve e garante a segurança dos dados da empresa”, pontua.

A Sobratt – Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividade tem acompanhado a discussão dos aspectos jurídicos da modalidade. “Toda novidade traz inseguranças até ser completamente entendida”, ressalta Wolnei Tadeu Ferreira, presidente da Sobratt.

Diante de muitas dúvidas e controvérsias a respeito do tema, a Sobratt e a Citrix se uniram para comentar e esclarecer alguns pontos, que vão desde infraestrutura e obrigações das empresas e funcionários quanto a preciosismos referentes à segurança da informação. Confira, no texto a seguir.

1. A empresa precisa fornecer infraestrutura para realizar o trabalho remoto?Depende. Ainda é um consenso que os custos efetivos pagos pelo trabalhador são os que não são mensuráveis de maneira direta, como água, luz, espaços utilizados da residência do próprio trabalhador. Já os gastos adicionais necessários à realização dos serviços devem ser bancados pela empresa.

“A minha leitura é que os custos efetivos pagos pelo trabalhador são os que não são mensuráveis de maneira direita, como água, luz, móveis utilizados da residência do próprio trabalhador. Já os gastos adicionais necessários à realização dos serviços devem ser bancados pela empresa”, afirma Wolnei Tadeu Ferreira.

2. A empresa não precisa controlar horários nem pagar horas extras?
Depende. O controle do trabalho será por tarefas e não por hora trabalhada então não haverá necessidade de pagamento de horas extras, salvo se o monitoramento da atividade for exigível.

“A lei reconhece que não há necessidade de controlar horário. O importante mesmo é acompanhar a produtividade dos colaboradores. Com mais flexibilidade, eles podem trabalhar a qualquer hora, sem se preocupar com trânsito, falta dos dados ou dos aplicativos empresariais”, afirma Ferreira

3. Funcionário em trabalho remoto não desligará nunca?
Não é verdade. Funcionário será mensurado pela sua produtividade e não pelas horas trabalhadas.

“Manter uma rotina de trabalho semelhante à do escritório ajuda na organização de quem está trabalhando à distância. Mas também é necessário usufruir de um hobby ou de atividades físicas para equilibrar a vida pessoal e profissional. Além disso, é essencial que a família do funcionário que está fazendo home office entenda que ele possui tarefas para entregar e uma jornada para cumprir nas dependências de casa”, comenta Banhara.

4. Legalmente, o empregado em trabalho remoto é responsável por vazamento de informações da empresa?
Sim. Ransonwares fizeram milhões de vítimas este ano por falha de atualização do Windows. As empresas passam a ser responsáveis pela atualização dos softwares em dispositivos pessoais dos usuários. A segurança da informação tem que controlar isso, mesmo no trabalho presencial.

5. A empresa fica mais vulnerável a vazamentos de informações com trabalhadores remotos?
Depende. Se não houver uma preocupação da empresa com os dados, pode haver vulnerabilidades. O segredo é não focar no dispositivo (porque o colaborador pode estar com software de segurança desatualizado ou o dispositivo pode ser roubado) e sim focar na segurança dos dados. Devem ser criadas políticas de acesso individualizadas, com várias ferramentas de controle de acesso e identificação.

6. A empresa que oferece opção de trabalho remoto possui melhores índices de retenção de talentos?
Sim. Segundo o Estudo Oxford, esta é uma das melhores formas de reter talentos com 83% das respostas.

“Os ‘novos’ trabalhadores estão cada vez mais exigentes e buscando equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Hoje, reter talento é uma das tarefas mais difíceis dos administradores”, afirma Banhara.

7. Tecnologias de mobilidade são viabilizadoras do trabalho remoto.
Sim. Elas endereçam as principais questões corporativas como controle de produtividade, segurança dos dados e flexibilidade para os colaboradores.

“Hospital das Clínicas de São Paulo conseguiu reduzir o tempo dos atendimentos ao público com a virtualização, mesmo com números expressivos: 124 mil consultas ambulatoriais e outros 60 mil atendimentos só na farmácia que fornece os medicamentos gratuitos à população, exemplifica Banhara.

8. O comparecimento às dependências do empregador para a realização de atividades especificas não descaracteriza o home office.
Verdade. A própria legislação (arts. 75-A a 75-E da Lei 13.467/2017) prevê esta situação, pois em muitos casos é necessário que o empregado compareça à empresa para reuniões, treinamentos, confraternização e outras atividades, o que não descaracteriza o teletrabalho.

“Apesar de trabalhar remoto, há momentos que o olho no olho é necessário. Cada empresa pode definir as regras para o trabalho remoto”, afirma Ferreira.

9. No home office, a empresa não possui a mesma responsabilidade no que diz respeito à Medicina e Segurança do Trabalho.
Não é verdade. A nova legislação passa a exigir que, nesses casos, o trabalhador seja ostensivamente orientado pela empresa quanto às normas de segurança, devendo fazê-lo conforme seja a atividade e o cargo a ser ocupado.

“Continua sendo responsabilidade da empresa zelar pela segurança do colaborador, ele trabalhando de casa ou no escritório”, comenta Ferreira.

10. Profissionais que optam por home office terão seus benefícios como vale alimentação e vale transporte reduzidos?
Mito. O vale transporte, devido nos deslocamento residência-empresa e vice-versa, continua sendo devido quando o empregado tiver que se deslocar para a empresa ou para alguma outra atividade a serviço. No caso do vale-alimentação, se isso for uma obrigação prevista em norma sindical, não poderá ser subtraída ou reduzida, salve se houver previsão na própria norma neste sentido. Do contrário, o benefício deve ser mantido. Caso o benefício seja espontâneo pela empresa, sua eliminação ou redução poderá trazer uma injusta diferenciação para quem trabalha em Home Office, sendo necessário que a empresa avalie bem se esta situação seria estratégica.

“Como outros pontos da nova lei, ainda há necessidade de um entendimento mais profundo destas questões e uma análise caso a caso”, finaliza Ferreira.

Som do Brasil: a embaixada da música brasileira em Nova York

O radialista Jassvan de Lima apresentando Tropicália
O radialista Jassvan de Lima apresentando "Tropicália", seu primeiro programa nos EUA. Foto: Arquivo pessoal

Radicado nos Estados Unidos desde 1976, o radialista Jassvan de Lima comanda há exatos 20 anos, desde setembro de 1997, o programa Som do Brasil da WKCR, emissora afiliada à Columbia University que ostenta a condição de ser uma das pioneiras nas transmissões mundiais em FM (acesse o site oficial do programa). Celeiro da radiodifusão que enaltece o legado da música clássica e do jazz, a rádio norte-americana que acolheu Jassvan é também reverente às tradições da música latina e brasileira.

De família nordestina, alagoense, com trânsito em São Paulo e Belo Horizonte, Jassvan, no entanto, foi catapultado do Brasil para Nova York via Governador Valadares, um dos mais notórios epicentros do fluxo migratório Brasil/EUA. A transição revelada por ele, no entanto, foge à regra do êxodo pragmaticamente de ascensão social que impregna o imaginário da cidade mineira.

No afã transgressor de uma juventude vivida em pleno turbilhão de 1968, Jassvan descobriu no pacato município mineiro, onde manteve com um amigo a loja de discos Blow-Up, aberta naquele ano, e um ponto de convergência entre o canto oprimido de um Geraldo Vandré e a poesia hedonista de um ícone do rock de desbunde norte-americano como Jim Morrison.

Quando tais conexões inusitadas fizeram sentido ainda maior para ele, com o entendimento da reverência dos norte-americanos pela exuberância de nossa música, Jassvan, devidamente estabelecido na pátria do líder do The Doors, conseguiu emplacar na WKCR, em 1998, ano de afirmação do interesse dos ouvintes pelo programa Som do Brasil, um especial com 13 horas de transmissão contínua em homenagem ao maestro Tom Jobim, como explica o radialista no encerramento da conversa a seguir.

Em uma matéria de 1999, li que seu primeiro programa de rádio nos Estados Unidos foi ao ar em 1971. Procede?

Não. Na verdade foi em 1976, quando tive meu primeiro programa, em Medford, Massachusetts, na WMFO 91,5 FM, uma free-form radio (rádio de formato livre, com produção comunitária) da Tufts University. A WMFO começou as transmissões em 1970, e ela é parte de uma cadeia criada em San Francisco, por meio de uma rádio que ainda existe, a Pacific Radio. A estação foi uma das criadoras desse formato, na época dos hippies, naquela onda do Grateful Dead. Quando a WMFO foi lançada só transmitia coisas feitas em San Francisco, depois é que os estudantes de universidades como a Tufts começaram a fazer programas originais em outros locais.

E como é que você recebeu o convite para colaborar com a rádio?

Meu começo na WMFO foi um negócio mágico. Meu compadre, César Augusto, estava escutando rádio em Boston e ouviu um cara falando o português de Portugal. Ele telefonou para o tal DJ, chamado José Moura, e disse: “Tenho um amigo que tem muitos discos de música brasileira. Ele foi DJ no Brasil e teve uma loja de discos”. José Moura disse que queria me conhecer e, dias depois, veio me visitar em casa. Quando mostrei minha coleção, ele disse: “Vou criar algo para você dentro da WMFO”. Ele fazia um programa para a comunidade portuguesa, que ainda é muito grande em Boston e em toda Massachusetts, e, passado um tempo, me convidou para conhecer a estação. No estúdio havia três turntables (toca-discos) e aparelhos para reproduzir fitas cassete. Naquela época, tudo era diferente e livre. Durante as transmissões, a gente tinha cerveja na mesa.

Neste mesmo dia da primeira visita ele te convidou para fazer o programa?

O telefone tocou no estúdio e ele disse: “O negócio é o seguinte, pegue esse disco e coloque aí pra tocar porque eu preciso sair agora. Tenho uma emergência em casa, me ajuda aí…”. Entrei no ar, coloquei o disco, chequei o canal 1, o canal 2, fiz uma apresentação em português – “vocês estão ouvindo a WMFO, 91,5 FM” – e coloquei o outro disco no ponto, para não deixar o negócio cair. De volta ao estúdio, José Moura trouxe também o diretor de programação da rádio e disse: “Você passou no teste!”. Ele curtiu uma comigo. Estava, na verdade, me testando. Comecei a trabalhar, primeiro, nesse programa da comunidade portuguesa fazendo 15 minutos de música brasileira e anunciando atividades para a comunidade em Boston. Começou assim, mas, dias depois, ele falou: “Bem, vamos abrir um espaço maior para você”. O sonho dele era também ter um programa de música brasileira. Ele era um professor refugiado, um intelectual de esquerda. Foi para Portugal fugindo da guerra em Angola e veio depois para os Estados Unidos, onde estudou na Tufts e em outras universidades. Foi nessa que consegui emplacar um programa de uma hora, que ia ao ar às sextas-feiras, das 19h às 20h. Como naquela época eu ainda estava loucão pela Tropicália, dei este nome ao programa na WMFO.

Você partiu de Governador Valadares, em Minas Gerais, para Boston. E, no Brasil, como se deu seu envolvimento com a música?

Vou contar um pouco antes de Valadares porque a história toda começa em São Paulo. No pós-guerra, minha família veio do Nordeste para São Paulo. Meus avós chegaram em 1946, de navio. Naquela época, havia os paus-de-arara (caminhões que cruzavam o nordeste rumo ao sudeste do País, apinhados de boias-frias e de famílias de retirantes), mas tinha também os navios pau-de-arara. A gente vinha de terceira classe. Minha mãe conta bem essa história: saíram de Maceió, passaram pela Bahia e demoraram um mês para chegar em Santos. Primeiro, vieram meus avós. Depois, vieram meu pai, minha mãe, meus tios – e fomos morar na Vila Palmeira, na Freguesia do Ó. Aos oito anos, fui para Belo Horizonte com meu pai, mas sempre passava as férias em São Paulo visitando meus tios e meu avô. Havia um primo meu do lado de minha mãe, chamado José Carlos, que era um tremendo pé-de-valsa. Eu era um ano mais novo do que ele, e então tive a sorte de, com ele, pegar São Paulo na época das big-bands e dos bailes de formatura. Com 16, 17 anos, eu ia muito à Casa de Portugal, ao Fasano. Ali, comecei a ver maestros como Simonetti (Enrico Simonetti, regente italiano que, radicado no Brasil, fez enorme sucesso), Élcio Alvarez, as grandes orquestras. Já estava alucinado com esse negócio de música, mas nunca tinha pensando em tocar – gostava de dançar, mas não era um pé de valsa como meu primo. Um tio meu, Zé, que era bem malandrão e conhecia a boemia do centro, também levava a gente para aqueles inferninhos da rua Major Sertório. Lembro de ter visto Airto Moreira e Flora Purim nessa época. Havia muitos grupos de bossa que tocavam nesses inferninhos. Tive essa sorte.

E como é que você foi parar em Valadares?

Meu pai, que era mecânico industrial, foi montar uma indústria em Valadares e acabei indo junto. Claro, não foi muito legal para mim, porque, em Belo Horizonte, eu tinha meus amigos, namoradinhas, a turma do colégio. Estudar não era muito a minha, mas eu já sabia discotecar. Eu tinha uma namorada que o pai dela era garçom de uma boate famosa, na época, chamada Estilingue. De vez em quando eu ia lá antes de abrir e conheci o disc-jóquei da casa que, naquela época, tocava em uma cabine com fita de rolo e um toca-discos. Ele tinha só um turntable e mixava com as fitas de rolo. Como ele tinha boas conexões, comprava muitos compactos de 45rpm importados, não sei porquê, ele foi com a minha cara e me deu um montão de discos. Nunca me esqueço: os dois primeiros que ganhei dele foram os compactos de Like a Rolling Stone, do Bob Dylan, e Sounds of Silence, da dupla Simon & Garfunkel. Quando cheguei em Valadares foi outra vez a música e os discos que me salvaram. Estava meio deprê, não conhecia ninguém. Quem me salvou foi a radiola. Meu pai tinha me dado uma, aquele caixotão da Standard & Electric, que tinha um daqueles turntables que você colocava uma sequência de dez discos e ia caindo um por um. Um dia, dei sorte. Andando em Valadares, num domingo à noite, ouvi uma bandinha de rock tocar. Entrei no local, pedi um hi-fi e fiquei sentado. Não tinha contato com ninguém, mas tive a coragem de falar com o guitarrista, que era o líder da banda, Jaider de Oliveira.

Credencial de imprensa de Jassvan na WMFO
Credencial de imprensa de Jassvan na WMFO. Foto: Arquivo pessoal

Como se chamava a banda?  

O nome do grupo era Os Escorpiões, na área do Vale do Rio Doce, a melhor banda da época. Comecei a me encontrar com ele para, juntos, procurar repertório para a banda e passei a trabalhar com eles. Meu velho tinha um Aero Willys e comecei a carregar os equipamentos, descarregar os instrumentos. Eduardo Araújo tinha doado para eles alguns amplificadores Mustang. A banda tinha cinco integrantes. Era bem banda cover, mas a gente viajava muito, e eu vendia vários shows deles. Nessa onda, comecei a descobrir que Valadares era a conexão com os Estados Unidos. A juventude se vestia naquela onda norte-americana. Daí, falei pro Jaider: “Meu sonho é fazer uma lojinha de discos”. E nada melhor do que ser jovem e encontrar o cara certo. Ele disse: “Vou falar com meu pai”. O pai dele e o tio tinham uma lojinha no centro da cidade chamada Caçadora, uma loja que vendia armas e equipamentos de pescaria, aquele lance bem de interior, vendiam tudo dessa transação de caça e pesca. Do lado da Caçadora tinha uma portinha de dois metros de frente e cinco de fundo, que dava para um beco. Cheia de bugigangas lá dentro… O pai dele cedeu o espaço para a gente. Limpamos tudo e começamos a aplicar nossas ideias malucas. A parede estava cheia de buracos, e o Jairo pegou cascas de arroz, de uma indústria de lá, e passamos cola na parede, uma cola pesada. Jogamos com as mãos as cascas do arroz. Aquilo deu um visual muito maluco. Envernizamos as paredes e ficou incrível. Criamos também umas caixinhas de discos, o espaço era muito pequeno, mas consegui levar minha radiola Standard & Electric. Puxamos uns fios e colocamos os alto falantes na porta da frente, com o som para a rua.

E como vocês faziam para abastecer o estoque da loja?

Íamos para São Paulo, na Praça Clovis, onde havia uma distribuidora da Beverly que vendia por atacado. Gente de todo o Brasil ia lá comprar discos. Eu saia de ônibus com o cash no bolso, garotão, descia naquela rodoviária toda colorida (o extinto Terminal Rodoviário da Luz), ia até a Praça Clovis, de manhã, e escolhia os discos. Já sabia mais ou menos o que devia comprar. Alguns eram venda certa, como os do Roberto Carlos, mas outros eu levava pela capa. A loja foi aberta logo depois do festival da canção que teve o Geraldo Vandré com Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores (O Festival Internacional da Canção de 1968; Vandré ficou em segundo lugar, suplantado por Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim). No dia em que o disco foi lançado eu estava na Beverly, a música estava tocando pra caramba e comprei as caixas que consegui do compacto duplo do Vandré, além de outros títulos, uns 200 discos, para poder começar o negócio. Assim que abrimos a loja colocamos nos alto falantes Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores. Por volta de 13h, com a saída dos colégios, a loja foi enchendo de jovens. Virou hit. Tinha uma arvorezinha na frente e, com a música, a rapaziada não saia dali. Foi assim que começou a Blow Up Discos. Coloquei esse nome por causa do filme do Antonioni, que, no Brasil, se chamou Depois Daquele Beijo.

Em 1968, Governador Valadares já tinha um grande fluxo de imigração para os Estados Unidos?   

Em Valadares descobri que toda a rapaziada que voltava dos Estados Unidos trazia sempre muitos discos importados. Então, a gente tinha na mão uma garimpagem que, mesmo em Belo Horizonte ou em São Paulo, poucos tinham contato. Com a loja, pude fazer muitas trocas. O cara que voltava para os Estados Unidos queria levar samba ou qualquer outra coisa nacional e deixava o que trazia. Discos do The Doors, Pearls Before Swine… Conhecemos muita coisa por causa desse intercâmbio. Era o governo do John Kennedy, a migração ainda era aberta. Desde os anos 1950, muita gente foi de Valadares para lá, mas o auge se deu nos anos 1960 e no final dos anos 1970.

E a música do Vandré não causou problemas para vocês com os militares?  

Sim. Não demorou muito para aparecer essa onda de a ditadura recolher discos. Como a gente estava tocando Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores e o som saia pra rua, pouco depois de abrirmos a Blow-Up chegaram PMs mandando parar o som. Tinham ido buscar os discos do Vandré. Naquela rebeldia de garotão, eu disse que não tinha mais nenhum, mas ainda havia alguns escondidos.

Também na matéria de 1999, li que você cursou Rádio e TV nos Estados Unidos. 

De 1976 a 1981, fiquei em Boston fazendo o programa Tropicália na WMFO. Cheguei em Nova York em 1982, e comecei a trabalhar como DJ, à noite, tocando em discotecas e em alguns restaurantes brasileiros. Me casei pela segunda vez, tive filhos e dei um tempo do rádio. Fiz trabalhos paralelos, como locutor, para a TV Manchete, mas nessa época que parei de fazer rádio voltei a discotecar, até que vi um anúncio em um jornal latino, El Diário, de uma escola de Rádio e TV, a Dimension Broadcast School. Ficava na Times Square, uma escola simples, sediada em dois andares, e o diretor e um dos professores, Carlos Martinez-Ardilla, um peruano, era um coroa que já tinha feito uma série de programas de rádio e televisão. Fez, inclusive, os primeiros telejornais da TV latina nos EUA, na Univision. Os cursos duravam dois anos, um ano de rádio; outro de TV. E era tudo em espanhol, mas, como eu já tinha morado em Barcelona, arranhava um portunhol legal. Carlos gostou muito de mim. Minha classe tinha uns 20 alunos de diferentes regiões da América do Sul e da América Central. Fiz o primeiro curso, de Rádio, e quando foi para fazer o de TV não tinha mais grana, mas Carlos falou: “Se você não tem grana, me ajude que damos um jeito”. Trabalhei na cantina, ajudei a pintar a escola, fazia limpeza e estudava à noite. Assim, conseguir concluir minha passagem pela Dimension Broadcast School e ganhei o diploma, que me abriu muitas portas, porque, por exemplo, foi aí que eu conheci o DJ Carlos Rosário, um “new-rican”, como são chamados os porto-riquenhos criados em Nova York. Carlos, um cara sabedor de toda a onda latina, aquele lance Fania All-Stars (Jassvan faz referências aos artistas da gravadora Fania), tornou-se meu amigo e fazia um programa na WKCR chamado Caribe Latino. Nessa época, havia também um programa brasileiro chamado Street Samba. Também tinha o sonho de fazer um programa de música brasileira na WKCR e tive a sorte de o Carlos me chamar para conhecer a rádio em uma época em que o Street Samba não funcionava mais. Foi outro lance mágico. O Carlos, que tem o programa até hoje, me apresentou ao German Santana, que era o produtor do Caribe Latino. Logo avancei com a ideia de fazer um programa de música brasileira. Em 1997, a rádio abriu uma grade de duas horas às quartas-feiras, de 23h a 1h, e o German pediu para eu escrever uma proposta de programa, além de conseguir um aluno para colaborar comigo. Eu soube, então, que havia um brasileiro, garotão, o Eduardo Delgado, que estava no Departamento de Esportes, e o convidei. A proposta passou, e foi nessa que, em setembro de 1997, começamos o Som do Brasil, título sugerido por Eduardo, que ficou comigo nos quatro anos seguintes.

Jassvan em ação, ainda no programa Tropicália
Jassvan em ação, ainda no programa “Tropicália”. Foto: Arquivo pessoal

A circulação de estagiários é a cada quatro anos?

Sim. De quatro em quatro anos mudamos os estagiários, e o Eduardo foi o cara que deu a maior força na criação do Som do Brasil. Gosta de música, sempre incluía alguma coisa de rock brasileiro dos anos 1980, mas, desde o começo, eu é que escolho a maior parte da playlist de cada programa.

Dias atrás você me enviou o arquivo de um antigo programa com participação do Eumir Deodato. Que outros artistas participaram das transmissões do Som do Brasil?

Tive a oportunidade de entrevistar muita gente importante da música brasileira, como o Eumir. A primeira entrevista que fiz no Som do Brasil foi com o Pery Ribeiro, já em 1997. Depois, no primeiro Tom Jobim Especial que fizemos, em 1998, a Pat Phillips, produtora que até hoje agencia música brasileira no Birdland, fez uma homenagem ao Tom no Carnegie Hall, em um show que teve a direção musical do Cesar Camargo Mariano com participações de Ivan Lins, Leila Pinheiro e Al Jarreau. A maioria dos artistas brasileiros que passam por Nova York a gente procura entrevistar, além dos que vivem tocando por aqui, como Milton Nascimento, Hermeto Pascoal, Flora Purim, Gal Costa, Emílio Santiago e Toninho Horta.

Você ainda assessora a carreira do Dom Salvador? 

Conheço o Salvador há mais de 30 anos. A gente se fala quase todo dia. Fiz muitas entrevistas com ele. Uma delas, inclusive, para o Jazz Profile, um tradicional programa do departamento de jazz da WKCR. Há alguns anos não trabalho mais como assessor dele. Quem está com ele é o meu parceiro de Som do Brasil, Augusto Ghiotto, um garoto de ouro. Ele é de Bauru, estudante da Columbia University. Começou a fazer o programa comigo quando estava no primeiro ano da universidade e agora já está fazendo PHD em Física; Augusto começou a produzir o programa quando fizemos uma homenagem aos 50 anos do primeiro LP do Rio 65 Trio no Carnegie Hall. É sempre uma grande honra trabalhar com o Salvador. O conheci quando o vi tocando em um show do Charlie Rouse, no Paul’s Mall, com o Portinho tocando bateria e o Guilherme Franco, que era percussionista do McCoy Tyner. Era final dos anos 1970, em Boston. Guilherme foi quem me apresentou ao Salvador e ao Portinho, nessa noite maravilhosa. O Salvador está trabalhando agora com uma nova manager no Brasil, a Margareth Reali, e brevemente vamos viajar para o Brasil, para fazer várias apresentações que ela está agenciando.

wkcr - Som do Brasil - jassvan e os pianistas
Em registro recente, já na WKCR e no “Som do Brasil”, Jassvan e os pianistas, compositores e arranjadores Dom Salvador e Sergio Mendes. Foto: Arquivo pessoal

O advento das rádios online mudou muito o comportamento do público da WKCR?

Não muito. A WKCR é bem tradicional por aqui, e a gente tem um site com muito conteúdo disponível para o mundo inteiro. Acho que a internet só aumentou nossa programação e audiência. Penso que o comportamento dos ouvintes não mudou porque a WKCR foi a primeira rádio a transmitir em FM no mundo. Temos ouvintes cativos. Muita gente que ouve clássicos e jazz. Milhões de ouvintes.

Você também criou um especial em homenagem ao Tom Jobim na data de seu aniversário, 25 de janeiro. Como surgiu a ideia?

A programação dedicada ao Tom Jobim foi criada no segundo ano do Som do Brasil. Jobim é a base de tudo. João Gilberto é o papa da Bossa Nova, mas Tom é o maestro de todos. Logo que ele faleceu pensei, “pô, tenho que fazer essa homenagem entrar na programação dos birthday broadcasting” (transmissões especiais da WKCR em homenagem aos grandes autores da música popular mundial). Nos aniversários, ou logo quando um grande músico de jazz falece, eles fazem programas especiais, toda a programação do dia é transferida para essa seleção. Consegui emplacar a proposta de fazer um dia em homenagem ao Jobim e ele já entrou na agenda anual da WKCR. Tom ainda desperta a maior admiração e afeto. Está presente na vida musical aqui de fora talvez mais do que no Brasil. Qualquer lugar em que você vai e está tocando bossa nova tudo fica diferente, tudo fica elegante e bonito. É incrível. Tom foi um cara iluminado.

Para finalizar, uma pergunta polêmica. Muitos consideram eventos como o Brazilian Day não representativos da qualidade musical do Brasil, por conta das atrações elencadas. Como você enxerga isso?   

Eu não participo do Brazilian Day, inclusive, já escrevi para o dono do jornal The Brazilians, para opinar sobre isso, mas parei. Toda a produção do Brazilian Day é feita pela Rede Globo. Então, eles encaixam artistas que devem ser deles (da gravadora Som Livre, da emissora) e direcionados para a audiência da Globo Internacional e dos imigrantes brasileiros que vem de comunidades como a de Boston, que sempre vem para cá no Brazilian Day, e a de Nova York. A única vez que fui ao evento fiz uma entrevista com o Carlinhos Brown e foi um papo ótimo. Depois, o vi tocando no Lincoln Center e foi um show magnífico. Achei interessante, muito bem feito, com um bom roteiro, uma transa legal.

As cascas de banana e o Estado Novo

Charge de J. Carlos reflete estratégia de Getúlio para afastar concorrentes – Foto- Reprodução
Charge de J. Carlos reflete estratégia de Getúlio para afastar concorrentes – Foto: Reprodução

A charge de J. Carlos do começo de 1937 é certeira. Nela, Getúlio Vargas espalha cascas de banana em torno do Palácio do Catete, a sede do governo. Na vida real, ele já armava ciladas para afastar do Catete potenciais candidatos à sua sucessão. No poder desde 1930 e impedido de concorrer nas eleições de 1938, Getúlio planejava perpetuar-se como “chefe da Nação”.

Deu o golpe há 80 anos, no dia 10 de novembro de 1937. Naquela quarta-feira, o Congresso amanheceu ocupado pela polícia. Depois de cerimônia sem pompa nem circunstância, entrou em vigor a Constituição que vinha sendo preparada em sigilo havia meses pelo ministro Francisco Campos. Inspirada em modelo semifascista polonês, ficou conhecida como “Polaca”.

À noite, Getúlio fez um Manifesto à Nação: anunciou em cadeia nacional de rádio que o Brasil vivia sob uma nova ordem política, o Estado Novo. Ele continuaria na posição de chefe inconteste do país, à frente de um regime de extrema direita nacionalista, inspirado na Alemanha nazista de Adolf Hitler; na Itália fascista de Benito Mussolini; na Espanha franquista de Francisco Franco; e no Portugal salazarista de António Salazar.

Mais tarde, ele citou o Manifesto à Nação em seu diário, quase como se fosse um ato rotineiro: “Depois dos cumprimentos da assistência e de palestrar um pouco, retirei-me com a família e as Casas Civil e Militar, indo jantar na embaixada argentina. O embaixador Cárcano seguia para Buenos Aires, e lhe havia prometido esse jantar de caráter íntimo”.

Na verdade, o golpe foi precedido por articulações que tumultuaram o cenário nacional. A principal delas envolveu a divulgação pelo Estado-Maior do Exército de um documento batizado como Plano Cohen, com “instruções da Internacional Comunista (Komintern) para a ação de seus agentes no Brasil”. Era o fantasma do comunismo no horizonte.

Com acentuada coloração antissemita, o Plano Cohen não passava de uma ficção. Tinha sido escrito pelo capitão do Exército Olímpio Mourão Filho, aquele que mais tarde, como general, daria início ao golpe civil-militar de 1964. Mesmo falso, o plano funcionou para assustar a população e apontar Getúlio como a saída para tirar o Brasil das garras dos comunistas.

Na memória popular, havia um trauma recente. Afinal, dois anos antes agentes da Internacional Comunista associados ao brasileiro Luiz Carlos Prestes, tentaram tomar o poder. Quando o Estado Novo foi decretado, Prestes e sua mulher, a ativista Olga Benário, estavam presos. Depois, Olga foi deportada grávida para a Alemanha nazista.

Para Olga, a deportação representou uma sentença de morte. Alemã de origem judia, comunista, ela acabou morta no campo de extermínio nazista de Bernburg. Para o Brasil, o Estado Novo representou um período de oito anos marcado por intensa centralização do poder e cruel repressão política. Ao mesmo tempo, aconteceram avanços, em especial na industrialização e na concessão de amplos direitos trabalhistas.

A charge de J. Carlos, na íntegra, sem recortes. Foto: Reprodução
A charge de J. Carlos, na íntegra, sem recortes. Foto: Reprodução

Com Mônica Nador, todo mundo é artista

monica nador
Mônica Nador fala à Arte!Brasileiros FOTO: Luiza Sigulem

Um retrato estilizado do subcomandante Marcos, o porta-voz do movimento zapatista no México, estampava um dos tecidos expostos na mostra Mônica Nador + JAMAC + Paço Comunidade, exibida em 2015 no Paço das Artes.

O semblante do líder revolucionário acompanha a artista Mônica Nador há quase uma década, sendo uma das imagens recorrentes que ela usa em paredes da periferia de São Paulo ou em algum outro suporte pelo mundo afora, como Japão, França ou Estados Unidos. “Quando cheguei ao Jardim Miriam, em 2003, percebi que a molecada cultuava o Che Guevara e resolvi atualizar o mito”, conta, em um tom entre o sério e o irônico, uma marca que sempre deixa dúvidas em suas sentenças.

O Jardim Miriam, um bairro periférico na Zona Sul paulistana, é o lar de Nador, ou Conca, como os mais próximos a chamam, desde 2003. Foi nesse ano que ela criou o JAMAC (Jardim Miriam Arte Clube) com um grupo que incluía outros artistas, como Lucia Koch, paisagistas e universitários além de moradores do bairro. De sua configuração inicial restam poucos, mas o JAMAC se tornou referência internacional em uma ação que mescla arte e ativismo social. “Eu não acho que a arte é tudo. Tudo são as pessoas e a gente vai contribuindo para a construção da escultura social como queria o Beuys”, diz, enfaticamente, a artista em um vídeo sobre seu trabalho no Paço.

Nesse trabalho recente, Nador de fato aponta para a possibilidade de transformação por meio da arte, como pregava o carismático Joseph Beuys (1921-1986). A mostra fez parte de um projeto maior desenvolvido no Paço das Artes, desde 2013, que anualmente convida artistas para trabalhar com moradores da favela Jardim São Remo, ao lado da USP, denominado Paço Comunidade. Em 2014, durante um semestre, Nador e outros membros do JAMAC realizaram oficinas com moradoras da comunidade, ensinando-as a criar estampas em tecidos. Esse material foi usado para que, com o apoio do designer têxtil Renato Imbroisi, cada participante desfilasse na abertura da mostra, no dia 25 de janeiro daquelea ano, usando a réplica de uma roupa com as novas estampas. “Eu peço para cada uma buscar colocar sua identidade nessas imagens, suas cargas emotivas e elas saem daqui pintando de pano de prato a parede de museu”, explica Nador.

Em locais geralmente abandonados de políticas públicas, a inserção no sistema de produção do JAMAC acaba sendo uma ferramenta de autoestima exemplar, portanto, de dignidade. “Você vê a transformação ocorrendo na pessoa”, afirma Nador.

Assim como a defesa de Beuys estava em tirar o artista de um campo específico, o sistema da arte, Nador abandonou os museus com o mesmo impulso. “Eu percebi que se gastava muita tinta dentro de museu enquanto tinha muita parede precisando de cor por aí”, costuma dizer. A inspiração para isso veio do mestrado com orientação de Regina Silveira, na USP, e a leitura de O Fim da Pintura, de Douglas Crimp, autor que ela recebeu no JAMAC, em encontro fechado, em abril de 2015.

Motivada por um debate acadêmico, ela busca novas formas de expressão até chegar nas Paredes Pinturas, por conta de um convite para trabalhar no Programa Universidade Solidária, em 1998, em Nilo Peçanha, na Bahia. Foi lá que ela se deu conta de que não deveria ser como uma “estrangeira” a pintar murais na cidade: “Realizei uma oficina de desenho e pedi aos participantes que representassem sua cultura local. Fizemos uma votação e pintamos máscaras e tambores em nossa parede”.

Dois anos depois, Nador criou, em São José dos Campos, sua cidade natal, a primeira experiência coletiva permanente, o Vila Rhodia Arte Clube. A experiência não foi para frente, mas a ideia de montar um projeto com caráter duradouro permaneceu e, três anos depois, surgiu o JAMAC, que levou a artista a viver de vez na periferia. “Eu achei que tinha de morar porque esse formato de ir e voltar não era confortável para mim, pois o importante era o contato com as pessoas”, explica.

No JAMAC, Nador continuou a ensinar aos moradores das casas que visita e frequenta como utilizar técnicas como o estêncil (máscaras de papel que permitem pintura seriada), tendo como motivos temas simples, de objetos de cozinha a animais ou plantas, em geral escolhidos pelos próprios moradores. Contudo, ela não é a única a conduzir esse processo. Em dez anos, ela estimulou a formação de vários membros do JAMAC. Moradora do Jardim Miriam, Daniela Vidueiros, por exemplo, foi quem coordenou os workshops no projeto do Paço das Artes. “Nesse trabalho, eu me vejo como diretora de arte”, diz, novamente, com uma ponta irônica.

Em 2015, o JAMAC realizou outros dois projetos no exterior: em Porto Rico, na Trienal Poligráfica de San Juan, e em Toulouse, na França, no Festival Rio Loco, para onde foram Daniela Vidueiros e Paulo Meira. A sobrevivência do grupo é sempre uma questão. Ponto de Cultura desde 2010, mas com verbas repassadas de forma irregular, os R$ 60 mil recebidos anualmente são muito pouco para a manutenção da sede. Se por um lado o caráter coletivo do trabalho é fundamental, por outro a figura catalisadora de Nador torna sua presença essencial, o que, naturalmente, provoca desgastes. “Aqui, todo mundo briga, vai embora, mas eu toco o apito e todo mundo volta”, afirma, de um jeito que até poderia ter sido dito pelo subcomandante Marcos.

Com isso, a mostra exibida no Paço das Artes, que apresentou tanto tecidos com estampas, produzidas no Jardim São Remos, como outros que acompanharam o JAMAC há anos, como a do subcomandante Marcos, foi apenas uma espécie de documentação de um processo muito mais amplo, que tem na configuração de conexões entre pessoas, em sua maior parte de lugares marginalizados, sua essência. Era exatamente isso, afinal que pregava Beuys: “Todo homem é um artista. Isso não significa, bem entendido, que todo homem é um pintor ou escultor. Não, eu falo aqui da dimensão estética do trabalho humano, e da qualidade moral que aí se encontra, aquela da dignidade do homem”.

Diferentes e diversos, agora somos assim

ARTISTAS Assucena Assucena e Raquel Virgínia da banda As Bahias e a Cozinha Mineira
ARTISTAS Assucena Assucena e Raquel Virgínia da banda As Bahias e a Cozinha Mineira

Esqueça tudo o que aprendeu sobre gênero masculino e feminino, identidade de gênero, sexualidade e comportamento. Se há algum tempo nascer com genitália feminina era suficiente para definir uma mulher por uma vida inteira, mesma condição aos nascidos em corpos masculinos, agora não é mais assim. Há mulheres que se identificam como homens, homens que se identificam como mulheres e ainda os que não se identificam com nada ou com tudo. Tem quem se submeta à cirurgia de readequação sexual, tem quem não. Tudo isso tem e não tem a ver com sexualidade. Entendeu?

Pois é, essas e outras formas de compreender a identidade de gênero e um jeito diferente de se apresentar ao mundo estão sendo pensados por algumas das cabeças mais brilhantes da atualidade. O debate já saiu das comunidades específicas e ganhou espaço nas universidades. Mas a questão não se resume apenas ao mundo intelectual. Famílias e escolas estão se confrontando com o assunto por causa da presença de crianças e adolescentes trans.

A transgeneridade é um termo abrangente. Engloba grupos diversificados de pessoas que têm em comum a não identificação com comportamentos ou papéis convencionais do sexo biológico determinado no nascimento. São as travestis, as drag queens, os cross dresser, os transexuais. Os dados sobre essa população não são oficiais e variam muito. Mas calcula-se que o mundo abrigue entre 3,5% e 10% de transgêneros. As pessoas não transgênero são agora denominadas cisgênero ou cis, prefixo do latim que significa algo como “do mesmo lado”. Podem ser hétero ou não, mas se identificam com o sexo de nascimento.
Mas, afinal, o que é gênero? Para alguns, uma construção social, uma imposição de comportamentos. Portanto, o trânsito entre um e outro é uma possibilidade legítima. Outros apostam na hipótese das distinções cerebrais existentes no organismo feminino e masculino para explicar o que leva uma pessoa a desejar um corpo oposto ao do nascimento.

O assunto é sério para a filosofia. A americana Judith Butler, uma das defensoras da chamada teoria Queer – palavra inglesa que identificava homossexuais na década de 1970 –, traz a ideia de pensar a questão exatamente a partir das pessoas que desconstroem a coerência entre anatomia, identidade, desejo e prática, ampliando o conceito de gênero. O espanhol Paul B. Preciado, também filósofo e ele mesmo um homem trans, partilha da teoria. Em Manifesto Contrassexual, considerada uma das obras mais importantes deste século sobre o assunto, ele defende a ruptura dos estereótipos homem, mulher, homo, hétero, natural, artificial. As propostas de Butler e Preciado evidentemente estão longe de ser um consenso. O universo da transexualidade ainda espanta, surpreende e, não raro, desperta preconceitos.

 

Leia mais sobre o assunto:

Um “eu” que fala mais alto

O direito à identidade

Gênero como organizador social

Crianças e jovens: como e quando intervir

Novo olhar para entender o feminino e o masculino

A família

A mulher transexual Assucena Assucena, 27 anos, não escapou do primeiro conflito: o familiar. Ela ainda se entristece quando conta as reações do pai ao perceber que algo de diferente acontecia com a filha. “Começamos dizendo que eu era gay, mas mesmo assim ele parou de falar comigo. Era como se eu fosse um pecado.”

Dados de abril divulgados pela Prefeitura de São Paulo explicam o impacto da perda do apoio familiar: até 8,9% da população em situação de rua da capital paulista pertence à comunidade LGBTT, sigla para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros.

Assucena ainda usava o nome Filipe e era uma figura bastante andrógina quando trocou Vitória da Conquista, na Bahia, pelo curso de História da Universidade de São Paulo. Lá conheceu Rafael, 27 anos, gay, negro, com longas tranças louras e um talento musical impressionante. A grande empatia entre ambos propiciou um daqueles encontros de alma, com discussões profundas sobre história, feminismo, gênero e família que se transformaram em canções. “Enquanto saíam as letras e as músicas, foram saindo também a Assucena e a Raquel Virgínia”, conta Assucena. Em pouco tempo, tinham um disco pronto e a certeza de que era o momento de se assumirem como mulheres transexuais. Em novembro do ano passado, elas lançaram o álbum Mulher, o primeiro da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, com colegas da universidade, uma das mais atraentes novidades do cenário musical paulistano. Uma boa agenda de shows por capitais do País anuncia o futuro da dupla.

Negra, nascida e criada no Grajaú, bairro da zona sul paulistana, Raquel é presença forte. “Sou de uma realidade que os colegas da USP não frequentam e costumo ser a única travesti nos lugares aonde vou. Sou tratada como alguém exótico. Raramente passo uma semana sem ser incomodada por uma questão racial e de gênero.”

Em abril, Raquel foi agredida por um rapaz em um bar na Vila Madalena, zona oeste de São Paulo. “Ele deu em cima de mim, a gente conversou, se beijou e acabou. Mas, 15 minutos depois, voltou e disse que eu devia ter avisado que sou ‘homem’. Como poderia avisá-lo de algo que não sou? E ele tinha conversado comigo, me visto. Na vida de uma travesti, nada é simples. Um beijo pode virar um caso de morte, entende? Se eu não fosse cada vez mais focada e determinada, enlouqueceria.”

Gabriela Bertoletto
Gabriela Bertoletto, transgênero, estudante de filosofia da Universidade de São Paulo

“A usp tem um núcleo forte de feministas transfóbicas. Por isso, eu só ia ao banheiro das mulheres com uma amiga. Hoje não me incomodo”

“A visibilidade é uma área conflituosa. Ainda que a convivência com a temática da identidade de gênero esteja mais comum, trans ainda são vítimas de violência e machismo. A estudante de Filosofia da USP Gabriela Perini Bortoletto, de 22 anos, às vezes se esconde. “Na faculdade é mais tranquilo porque as pessoas têm uma consciência política forte. Mas há momentos em que não me sinto confortável em me expor como mulher, principalmente na rua, à noite.”

 

“Eu me sinto completamente vulnerável. Os caras me incomodam, não me deixam dançar, conversar. Tem os T-lovers, homem cis com fetiche por trans. Querem saber se fiz ou não a cirurgia de readequação sexual. Não, não fiz. Meu gênero flutua muito, não sigo estereótipos.”

 

Mesmo dentro da USP, Gabriela evita certos eventos. Não se arrisca, por exemplo, a participar de uma festa na Poli.

O mundo não tem bom facolhimento com os transgêneros. Entre 2008 e 2014, foram assassinadas 1.612 pessoas trans em 62 países, inclusive no Brasil, de acordo com a ONU. Irã, Mauritânia, Sudão, Iêmen e regiões da Nigéria e Somália ainda hoje punem atos homossexuais com a morte.

Gabriela incomoda e sabe que incomoda. “Eu dou um nó na cabeça das pessoas. A minha existência é uma perturbação.” Ciente disso, ela frequentemente faz performances por São Paulo. Em uma delas, ocupou sem permissão o Museu de Arte Contemporânea, o MAC, e cruzou diversas vezes os espaços do museu, caminhando o mais lentamente possível. “Minha ideia era mostrar o que é um corpo de uma pessoa trans dentro de um museu, perturbando a ordem de modo não autorizado.”
No dia a dia, Gabriela enfrenta impasses, como usar o banheiro público. “Já me incomodei com isso, principalmente porque na USP tem um núcleo forte de feministas transfóbicas. Por um tempo, eu só ia ao banheiro das mulheres com uma amiga. Mas aprendi a não me incomodar.”

No Brasil, os banheiros atendem à divisão tradicional homem-mulher, e se isso aqui ainda passa despercebido, no mundo já é tema de disputa. Nos Estados Unidos, Barack Obama recentemente causou polêmica ao pedir banheiros compartilhados em escolas. A orientação é clara: os transgêneros podem usar banheiros que combinem com sua identidade de gênero, independentemente da anatomia. Os legisladores conservadores, claro, reagiram.

Força feminina

Assim como Assucena, Márcia Dailyn Oliveira da Silva, 38 anos, também se viu rejeitada pelo pai quando a adolescência fez aflorar sua identidade feminina. O clima ficou tão pesado que a mãe, Selma (ex-empregada doméstica que se tornou professora de aeróbica no final dos anos 1970), deu um basta no casamento. A família vivia em Jales, interior de São Paulo. “Devo muito à minha mãe. Nunca precisei me prostituir ou roubar. A coragem dela em ficar a meu lado me mostrou que eu poderia ser digna e respeitada.” Além do apoio inestimável, Márcia guarda o orgulho de ser a primeira mulher trans a se formar em balé clássico na tradicional Escola de Dança de São Paulo, da Fundação Theatro Municipal. “Havia professores que me chamavam de Márcio. Alguns coreógrafos me encorajavam a participar de um casting, mas na hora me desprezavam. Falavam que eu era feia e pobre. Mas fui até o fim.”

Ela pretende seguir em frente. Desde 2011, frequenta o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas, em São Paulo, onde recebe tratamento hormonal e faz psicoterapia, dois pré-requisitos para a realização da operação de mudança de sexo. É o corolário de um processo de transformação que teve início aos 13 anos, quando começou a tomar pílulas anticoncepcionais por recomendação de transexuais mais velhas. “Aguardo a cirurgia com outras 17 pessoas. Porém o Hospital das Clínicas faz uma por mês. Agora é esperar.”

Enquanto isso, leva a vida entre seu trabalho em uma farmácia de manipulação, na região central da cidade, e sua paixão pelo tablado, hoje circunscrita às aulas que ministra no Núcleo de Dança Nice Leite Ilara Lopes, a sua participação na companhia de dança Uirapuru e aos ensaios de um espetáculo com canções da cantora Maysa, sua musa. “O mundo da arte é instável, ainda mais para mim, e preciso sobreviver.”

Márcia Daylin, bailarina formada pela Escola de Dança de São Paulo Foto- Luiza Sigulem :Brasileiros
Márcia Daylin, bailarina formada pela Escola de Dança de São Paulo Foto: Luiza Sigulem /Brasileiros

 

“Devo muito à minha mãe. a coragem dela em ficar a meu lado me mostrou que eu poderia ser digna e respeitada”

 

Marcia tem sorte. A busca por um lugar no mercado de trabalho regido pela CLT, a cada dia menor, é outra dificuldade para os transgêneros. Para interferir nesse cenário, a Prefeitura de São Paulo lançou, em janeiro do ano passado, o programa Transcidadania, elogiado em todo o mundo. A iniciativa prioriza a educação, com aulas de cidadania e de formação geral, e um incentivo para concluir os ensinos fundamental e médio. Passado um ano, o programa conseguiu empregar nove transexuais em empresas parceiras, dobrou o número de vagas (de 100 para 200) e reajustou o valor da bolsa concedida por dois anos a quem se compromete a estudar, que agora é de R$ 910.

O orçamento da pasta será também 130% maior do que no ano anterior, atingindo R$ 8,8 milhões. “Implantamos essa política no País que mais assassina travestis e homossexuais no mundo. É uma política pública séria, uma opção corajosa e arriscada, que pode mudar a vida das pessoas, servindo de exemplo para outros municípios e estados”, diz Alessandro Melchior, coordenador de Políticas Públicas LGBTT. Recentemente, a cidade de João Pessoa, na Paraíba, lançou um programa com o mesmo nome e já existem iniciativas em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro.

O sexo-alvo

Até 1997, as cirurgias de readequação sexual eram proibidas no Brasil. Quem queria se submeter ao processo precisava recorrer a clínicas clandestinas ou a médicos em países como Espanha, Tailândia e Marrocos. Em 2008, o governo brasileiro oficializou apenas a cirurgia de redesignação sexual de homens para mulheres. Em seis anos, até 2014, foram feitos 243 procedimentos cirúrgicos desse tipo em quatro serviços habilitados no SUS.

Há três anos, a rede pública começou também a oferecer a cirurgia de mulher para homem, que é bem mais complexa. Para ambos os gêneros, a idade mínima para procedimentos ambulatoriais, que incluem acompanhamento multiprofissional e hormonioterapia, é 18 anos e para os cirúrgicos, 21 – nesse caso, é preciso ter o diagnóstico de transexualidade e um laudo psicológico/psiquiátrico favorável – um documento que é alvo de críticas e muitas discussões.

Léo Moreira Sá não revela a idade. Diz apenas ter mais de 50 anos. Parece menos. “Tenho meus truques.” No entanto, ele não esconde seu passado. “Eu fui a Lu, das Mercenárias, lembra?” De baterista de banda pós-punk a ator, lighting designer e jornalista ativista, Léo é dono de uma rica história de vida. Caçula de oito irmãos, mãe dona de casa e pai funcionário público, ele conta que percebeu sua identidade de gênero ainda criança, aos 7 anos, em São Simão, no interior de São Paulo, onde morava com a família.

Em 1980, Léo começou a cursar Ciências Sociais na USP e a frequentar o cenário musical paulistano. Foi na universidade que teve as primeiras informações teóricas sobre transexualidade. “Li os filósofos franceses, o que me deu o instrumental para lidar com todo o arsenal de emoções que eu sentia. Aquela sensação de não pertencimento. Foi um período de drogas e muita loucura”, ele conta. Em 1984, deixou a banda, apostou na abertura de uma boate em São Paulo, virou traficante e se casou, “no civil e tudo”, com a travesti Gabriela. “Nós éramos famosos, um casal diferente.” Em 2004, acabou a festa. Léo foi preso e passou cinco anos no regime fechado. Gabriela voou para a Europa.

De volta à liberdade, Léo já tinha barba e bigode graças aos hormônios que tomava. A mamoplastia masculinizadora (retirada das mamas), feita no SUS, aconteceu há três anos. “Foi a única operação que fiz, e me deixou mais feliz. Não quero mexer no resto. Não tenho nenhuma obsessão para ter pênis. Não vale a pena.”

Vencedor em 2011 do Prêmio Shell pela iluminação do espetáculo Cabaret Stravaganza, da Cia de Teatro Os Satyros, Léo está distante das drogas há 12 anos. “Só tomo testosterona.” Não mudou seu nome de batismo nos documentos e, quando se apresenta com eles, causa espanto. “As pessoas ficam em pânico, me olham daquele jeito, não acreditam porque veem aquele homem de barba, careca, e se perguntam: ‘Como assim?’. Mas é importante que essa pessoa veja um transexual porque, se ela olhar para mim e achar que sou cis, não vai aprender. E eu acho que as pessoas precisam entender que existimos, que somos normais e merecemos respeito.” Com certeza, nada será como antes.

Léo Moreira Sá, múltiplas atividades e vencedor e do prêmio Shell , Foto- Luiza Sigulem:
Léo Moreira Sá, múltiplas atividades e vencedor e do prêmio Shell , Foto: Luiza Sigulem/

“A mamoplastia masculinizadora foi a única operação que fiz, e me deixou mais feliz. não tenho nenhuma obsessão para ter pênis”