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De Canudos ao MST

Walnice Nogueira Galvão é uma intelectual como poucos. Seu entusiasmo é contagiante, assim como sua verve crítica, que não poupa ninguém “abaixo” de Proust e Homero, e o humor espirituoso. Discorre com imensa erudição sobre assuntos os mais diversos, de marchinhas de carnaval a reforma agrária – é colaboradora das escolas do MST, para as quais prepara livros de estudos literários. Mas é mesmo na obra de Guimarães Rosa e Euclides da Cunha que se debruça constantemente, sem perder o interesse, desde sua tese de doutorado na USP, As formas do falso – um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas, de 1970, e a de livre-docência, No calor da hora – a guerra de Canudos nos jornais, em 1972.

Publicaria vários livros sobre os dois autores, em meio a outros de crítica literária ou de pesquisa cultural. Entre eles, a reunião das reportagens feitas por Euclides em Canudos e também um volume com sua correspondência. E agora preparou a edição crítica do novo lançamento de Os Sertões (trabalho este que ela ensina chamar-se “ecdótica”, expressão da Grécia antiga). Na conversa a seguir, ela conta que ficou oito anos reunindo as milhares de correções feitas por Euclides, fala dos conflitos vividos pelo autor diante da tragédia em Canudos e afirma que, se estivesse vivo hoje, o vingador dos jagunços chacinados seria “líder do MST”.

CULTURA!Brasileiros – Reunir e comentar todas as correções feitas por Euclides nas primeiras edições de Os Sertões deve ter dado um trabalho des­­comunal. Como foi isso?
Walnice Nogueira Galvão – Olha, eu não tenho nada de monge medieval (risos), mas eles preparavam edições com anotações e variantes nos mosteiros; passavam a vida inteira fazendo isso. Um por um, à mão! Me agrada muito a ideia de pensar que o que eu fiz com esse livro se localiza nessa linhagem. Fiquei oito anos fazendo esse trabalho.

Que tipo de correções ele fazia?
Ao todo, em vida, ele faz dez mil correções. É um louco, né (risos)? São, sobretudo, correções miúdas. Ele não muda nenhum capítulo, nenhum parágrafo inteiro. Você percebe que ele não está nem um pouco interessado em corrigir informação (embora ele soubesse, depois, que havia ali uma ou outra informação errada); ele está corrigindo estilo. É um artista, não um historiador. Vou te dar um exemplo que parece maluquice: ele percebeu a certa altura que usava excessivamente o particípio passado, o que deixa o texto com muitas palavras terminando em “ado”. Então ficou obsessivamente transformando, rabiscando, cortando os finais em “ado”. Sabe por quê? Porque dava um defeito de estilo chamado eco, que a gente evita até quando fala. Você não diz: eu estou com a mão no coração para fazer uma declaração. É horrível. Outra correção que ele faz muito é de pontuação. Ele cortou umas mil vírgulas, mais ou menos. Implicou também com a palavra “estrada”, pois não tinha estrada nos sertões. Então a maioria das vezes que aparece “estrada” ele troca por um sinônimo: vereda, trilha, picada, caminho. Isso dá uma percepção dos mecanismos do processo criador do Euclides.

Muita gente prefere pular a primeira e segunda partes e ir direto para A Luta, que conta da guerra. O que você acha disso?
A Luta é muito bom, mas a primeira parte, A Terra, é a de que mais gosto, acho de uma beleza extraordinária. Aquilo é uma maravilha! É como se a natureza que ele descreve estivesse dentro dele. Ela não é nem descrita, é vivida com paixão! Ele é um artista visionário.

Como você vê a posição de Os Sertões na literatura nacional?
É estranhíssima, porque é um dos livros mais renegados que já vi e, no entanto, um dos mais influentes. Os modernistas odiavam o Euclides da Cunha. Ele era tudo aquilo contra o que eles pregavam. Essa retórica altissonante, essa demagogia, esses efeitos de estilo, essa escrita caudalosa. Eles queriam o coloquial, o simples, o direto; queriam rebaixar o discurso. No entanto, o que o Euclides fez nos Sertões vai servir ao chamado romance regionalista de 30: um mapeamento dos principais temas da literatura e do pensamento social brasileiro. Ele foi levantar lebres da miséria, do sertão, do jagunço, do cangaceiro, do sertanejo, do coronel, da reforma agrária, do latifúndio, da religiosidade popular, do fanatismo religioso, do subdesenvolvimento, do colonialismo, dos retirantes, da seca. Aí nos anos 1940, o que acontece? Nascem as ciências sociais brasileiras. Que estão até hoje lidando com esses mesmos temas. O Euclides da Cunha vira um precursor da sociologia, da antropologia, da ciência política, das ciências sociais em geral.

E a questão do racismo, tão apontada no livro?
Ah, sim, aí ele se atrapalha, tropeça e cai. Toda vez que ele enfrenta esse tema de frente, envereda por umas teorias estranhíssimas que estudou na Escola Militar, provavelmente a mais avançada em sua época no Brasil, em que predomina o determinismo, o cientificismo e o positivismo. Ele se arma dessa ciência europeia e não percebe que aquilo é uma taxonomia dos recursos do mundo inteiro para que os países imperialistas possam pilhar. E isso inclui as teorias sobre as raças inferiores, que só existe para justificar que o branco europeu pudesse dominar as riquezas das colônias e escravizar seus habitantes. Isso atrapalha o Euclides. Só que quando ele descreve aquilo que viveu na guerra de Canudos, essas teorias não servem. Não tem nenhuma teoria, dessas todas da ciência europeia, que explique para ele onde é que reside a bravura, a coragem e a dignidade que levam aquelas pessoas até a morte para não se entregarem. Não tem! Isso virou o mundo dele de cabeça para baixo, completamente.

O que você acredita que ele estaria fazendo hoje?
Estaria liderando o MST. Gostou (risos)? Que é a consequência lógica do que ele escreveu. O MST gosta muito dele. Eles têm um assentamento chamado Antonio Conselheiro e outro, em Mato Grosso, chamado Euclides da Cunha. Legal, né?

E o que você achou de A Guerra do Fim do Mundo, do Vargas Llosa, inspirado nos Sertões?
Eu tenho horror (risos)! Os Sertões expressa a consciência dilacerada do Euclides diante daquilo que ele viu. Aquele cara que tinha estudado a mais nova ciência europeia em todos os campos, chega lá e descobre que ela não serve para nada. Então ele se alinha, emocionalmente, ao adversário. Ele fica do lado dos jagunços, torce por eles. E fica horrorizado com o comportamento do exército dele. É um processo para ele extremamente doloroso, cheio de contradições, que ele não consegue resolver até o fim. Por isso que o livro é trágico do jeito que é. E o Vargas Llosa o que faz? Transforma o livro num best-seller. Ou seja, facilita tudo. Retira o conflito, retira as contradições, retira as antíteses, retira figuras de linguagem como o Hércules-Quasímodo e a Troia de Taipa. Fica tudo simples, fácil e bem explicado para o Vargas Llosa. Ele acabou com o livro. Ele devia ter uma tal inveja do Euclides da Cunha que faz uma coisa pior: cria um jornalista míope, que está fazendo a reportagem da guerra e que depois perde os óculos. É um insulto. Retratar o Euclides como um cara que não enxerga? Eu acho isso de uma baixeza que você não imagina.

E o que acha de outras obras que também partiram de Os Sertões?
A melhor de todas é Deus e o Diabo na Terra do Sol, do Glauber Rocha, que era outro gênio. Ele mistura Euclides da Cunha com Guimarães Rosa e o José Lins do Rego de Cangaceiros e Pedra Bonita. Transfere, em ficção, a dualidade entre a violência do cangaço e o fanatismo. Não botou o Antonio Conselheiro no filme. Mas vai nas profundezas do livro e pega o fundamento.

“Talvez a política mais honesta da América Latina foi impedida pelos políticos mais corruptos da América Latina”, diz Boaventura

O sociólogo Boaventura de Sousa Santos recebeu a reportagem para um chá em São Paulo. Foto: Maria Carolina Trevisan

*Por Maria Carolina Trevisan e Gustavo Aranda, dos Jornalistas Livres

Referência mundial no campo da ciência social, o premiado pensador Boaventura de Sousa Santos esteve no Brasil para lançar seu novo livro A difícil democracia (Boitempo Editorial). Em uma análise primorosa da situação política atual, Boaventura discute o que chama de “democracia de baixa intensidade”, reflete sobre as causas das crises que envolvem países da América Latina, Europa e África e, principalmente, alerta para a urgente necessidade de ‘reinventar as esquerdas’, subtítulo da obra. O sociólogo chama a atenção para as consequências políticas, econômicas e sociais depois de períodos em que o poder esteve com as esquerdas. Alerta para a ameaça fascista aberta sob a bandeira do combate à corrupção, que se impõe como proteção à democracia.

“A frustração pode plasmar-se numa opção política pelo fascismo, sobretudo se a frustração for vivida muito intensamente, se for acirrada pela mídia reacionária, se houver à mão bodes expiatórios, estrangeiros ou estratos sociais historicamente vítimas de racismo e sexismo”, escreve. Para ele, o crescimento de movimentos fascistas “é funcional aos governos de direita reacionária na medida em que lhe permite legitimar mais autoritarismo e mais cortes nos direitos sociais e econômicos, mais criminalização no protesto social em nome da defesa da democracia.”

Autor reconhecido e premiado no mundo todo, Boaventura escreve sobre sociologia do direito, sociologia política, epistemologia e estudos pós-coloniais, movimentos sociais, globalização, democracia participativa, reforma do Estado e direitos humanos, além de fazer trabalho de campo em Portugal, no Brasil, na Colômbia, em Moçambique, em Angola, em Cabo Verde, na Bolívia e no Equador. Entre seus livros mais importantes estão Um discurso sobre as ciências (1988), Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade (1994), Reinventar a democracia (1998), Democracia e participação: o caso do orçamento participativode Porto Alegre (2002), Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos (2013), A cor do tempo quando foge: uma história do presente – crônicas 1986-2013 (2014), O direito dos oprimidos (2014) e A justiça popular em Cabo Verde (2015).

Boaventura recebeu a reportagem para uma conversa sobre Brasil, colonialismo, esquerdas e democracia. “O capitalismo nunca atua sozinho. Ele atua com o colonialismo e atua com o patriarcado, isto é, com o racismo e com a violência contra as mulheres. Não é uma forma de dominação que seja capaz de conviver exclusivamente com o trabalho assalariado. Tem que desqualificar seres humanos, sejam os trabalhadores, sejam os jovens negros, as mulheres negras, as mulheres em geral, e portanto o colonialismo não acabou. Nós vivemos em sociedades coloniais com imaginários pós coloniais.”

Sobre o Brasil, Boaventura afirma: “O País estará em um impasse durante um tempo. O neoliberalismo é uma farsa e está sendo implementado aqui exatamente como farsa, até que as forças populares de esquerda se dêem conta que é possível uma alternativa política. Os partidos de esquerda, em nenhuma condição, se devem aliar a partidos de direita. A esquerda tem que se aliar com a esquerda. Se não é possível uma aliança com outros partidos de esquerda, mantenha-se na oposição até que essas condições sejam criadas. Não podemos governar na base de conciliação com grupos de direita que no momento oportuno nos largam, como aconteceu com o PMDB e com o PSDB, não sejamos ingênuos.”

Ele diz que a saída pode estar em um novo partido de esquerda, que esteja baseado mais nos movimentos sociais e menos nos interesses partidários. “O presidente Lula é um fator muito importante. Se ele voltar à presidência, não vai poder governar como governou. Se ele não voltar a ser presidente, o mito estará intacto. A aceitação que ele continua a ter é absolutamente notável e todos os cientistas políticos deveriam estudar no mundo. Lula foi uma parte muito importante do passado, vai ser uma parte importante do futuro. Mas é preciso que digamos publicamente que temos consciência para pressionar eventualmente um presidente Lula ou um candidato Lula a atenuar um pouco a ideia da conciliação e a unir-se mais ao movimento popular. Nós não vamos estar numa década de Lula paz e amor. Não há condições para isso.”

Leia, a seguir, a conversa completa com o sociólogo e professor português: 

Brasileiros – Em seu livro mais recente, “A difícil democracia”, tem a seguinte afirmação: “vivemos em sociedades politicamente democráticas mas socialmente fascistas”. O que o senhor quis dizer?

Boaventura de Sousa Santos – É uma frase que procura mostrar que as democracias realmente existentes são parcialmente falsas, são truncadas. Não têm nada a ver com o ideal democrático de soberania popular e de livre ação dos cidadãos, que se sentem espiados nos seus representantes e, portanto, entre representados e representantes a distância será mínima. Pelo contrário, as distâncias hoje são máximas em muitas sociedades ditas democráticas.

Por outro lado, a democracia é um ideal de livre ação e de soberania, que não tem que estar confinado ao sistema político. Acontece que a democracia liberal foi sempre desenhada para poder aplicar exclusivamente ao sistema político, e portanto não poder estender-se à família, às relações sociais, às empresas, às ruas, às comunidades, ao espaço público, às universidades, etc.

“A democracia é de fato uma ilha democrática no arquipélago do despotismo.Despotismos na família, na escola, na fábrica, na empresa, na rua, tanta violência, tanta forma de brutalidade no sistema mundial.”

Exatamente quando a democracia não atua, precisamente porque grande parte das relações sociais estão fora do controle democrático e são geridas por vontades até democráticas e mais frágeis nessas áreas sociais (seja na família, na empresa, na rua), são sujeitas a uma situação em que suas aspirações de vida estão reféns de um direito de veto do mais poderoso. Os grupos sociais que estão sujeitos a um direito de veto dos mais poderosos, como o jovem negro que vai na rua e é abordado pela polícia, pede-lhe uma identificação sem qualquer motivo, apenas pela sua cor de pele. Ele está a ser sujeito a uma forma de fascismo social. Por que é fascismo social? Não é fascismo político porque esse foi um sistema político que se opôs à democracia. Este convive com a democracia em todas as áreas onde a convivência das relações sociais não são democráticas. Infelizmente, grande parte das nossas sociedades e grande parte da nossa população, não vive relações sociais democráticas em que há um equilíbrio de poder. Vive por vezes em situações de poder despótico, ou seja, vivem situações de fascismo social. Essa coexistência é que está presente.

Então nos países em que há maior desigualdade a democracia é mais frágil e mais sujeita ao fascismo social?

Muito mais frágil. E pode ser um instrumento para aumentar essa fragilidade. Por que o neoliberalismo vem, desde os anos 1980, a tentar destruir os direitos sociais dos trabalhadores, tem vindo a tentar destruir o poder que o Estado tinha na distribuição social? Ao mesmo tempo se mostra muito adepto da democracia e a democracia hoje é de fato, numa das suas versões, característica do nosso tempo, a democracia é um instrumento de imperialismo. Destrói a Líbia para impor a democracia, destroi-se o Iraque para impor a democracia, destroi-se a Síria para impor a democracia, destroi-se o Afeganistão para impor a democracia.

“A democracia que eu chamo de ‘baixa intensidade’ transformou-se num instrumento do imperialismo. Não é essa a democracia pela qual lutamos e isso é exatamente a característica do nosso tempo: são diferentes conceitos de democracia que dividem os campos democráticos, digamos assim. Nós precisamos saber de que lado estamos.”

O campo democrático o qual me identifico, que é uma luta da radicalização da democracia, da ampliação do campo democrático, a ‘democracia de alta intensidade’ é que efetivamente luta contra as formas de fascismo social na nossa sociedade, portanto procura ampliar o campo de livre ação democrática, para que o arquipélago do despotismo seja mais pequeno, gradualmente mais pequeno, e idealmente não exista.

Trazendo para a nossa realidade no Brasil, fica cada vez mais evidente que quem manda na nossa democracia é o capital. Como o senhor vê essa situação?

É evidente que o capitalismo nunca atua sozinho. Ele atua com o colonialismo e com o patriarcado, isto é, com o racismo e com a violência contra as mulheres. O capitalismo não é uma forma de dominação que seja capaz de conviver exclusivamente com o trabalho assalariado, ele tem que desqualificar seres humanos, sejam os trabalhadores, sejam os jovens negros, as mulheres negras, as mulheres em geral, e portanto o colonialismo não acabou.

“É um dos pontos do meu trabalho hoje: ao contrário do que a gente pensa, nós vivemos em sociedades coloniais com imaginários pós-coloniais. O colonialismo não tem que ser apenas ocupação territorial estrangeira, como aconteceu historicamente. Pode assumir outras formas: colonialismo interno na forma de xenofobia, de racismo, de islãmofobia. O capitalismo no século XVI não tem nada a ver com o capitalismo do século XXI.”

Mas a gente continua a falar do capitalismo do século XVI e no capitalismo do século XXI. Eu faço o mesmo com o colonialismo: o histórico, de ocupação territorial, era uma forma. Temos que analisar as outras formas de colonialismo, porque há muita gente que vive na nossa sociedade sob o domínio das revoluções coloniais, a casa grande e a senzala. E portanto, isso em sociedades sobretudo que foram colonizadas historicamente, continua sob outras formas.

Aliás, nos anos 1960, sociólogos importantes deste País, como Dom Pablo Gonzáles Casanova, teorizaram a ideia do “colonialismo interno”. Criou-se as elites com a ideia do mito da democracia racial, através do olhar de intelectuais, alguns deles bastante importantes, como Gilberto Freire. Permitiu, durante muito tempo, a ideia do mito da democracia racial. Foi preciso chegar ao século XXI para o Brasil, muitas décadas depois da intendência, chegar à conclusão de que realmente é uma sociedade racista e que por isso era preciso haver cotas, por exemplo, para inclusão dos jovens na sociedade, porque não é nem toda a desigualdade no Brasil se justificava apenas pelas diferenças de classe, que obviamente são muito fortes. Houve aqui uma articulação entre raça e classe, e gênero, obviamente, porque as mulheres também compõem um grupo muito substancial dos mais pobres deste País.

É essa a constelação de dominações que domina as nossas sociedades. O que acontece é que essas dominações atuam em conjunto, os movimentos que lutam contra elas estão separados: as feministas podem lutar apenas contra o patriarcado, mas descuidam da luta anti-colonial, anti-capitalista; os movimentos quilombolas podem lutar contra o colonialismo na sociedade, mas descuidam da luta anti-capitalismo e anti-patriarcal, os próprios indígenas a mesma coisa.

“Os movimentos estão divididos e a dominação está unida. É essa situação que nós temos. Nós precisamos unir os movimentos. Quando o capitalismo se reforça, reforça-se também o colonialismo e o patriarcado.”

Por exemplo, ao olhar para o governo da presidente Dilma, tinha mulheres e tinha negros. No momento em que houve o golpe para forçar o capitalismo de origem neoliberal, desaparecem as mulheres e desaparecem os negros nos ministérios. E houve aquela coisa caricata do presidente dizendo que não tinha encontrado mulheres para os ministérios. Aquela coisa absurdamente caricata num País onde a maioria são mulheres.

Como foi possível que o processo de impeachment acontecesse daquela forma, tão desrespeitosa com a primeira mulher presidente do Brasil, eleita com 54,5 milhões de votos?
É difícil dizer porque é especulativo. Mas ela foi vítima de discriminação, sem dúvida nenhuma. Isso mostra também que os partidos progressistas e o movimento popular andaram 13 anos distraídos porque pensavam que a sociedade tinha sido profundamente transformada. As forças de esquerda tomaram o governo, mas não tomaram o poder social. E nem sequer cuidaram de democratizar a sociedade. No futuro, não haverá democratização do Estado se não houver democratização da sociedade, o que é uma tarefa muito mais ampla. Portanto, todas essas conquistas parece que se desfazem no ar, de um dia para o outro, e se viu que era tudo um certo verniz. Passado esse verniz, as empregadas domésticas tinham que ser servis, como tinham antes, estavam tendo demasiados direitos, já não dependiam tanto da filantropia.

“A classe no Brasil é sempre racista e é sempre patriarcal. Isso nos trouxe uma grande virulência e está se mostrando uma grande virulência neste momento.”

As esquerdas foram surpreendidas com essa fraqueza da democracia? Houve um descuido? Como se pode reorganizar as esquerdas? 

O que é a esquerda? Temos a esquerda organizada em uma pluralidade de partidos e temos a esquerda que são os movimentos sociais que lutam contra a opressão e as diferentes formas de dominação, e que estiveram ou não ligados a partidos, muitos deles em uma estrutura apartidária, digamos assim. É evidente que os partidos populares e os governos, como na Bolívia, no Equador, na Venezuela e aqui no Brasil, que saem da emergência de forte mobilização popular, criam uma ilusão nos movimentos sociais de que seus amigos tinham chegado ao poder. E, portanto, descansaram. Quando exatamente deveria ter sido o contrário porque no momento em que os amigos chegavam ao poder, sabiam que esses amigos iam ser sujeitos a múltiplas pressões para se distanciarem dos seus amigos, e portanto governar o País contra eles. Mesmo não crendo, era preciso continuar a haver uma pressão de baixo.

Isso é uma coisa que nós lutamos em todos os países. Os movimentos sociais do Equador e da Bolívia lutaram muito por uma Constituição e quando foi promulgada, descansaram. O primeiro dia de luta era esse: lutar para que a Constituição fosse cumprida. Não. Descansaram. No Brasil, os movimentos sociais de alguma maneira descansaram. Talvez o único que não descansou e continuou com uma atividade de intervenção foi o MST, um dos maiores movimentos sociais da América Latina e quiçá do mundo, e portanto continuou com um certo ativismo.

Muitos outros pensaram que, tendo amigos no Planalto, podiam descansar. Finalmente nós íamos ter uma sociedade um pouco mais inclusiva. Isso descuidou a retaguarda dos movimentos. No que diz respeito aos partidos, o partido protagônico, PT, é sempre a mesma ideia de tomar o governo ou tomar o poder.

“Realmente houve a ilusão de que num sistema político que não foi reformado se poderia governar à moda antiga para outros objetivos. Com as mesmas alianças, as mesmas formas, com a mesma ideologia que vem da segunda República, que é um pacto entre as elites, onde as classes populares não deveriam entrar para perturbar o jogo.”

Mas na verdade, como as sociedades não podem ser planeadas como uma linha de montagem, houve aqui uma perturbação e em 2003, um operário consegue chegar à Presidência da República. A partir daí, cria-se uma primeira fissura na própria hegemonia das classes dominantes: alguém que não pertence às elites, o primeiro movimento é tentar absorver. O que foi de certa maneira fácil, na medida em que, como eu digo, basta ver a “Carta aos brasileiro” do presidente Lula, dizendo que não iria alterar os compromissos internacionais, financeiros do País, um modelo de desenvolvimento que não era sustentável a longo prazo, era uma modelo de continuidade do colonialismo, que era o extrativismo e a extração de recursos naturais, tornado possível devido ao impulso de desenvolvimento da China, num contexto de altos preços das commodities. Era uma situação em que todos ganham. É mais fácil governar numa situação desse tipo.

A partir daí, os bancos nunca tiveram tantos lucros. O Brasil transformou mais de 50 milhões de pessoas através do Bolsa Família e das políticas de inclusão. Não se pode trivializar a ideia de que tantos milhões que não comem uma vez por dia passaram a comer 3 vezes por dia que isso não é uma revolução. Obviamente que é uma revolução, mas que foi feita com o mesmo modelo de desenvolvimento e com o mesmo sistema político que favorecia as elites e as classes dominantes.

No momento em que a solução do ganha-ganha entra em crise, o modelo entra em colapso, praticamente. Entra em colapso também por conta de situações internacionais, por exemplo o preço do petróleo, que de uma semana para outra passou a metade. Não foram os mercados, foi uma intenção do imperialismo norteamericano, no meu entender, que queria neutralizar a Rússia, que tem muito petróleo, neutralizar o Irã, que com o fim do embargo ia entrar no mercado internacional do petróleo e era preciso fazer baixar o preço, e a Venezuela. Era preciso neutralizar o Brasil, que estava tendo algum protagonismo internacional como um dos países emergentes. O erro foi um pouco esse: terminou a hegemonia da própria classe dominante. Ou seja, ela vai aguentar a sua hegemonia até a produção do golpe? O golpe é o ponto final da hegemonia da classe dominante? A partir desse momento ela esbroa-se. Exatamente o que estamos a ver.

Diante do quadro de combate à corrupção e do desgaste dos partidos políticos o Poder Judiciário ganhou força. Qual a sua opinião sobre esse quadro?

Como a corrupção é sistêmica, a hegemonia que permitiu a segunda República caiu completamente e as classes dominantes estão a comer-se umas às outras, com escândalos diários de escutas em que os periódicos que criaram o golpe e que promoveram o golpe estão neste momento a atacar os golpistas, digamos assim, como se realmente agora se repusesse a democracia pondo apenas os golpistas à vista. Nós já tínhamos visto que eram golpistas, não é? É uma crise de hegemonia na sociedade brasileira, que não pode, neste momento, ter nenhuma solução muito criativa. A solução criativa numa situação em que, por um lado, a classe dominante perdeu a hegemonia, nitidamente, está sem ter um norte para onde ir, metem-se na prisão uns aos outros, digamos assim, por outro lado, as classes populares não têm ainda uma capacidade organizada de resposta, foram apanhadas de surpresa, houve um grande choque, as medidas que estão aí em preparação não chegaram ainda ao bolso das pessoas, leva tempo para que esse empobrecimento, o sucateamento da educação, da saúde, atinjam a sociedade, leva um tempo até filtrar, até a base.

Houve um impasse entre uma classe dominante que tem uma crise de hegemonia muito forte, e as classes dominadas, as classes populares, que ainda não conseguiram se organizar como uma resposta.

“Temos aqui uma dualidade de impotências: a da classe dominante e a das classes populares. Dos três órgãos de soberania, todos eles um pouco deslegitimados, o único que não foi eleito – o Judiciário – assume uma posição de gerir esse impasse durante algum tempo. É natural. E pode geri-lo de várias formas: mantendo-se no campo do Judiciário, ou algum de seus membros passa a se firmar como líder político. Isso vai criar uma perturbação enorme nos movimentos populares e pelas Diretas Já.”

 

Está se construindo a ideia de que as reformas trabalhista e previdenciária são a única saída para salvar o País. Que consequências essa política neoliberal pode nos trazer?
As medidas que estão aqui sendo impostas são as medidas que foram impostas aos portugueses em 2011. É exatamente a mesma coisa: crise da previdência, das leis trabalhistas, privatizar a saúde e privatizar a educação. A receita neoliberal é global, com nuances de país para país. Na Europa, temos vindo a vivê-la, a própria Grécia, também sob alguma forma violenta, e Portugal em 2011, conseguiu livrar-se. O que mostra o seguinte: essa receita neoliberal é global, apresenta-se com uma total rigidez, isto é, ou se fazem essas reformas ou não há investimento externo, ou não há competitividade, ou o fim da recessão, e portanto o país não tem como avançar, tem mesmo que fazer essas reformas.

Podemos dizer que, se calhar, o fato de Temer ter caído em desgraça na Globo é parte da convicção de que ele não tem poder suficiente para levar a cabo as reformas. E provavelmente em um sistema de eleições indiretas ou de qualquer outra forma, alguém pode ter legitimidade suficiente – se for alguém do Judiciário provavelmente ainda mais legitimidade, porque não traz a mácula da corrupção, e isso vai ser muito importante: não é o movimento popular a lutar contra a corrupção, porque quem é candidato é quem lutou contra a corrupção. Isso altera completam tente o cenário. Mas o objetivo é aplicar essas medidas, obviamente.

E isso é que nós temos que ver que é uma grande farsa do neoliberalismo. Já está demonstrado que não é assim. Há um grande poder de convicção, por ter o oligopólio da mídia, que mostra e entra nessa forma de alienação das classes populares e quer convencer as classes populares que vivem acima de suas posses, que realmente a sua pensão, mesmo magra, está em perigo se não for privatizada, e é melhor que a gente liberalize o mercado de trabalho e precarize porque vamos aumentar empregos. É um pouco essa a lógica que está aí.

O que acontece é vermos que quando isso resiste, com êxito, mostra-se efetivamente que é uma farsa. O melhor exemplo é o caso português: entre 2011 e 2015 tivemos um governo reacionário, que aplicou essas medidas. Em final de 2015 há eleições, e os portugueses como sempre, desde 1974, votam à esquerda, mas quem governa é a direita. Porque a direita está unida e a esquerda está desunida.

Pela primeira vez em 40 anos, os três grandes partidos de esquerda decidem articular-se, não para se fundirem, de maneira nenhuma, mas com um acordo de governo que ponha travão à precarização das leis trabalhistas e à privatização da previdência, entre outras austeridades. Foi possível criar uma alternativa através de uma coisa muito corajosa, que é o Estado “geringonça” – palavra depreciativa criada pela direita e que está a funcionar.

Funciona há pelo menos 4 anos, os alemães já tem uma palavra correspondente a geringonça e os ingleses também. Ou seja, nós transformamos um nome negativo contra a esquerda em um nome positivo, e temos muito orgulho nessa geringonça. É um pacto de governo mas que teve este efeito. É que fizemos exatamente o oposto ao que diz a receita neoliberal. E os resultados que estamos a ter é exatamente o oposto ao que eles diziam: o país nunca teve tão pouco desemprego, estamos em 9%; é um dos países que mais cresce na Europa, estando acima dos 10%; o déficit público está a diminuir; a dívida pública se mantém porque é impossível diminuir de um ano para o outro, e o país está exatamente fazendo o contrário do que diz a receita neoliberal, e está a erguer-se de novo.

Ou seja, o neoliberalismo é uma farsa. O capitalismo só é rígido enquanto não tiver que se confrontar com uma alternativa. É mais fácil, para garantir a acumulação deles, produzir o empobrecimento das classes populares, precarização das leis trabalhistas, privatização da previdência – porque é um bolo de dinheiro enorme – que anda no sistema financeiro que é quem domina este País, obviamente. Eles querem essas vantagens, não os critique por isso. Nós temos a criticar é promover forças suficientes para resistir contra isso. No momento em que eles tem que se confrontar com uma alternativa política, adapta-se. Diziam que não haveria investimento direto em Portugal, está a aumentar o investimento direto, e é por isso que Portugal está a crescer.

O neoliberalismo é uma farsa e está sendo implementado aqui no Brasil exatamente como farsa, até que as forças populares de esquerda se dêem conta que é possível uma alternativa política eventualmente como a reforma política, porque esta, como vê, só é possível numa condição, que é a grande reforma política. Por isso, o Brasil estará em impasse durante um tempo.

“Os partidos de esquerda, em nenhuma condição se devem aliar a partidos de direita. A esquerda tem que se aliar com a esquerda. E portanto se não é possível uma aliança com outros partidos de esquerda, mantenha-se na oposição até que essas condições sejam criadas. Ir governar na base de conciliação com grupos de direita, com partidos de direita, que no momento oportuno nos largam, como aconteceu com o PMDB, com o PSDB, não sejamos ingênuos, podemos cometer o erro uma vez. Mas não vamos cometer o mesmo erro muitas vezes porque senão um político daqui disse que a esquerda é burra. É burra se continuar a cometer os mesmos erros.”

Alguns políticos costumam classificar o Partido dos Trabalhadores, e seus líderes, como “inimigos”. O que significa essa construção?
É realmente a perda da face dessa democracia fársica. Porque na democracia não há inimigos, há adversários. É a grande distinção. O inimigo é aquele que se quer destruir, o adversário é aquele com quem se tem que articular na oposição e tentar ganhar ou perder, mas tem uma posição contrária e que democraticamente pode ser elaborada, para ganhar ou perder. O inimigo é para destruir. A lógica do amigo-inimigo, do nazismo alemão, a ideia é que nos dividimos entre duas águas. Aliás todo o conservadorismo, o projeto que está em curso neste momento não é o liberalismo. É a que já não tolera a democracia, mesmo de baixa intensidade, passa a se tornar mais “fascizante”, digamos assim, por exemplo, começa a não ter confiança nem sequer na classe política, e quer que sejam os seus a governar – é o caso do Macri, do Trump, do Macron – são os homens de negócios que se transformam em políticos.

Eles vão perdendo a confiança porque no jogo democrático são muito impacientes. A direita aqui no Brasil, dada que a alteração no preço dos commodities estava a levar a uma crise no sistema, no seu segundo mandato, a presidente Dilma teve que tomar medidas anti-populares, e ter um ministro [Joaquim Levy] que era totalmente contrário a tudo aquilo que ela tinha proposto na campanha eleitoral. Então, era de prever que houvesse crise e que nas próximas eleições esta orientação política perdesse as eleições. Estavam impacientes. Nós nunca vimos em nenhum outro país, poucos meses depois de um presidente ganhar as eleições, estar-se a pedir o seu impeachment, sem prova nenhuma de crime de responsabilidade.

“É essa a grande novidade que o Brasil deu ao mundo. Infelizmente é uma novidade triste: talvez a política mais honesta da América Latina foi impedida pelos políticos mais corruptos da América Latina. Em plena democracia. Isso é que mostra a falência do sistema democrático.”

Qual a sua opinião sobre o atual movimento das Diretas Já?

As Diretas Já tem um impulso interessante que é repor a legitimidade democrática. É uma ideia de dar a palavra ao povo. É também a forma mais eficaz de travar essas leis porque ninguém que vá dizer numa campanha eleitoral que quando chegar ao poder vai aplicar aquelas leis é eleito. Provavelmente, depende de como os mídia vão funcionar, sobretudo num País que passa 4/5 horas por dia a ver televisão, penso que seria difícil que ocorressem.

A luta é exatamente entre aqueles que querem aplicar as medidas e aqueles que querem travar as medidas. O que se viu efetivamente é que não querem recuar de maneira nenhuma nas medidas, porque muitos acreditam genuinamente que é a única maneira de repor a sua rentabilidade. Mas há muitas outras medidas possíveis, bastava que o capital financeiro não fosse tão voraz como é no Brasil, que tem as taxas de juros mais elevadas do mundo. E que 7,9% do PIB é para pagar os juros da dívida, coisa que nenhum outro país no mundo faz.

Que tempo é esse da reinvenção das esquerdas, subtítulo do seu livro?
É muito difícil prever porque os sociólogos são bons para prever o passado, mas o futuro não somos muito bons. Evidente que com o bombardeamento midiático que se fez, dando sinal das medidas e da demonizarão da esquerda e do partido que foi protagonista durante este período, nós vamos precisar de um certo tempo, porque a pessoa na rua que não é militante começa a sentir no bolso o sucateamento do sistema de saúde, que já é fraco mas que vai ser muito mais fraco; o pagamento da educação dos seus filhos; a possibilidade de perder a casa e ser despejado; o salário que vai baixar; a distância entre a periferia e o centro, que o Haddad de alguma maneira tinha tentado encurtar vai aumentar; portanto vão começar a sentir isso, mas o sofrimento humano nunca é ativo politicamente.

“O sofrimento pelo sofrimento não vai lá. É preciso organizar-se politicamente, que as forças políticas, os movimentos sociais e os partidos possam captar a insatisfação que se vai gerar. Mas leva um pouco de tempo porque as pessoas ainda não viram as consequências. Há espaço para um partido novo de esquerda, de outro tipo.”

Quanto tempo? Depende de quanto tempo de doutrinação. A doutrinação tem muitos limites, ela não consegue doutrinar completamente porque os seres humanos vivem na História e fora da História. Ninguém esperaria que Portugal fosse criativo politicamente e agora foi criativo. Amanha pode ser o Brasil, pode ser outro país. O que é preciso é o poder de agregação das forças de esquerda – e não vai ser fácil. Vai ser difícil. O que aconteceu com Jeremy Corbin, que ninguém esperava, diferente dos jovens que criaram o Podemos, os jovens ingleses decidiram inscrever-se em massa no Partido Trabalhista. Foi o que o levou ao poder. Eles achavam que o partido tinha sido completamente descaracterizado por Tony Blair, tinha apoiado a guerra no Iraque e feito todas aquelas estripulias. Através de uma inscrição massiva, alteraram a política do partido.

No Brasil, eu corro o Brasil todo, o jovens não estão a sentir-se atraídos de maneira nenhuma pelo PT, alguns pelo PSOL, mas eu trabalho muito com rappers, são esses os jovens que eu vejo, que estão a fazer uma atividade política extraordinária neste País mas fora do movimento partidário. Isso vai durar algum tempo, não sabemos como vão se reorganizar, penso que há efetivamente espaço para um partido novo de esquerda, de outro tipo.

Qual a sua opinião sobre a presença do ex-presidente Lula na crise e no processo de saída da crise?
O ex-presidente Lula é tanto parte do problema como é parte da solução. Eu tenho respeito por ele, sou amigo dele. É um homem que sem dúvida é a figura mais notável da História do Brasil depois da Independência. É a quem o Brasil deve, para sempre, tem uma dívida absolutamente extraordinária. Mas é evidente que é um homem refém do seu passado, como também todos nós somos. É um homem que teve como ninguém mais tem, e como não teve a presidente Dilma, a capacidade de conciliar classes. É uma pessoa que realmente conseguiu fazer uma política de conciliação muito forte. Isso é um trabalho notável que ele realizou e que transformou o Brasil. O Brasil é hoje muito diferente de 2003. E o legado dele vai se dar até contra ele, mas foi devido a ele que hoje as pessoas pensam o que pensam no Brasil. A possibilidade de uma sociedade melhor.

O presidente Lula, evidente que neste momento, como não houve renovação nos partidos de esquerda, é o único nome da esquerda com alguma viabilidade para ganhar as eleições. Se a esquerda quer ganhar as eleições, tem que ser com o presidente Lula. É evidente que isso é importante para ganhar as eleições. Agora, com o presidente Lula não vai haver renovação do PT, não vai haver renovação política muito profunda. Porque essa renovação passa pela transformação do PT num partido-movimento, passa pela democracia participativa dentro do partido, como tem o Podemos, passa por uma articulação com o PSOL e com os movimentos sociais, que eu penso que neste momento, com a lógica de conciliação que o presidente Lula tem no seu imaginário, vai ser muito difícil de levar.

Estando Lula não vai ser possível criar outro partido político. E eu penso que a política brasileira tem espaço, eventualmente para um novo partido a partir dessa mobilização social ainda incipiente. O que é curioso é que aquilo que em Portugal foi possível unindo as esquerdas pela via partidária, no Brasil está a se fazer via movimentos sociais. Temos duas frentes: Brasil Popular e Povo Sem Medo. São duas articulações que falam uma com a outra, em que algumas organizações estão nas duas, portanto eu penso que essa articulação profunda está-se a dar.  Se amanhã vai se transformar ou ter uma voz partidária, depende muito do futuro.

O presidente Lula é um fator muito importante, evidente que a direita sabe exatamente isso que estou dizendo, há uma fração eventualmente da direita mais inteligente que até é capaz de pensar que talvez fosse bom que o presidente Lula voltasse à Presidência, para destruir de uma vez para sempre o mito Lula. Porque ele não vai poder governar como governou, não há uma reforma política que lhe permita governar de outra maneira, os preços das commodities são o que são e portanto destroi-se o mito de uma vez para sempre. Se ele não voltar a ser presidente, o mito está intacto. A aceitação que ele continua a ter, que é absolutamente notável, é que todos os cientistas políticos deveriam estudar no mundo, o homem mais demonizado pela imprensa continua a ter aceitação popular enorme. Foi uma parte muito importante do passado, vai ser uma parte importante do futuro, e essa parte de futuro tem um lado muito claro e outro menos claro. É preciso que digamos publicamente que temos consciência disso, para pressionar eventualmente um presidente Lula ou um candidato Lula a atenuar um pouco a ideia da conciliação e a unir-se mais ao movimento popular, que foi também a sua tradição. Só que ele não teve que tomar uma grande posição entre uns e outros, era amigo de todos, Lula paz e amor. Nós não vamos estar numa década de Lula paz e amor. Não há condições para isso.

Esse momento de crise profunda pode se transformar em oportunidade? 
É um momento interessante na sociedade brasileira, de renovação. A democracia se defende na rua, neste momento. A rua é o único espaço público que não é colonizado pelo mercado financeiro, portanto é um espaço importante de manifestações pacíficas. Vai ser problemático porque vai haver infiltrados e agentes provocadores para provocar violência, dizer que são todos violentos e suscitar a brutalidade policial.

A rua é muito boa para manifestar as aspirações políticas das classes populares e dos jovens, mas não pode formular política, ela não é capaz de formular política. Tudo isso vai levar o seu tempo. 

“O grande problema é que essa crise de hegemonia pode entrar em uma crise social muito forte. Que desagrega o tecido social.”

Mas o Brasil vai se reinventar. As crises, se não forem permanentes – e o neoliberalismo quer a crise permanente porque assim a crise se transforma ela própria em solução e destrói a oportunidade – e essa no Brasil não é porque é uma crise política, de hegemonia e econômica, cria oportunidades. Vamos ver como o campo popular se articula, pode reagir pela reposição das energias democráticas e por isso as Diretas Já é uma sinalização nesse sentido. O importante é bloquear as medidas. Esta é a luta em que o Brasil vai estar metido nos próximos tempos.

Assista a entrevista:

https://www.youtube.com/watch?v=RYAQZQCdOg8

Racismo: a máquina de matar e encarcerar negros

POLÍTICAS PÚBLICAS E RACISMO Usando brincos feitos de projéteis, Deborah Small fala para a Brasileiros na zona oeste de São Paulo - Foto: Luiza Sigulem/Brasileiros

O primeiro grande passo para enfrentar a segregação racial nos Estados Unidos foi dado por uma mulher negra. Em 1º dezembro de 1955, a costureira Rosa Parks se recusou a ceder seu lugar no ônibus para um branco. Há apenas 60 anos, a legislação de Montgomery, Alabama, nos Estados Unidos, obrigava os negros a dar preferência aos brancos no transporte público local. A prisão de Parks deflagrou um boicote aos ônibus, que durou um ano, até a revogação da lei. Sua atitude abriu caminho para o Movimento dos Direitos Civis, a favor da liberdade e da justiça, que teve Martin Luther King Jr. como um dos principais líderes.

A repressão racial se dá, ainda hoje, pela via da Justiça. É uma forma de institucionalizar o racismo. A máquina de encarcerar e matar negros é a chamada “guerra às drogas”. Uma das principais lideranças norte-americanas na luta pela reforma das políticas de drogas e no enfrentamento ao racismo é a ativista e advogada Deborah Peterson Small, 60 anos, graduada em Direito e Políticas Públicas pela Universidade de Harvard. Ela foi diretora para assuntos legais da New York Civil Liberties Union, dedicando-se aos direitos de pobres e presos e mais tarde dirigiu a área de políticas públicas e articulação comunitária na Drug Policy Alliance. Conheceu as entranhas do sistema que mantém presos 2,2 milhões de pessoas, a maior população carcerária do mundo, e compreendeu o mecanismo que transforma negros em suspeitos.

Com essa bagagem, Deborah fundou, há dez anos, a organização Break the Chains, que tem como missão sensibilizar lideranças e a comunidade negra para os efeitos perversos da guerra à drogas. No Brasil, a lógica é a mesma: o superencarceramento, com ajuda das políticas de drogas, mantém nas cadeias do País 515.482 pessoas. Dessas, 57% são negras e mais da metade é jovem (Infopen, 2014). Um quarto dos crimes se refere a entorpecentes. A polícia brasileira é também uma das mais letais do mundo. Segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as forças policiais mataram em 2015 o equivalente a oito pessoas por dia. A impunidade se repete no Brasil e nos Estados Unidos, onde 97% dos casos de violência policial não resultaram em condenação, de acordo com o site Mapping Police Violence, com dados de de 2015.

Brasileiros – Como a letalidade policial e a guerra às drogas contribuem para a violência contra a população negra?
Deborah Small – Em 2001, fui à África do Sul para a Conferência Mundial contra o Racismo, em Durban. Ali percebi as dimensões internacionais do problema. Vi que a guerra às drogas estava devastando pobres e negros, com altos níveis de letalidade policial. Também compreendi que as condições da população negra no mundo são muito similares: relações guiadas pelo racismo, pela colonização e exploração econômica. Em relação às políticas de drogas, temos enorme quantidade de dinheiro e de polícia focada em combater o tráfico de drogas, que é um “crime consensual”. As negociações sobre drogas são feitas por partes que concordam. Uma pessoa quer algo e a outra fornece. A finalidade dessa política é transformar essas partes em criminosas, permitindo que a polícia possa agir com violência até o ponto de matar.

O Brasil está passando, neste momento, por uma instabilidade política. Se o governo de Michel Temer se mantiver, o que a senhora acha que vai acontecer com as políticas afirmativas voltadas para a população negra?
Vão piorar. Isso está muito claro. O fato de Temer ter montado uma equipe ministerial sem negros e sem mulheres, ter feito cortes em muitos programas sociais iniciados no governo anterior, de a repressão policial estar aumentando e de o número de mortes estar crescendo, aponta para isso. Fiquei chocada ao saber que a letalidade policial é a segunda causa de morte no Brasil. Os números nos Estados Unidos não chegam nem perto do que está acontecendo aqui. Não se vê clamor da sociedade brasileira por isso (segundo o Fórum de Segurança Pública, a polícia matou, em 2014, 3.009 pessoas, o equivalente a um homicídio a cada três horas. A média de mortes causadas por policiais nos Estados Unidos, por ano, é de cerca de 360).

Por que as pessoas no Brasil não se sensibilizam com as mortes de jovens negros?
Em parte porque os próprios negros no Brasil foram obrigados a acreditar que os seus jovens são os inimigos, os traficantes e, por isso, mereceriam o que está acontecendo. O mais problemático não é a maneira como os não negros brasileiros se sentem acerca da letalidade policial contra os jovens negros. Mas como a população negra brasileira se sente em relação a isso. Há tantas comunidades negras que foram convencidas a pensar em seus próprios jovens como “o perigo”… Dessa forma, o único jeito que encontram para se proteger é deixando que a polícia entre nas comunidades e os mate. É o que está acontecendo. A polícia “pacificadora” é direcionada apenas às comunidades negras. Quem eles estão “pacificando”? Os jovens negros. Nessas comunidades, o fato de as pessoas se sentirem ok com isso é estranho para mim.

“O Brasil nunca será um País de primeira classe enquanto considerar natural tratar os negros como cidadãos de segunda classe”

Como abordar o racismo e a violência policial com as crianças negras?
O triste de viver num país racista é que suas crianças negras não chegam a ser elas mesmas por muito tempo. Meu neto agora tem 4 anos e meio. Ele não sabe que é negro. Ainda não sabe o que isso significa. Ele sabe que sua cor é marrom. Para ele, é só o que ele é, assim como outras crianças são de outras cores. A cor da pele, nesse momento da vida, não tem significado. Ele não vê limitações, não tem conversas sobre isso com outras crianças. O triste é que em algum momento, no futuro próximo, isso vai mudar. Ele vai perceber as coisas que eu percebi: que as pessoas reagem ao fato de ele ser negro e como isso aparece em diferentes espaços públicos. Assim que ele ficar um pouco mais velho, seu pai e eu teremos que falar com ele sobre violência. Terá de aprender que determinadas atitudes das pessoas serão tomadas pelo fato de acharem que ele é um ladrão. Terá que viver com a suposição de que, em qualquer lugar que ele for, suspeitas de crime e caos irão segui-lo. E que isso não tem nada a ver com quem ele é, ou como ele age, ou o que ele veste. As pessoas não prestarão atenção nesses detalhes.

Como isso se expressa?
Eu moro na Bay Area, Califórnia, um lugar supostamente liberal. Mas continuo assistindo a pessoas brancas segurarem firmes suas bolsas quando me cruzam na rua. É inconsciente. Elas nem notam que fazem isso porque vivem dentro de uma realidade na qual a negritude está ligada à criminalidade. Nessa situação, a população negra é involuntariamente responsável. Assim que vêem um negro, reagem automaticamente, entram em modo de autoproteção. Não importa como você aparenta, quantos anos tem. Porque essa é uma resposta programada. Isso é o que o racismo faz: você reage à simples presença de pessoas negras. Por exemplo, se eu vou a um caixa eletrônico e tem uma pessoa branca usando a máquina antes de mim, vou contar a distância que preciso manter dela para que não se sinta ameaçada por mim. Já percebi que os brancos não fazem isso. Nós, negros, passamos a vida, constantemente, fazendo esse tipo de calibragem.

Como é ser negro e viver em áreas de concentração de brancos no seu país?
É difícil. Você vai precisar se acostumar com o fato de que ser detido pela polícia é um componente da sua vida. Porque essa é a maneira com que a sociedade se estruturou. Isso tem menos a ver com crime e violência e mais a ver com o jeito com que nossos países lidam com a subjugação. É assim: não temos mais escravidão, mas continuamos tratando as pessoas como escravos, continuamos perseguindo, apreendendo, acorrentando, restringindo seus movimentos, explorando suas forças de trabalho.

A senhora sentiu isso no Brasil também?
Absolutamente. O tempo todo. Aqui no Brasil esse comportamento é ainda mais pronunciado. É um país que não está acostumado a ver negros frequentando espaços como hotéis e restaurantes, por exemplo. Te olham como se perguntassem: o que você está fazendo aqui? Acho curioso em certa medida. Porque é o oposto do que os brasileiros dizem de si mesmos. E é triste também. Com tudo isso que o Brasil está fazendo, com os Jogos Olímpicos, nunca será um país de primeira classe enquanto achar natural tratar os negros como cidadãos de segunda classe. Porque o mundo está cheio de pessoas negras. Eles não vão tolerar isso, não visitarão o Brasil e dirão a todos que não venham.

 “É uma forma de autogenocídio. Um grupo de negros matando outro grupo de negros. Porque se convenceram de que são inimigos”

É uma situação extremamente cruel…
É cruel mas está no espaço da negação. Funciona como a dependência: as pessoas cometem racismo porque têm necessidade. Provavelmente pensam que não é um bom comportamento, mas não têm a habilidade de não fazer porque toda a sua identidade está associada a esse comportamento.

Sobre identidade, nos Estados Unidos basta uma gota de sangue negro para que a pessoa seja considerada negra. No Brasil, a identidade se dá pela autodeclaração de cor. Como isso se reflete?
Nos Estados Unidos a distinção é entre negros e brancos. No Brasil é entre negros e não negros. Ou seja, as pessoas podem escolher quem elas são dentro do espectro negro. Querem ser pardas? Querem ser morenas? Você tem várias categorias. Todas relacionadas a ser negro. É um desafio porque não é necessariamente como você se percebe na sociedade. Eu vi muito isso em Salvador. Você vê muita gente que não se identifica como negra, mas é tratada como negra pela sociedade. Por isso considero o movimento de empoderamento negro na Bahia tão interessante. Se eu fosse governante, trabalharia para que essa energia chegasse à polícia, o que poderá acontecer um dia.

O que aconteceria se esse movimento chegasse à polícia?
O que vocês têm aqui é muito interessante: uma forma de autogenocídio. Um grupo de negros matando outro grupo de negros. Porque se convenceram de que são inimigos. São todos negros. A sociedade não dá a mínima para nenhum dos lados. Não se importa com os policiais negros que são mortos nem com os traficantes assassinados pela polícia. Pode ser que os policiais percebam isso eventualmente e comecem a se solidarizar, uma solidariedade racial. Seria um desenvolvimento incrível.

Como a guerra às drogas opera nesse contexto?
É uma cortina de fumaça. Eles sabem que não se trata de drogas. A polícia sabe melhor do que qualquer um que existem drogas em vários lugares onde a polícia não é enviada. Até que ponto o governo brasileiro e a sociedade esperam que os policiais continuem arriscando suas vidas e sendo mortos em nome de uma guerra que ninguém acredita que pode ganhar? Em algum momento, vão se dar conta de que estão sendo explorados também. As pessoas só reconhecem a violência quando acontece com elas. Se isso acontecer, a sociedade vai se tornar mais violenta. Mas a violência já está presente.

O policial que matou Michael Brown em Ferguson, Missouri, em 2014, não foi condenado. O que isso significa?
Acho que os brasileiros deveriam se preocupar (porque não reagem). O que levou à morte de Michael Brown foi uma série de acontecimentos: a polícia vem trabalhando nessa comunidade há anos. As pessoas têm sido constantemente abordadas e agredidas. Sempre o mesmo grupo de pessoas tem sido alvo da polícia. Quando o policial mandou que Michael Brown saísse da rua e ele disse “não”, foi um ato contra todo esse comportamento. Ele matou Brown e deixou seu corpo estendido na calçada por quatro horas, sem cobrir nem nada. Acaba de balear uma pessoa e não chama socorro médico. São sinais de falta de respeito. A população reagiu. É por isso que “Vidas Negras Importam” (referindo-se ao movimento Black Lives Matter, que surgiu em 2013 com a absolvição do policial que matou o adolescente negro Trayvon Martin). Os policiais que matam os negros continuam impunes.

Qual é o limite para esse sofrimento?
Nós temos uma alta tolerância para o sofrimento porque fomos condicionados. Mas não somos inquebráveis. Quando as pessoas chegam ao ponto de perceberem que o limite foi atingido, normalmente as coisas não acabam muito bem. Neste País (o Brasil), há muito sangue de jovens negros sendo derramado. O fato de provocar pouca comoção significa que você não se importa com essa juventude, nem com o bairro de onde ela vem, nem com sua comunidade. Não estamos dizendo que as vidas negras importam mais que outras vidas. Estamos falando que as vidas negras importam tanto quanto qualquer vida.

Qual é o papel das pessoas brancas no enfrentamento ao racismo?
Existe esse mito de que o racismo só machuca negros. Mas agride os brancos também, direta e indiretamente. O racismo dá um falso senso de quem são. Faz com que acreditem que são mais espertos do que são, mais poderosos do que são, que merecem mais do que merecem de fato. Não estou dizendo que não tenham essas características. Mas o elemento do racismo confere uma falsa percepção sobre si mesmo. Porque você está se comparando com gente com quem nunca teve que competir. Por exemplo, na universidade há sempre aquela conversa que muitos brancos têm com os estudantes negros de que “você deve se sentir sortuda por ter tido a oportunidade de estar aqui”. E eu sempre disse: “Não, não me sinto sortuda. Porque muitos de vocês não estariam aqui se seus pais tivessem de competir com os meus. Alguns de nós somos melhores. E vocês não teriam os privilégios que têm”. O que é difícil com o racismo é que essas pessoas não discutem as injustiças e privilégios que sempre tiveram. É por isso que vocês (no Brasil) brigam porque 10% de vagas foram destinadas aos negros nas universidades, mesmo a população negra sendo 50% dos brasileiros. Sério? Deveriam estar gratos em vez de contestar o acesso dos negros ao ensino superior. É tão absurdo. Esse é o problema do racismo. Parece que as cotas são um favor. E que os negros deveriam ser gratos. A obsessão dos brasileiros é tratar os negros como objetos de música e dança, mas não intelectualmente.

O presidente Barack Obama conseguiu mudar esse pensamento nos Estados Unidos?
Uma das coisas mais importantes que Obama fez foi ter destruído a ideia da inferioridade intelectual dos negros. Enfrentar o racismo é lutar contra privilégios, contra a noção de supremacia branca. Trata-se de entender do que você vai abrir mão para ter o mundo que deseja. Todos nós teremos que abrir mão de algo com o que nos importamos para ter um mundo melhor.

“O racismo leva à morte prematura. não se trata apenas de discriminação. nós morremos mais cedo”

Como a senhora vê o crescimento de Donald Trump e a possibilidade de suceder um presidente negro?
Vejo Trump como o equivalente político a um lap dancer (dançarinos de boate que recebem dinheiro ao se insinuar para a plateia). Naqueles minutos de dança, em que a plateia oferece dinheiro ao dançarino, ele faz com que as pessoas infelizes se sintam bem, nem mesmo importantes, mas se sintam bem sobre si mesmas. Mesmo que saibam que ele não está interessado nelas, vão continuar o exaltando para manter aquele sentimento bom, de que podem ser vencedoras, que podem ser poderosas, que o “mundo ficará em ordem”. Mas não é possível manter esse sentimento para sempre. A dança acaba. O dançarino troca de pessoa.

A senhora acha que Donald Trump tem chances de ganhar?
Ele tem uma grande chance de ganhar. Mas Obama tem mais popularidade do que Hillary ou Trump. Deveríamos parar com essa obsessão de proteger a classe média. Em pleno século XXI é como se houvesse só dois tipos de pessoas: as que trabalham por dinheiro e aquelas cujo dinheiro trabalha para elas. Se você trabalha por dinheiro, não importa se você ganha muito ou pouco, quando a sua fonte de rendimento acabar você estará arrasado. Se você tem dinheiro suficiente e o dinheiro trabalha para você, tudo na nossa sociedade e na economia está configurado para que você mantenha esse dinheiro, para que ele cresça e você continue tendo dinheiro. A grande maioria de nós pertence à parcela que trabalha por dinheiro. Mas a classe média não se enxerga dessa maneira, não se solidariza.

Qual a sua opinião sobre o programa de justiça criminal de Hillary Clinton? Ela trata da questão racial?
É engraçado. Por conta do Black Lives Matter e do Bernie Sanders, ela se saiu forte nessa área de justiça criminal. Mas ela tem uma questão: muito do que está errado neste momento sobre o sistema de justiça criminal está baseado em políticas promovidas por seu marido (Bill Clinton foi presidente dos Estados Unidos entre 1993 e 2001). Está sendo interessante vê-la falar sobre promoção de uma reforma na Justiça sem criticar o marido. Mas estou muito confiante de que, se for eleita, fará muito mais para mover essa agenda. Francamente, acho que ela poderá fazer mais do que o próprio Obama. De alguma maneira ela terá mais liberdade.

“Veja o que está acontecendo com a mulher branca que comandava o brasil. Se ela fosse um homem, ainda estaria na Presidência”

Por quê?
Porque Obama não poderia fazer políticas que beneficiassem especificamente a população negra. Ele seria acusado de favoritismo. O fato de presidentes brancos não fazerem nada para a população negra é perfeitamente aceitável. Mas, você sabe, não está certo ter um presidente negro comprometido em fazer algo para melhorar as vidas negras. Então, tudo o que ele fez teve que se caracterizar por impactar na sociedade como um todo. Ainda assim, a medida mais importante do governo Obama, que foi a reforma na Saúde, beneficia diretamente grande parte dos pobres e negros. É o que os brancos mais detestam e estão constantemente falando em acabar, o “Obama Care”. Essa é a realidade da política americana: parte da percepção sobre a razão de os brancos se identificarem como brancos é que suas vidas deveriam ser melhores do que as vidas negras. Então, quando ele propõe políticas para preencher esse buraco, isso é visto como uma perda, algo que estaria sendo tirado dos brancos.

As mulheres negras, pelo que já tiveram que lutar e suportar, são das pessoas mais fortes do mundo. No Brasil, são chefes de família e grandes lideranças intelectuais, como Sueli Carneiro e Luiza Bairros. Mas as mulheres negras continuam na base da pirâmide. Por que isso acontece?
O Brasil é um país misógino. Veja o que está acontecendo com a mulher branca que comandava o País. Se ela fosse um homem, ainda estaria na Presidência. O que está acontecendo com Dilma Rousseff é uma ação clássica de misoginia. Não estou dizendo que seja apenas misoginia, mas é uma grande parte. Este País não trata realmente de empoderar as mulheres, a não ser como objeto sexual e serviçal, o que acontece com todas as brasileiras, independentemente de cor. Quando se pensa na mulher brasileira, vem logo à cabeça a imagem de uma bunda na praia. Essa é a imagem que tem sido cultivada e promovida dentro e fora do País. Gera muita misoginia, que leva à violência contra a mulher e a práticas direcionadas a diminuir o poder da mulher. Se os negros estão na base da pirâmide, então, mais embaixo estão as mulheres negras. Mas eu diria que quem está bem abaixo são os indígenas, que continuam sendo exterminados e ninguém presta atenção a isso. Nem mesmo se fala sobre isso. Pelo menos se fala das pessoas negras. Os indígenas são totalmente invisíveis. É ridículo.

O movimento negro no Brasil é um dos mais importantes do País, um dos mais antigos. Mesmo com conquistas essenciais e sendo um movimento social tão potente, por que não avançamos mais?
Creio que as políticas conquistadas até agora não vão nem continuar. Porque o Temer vai se livrar delas. Tudo no Brasil que está comprometido com equidade racial ou social está ameaçado com esse governo. Vamos encarar: este País foi construído sobre a exploração das fontes físicas, materiais e humanas.

O que é o racismo para você?
O racismo é como uma morte prematura. Essa frase é da minha amiga Ruth Gilmore, professora de Geografia (docente do doutorado na City University of New York – CUNY). O racismo é uma série de práticas e políticas que um grupo de pessoas faz para impor a outro grupo de pessoas, e o resultado é a morte prematura. O racismo leva à morte prematura. Não é um exagero dizer que o que está acontecendo no Brasil é uma forma de genocídio. Não se trata apenas de discriminação. É como nos Estados Unidos. Todas essas práticas do racismo americano fazem com que os negros morram mais cedo. Nós morremos mais cedo.

O violão soberano de Rosinha de Valença

A violonista Rosinha de Valença. Foto: Reprodução / Youtube

Bem, amigos, chegamos hoje ao 30° álbum destacado em Quintessência. Na antevéspera do Dia Internacional da Mulher, cabe aqui a mea culpa deste humilde escriba: só agora me dei conta de que este espaço se tornou espécie de “Clube do Bolinha da Música Brasileira”, porque até o momento nenhum álbum destacado aqui havia sido dedicado a compositoras, instrumentistas ou intérpretes femininas.

Não pensem vocês, amigas leitoras, no entanto, que este pobre colunista vem sendo acometido por notória misoginia. Pelo contrário. Distinção de gêneros, com exceção catalogar dos desdobramentos das vertentes musicais, é algo que não existe em minha discoteca, em minhas pesquisas e tampouco em meu pensamento.

Vamos, então, aos possíveis álibis desse machista esquivamente confesso: no período tratado nesta coluna – entre 1960 e 1980 – patente é o fato que a produção masculina em nossa música popular, sintoma histórico, é volumétrica e predominante.

Exceto às grandes cantoras dos anos 1950 e 60 – Elizeth, Dalva, Claudette, Doris, Alaíde, Flora, Wanda, Leny, Nara, entre outras – trabalhos autorais assinados por mulheres, infelizmente, só começaram a ser mais valorizados, no Brasil, a partir dos anos 1970 – década marcada pela afirmação de super-intérpretes como Gal Costa e Maria Bethânia.

Outro porém contemporâneo, em pleno início da segunda década do século 21, os álbuns aqui dissecados dependem do pré-requisito de terem disponíveis online os arquivos virtuais, e eles são escassos, para que nossos leitores possam ouvir a íntegra e, assim, entender, de fato, do que estamos falando. Você mesmo poderá constatar, em uma busca rápida na internet associando nomes femininos de artistas brasileiros com o quesito “álbum completo”, ou “full álbum”, os resultados, infelizmente, são pífios.

Capa do LP lançado, em 1964, pela Elenco. Foto: Reprodução

Perante essa limitação, vamos então ao tema da coluna de hoje: o violão magistral de uma moça nascida, em 30 de julho de 1941, no interior fluminense, na mesma cidade de Valença que nos deu Clementina de Jesus, esse talento ímpar, que atendia pelo nome de batismo Maria Rosa Canellas.

Além do irmão Roberto, músico de um regional atuante em Valença, Maria Rosa era também sobrinha do violonista Fio da Mulata, músico dos mais requisitados na Época de Ouro do Rádio, que atuou ao lado de Araci de Almeida, Ademilde Fonseca e Lúcio Alves, entre outros.

Fio também dirigiu programas de calouros na Rádio Clube. Por influência de Roberto e do tio, seu primeiro professor, a menina Rosinha começou a estudar violão na infância.

Aos 12 anos de idade, já impressionava o público local, se apresentando em bailes e em participações de regionais. Em 1960, aos 19, abandonou de vez os estudos ao concluir que o caminho para a música era irreversível. Três anos mais tarde, no início de 1963, driblando a enorme timidez, Rosinha mudou-se para a capital fluminense em busca de maior projeção para sua carreira artística.

Na Cidade Maravilhosa, teve a sorte de cruzar o caminho do cronista Sergio Porto – o saudoso e genial Stanislaw Ponte Preta. E foi ele quem levou a prodigiosa moçoila para apresentá-la a Aloysio de Oliveira, o patrão da Elenco, e a outro ás das seis cordas, Baden Powell – que há pouco também havia arrebatado o público carioca, ao chegar da pacata Varre-Sai com um violão do tamanho do mundo.

Mergulhando no universo boêmio e masculino do Beco das Garrafas, Rosinha deu início a uma temporada de oito meses de shows, de enorme sucesso e consolidação de seu nome no circuito instrumental, no legendário Bottles. Teve também carta branca de Aloyiso para produzir, pela Elenco, seu álbum de estreia. Lançado em 1964, Apresentando Rosinha de Valença é um dos clássicos do selo carioca.

A bela capa foi produzida com a excelência da dupla Cesar Villela (arte gráfica) e Francisco Pereira (foto). Em meio a uma exuberante arte não creditada, mas ao que tudo indica é do ilustrador Fortuna, a contracapa traz texto de Sergio Porto, em que o cronista esclarece o porque do nome artístico dado por ele à violonista:

“Elogiar Rosinha eu não posso. Sou padrinho da moça. Quando ela chegou ao Rio, vinda de Valença, fui eu quem a levou, pela primeira vez, para se apresentar em público. O sucesso foi enorme. Escolhi nesse dia o seu nome, ‘Rosinha de Valença’, porque achei que ela toca por uma cidade inteira”.

Contracapa do LP. Foto: Reprodução

Para acompanhar a moça, às vésperas de arrebatar cidades de todo o mundo, Aloysio – como de praxe, produtor do biscoito fino – convocou um time de primeiríssima: o baterista Dom Um Romão, o baixista Sergio Barroso, o flautista Jorginho e o violonista e pianista Oscar Castro Neves, gentilmente cedido pela gravadora RGE.

Autor do tema Até Londres, no qual faz scats vocais com Rosinha, Castro Neves é também o arranjador do LP. O repertório inclui clássicos da nascente bossa nova, como Ela é Carioca, de Tom e Vinícius e Minha Saudade, de Donato e João Gilberto, da bossa paulista, o Tema do Boneco de Palha, de Vera Brasil e Sivan Castelo Neto, e um afro-samba que já nasceu clássico, Consolação, de Baden e Vinicius. Completam o LP Tristeza em Mim, de Mauro Tavares e José Guimarães, Praça 11, de Herivelto Martins e Grande Otelo, Atirei o Pau no Gato, o tema infantil, de domínio público, e Com Que Roupa, o clássico de Noel Rosa, interpretado na voz miúda e acanhada de Rosinha (a propósito, a timidez da moça com trejeitos de caipira, reza a lenda, inspirou Jorge Ben a compor a deliciosa Bicho do Mato, um dos destaques de Ben é Samba Bom, terceiro álbum do Babulina).

Ainda em 1964 Rosinha integrou no Paramount, o legendário teatro de Walter “Pica-Pau” Silva, o show O Fino da Bossa, megassucesso da TV Record, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues. A violonista colaborou também para artistas como Nara Leão, as baianas do Quarteto em Cy e Eliana Pittman.

Mas as fronteiras literalmente ficaram invisíveis para Rosinha a partir de 1965. Ocasião em que ela partiu em turnê para os Estados Unidos integrando o Brasil 65’ do pianista niteroiense Sergio Mendes, ao lado de Jorge Ben, Chico Batera, o baixista do Bossa Três, Tião Neto, e a cantora Wanda Sá.

No início da turnê americana, Jorge abandonaria o grupo, depois de sofrer preconceito em uma barbearia de Los Angeles ao ser ignorado pelo par de profissionais do salão, que ociosamente lia o jornal do dia quando ele chegou ao estabelecimento. Abrindo aspas, o episódio lamentável é narrado por Ruy Castro em Chega de Saudade e reproduzido a seguir.

“Jorge sentou-se despreocupadamente numa das cadeiras vazias, disse ‘barba e cabelo’ e ficou esperando. Só se tocou quando um dos barbeiros lhe disse, usando apenas um canto da boca ‘estamos ocupados’. Ben saiu dali e foi direto à Varig comprar a passagem de volta.”

A incursão americana de Rosinha ainda rendeu participação em outro belo álbum, Bud Shank & His Brazilian Friends, LP do saxofonista e flautista norte-americano, que conta com a participação do mestre João Donato, lançado pelo selo Pacific Jazz.

Mesmo sem a presença de Jorge Ben impulsionados com a releitura de duas canções de sua autoria, Mas Que Nada e Chove Chuva, Sergio e sua trupe conquistariam os EUA. Sob o codinome Brasil 65’, o grupo lançou dois álbuns, ambos com o violão de Rosinha reinando soberano e a cantora Wanda Sá como intérprete: Brasil’65 Wanda de Sah featuring Sergio Mendes Trio e In Person at El Matador!: Sergio Mendes & Brasil’65.

De volta ao Brasil, em 1967, Rosinha integrou o grupo de Maria Bethânia no espetáculo Comigo me Desavim. No ano seguinte, a convite do Itamaraty, a violonista fez uma turnê por países da Europa e da África e teve a oportunidade de tocar com estrelas como Stan Getz, Sarah Vaughan e Henri Mancini.

Nos anos 1970, Rosinha tornar-se-ia fiel escudeira do sambista Martinho da Vila. Em 1980, encerrando uma discografia de 11 grandes títulos, fez par com outro gigante do violão brasileiro, o maestro Waltel Branco. O encontro histórico ficou registrado no LP da Som Livre Violões em Dois Estilos: Rosinha de Valença e Waltel Branco.

Mas, dessas grandes injustiças da vida, a trajetória triunfal da maior violonista do País teve fim de forma lenta e trágica. Em 1992, após sofrer uma parada cardíaca, Rosinha teve uma paralisia cerebral que a colocou em estado vegetativo por 12 anos.

Em 1994, liderados por Maria Bethânia, com o objetivo de arrecadar fundos para as despesas do tratamento de Rosinha, uma série de artistas prestaram homenagens à ela, no Canecão.

A menina que tocava por uma cidade inteira e encantou o mundo partiu há exatos 10 anos, em 10 de junho de 2004. Ponto final para uma grande mulher e uma embaixadora das belezas indizíveis de nossa música popular ao redor do mundo.

Naquele mesmo ano foi lançado pela Biscoito Fino, em CD, o tributo Namorando a Rosa. A compilação reúne, entre outros, artistas como Bethânia, Miúcha, Caetano, Chico, Hermeto e Alcione.

Boas audições e até a próxima Quintessência!

*Originalmente publicado no site da revista Brasileiros em 6.3.2014, por Marcelo Pinheiro

MAIS

Veja Rosinha de Valença, Chico Batera, Rubens Bassini (tamborim), Sergio Barroso (contrabaixo) e J.T. Meirelles (flauta transversal) interpretar uma versão instrumental de ‘Consolação’ (Baden Powell / Vinicius de Moraes) no programa ‘Folklore Der Welt – Bossa Nova do Brasil’. na Alemanha, em 1966.

Uma entrevista histórica com Tim Maia

"Os cientistas, esses arqueólogos, esse pessoal aí, acham que nós já passamos por uma era glacial. Outros dizem que passamos por… Eu acredito que nós já passamos por umas quatro ou mais, devido ao tempo que o mundo tem", afirmou Tim.

De uma longa entrevista, só um trecho muito pequeno havia sido publicado. Durante a conversa, em 1995, o cantor não poupou ninguém. Tudo que não entrou, foi publicado 14 anos mais tarde na Revista Brasileiros. Hoje, páginaB! resgata uma entrevista histórica de Tim Maia.

*Por Márcio Gaspar

Era o início do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso como presidente. O Plano Real completava um ano, com governo e população comemorando a queda da inflação − de 40% para os então quase inacreditáveis 2% ao mês; o real em paridade com o dólar e a consequente farra da classe média no exterior. Era 1995 e a música brasileira chorava a recente perda de Tom Jobim (em dezembro de 1994), enquanto os Mamonas Assassinas dominavam o rádio e a TV. Em um apart-hotel dos Jardins, em São Paulo, Tim Maia recebia os jornalistas Marcio Gaspar e Lauro Lisboa Garcia para uma entrevista cujo mote era o lançamento do disco Nova Era Glacial. Lauro, repórter do “Caderno 2″ de O Estado de S. Paulo, que publicaria poucos dias depois alguns trechos da conversa; e Marcio, da Qualis, efêmera revista especializada em música, que fecharia suas portas antes da publicação da entrevista.

A maior parte da memorável conversa com Tim Maia, que morreria três anos depois (em 15 de março de 1998, aos 56 anos), permanecia inédita até agora. É possível ouvir trechos da entrevista no blog www.afroencias.com.br. Os jornalistas encontraram um Tim Maia surpreendentemente bem disposto às 9 horas daquela manhã. E como era de seu feitio, o cantor não mediu as palavras. Além do imenso talento musical, a autenticidade de Tim Maia era outra de suas melhores qualidades.

Marcio Gaspar – Que história é essa de acordar tão cedo? Nova fase, bem mais saudável?
Tim Maia –
 Não, sempre acordei cedo. Mas agora, tô acordando cedo mesmo porque… eu acho que isso é negócio de velhice, sabia? Que nem galo. Galo velho empoleira cedo, né? E acorda mais cedo. Acho que é isso, deve ser a idade. Eu sempre acordei cedo… às vezes, nem dormia (risos).
M.G. – Você costuma ouvir seus discos antigos?
T.M. – 
Tô ouvindo agora… É o maior barato, sabia? Como sou um cara que sempre grava músicas falando de algo que aconteceu, aí dá pra lembrar. Lembrar das “cumadizinhas”, dos momentos legais e dos momentos tristes também.

M.G. – Entre esses discos, qual você acha o mais legal?
T.M. –
 O cantado em inglês (Tim Maia, 1978) é o que eu gosto mais.

Lauro Lisboa Garcia – Nesse novo disco, você gravou “Corcovado” e “Meditação” em inglês, e já tinha gravado as duas em português. Por que gravar em inglês?
T.M. – 
Foi uma homenagem ao Antonio Carlos Jobim. Essa versão que está saindo aí tem cinco anos. A voz em português, gravei em cima da voz que havia colocado em inglês. É essa aí, no Tim Maia Bossa Nova. Eu tenho isso em CD também, mas lancei pela Vitória Régia (selo do próprio Tim). Foi o único disco que não dei pra Continental. Aquilo ali é minha aposentadoria, entendeu?

L.L.G. – Vendeu bem esse disco?
T.M. – 
Vendeu. Eu sempre digo que vendeu menos, que nem as gravadoras falam pra não pagar direitos autorais. Eu também digo que vendeu menos. E não tem jeito de provar, né? Nem eles.

M.G. – Quantos discos você calcula que já vendeu até hoje?
T.M. –
 Acho que bem menos que Chitãozinho e Xororó, viu? O Roberto (Carlos) também vende mais. Mas, mais ou menos que nem Jorge Ben, Fábio Jr., a gente vende assim, igual, na mesma base. Cem mil discos, cada disco. Ainda bem.

M.G. – Aquela fase da BMG vendeu pra caramba, né?
T.M. – 
Não. Vendeu mais ou menos porque a BMG é que nem aquele produto, Denorex (xampu anticaspa): “É, mas não é”. A BMG faz mais disco pra outras pessoas. Aquela fábrica de discos que fabrica para outros, já não é mais aquela coisa do idealismo… Quer dizer, idealismo artístico nenhuma delas tem mais.

L.L.G. – Tim, como ficaram os seus direitos em relação aos discos que você produziu pela Seroma (a editora do cantor)?
T.M. – 
Olha bem, esses discos que estão sendo lançados pela Continental/Warner são discos que eu autorizei e estou ganhando uma mínima porcentagem, aquele levadinho que a gente ganha sempre. A Polygram lançou sem autorização. Eu tô com duas ações contra a Polygram. Uma pro primeiro disco, aquele A Arte não sei quê (A Arte de Tim Maia, 1988). E agora, onze CDs… Eles lançaram um CD meu agora… Meu não, nosso, é do Cassiano, Hyldon e eu. São os “reis do grilo”. Esse disco devia se chamar “Os reis do grilo”, porque eu sou o rei do grilo, o Cassiano é o deus do grilo e o Hyldon é o grilo (gargalhadas). E agora, lançaram mais um grilado também, botaram mais um: Luiz Melodia. Aliás, esse CD – foi disco e virou CD -, Tim Maia, Hyldon e Cassiano, tem na capa uma fotografia de natureza. Interessante… acho que acharam a gente feio demais, acharam parecido com assaltante. Sei que, porra… não colocaram nem a cara da gente, achei aquilo tão… a Polygram… eles fazem isso. A Sony Music também. A Sony pegou agora uns direitos que tinha que pagar para a Seroma e pagou diretamente aos compositores, o Michel e o Gilson (Mendonça, autores de “Descobridor dos Sete Mares”). Pô, deu mó confusão, tive de acionar eles também, briguei com os compositores. Logo após, o Lulu Santos grava a mesma música, estoura. Washington Olivetto colocou num negócio da Rider aí, tocou. É muito relativo isso, entendeu?

L.L.G. – Mas, você não achou ruim o Lulu Santos regravar “Descobridor dos Sete Mares”, né? Você já tinha gravado uma música dele (“Como uma Onda”)…
T.M. – 
Não, não. Quer dizer, esse lance da W/Brasil era isso: eu gravaria uma música do Lulu Santos, depois ele gravaria uma música minha. Só que o Washington escolheu essa música e não procurou saber se a música era minha ou não. A música é de Gilson e Michel. Aí, deu uma confusão e eu já tava em atrito com eles, né? Devido a uma gravação da Deborah Blond, Bland, Blondor…

M.G. – Deborah Blando.
T.M. –
 Deborah Blando. Ela gravou essa música num disco promocional da Coca-Cola, que vendeu cem mil cópias e criou lá R$ 13 mil, R$ 15 mil de direitos. Eles teriam de pagar pra mim os R$ 15 mil para eu tirar meus 25% da editora e pagar aos compositores. Aí, eles pagaram direto. Aconteceu a mesma coisa com a Som Livre, na música “Paixão Antiga”, que é do Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle. Então, tem esse lance do desrespeito das gravadoras com os compositores e artistas. Por isso, eu tô acionando o Bonifácio Sobrinho (Boni, então diretor de programação da Rede Globo). E em todas as ações que estamos movendo contra o Bonifácio Sobrinho, o senhor Roberto Marinho está sendo arrolado.

M.G. – Você está banido da Globo?
T.M. – 
Eu acho que eles tentaram me banir por algum tempo, mas agora não vai acontecer mais porque eu cheguei à conclusão que tenho de lutar pelos meus direitos. Eu quero que isso seja um exemplo pra outros artistas. Tô movendo uma ação criminal e uma ação cível contra o Bonifácio Sobrinho. Porém, eu me comuniquei com ele antes, dizendo que nós iríamos mover a ação, como se faz. É de praxe você chegar e diplomaticamente avisar o cara: “Ou dá ou desce!”, entendeu? Mandei uma carta pra ele; ele não falou nada. A mesma carta nós endereçamos pro Roberto Marinho; ele também não falou nada. Aí, mandamos uma outra carta… Todas essas cartas, registramos em cartório, pra valer na ordem judicial também. Eles não deram a mínima. Então, agora estamos entrando com uma ação cível e uma criminal. Porque eu acho que o que ele tá fazendo é crime, entendeu? Tá me boicotando. E é um boicote assim vitalício, sacumé? Não é um boicote tipo: “Você não vai cantar aqui durante três meses porque você nos sacaneou”. Eles alegam que eu não fui no programa do Fausto Silva e isso tira a moral dele… Não tira, ele é um ditador. O Boni é um ditador. Ele pode me acionar por eu estar chamando ele de ditador, mas tudo bem. O Mariozinho Rocha (na época, diretor musical da Rede Globo) já me acionou duas vezes. Me acionou criminalmente porque eu falei que ele recebia R$ 10 mil por cada música que se coloca na novela. Aí, um cara lá do Jornal do Brasil – eu sempre me esqueço o nome dele, o filho da puta do… – me perguntou: “É verdade que o Mariozinho recebe dez?”; falei: “Não, recebe quinze!” (gargalhada). Quer dizer, eu vou acionar eles pra acabar com essa farsa, com essa mentira, que o mundo todo sabe que todo mundo recebe jabaculê no Brasil, né?

M.G. – Mas ninguém fala.
T.M. – 
É aquele negócio da minha música (“Nova Era Glacial“), né? “Todo mundo sabe, mas ninguém quer dizer.” Então, por exemplo, o Lauro tava falando: “Pô, você lançou esse disco (Voltou Clarear, 1994) meio na incógnita, meio na moita”.

L.L.G. – Não, é que o disco saiu e não teve grande repercussão.
T.M. – 
Não teve nada de repercussão porque… você vê a coisa? Essa música (“Voltou Clarear”) tá tendo a maior repercussão nos shows. O apelido dessa música é “melô do último a saber”. Acho que todo mundo se identifica com esse negócio de corno; o brasileiro é o rei do chifre. As mulheres, principalmente, se identificam, porque são chifradas também, né? Essa música não tocou porque não paguei jabá pra ninguém. Inclusive, a música anterior, “Como uma Onda”, tocou pra cacete. Aí que eu fiquei sabendo também quanto custa o jabaculê, né? Os jabás são fortes, cara…

L.L.G. – De rádio?
T.M. –
 Rádio… rádios que nem tinham isso vivem exclusivamente de jabaculê. Porque não é a rádio que vive. Quem vive disso são os programadores e os próprios locutores de cada horário. Acho que o dono da rádio nem ganha nenhum tostão com isso…, mas é demais, cara. Tem rádio que pede R$ 40 mil por uma música.

L.L.G. – Pra tocar por quanto tempo?
T.M. – 
Um mês. Trinta dias, quarenta mil reais. Mas aí, estoura a música, né? Porque ele executa dez vezes por dia, aquela porra “nhem, nhem, nhem” no ouvido do cara… Nas televisões, a mesmíssima coisa. É jabá pra todo mundo… O Silvio Santos tem menos. Acho que os programas dele são muito ruins, então não dá pra ele, entendeu (gargalhadas)? O Silvio Santos é ruim demais. O Show do Silvio Santos, meu amigo… Outra coisa que eu gostaria de falar, quero mandar um recado pro Caçulinha. O Caçulinha tinha um conjunto maravilhoso no Canal 7; porra, acompanhava aqueles artistas todinhos: Elis Regina, Jair Rodrigues, esse pessoal todinho. Pô, um cara muito simpático… o Caçulinha é super benquisto no meio artístico. Não sei por que ele atura aquilo, cara! Agora, colocaram ele com um negócio de chifre, já viu? Tem um chifre na cabeça dele, cara! Você não viu não? Uma vez, botaram ele na geladeira, não sei se você viu, botaram na geladeira! É, um pinguim na geladeira,com aquele pianinho. E fica o Faustão, o programa inteirinho sacaneando o “coiso”… E ele mesmo não toca nada naquele programa! Tem uma hora que ele faz: “Toca, Caçulinha”! (imitando o Fausto Silva): “Ó o nariz do Caçulinha! O Caçulinha é um babaca!”. O Caçulinha é o saco de esporro, o saco de pancada… Pô, por quê? Gostaria até de convidar o Caçulinha pra tocar com a gente na banda Vitória Régia; a gente arruma uma sanfoninha pra ele, pode até vir com o pianinho dele, coitado… Ele não precisa daquilo, é um cara de renome! Antes do Fausto Silva chegar, o Caçulinha já estava aí há anos… Acho aquilo tão ridículo… Deviam botar o Bonifácio Sobrinho lá de chifre e o Roberto Marinho dentro da geladeira. Isso eles não fazem. Fica lá o Faustinho puxando o saco do Roberto Marinho. “Oi, seu Robertinho. Como vai, tudo bem? Tudo bem, seu Roberto?” Isso é uma coisa que denigre a imagem de um músico, saca? O músico fica esculachado, o músico é um saco de piadas. Músico é pra tocar música! Não pra ficar ali, sendo motivo de chacota.

M.G. – Você sempre batalhou pelo reconhecimento do músico, sempre exigiu a banda Vitória Régia em todos os seus shows, contratos, créditos, etc. Mas, ao mesmo tempo, se o cara erra num show, você já: “Porra, não sei o quê…”. Roupa suja não se deve lavar em casa?
T.M. – 
É totalmente espontâneo. Não tem nada de esporro, não. É um toque na hora que me fere. Aquilo me fere. Não tem esse negócio de esporro no músico, isso é mais folclore. O lance é mais com técnico de som; o músico, não. Agora, quando tem uma mancadinha… Cara, isso é totalmente espontâneo.

M.G. – É que você toca tudo também, né?
T.M. – 
Toco uns instrumentozinhos. Hoje mesmo estamos com um problema aqui pra programar uma bateria, que é mó merda. Temos que programar uma bateria porque o baterista “sartou de banda”… Esses esporros todinhos que eu dei em músico não chegam nem à milésima parte que cada um fez comigo. Oito músicos me acionaram! Só um me levou R$ 117 mil, de uma vez só! Cento e doze mil reais porque eu perdi a causa, mais cinco de FGH… FG… FGTS. Outro, que é trompetista, é sargento dos bombeiros até hoje, me acionou também e já levou R$ 100 mil. Tentei lutar e tudo mais… E teve um bebum que chegou agora. Entrou ano passado, totalmente bêbado, caído na vala… e eu ainda gastei R$ 5 mil com o advogado do cara. Tem de ver os advogados! Eles achacam mais que os próprios caras! Aí, o advogado chega: “Vai dar cinquinho”. Cinquinho, filho?! “Você sabe como é que é.” Eu fui acionado por oito músicos! Eu falava com a mãe de um deles no telefone: “Oi, como vai a senhora?”; (fazendo voz de mulher) “Oi, Tim Maia! Toma conta do meu filho”. “Pois não, minha senhora. Se a senhora soubesse… já tinha matado e entregado num caixãozinho: seu filho tá aí, eu tomei conta dele.” Tinha outro, trombonista, que eu levava o filho em casa. Me acionaram…

M.G. – Mas tem também aqueles que estão com você há bastante tempo, né?
T.M. – 
Agora não tem mais. Só tem o Chumbinho (Paulo Roberto, baixista), porque o Tinho (João Batista Martins, saxofonista), que estava há dez anos, saiu semana passada. Porque tinha o show do Tim e tinha o show do Tinho. Isso é um problema, sabe? Músico… raro é o músico amigo, entendeu? Por exemplo, vou gravar com Os Cariocas agora, semana que vem. Os Cariocas… trinta anos cantando juntos. Cantam porque gostam de cantar, sabe? Eles ensaiam o dia inteiro. Trinta anos juntos e aquele negócio ali, tudo por música. Não é de mentira não, é tudo por música, coisa seriíssima, cara! Isso é músico, entendeu? E tem gente que toca há não sei quantos anos… por exemplo, o caso do Caçulinha. É um ótimo músico, mas não evoluiu porque só agora começou a comprar uns tecladinhos. Mas também, como é que faz? Se sujeita a um negócio daqueles…

L.L.G. – E o público da televisão acaba nem sabendo o valor que ele tem. 
T.M. – 
É, ele toca bem, é um cara musical pra caralho. Então… o negócio do músico é relativo pra caramba, entendeu? Tem uma amiga minha que fala que músico, advogado e pedreiro é foda (gargalhada). E é verdade, cara! E o único que trabalha deles – mas que enrola um pouco – é o pedreiro. Porque esse ainda faz, pelo menos, o cara faz. Te enrola, mas é uma pessoa humilde, que quer te dar uma facadinha a mais porque você tem mais que ele, né? Mas, advogado e músico, meu filho… Outro dia, numa matéria o cara perguntou: “E o negócio dos advogados, como é que você faz?”. “Ah, tô com três agora. Eu mando um, outro pra vigiar aquele e aquele pra vigiar o que eu mandei depois.” Pô, os caras ficaram putos comigo lá no Rio! A Ordem dos Advogados falou: “Ô, Tim Maia, que negócio é esse, rapaz? Você faz uma declaração dessa, é brincadeira”. Mando logo três. E mesmo assim, ainda é bem difícil.

M.G. – Você vai fazer seu songbook ou ainda acha que isso é pé na cova?
T.M. – 
É meio, né? Songbook não é tanto não, mas biografia… É que nem aquele especial da Globo que tinha antigamente. Quando o cara já tava bem baleado, a Globo fazia um especial com o cara. Aí, semana que vem o cara, bum!. Aí solta o especial, né? O cara morreu uma semana antes, deve estar fresquinho…

M.G. – Como você entrou naquela história da seita Cultura Racional, do livro Universo em Desencanto?
T.M. –
 Fase mística, né (risos)? Tomei cinquenta mescalinas e queria ser sócio de São Francisco de Assis (gargalhadas), paz e amor, aquele negócio de hippie: todo mundo ia a pé pra Bahia, aquele negócio “paz e amor, muito LSD”… Eu entrei naquela pra tomar umas mescalinas. Papei cinquenta. Aí, viajei pra cacete e no meio da viagem falei: “Ah, vou virar pra Jesus, Ave Maria” (gargalhadas)… Aí, entrei nessa. A Cultura Racional falava que era uma preparação para a gente entrar em contato com os seres extraterrenos. Eu, como gosto de negócio de ufologia… Sou ligado nessas desde garoto e entrei naquela lá pra ver se era isso mesmo, mas não era. Era um negócio de espiritismo, entendeu? Tinha outros artistas: Jackson do Pandeiro, até o Procópio Ferreira, coitado, antes de falecer, entrou na onda do Universo em Desencanto. Aquilo é uma loucura… O Lúcio Mauro, um bocado de artista, sabe? Altamiro Carrilho… Todo mundo na jogada.

M.G. – Você não acha que você deve atrair quem quer armar pra cima de você por causa da fama de maluco?
T.M. – 
Claro, justamente. Eles pensam que a gente tá dormindo, mas tá sempre acordado. Existem vários empresários que já armaram pra ganhar dinheiro comigo. Teve um empresário uma vez, em Campinas, que na hora de entrar no palco, ele falou: “Tim Maia, é o seguinte, aí” – naquela época o show era duzentos, não sei o que era, mas era duzentos – “te dou cenzinho agora e tu volta pro hotel…”. Eu: “Tu tá maluco, cara? São quatro da manhã!”. Nesse dia, foram 32 mulheres pro hospital e nós fomos retirados lá do ginásio no tal do tático móvel. Pessoal muito educado que vai chegando assim: “Filho da puta!”. Isso é o mínimo que eles falam, né? Era tudo preto ainda. “Vai, crioulo filho da puta!” E isso tudo com um cassetete que dá choque. Eles encostam o cassetete na pessoa e “tchen!”. Mas nós fomos retirados desse clube por um tático móvel, às cinco horas da manhã, porque teve uma porrada geral no clube, porque o cara armou duzentos e no final queria cenzinho, metade do cachê. Tem uns caras de show aí que são meus amigos até hoje, mas que fizeram um boato que porra… Minha mãe ainda era viva, foi mó problema, minha mãe passou mal. Disseram que eu tava com câncer no cérebro. As pessoas ligavam pra minha casa, uma loucura, até o dia que me mataram mesmo: “Tim Maia morreu”. Falaram pra minha irmã: “A senhora sabia que seu irmão faleceu?”. (Ela): “Meu irmão tá dormindo aqui, doidão!”. Tem essse folclore que é uma merda. É que nem aquele negócio de dar esporro nos músicos. O que os músicos arrumaram de confusão ninguém fala. Eles já me levaram quase R$ 400 mil, cara. Troço pra você comprar três apartamentos. O meu carro é um Monza, cara. Poderia estar com um Mitsubishi 446, um BMW, blá blá blá, e tô pagando músico, R$ 100 mil cada um. Esse dos R$ 117 mil foi foda. Sabe o que é o cara te levar R$ 117 mil? Dinheiro que eu economizei minha vida inteira! Fui acionado por oito músicos. Eu tentei tudo. Sabe o que eles falaram pra mim? “Tim Maia, você perdeu o prazo.” Prazo?! Tinha vez de ter dois julgamentos numa tarde só. Tinha de arrumar dois advogados…

L.L.G. – Seis, no caso, né?
T.M. – 
Seis! Só com esse processo aí dos músicos, eu já me envolvi com uns 12 advogados. A gente vai tentando empurrar com a barriga, né? Mas não tem jeito.

L.L.G. – Você tem composto mais. Queria que falasse um pouco dessas últimas músicas e principalmente dessa “Nova Era Glacial”.
T.M. – 
“Nova Era Glacial” é uma música que fala sobre uma possível ou provável era glacial. Acredito que vai esfriar porque a gente vê as notícias aí e nota que o negócio tá mudando. Eu acho que nós estamos entrando numa nova era glacial. Existe até uma polêmica entre os cientistas aí: uns dizem que a Terra está esquentando. Mas eu acho que está esfriando. Esse aquecimento é justamente um aquecimento pra vir o frio. E parece que o negócio vai esfriar mesmo. Não sei daqui a quanto tempo, entendeu? É nesse milênio agora. Eu não tô prevendo nada, mas “derrepentemente” nesse milênio eu tenho certeza que vai ter uma nova era glacial. Mas tem tempo pra caralho.

L.L.G. – De onde você concluiu isso?
T.M. – 
Os cientistas, esses arqueólogos, esse pessoal aí, acham que nós já passamos por uma era glacial. Outros dizem que passamos por… Eu acredito que nós já passamos por umas quatro ou mais, devido ao tempo que o mundo tem. O ser humano tem 60 mil anos. A Terra tem quatro bilhões. Então, eu acredito que nós já passamos por várias eras glaciais, dilúvio, Arca de Noé. Arca de Noé foi um grande dilúvio, né? E me parece que está acontecendo a mesma coisa. Esse efeito estufa, esse negócio de camada de ozônio, sabe como é que é? Isso tá esquentando pra depois esfriar. Eu acredito que seja isso. É uma coisa intuitiva, né? Mas também muitas pessoas defendem essa tese; não sou eu só. Existem milhares de cientistas que acreditam que o mundo está entrando numa nova era glacial.

L.L.G. – Você tem interesse por ciência?
T.M. –
 Meu interesse é totalmente ufológico, transcendental. Eu não tenho interesse por nada daqui. Acho que aqui tá muito confuso… Eu tava falando ontem aqui com outros repórteres de uma outra revista aí, que existem seres intraterrenos, cara. Isso aí é comprovado, isso aí todo mundo sabe. Existem seres que habitam o centro da Terra. Existem pessoas que acreditam em astrologia, essas coisas que não têm nada a ver. Astrologia não tem nada a ver com nada! Porra, astrologia é uma coisa árabe, eles olharam para as estrelas e concluíram que não sei que lá, não sei que lá, baseados em quê, cara? Que a Terra seria o centro do Universo. Aí, viram que não é nada disso, é apenas um Roberto Marinho, um Paulo Maluf, um Roberto Carlos, um Tim Maia, um Maguila, é um ninho onde moram essas coisas, essas pessoas. Pô, Erasmo Carlos, esses negócios assim. É um ninhozinho, um negocinho, uma bolinha onde moram esses bobões aí. E o troço é grande. Eu falei aqui ontem disso para os repórteres: nós somos visitados por noventa seres diferentes, de diversas galáxias, diversas dimensões e existem outras coisas! Existem seres do futuro, mas aí já é uma outra coisa. O que eu tô falando é coisa atual, seres extraterrenos de outras galáxias. E seres que vêm da nossa própria Terra, que habitam o centro da Terra. Eles se chamam os lunares. São seres brancos porque eles não veem o Sol. O que não é verdade mesmo é tomar ayahuasca e dizer que é Santo Daime – isso aí é mó mentira, viu (risos)? É ayahuasca mesmo, aquilo é mó viagem! Sorvete vira beterraba, helicóptero vira máquina de passar roupa, morou? E dão pra criança. Isso aí, não. Faz um mal tremendo ao fígado! Pior troço que tem pro fígado é a chacrona, que eles chamam de Santo Daime. De Santo, o Daime não tem nada! Chama-se ayahuasca, os índios adoram! Toma aquela porra, fica viajando pra caralho. Aí, isso não tem nada a ver com a realidade, isso aí já é uma coisa totalmente mística mesmo – uma erva que faz você viajar, pensando que aqui tá aqui e aqui não tá, tá lá. E fica aquela confusão do cacete. Eu digo assim, conscientemente, caretinha, sem tomar nada, sem nenhum ritual, sem incenso – também não tem incenso – nem batidas de matraca. Então, o negócio é totalmente cosmológico, é verdade mesmo. Eu tava falando pros caras ontem que existem mulheres aí que já transaram com seres estranhos, tem de tudo por aí.

L.L.G. – Eu achei um compacto simples seu, em inglês. Era só Tim. Sem sobrenome. Aquele foi seu primeiro disco?
T.M. – 
Foi o primeiro, gravado aqui em São Paulo, pela Fermata.

L.L.G. – Isso foi antes de você ir para os Estados Unidos?
T.M. – 
Não, foi quando eu voltei.

M.G. – Quando você foi pra lá, afinal?
T.M. – 
Fiquei três anos sem falar uma palavra em português. Eu fui em 1959 e voltei em 1964.

M.G. – Voltou ou foi “voltado”, Tim?
T.M. – 
Fui voltado. Mas já tô bem, tô com quatro anos de visto no meu passaporte, já fui pra lá três vezes depois que fui deportado. Mas fiquei dez anos sem poder voltar. A minha relação com os Estados Unidos é totalmente emocional, sentimental; não tem nada a ver com ganhar dinheiro, com carreira, nada disso. Talvez no futuro…

M.G. – Mas acho que daria o maior pé uma carreira lá, né?
T.M. – 
Eu acho que daria.

L.L.G. – Você já pensou em lançar esse disco em inglês nos Estados Unidos?
T.M. – 
Pois é. Esse eu tô regravando pra lançar lá. Já gravei muito em inglês, músicas minhas e de outros, mas gostaria de gravar mais ainda. Além dessas de bossa nova, porque essas da bossa nova… Eles fizeram umas letrinhas assim muito intelectualizadas “quiet nights of quiet stars“… Pô, ninguém fala isso em inglês. O cara fala “baby I love you”, “come back to me”, “don’t go away”.

L.L.G. – Dessas que você escolheu pro segundo disco de bossa nova, você vai cantar alguma em inglês?
T.M. – 
Não, tudo em português. Porque não funciona isso. Tem de ser em português aqui e em inglês pra eles lá fora.

L.L.G. – Você disse também que queria evitar gravar músicas que o João Gilberto já tivesse gravado. É isso?
T.M. – 
Não, isso é brincadeira, é só sacanagem. Eu acho o João Gilberto um excelente músico e cantor, mas de personalidade, acho ele assim… quatro-quatro-meia. Quatro-quatro meia é uma fração; 4,46, não chega a ser cinco. Tá entre o quatro e o cinco – quatro-quatro-meia.

M.G. – Como rolou o lance de gravar com a Elis?
T.M. –
 Com a Elis Regina, eu já havia gravado dois compactos. E o Erasmo, a Rita, o Serginho e o Arnaldo, dos Mutantes, me levaram pra Polygram. Quando eu cheguei lá, o pessoal já me conhecia, já sabia o jeito que eu cantava, eu já tava com as músicas prontas, já tinha rolado o lance com o Cassiano. Tanto é que eu gravei “Primavera” em agosto de 1969 e tentei de tudo pra soltar o disco na primavera, mas saiu em janeiro de 1970. Aí, aquele puta janeiro fervendo e eu cantando “É primavera…” a 40 graus. Mas aí estourou. Quando estourou, o pessoal da gravadora me chamou: “Tim Maia, rápido, vamos gravar um LP”. Aquela coisa de gravadora, né?

L.L.G. – Daí, desse primeiro LP, tocou praticamente tudo.
T.M. – 
No Rio de Janeiro, ficamos 22 semanas em primeiro lugar. Por isso, eu acho que vendi mais do que 200 mil.

M.G. – E daí pintou a gravação com a Elis?
T.M. –
 Foi uma armação do Nelson Motta, do falecido Ronaldo Bôscoli, do Miele… saiu no disco dela. Mas uma coisa que eu não achei legal, e que ainda vem um monte de gente hoje me perguntar: “Elis Regina te lançou?” Peraí, eu que lancei Roberto Carlos, como é que pode ela me lançar? Vamos com calma. Mas aí saíram com essa: “Elis Regina lança Tim Maia”. Isso foi uma armação, mas ela não teve nada com isso. Eu gostava muito dela e sinto que poderia ter gravado mais coisas com ela. Ela era muito musical, era musical demais… Até hoje falo: pra mim, a melhor mesmo foi Elis. A Rosana canta bem também, mas a Rosana é muito perturbada, muito confusa, pôs silicone até no… É a rainha do silicone. E tão bonita, tão gostosa… A Rosana canta bem, a Jane Duboc canta mais ou menos, mas é muito inibida, aquela menina, a Cláudia, cantava bem, mas excedia. A Elis Regina, não; ela ia no ponto mesmo. E tinha uma cabeça legal, inteligente. Mas as pessoas achavam que não. Era aquele negócio: “Ah, é muito temperamental…”. Tudo babaca que não tem sentimento nenhum, que não cria porra nenhuma, que não consegue se expressar com nada, quando vê uma pessoa que se expressa… É o tal negócio do Van Gogh: louco, maluco, mas depois o quadro dele tá custando 60 milhões de dólares. Mas na época, quase mataram o cara.

L.L.G. – E a tua opinião a respeito da Marisa Monte?
T.M. – 
Engraçado, a Marisa Monte tá cantando igualzinho à Gal Costa, não entendi porra nenhuma.

L.L.G. – Mas a Gal do começo de carreira, né?
T.M. – 
É. Uma vez eu ouvi a Marisa Monte e parecia a Zizi Possi, daí eu conheci a Marisa, fizemos até amizade. Não é que eu tô magoado com ela, mas olha: o “Chocolate”, ela gravou, canta nos shows, mas fez um negócio que eu não gostei, ela canta “não quero cocaína, me liguei…”, não tem nada a ver, a música não tem isso. O Lulu Santos também botou Porto de Galinhas (na “Descobridor dos Sete Mares”) onde não tinha Porto de Galinhas porra nenhuma, eles modificam totalmente. Eu acho que, quando você se propõe a gravar uma música de uma pessoa, inclusive quando aquela música já foi gravada, você tem de obedecer aquele critério, aquela forma, senão fica uma coisa…

M.G. – Aliás, você mudou uma palavra na “Aquarela do Brasil”…
T.M. –
 Só se eu errei…, também, é letra pra cacete. Eu não sei onde esse rapaz tava com a cabeça quando fez essa letra. “O coqueiro que dá coco” é demais, né? Vai dar o quê? Laranja? O Ari Barroso … que Deus o tenha em bom lugar.

L.L.G. – Tim, esse disco de bossa nova saiu faz menos de um ano, agora você está lançando outro e tem mais dois em projeto para esse ano?
T.M. –
 Olha, eu sou diretor-presidente da Vitória Régia Discos, a única que paga aos domingos após as 21 horas. Eu sou o único artista da casa, então não tem jeito… Eu gostaria de ter o Stevie Wonder com a gente também, mas…

L.L.G. – Ah, o Ray Charles está vindo aí agora. Convida ele…
T.M. – 
Mas ele tá vendendo pouco disco. Prefiro o Leandro e Leonardo, que tão vendendo muito mais (risos).

M.G. – Tim, você era de uma turma, há muito tempo, com Roberto, Erasmo, Jorge Ben e depois de uma outra galera – Cassiano, Hyldon…
T.M. –
 É, esse é o segundo time.

M.G. – Aquele time anterior se deu bem; o segundo não. Por quê?
T.M. –
 Bom, aí é aquele negócio: “Por que Tostines vende mais? Porque é fresquinho. E por que é fresquinho? Porque vende mais”. Você quer ver uma coisa? Eu fiz outro dia o programa do Jô Soares e brinquei lá com a idade da rapaziada. Depois, disse que teve uma época que o Roberto Carlos andou fumando cachimbo e usava uma capa estranha, enquanto o Erasmo andou querendo entrar na Academia de Letras. Eu falei: “Calma aí que aqui ninguém estudou porra nenhuma, para com esse negócio porque aqui, intelectual ninguém é”. Eu disse isso lá no Jô Soares e completei: “A gente não tem curso nenhum, o único que temos, e mesmo assim incompleto, é o curso de datilografia do Colégio Ultra”. Daí, no outro dia, liguei pro Jorge Ben e ele tava puto, todo zangadinho. Eu perguntei: “O que aconteceu, Jorge?”. E ele: “Sabe o que é Tim? É que a minha tia assistiu o Jô Soares e me disse que você falou mal de mim”. Eu falei: “Mas o que é isso rapaz, eu nunca falei mal de você, que babaquice”. Daí, eu chamei a mulher dele no telefone, a Domingas, e ela me disse: “Não Tim, não liga não, isso aí é a tia do Jorge que é muito fofoqueira…”. Daí, eu descobri que ele tava puto era com o lance da idade que eu falei. Porque ele diz que tem 46… se ele tem 46, eu tenho 38. O que eu queria explicar é que o Jorge Ben não fazia parte da nossa turma, da primeira. Eu conheci ele um pouco depois. Mas eu acho que ele se grilou porque eu falei que a gente não tinha cultura. E ele também não tem mesmo, não estudou porra nenhuma…

L.L.G. – Você e o Jorge Ben ressurgiram meio que juntos, uns três anos atrás…
T.M. – 
Não, isso também é uma outra coisa que eu quero retificar. Nós não ressurgimos, ele é que ressurgiu. Eu só não tava na mídia, não tava na Globo. Eu dou esse exemplo: fiz cinco anos de Chic Show aqui em São Paulo, dois shows por ano. Teve vez que colocamos 23 mil pessoas lá no Palmeiras, teve uma outra que quebraram não sei o quê lá e o cara nem queria mais alugar pro Tião do Chic Show. Depois, eu gravei com a Sandra de Sá e ia fazer um show com ela. Mas ela tava meio estrela, não apareceu, e eu tomei o maior preju por causa do Marcos Lázaro. Agora tem o tal do (Manoel) Poladian. A cada hora pia um, e tudo com esses nomes esquisitos, não tem nenhum Pereira ou Silva. Lázaro, Poladian… Eu fiquei sabendo uma do Poladian que é demais: ele leva um ônibus cheio de cambista. Chega no local, ele mesmo compra os ingressos e daí vende pelo triplo do preço.

L.L.G. – Eu relacionei você com o Jorge porque tem um disco seu que está sendo relançado agora que tem várias músicas no estilo discoteque. Agora, o Jorge está regravando sucessos antigos dele com estilo dance music. Você chegou a ouvir isso?
T.M. –
 Eu acho uma tremenda besteira o que eles estão fazendo. Isso não tá com nada. A pipoca tá na mão, todo mundo quer pipoca… Calça Lee tá na moda, todo mundo quer calça Lee… E aí, numa dessa, o cara pode se queimar, o Jorge Ben pode se queimar. Porque a música dele não tem nada a ver com house, a música dele já é uma house normal e todo mundo dança normal, não precisa botar um bumbão lá, um bate-estaca pra fazer alguma coisa. Um cara me propôs isso, mas eu disse: “Solta o ‘Nova Era Glacial‘ aí a todo vapor e vamos ver se não vai todo mundo pra pista”. Não precisa tum-tum-tum pra imitar americano mais ainda e com algo que tira a musicalidade da coisa. Eu já podia ter feito isso, já me convidaram pra fazer isso. Numa matéria que eu li no jornal ontem, o Lulu Santos tava me elogiando: “O Tim Maia é o maior”. Obrigado, muito obrigado. Daí fala o cara, o tal do DJ Memê. Ó o nome do cara: Memê. E ele manda o seguinte: “Ah eu gosto do Tim Maia, sempre fui fã dele, mas agora ele deu de cantar essas músicas brega…”. E eu pensei xiii… olha o cara, olha o Memê… ele toca o que mesmo? Toca oboé, toca tímpano, toca violino?

M.G. – Ele toca toca-discos.
T.M. –
 É, ele toca toca-discos. Toca disco ao contrário. Estudou pra cacete, se concentrou pra fazer aquele nhé-nhé-nhé… Como é que um Memê desses vai falar da gente? Eu lancei o Roberto Carlos, fiz um monte de coisa, um monte de parada aí, altas jogadas. Esse é o cara que tá com o Lulu Santos. Quer dizer, eu também já tô achando que o Lulu Santos tá indo prum caminho… Tem de tomar cuidado. Já tá velho, tá de cabelo branco… Esse negócio de funk, de house, deixa pros outros. E outra coisa: esse negócio de funk brasileiro… O rap brasileiro é uma vergonha. Principalmente o rap carioca, mas o paulista também. Imita o americano, fica aquele negão fazendo aquelas coisas (cantarola um típico “funk-falado” carioca). Isso é funk? Isso é rap? O rap é cheio de agá, o rap na verdade é jamaicano e é muito além do que é feito aqui. Por isso que eu acho que o Brasil está precisando urgentemente de cursos de música, de escolas de música. Outra coisa que eu gostaria de falar é que o Brasil está precisando urgentemente de uma universidade para pretos, para negros, uma universidade afro-brasileira. Porque nós temos universidade de tudo que é jeito aí, universidade de padre, universidade de bispo Macedo, precisamos da universidade para negros. Pode entrar branco e japonês também, sem discriminação, mas dando prioridade ao negro. Porque preto não tem como, não tem onde estudar, ele não passa do primeiro grau. Então, eu acho que no Brasil, em lugares diferentes, tem de ter a universidade afro-brasileira. Isso é um grilo do cacete, tem de botar o preto pra estudar; senão, a gente vai ficar sempre por baixo. A Globo, agora, bota lá o (Antônio) Pitanga na novela, aquela família preta, mas não tem nada a ver, continua a discriminação indireta.

M.G. – Você falou aí do Roberto Carlos… Você não acha que estava na hora de ele se tocar e gravar um disco novo, ao invés de ficar repetindo o mesmo há dez anos?
T.M. –
 Mas eu acho que o Roberto Carlos tá certo. Ele tá aí há trinta anos fazendo sucesso. E a minha mãe gostava dele demais. Até a minha mãe falecer, ele ligou pra ela todo Natal, fazia aquela média, ele conhece meus irmãos todinhos, minhas irmãs, assim como eu também conheço os dele. Nós fomos criados juntos. Por isso, eu achei muito estranho quando eu voltei dos Estados Unidos, ele me deu a maior podada. Porque quando eu voltei, precisava de um apoio. Teve até uma etapa (prisão) que eu puxei lá nos Estados Unidos, de oito meses, por causa de umas cadeirinhas que eu roubei pra uma gravação. A gente ia fazer uma gravação e daí eu fui roubar as cadeiras pra comprar um incentivo pra rapaziada. Mas nem cheguei a comprar o incentivo; já dancei nas cadeiras (risos). Pedi uma ajuda, mas pra quê? Nossa, achei aquilo tão estranho. Eu não conheço os filhos do Roberto Carlos, só conheço a mais velha, a Ana Paula, filha da Nice. Ele também não conhece meus filhos. Eu já tenho neta, ele também.

M.G. – Você tem quantos filhos?
T.M. – 
Eu tenho três filhos e, agora, uma neta.

M.G. – Algum deles mora com você?
T.M. –
 Já moraram. Um morou. E o do meio tá sempre na minha casa. Mas o mais novo, não; o mais novo mora com a minha irmã. Ela tomou o meu filho desde criança. Aliás, eu não criei nenhum dos meus três filhos. Só facada mesmo – de 10 mil, de 100 mil -, eu só financio. A minha neta é filha do Zé Carlos, o mais velho. Ela é lindinha, muito bacana. Eu preservo esse negócio de família. Ontem mesmo, tava falando com o filho do Erasmo no telefone… e lembrei uma vez que o Erasmo me deu cinco calças Saint-Tropez, daquelas que aparece a bunda quando você entra no táxi, sabe. Imagina, eu com cento e não sei quantos quilos e com aquela calça… Eu conto sempre isso pro filho do Erasmo, o Gugu. Então, eu sinto esse negócio da família e lamento que pessoas que foram criadas juntas como eu, o Roberto, o Erasmo, um não conheça pessoalmente os filhos do outro. As minhas irmãs adoram eles, a mãe do Ed Motta gosta muito do Roberto.

M.G. – E o Ed Motta, você se dá com ele?
T.M. – 
Não, não me dou não.

M.G. – Você acha que ele é seu sucessor?
T.M. – 
Eu acho tão horrível esse negócio de sucessor… Isso é coisa de ditador.

L.L.G. – E herdeiro, pode ser?
T.M. – 
Isso de herdeiro também é ruim. E ruim inclusive pra ele, porque ele entrou nessa e se deu mal com isso.

L.L.G. – E ele andou falando muito mal de você…
T.M. – 
Pois é, um troço tão estranho… meu sobrinho, pô.

M.G. – E ele tem talento, né?
T.M. – 
Tem, ele canta bem. É musical, mas muito enrolado, estranho pra caramba. O Ed parou de falar comigo e eu não gosto muito de falar disso porque eu sou muito amigo da mãe dele, é a minha irmã que eu considero muito.

M.G. – Tim, o Fernando Gabeira está com um projeto de liberar a maconha. Você é a favor ou contra?
T.M. – 
Sinceramente, cara, o Fernando Gabeira já foi uma coisa, virou outra e agora já é outra totalmente diferente. Quando ele sequestrou aquele embaixador, porra… dei o maior apoio, entendeu? Aí, veio com esse negócio de Partido Verde, já ficou meio quatro-quatro-meia e agora diluiu demais. A maconha já tá liberada, a cocaína e a pena de morte também. Isso já tá liberado no Brasil faz tempo. Quer mais maconha do que no Brasil? O Brasil é o maior produtor de maconha do mundo! Ninguém planta mais maconha do que o Brasil. E Pernambuco é o Estado onde mais se planta maconha no mundo. E o brasileiro é o maior maconheiro do mundo! Alcoólatra também, por excelência, mas queima um fumo violento! Todo brasileiro queima fumo: vai lá no Norte, puta que o pariu, todo mundo gosta… No Sul, também adoram. Todos, todo mundo! Então acho que é uma demagogia do cacete. Poderia se plantar isso aí e colher bons frutos, uma maconha boa, THC bem forte…

M.G. – É, mas ainda tem os coitadinhos que vão em cana só por causa de um baseadinho…
T.M. –
 É uma estupidez. Mas me parece que o negócio vai liberar mais agora, pelo menos em casa. Tem aquela moça que tá sendo julgada agora lá na Turquia. Ela disse que não sabia que o que deram pra ela era maconha… que ingenuidade (risos). Ela só sabe que o nome do cara era Pedro, mais nada. Quem te deu a maconha? O Pedro. Quem te deu a brizola? O Jorge… mas não sei. E os caras que vieram receber a brizola? Hummm, não sei, não conheço (risos). Coitadinha, tá em maus lençóis. Mas naquele filme, Expresso da Meia-Noite, o cara tá levando cinco quilos de haxixe, e eu pensei que era heroína… O haxixe é a melhor coisa que tem pra acalmar os ânimos, não faz mal pra ninguém, é bom pra glaucoma. Acho uma estupidez, uma demagogia do cacete, proibir fumo, entendeu? O fumo é uma planta, uma coisa natural… Eu fui intimado duas vezes nessa semana, pra ir na polícia. Eu não vou em lugar nenhum. Tem um cara lá que foi preso, deram porrada no cara pra ele dizer que trazia haxixe pra mim. Daí, em juízo, o cara falou que não era nada disso, que levou porrada na delegacia, na 27ª, lá em Brás de Pina, no Rio de Janeiro. Daí, fui intimado e mandei meus advogados lá…

M.G. – Os três, né?
T.M. – 
Dessa vez foram dois (risos). Mas foram lá pra explicar… Volta e meia tentam me envolver nessas porras aí, cara, e por causa de haxixe. Ainda se fosse cocaína, heroína… mas haxixe? É uma estupidez. THC… cannabis… Proibir a cannabis e liberar o álcool é a maior loucura, uma coisa porca, suja, imunda, mentirosa! Porque o álcool destrói o ser humano em poucos anos, em meses. Se você beber mesmo, o teu figueiredo não aguenta. Eu mesmo, não posso beber mais. E olha que eu não bebia muito, hein? Eu só bebia quando fazia show e quando andava de avião.

M.G. – Mas como você fazia muito show e andava muito de avião… (risos).
T.M. –
 É, fiz show o ano inteiro, andei de avião o ano inteiro, bebi o ano inteiro (risos). Mas deu um negócio no figueiredo aqui… Não posso beber de jeito nenhum. O Roberto bebe muito mais do que eu, o Erasmo tá tomando três garrafinhas daquelas pequenininhas por dia… Jair Rodrigues bebe muito mais do que eu e, depois, diz que é careta. Mas quer dizer, devido a beber quantidades excessivas, eu quase dancei. Então pô… Eu tenho um amigo que queima fumo há trinta anos e não é viciado ainda (risos).

Agenda: confira os destaques da semana 10 a 16/3

Maria Auxiliadora, 'A preparação das meninas', 1972
Maria Auxiliadora, ‘A preparação das meninas’, 1972

Maria Auxiliadora: vida cotidiana, pintura e resistência, individual no MASP, a partir de 10/3

Organizada em sete núcleos, referentes aos temas recorrentes na obra de Maria Auxiliadora, a exposição no MASP acontece após 37 anos passados desde a última individual da artista. Resgatando a obra de Maria, o MASP traz os núcleos Candomblé, Manifestações, Autorretratos, Casais, Rural, Urbano e Interiores. Segundo o museu, “esta mostra tem o objetivo de renovar o interesse por esta artista brasileira fundamental, para além das preconceituosas, paternalistas e redutoras categorias de ‘arte naïf’ ou ‘primitiva’.” Também no MASP e no mesmo dia, estará aberta para visitação a exposição Imagens do Aleijadinho, que reúne dezenas de obras do artista mineiro Antônio Francisco Lisboa.


Beth Lesser, 'Michael Palmer', 1984.
Beth Lesser, ‘Michael Palmer’, 1984.

Jamaica, Jamaica, coletiva no Sesc 24 de Maio, a partir de 15/3.

Com a intenção de abrir o leque de imagens quando se pensa em Jamaica, a exposição no Sesc 24 de maio traz uma variedade de imagens que vão muito além de Bob Marley. A complexa história do país se estende para além da música, e suas raízes penetram profundamente nos dias da escravização do povo negro, remetendo as formas tradicionais de canção e dança herdadas da colonização. A curadoria é de Sébastien Carayol.


Alfredo Volpi, 'Bandeiras e Mastros', década de 70
Alfredo Volpi, ‘Bandeiras e Mastros’, década de 70

Volpi, individual no Museu de Arte Moderna da Bahia, a partir de 16/3.

Sob curadoria de Sylvio Nery, a capital baiana receberá 33 obras de Alfredo Volpi, que compreendem um período de atividade do pintor que vai de 1940 a década de 1970. A exposição no Museu de Arte Moderna da Bahia é fruto de um esforço do museu para fomentar a arte e colocar Salvador no circuito artístico do Brasil com mais afinco. A exposição é uma grande parceria entre instituições, com realização do MAM-BA e produção e apoio do Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna, da Galeria Almeida & Dale, ambos de São Paulo, e da Paulo Darzé Galeria de Arte, de Salvador.


Cícero Alves dos Santos, 'O bocudo', 2014.
Cícero Alves dos Santos, ‘O bocudo’, 2014.

Véio: A imaginação da madeira, individual no Itaú Cultural, abertura em 14/3

O Itaú Cultural apresenta uma exposição que reúne parte da vasta obra do escultor Véio, nascido em 1947 no interior do Sergipe – onde vive até hoje. Com curadoria de Agnaldo Farias e Carlos Augusto Calil, Véio – a Imaginação da Madeira traz para o público, pela primeira vez fora do sertão sergipano, peças da coleção que o artista mantém em sua casa e que dialogam com o cotidiano do povo sertanejo.

Erwin Olaf, The Dancing School, 2004.
Erwin Olaf, The Dancing School, 2004.

Erwin Olaf: Tensão, individual no Museu da Imagem e do Som em São Paulo, abertura em 10/3

Tensão apresenta 22 fotos e sete videoinstalações produzidas por Erwin Olaf nos últimos quinze anos. A obra do artista busca reconhecer, traços essenciais da vida contemporânea, como o isolamento e a solidão, as barreiras de comunicação que separam os indivíduos, a busca frustrada por prazer, o embate de desejos, a velocidade da passagem do tempo e os padrões impostos pela publicidade e pela indústria da moda.

Guto Lacaz, 'mondrimobile', 2001
Guto Lacaz, ‘mondrimobile’, 2001

O Lugar do Centro, coletiva na Central Galeria, abertura em 10/3

A exposição O Lugar do Centro inaugura o novo espaço da Central Galeria – no histórico prédio do IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil), localizado no centro da cidade – discorre pontualmente sobre as acepções da palavra “centro” e seus diversos domínios, derivados da geometria, da composição, do urbanismo, da mecânica, da geopolítica, etc. A seleção de obras, consequentemente, perpassa diversas mídias, como vídeo, pintura, objetos e instalações, todas elas tratando, à sua maneira, de uma ideia de centro”. A coletiva tem curadoria do artista Artur Lescher e participam doze artistas: Eduardo Basualdo, Laura Belém, Nelson Felix, Marcius Galan, Cao Guimarães, Carmela Gross, Guto Lacaz, Laura Lima, Milton Machado, Odires Mihlaslo, Rodrigo Sassi, Otavio Schipper e o Coletivo Situações de Rua.

 

Diário de um homem são

O diretor e ator Nelson Baskerville em seu apartamento na Aclimação, em São Paulo. Foto: Diego Rousseaux

*Por Gustavo Fioratti

Quando tinha 11 anos, Nelson Baskerville tomou uma surra de seu pai por ter quebrado uma cadeira, e a aparente gratuidade da violência contida na situação rondou, como uma incógnita, a memória do ator e diretor, inclusive durante a vida adulta. Com o passar do tempo, ele foi ressignificando esse dado biográfico até chegar à beira de uma conclusão.

Para entender a razão da surra é preciso saber que a mãe de Baskerville morreu durante seu parto e que o pai teria represado o ódio até aquele momento. “Aos poucos, entendi que ele não engoliu o fato de que sua mulher tivesse sido substituída por aquela coisa torta e sem jeito que era eu”, diz o diretor, um homem grande, de cabelos grisalhos e bagunçados. Eram 17 horas, e ele estava almoçando em um café no bairro paulistano do Bom Retiro, vizinho à Casa do Povo, centro cultural onde ensaia A Vida, espetáculo no qual falará sobre este episódio doloroso.

Não se trata de um exercício solitário de autobiografia. Em cena, outros seis atores expõem traumas novos ou antigos que determinaram rumos em suas trajetórias. Felipe Schermann fala sobre uma doença que acometeu seu pai; Camila Rafantti, sobre o parto da filha; Nuno Carvalho performa sobre a perda de 40 quilos após uma separação; Hercules Morais descreve a situação em que foi proibido de usar a piscina de um condomínio em São Paulo, onde seu pai trabalhava como zelador; e Tamirys Ohanna nos coloca diante de uma mulher negra que se muda da cidade paulista de Cubatão para São Paulo, com todas as situações políticas que a mudança implica.

Tampouco é um tipo de experiência isolado de um contexto artístico mais amplo. A ação de performar a exposição das próprias feridas consolidou-se no cenário teatral mais recente praticamente como um gênero. De 2010 para cá, grupos como a Cia Brasileira, a Kunyn e a mineira Luna Lunera abriram espaço a espetáculos criados com depoimentos. Em São Paulo, a atriz Janaina Leite também apostou em criações decalcadas na exposição da memória. Acompanhado com interesse pela crítica e dentro do próprio cenário teatral, os espetáculos autobiográficos, diz Baskerville, desatam dramaturgicamente um nó de natureza temporal. Para ele, esse tipo de criação evidencia a capacidade do presente de ressignificar o que já passou. “A cada instante, nosso passado se torna diferente”, ele sintetiza. A ideia é que, quando pensamos em algo, a lembrança resgatada se torna automaticamente diferente.

Não será a primeira vez que Baskerville traz para a cena a memória do episódio da cadeira, que já havia sido representado em Luis Antonio – Gabriela (2011), seu espetáculo mais longevo e, como ele reconhece, o de maior sucesso – a peça foi premiada com um Shell por sua direção. Voltar à questão, diz o diretor, reforça o sentido performático do teatro, de reelaborar continuamente o que está guardado e que, apenas aparentemente, se aquietou.

Haverá, na peça, outro dado biográfico importante e de impacto: a memória da figura do irmão (bem como sua impermanência diante da  passagem do tempo). Com estrutura que busca a relação do teatro épico, distanciado do drama convencional, Luis Antonio – Gabriela colocou o público em contato com a personalidade complexa de Luis Antonio, primogênito de seis irmãos, que abusou de Nelson quando ele era criança. Depois, na passagem para a vida adulta, Luis Antonio torna-se travesti e, abandonado pela própria família, parte para a Espanha, onde se distancia por definitivo de todos. Houve, em 2002, a falsa notícia de que Gabriela (agora com o nome escolhido para a vida artística) havia morrido, o que levou uma de suas irmãs a buscar informações. Ela estava viva. Não houve uma reaproximação entre Baskerville e Gabriela, porém, e ela morreu em 2006. “A última vez que eu o vi foi quando nós precisamos que ele assinasse um formal de partilha do meu pai, logo depois que ele morreu, em 1984. Foi quando percebi que ele não sabia que meu pai tinha morrido”, diz Baskerville, usando o gênero masculino (outra impressão relacionada ao tempo). “Depois nunca mais o vi. Quando ele saiu de casa, nós ficamos com essa coisa de que ele nos fazia mal, porque abusou de mim ou porque em Santos éramos conhecidos como a família da bicha. A princípio, foi um alívio quando ele se foi, e é aí que reside toda a coisa triste dessa história”, resume o diretor.

Integrantes da companhia Mungunzá em cena de Luis Antonio – Gabriela. Foto: Divulgação

Há uma diferença estrutural entre Luis Antonio – Gabriela e A Vida. O novo espetáculo é todo composto de módulos. As cenas funcionam com certa autonomia, mas se conjugam de formas diversas, conforme os resultados de um sorteio realizado a cada sessão. “Parti da ideia de Schopenhauer sobre uma aparente aleatoriedade da vida; não estamos falando exatamente de destino aqui, porque não é como se as coisas já estivessem traçadas, mas sim como se tudo fosse traçado a cada momento conforme as coisas acontecessem”, diz o diretor. “Queria criar um espetáculo que pudesse ser aleatório e ao mesmo tempo ensaiado, partindo de experiências biográficas minhas e dos atores (de sua companhia Antikatártika). A questão da biografia é que sempre consigo ver a vida e entendê-la por meio dessas experiências”, diz.

Reestruturar suas memórias em ce­na levou Baskerville a procurar por um analista também. Com a decisão, o diretor destitui a arte de um papel totalmente terapêutico. “Achava que a arte me salvaria dos meus problemas existenciais e da minha depressão. Percebi, porém, que eu estava empurrando com a barriga um monte de coisa”, conclui o diretor.

Psicanálise em cena

Há uma questão de relevância para o público que vê em cena um ator ou um autor tendo de lidar com os próprios traumas. Se há traços de psicanálise em trabalhos do gênero, de que forma os desenlaces ou mesmo essa percepção de que o presente ressignifica o passado podem ser compartilhados com espectadores que, frequentemente, assistem a apenas uma das sessões e não seus desdobramentos, seus efeitos e curas? Um espetáculo em transformação não dependeria de um acompanhamento mais contínuo por parte da plateia?

Baskerville acha que o espectador capta “alguma coisa sem saber exatamente o que é”. “Nunca fui textocêntrico, nunca transferi a responsabilidade total do espetáculo às palavras. A tentativa é de se atingir alguma coisa além do racional”, justifica. “A gente não tem controle sobre a absorção da plateia. O que acho que podemos estabelecer é a comunicação ‘celular’, nem que seja através de um arrepio, de imagens, sensações e situações que vêm à tona depois que o público vai para casa. Acho que a sensação primária da plateia é a de que estamos nos expondo e expondo as nossas vidas. De que não se trata de ficção ou algo meramente baseado em fatos reais. Acredito que a ficção, na maioria dos eventos artísticos, se afastou do humano.”

Do encontro entre todas as histórias do novo espetáculo também surgiram contextos políticos como pano de fundo, dos quais sobressai o debate sobre a cultura da opressão à mulher. Segundo Baskerville, nos ensaios em que os atores expuseram suas memórias, detectou-se a reincidência de histórias de abuso moral ou sexual sofrido pelas atrizes que participam da composição da peça. Entre essas histórias também está a de Taís Medeiros. “Ela descreve como as mães das amigas proibiram suas filhas de brincar com ela porque a sua mãe era separada do marido. Hoje, ela tem 36 anos. A gente está falando dos anos 1980”, conta.

Além de A Vida, Baskerville prepara uma adaptação do romance Uísque e Vergonha, de Juliana Frank, a seis mãos  – com as atrizes Alessandra Negrini e Erika Puga. Novamente, ele se depara com as questões da feminilidade e das lutas políticas da mulher, dessa vez por meio da ótica de uma adolescente que sai de casa para ir morar na rua.

Noemi Marinho e Pascoal da Conceição na peça 1 Gaivota – É Impossível Viver sem Teatro. Foto: Lígia Jardim/Divulgação

O mau gosto em cena

Após a entrevista no café, o diretor partiu para a Casa do Povo, onde o elenco da peça e a equipe técnica esperavam por ele. No meio do ensaio, ele ria a cada música dos anos 1980 que tocava na trilha da peça, justamente porque havia sido questionado, minutos antes, sobre a evidente influência que seus trabalhos carregam da década marcada pelo uso de ombreiras e de polainas. “Fui forjado nos anos 1980”, respondeu. “Tenho como antecedentes a formação no rock progressivo, as drogas lisérgicas, Pink Floyd, The Who. Vim de uma época em que os jovens se reuniam em volta de um disco. Deitávamos e ficávamos ouvindo Pink Floyd.”

Os anos 1980, para ele, também ficaram registrados como os anos que transformaram sua vida em “outra coisa”. “Prestei EAD (Escola de Arte Dramática, em São Paulo) e, milagrosamente, passei com 18 anos. Meu pai praticamente me deserdou. Eu era um menino de classe média alta que, de repente, estava trabalhando na lanchonete do cursinho do politécnico”, diz. Na EAD, brincava-se que Baskerville cumpria uma cota, porque ele tinha jeito e beleza de galã de novela.

Depois de formado, o ator teve um período de trânsito intenso entre o teatro e a televisão. Trabalhou em Filme Triste (1983), direção de Vladimir Capella, República dos Mendigos (1982), direção de Celso Frateschi, e Notícias Silenciosas (1991), de Hamilton Vaz Pereira. Na TV, participou das novelas Pedra sobre Pedra, Éramos Seis, O Rei do GadoCanoa do Bagre e Chiquititas, entre outras. Durante a entrevista, porém, colocou em destaque a relação profissional com o diretor e dramaturgo Fauzi Arapi (1938-2013), que o dirigiu em Às Margens do IpirangaRisco de PaixãoRua Dez e Uma Lição Longe Demais. “Fauzi me fez pirar, ele me enlouqueceu a ponto de, em 1988, eu fugir para Londres. Acho que foi a primeira pessoa que apontou para mim e disse ‘tem alguma coisa errada aí’ ”, diz Baskerville.

Nesse período, o diretor também ganhou a vida fazendo comerciais de TV, dos quais destaca uma produção luxuosa para a Vodka Orloff, que tinha um aeroporto como cenário. “Graças a Deus não consigo encontrar esses comerciais em nenhum lugar”, diz, envergonhado. Ele pensa que suas decisões profissionais causaram conflito ideológico com Arap. “Eu precisava sobreviver, ele sabia disso, mas dizia que a matéria com que o ator trabalha era o corpo e que não podíamos tratá-lo como mera mercadoria. Nunca ninguém exigiu tanto de mim como ele.

Pintura de Baskerville, cuja obra visual se dedica a tipos urbanos e faz lembrar a arte bizantina. Foto: Arquivo Pessoal

Em Londres, Baskerville deu uma pausa na profissão. Trabalhou como peão de obra, pintor de parede e babá, entre outras atividades. Classifica essa experiência como “maravilhosa e muito dura”, e ela o fez perceber que deveria retornar ao Brasil (e para o teatro). Em 1991, começa a dar aula no Teatro Escola Célia Helena, em São Paulo, onde permaneceu por cerca de 20 anos. No período, escreveu uma peça que considera uma experiência ruim, chamada Jogo da Velha (1998), coautoria de Michel Fernandes e dirigida por Atílio Ricó. “Foi um fracasso. É uma peça que leio hoje e questiono o que me levou a escrevê-la”, conta. Foi também uma tentativa de ganhar dinheiro que naufragou. Baskerville foi “expelido” do circuito comercial nesse episódio.

Foi no Teatro Escola Célia Helena que ele aprendeu a dirigir, depois de assinar espetáculos realizados por mais de 80 turmas de formandos. Também foi com ex-alunos da instituição que ele criou sua companhia Antikatártika, com a qual produziu 17 x Nelson Parte 1 – O Inferno de Todos Nós, uma experiência de colocar 17 peças de Nelson Rodrigues no liquidificador, com dezenas de personagens passando pelo palco, e depois Camino Real, de Tennessee Williams. “As duas produções procuraram inserções épicas em textos tradicionalmente dramáticos”, explica. O teatro épico, em resumo, é uma forma que recusa repetir a imersão emotiva do modelo realista e que permite ao espectador distanciar-se do enredo durante sua própria evolução. Teve expressão na Rússia no momento pós-revolução e aparece ainda com mais força no teatro do alemão Bertolt Brecht (1898-1956). O ruído com a obra de Rodrigues acontece porque o autor cria a partir de uma aproximação com o melodrama. Tennessee Williams, da mesma maneira, dedica-se ao realismo. Não são teatros tradicionalmente relacionados ao épico, mas à atmosfera dos enredos psicológicos.

A pesquisa sobre o teatro épico de­senvolvida por Baskerville nessas duas e em outras experiências culmina em Luis Antonio – Gabriela, que, como ele mesmo lembra, “tem só dois diálogos na forma dramática tradicional” –aquela em que um personagem se dirige a outro. Isso significa que, em boa parte do espetáculo, o diálogo se dá diretamente com a plateia.

Esse contato imediato é reforçado pelas conversas com o público depois do espetáculo. “(A atriz cubana e transexual, morta no ano passado) Phedra de Córdoba me procurou depois, por exemplo”, ele conta. “Eu a conhecia como artista do grupo Os Satyros. Ela viu o espetáculo, ficou louca, queria falar comigo de qualquer jeito. Quando  mexemos na história do Luis Antonio, começamos a receber inúmeros depoimentos de outras travestis. Uma coisa que me chamou atenção é que muitos deles também relatam que foram abusados sexualmente”, diz.

Baskerville defende que sua metodologia de pesquisa permite um posicionamento político incisivo, embora indireto em seu discurso. “A tentativa é de abrir uma fissura sem querer colocar nenhum tipo de ideia preestabelecida. Quero que o espectador saia do espetáculo se sentindo exposto; acho que há uma cura na questão da exposição. Eu vejo um pastor chutanto a cabeça de um mendigo, moleques que batem em gays com lâmpadas e muitas outras coisas horríveis. Minha forma de protesto é por via específica. No teatro, tento fazer um resgate do humano, se é que já fomos humanos alguma vez”, provoca.

Cena de ‘A Vida’, na qual os atores usam de suas próprias experiências biográficas para compor a peça. Foto: Lígia Jardim/Divulgação

Esteticamente, as peças de Baskerville são sujas, carregadas de referências, uma característica que mais uma vez o leva a falar sobre a influência dos anos 1980. A cafonice, o mau gosto e o kitsch povoam as cenografias de seus espetáculos, em estudos que primam mais pelo excesso do que pela sim­plicidade. “O mau gosto eu peguei do Nelson Rodrigues. Ele dizia ter um mau gosto agressivo, e eu comungo isso com ele”, confidencia, sobre o autor que lhe rendeu ainda 17 x Nelson – Parte IISe Não É EternoNão É Amor e Os 7 Gatinhos, ambas de 2012.

A vida, “ela própria”, se cerca de mau gosto, ele defende. “Por isso critico o teatro que quer ser arrumadinho. E essa postura vem dos anos 1980, uma década em que tudo ainda era bagunçado, a gente não sabia para onde ia”, analisa. Para o diretor, os anos 1980 esboçam uma reconstrução de questões importantes que haviam sido interrompidas pelo regime militar e que só mais recentemente voltam a ganhar expressão. Nos anos 1970, o esfacelamento dos circuitos de pesquisa pela situação política e pela censura trouxe, na década seguinte, formas antigas ao cenário, com narrativas lineares, populares, embora muitas vezes densas. É o caso de Suburbano Coração, peça de Naum Alves de Souza, que Baskerville reencenou em 2015, centrada na figura de Lovemar, mulher em busca de um amor, que se frustra com o próprio romantismo ao se relacionar com um professor, um pastor, um cantor e um caminhoneiro.

O reconhecimento, pela crítica, da meticulosidade com que Baskerville cria seus espetáculos nem sempre encontra correspondente, porém, quando o assunto é o texto. Em uma crítica para As Estrelas Cadentes do Meu Céu São Feitas de Bombas do Inimigo (2013), cujo texto amarra depoimentos de jovens sobre conflitos armados, o crítico Luis Fernando Ramos, para o jornal Folha de S.Paulo, aponta que “fragilidades na dramaturgia não são supridas pela inventividade das cenas geradas e pelo desempenho dos atores”, por exemplo.

Diários de motocicleta

Na vida pessoal, Baskerville é um entusiasta do pop, o que se reflete inclusive em suas pinturas (sim, ele mantém uma produção de fôlego paralela ao teatro). Seus quadros são povoados por figuras que vivem à margem da sociedade burguesa e aristocrática, espécies de demônios perdidos em ambientes urbanos, todos eles forjados por traços que as HQs herdaram do expressionismo, cheias de imperfeições, manchas e distorções indiscretas.

A psicodelia e o rock parecem, o tempo todo, correr por trás das criações do diretor, como uma irrigação do inconsciente. Não é só Pink Floyd, The Who e The Cure que ele carrega na bagagem de suas referências e de sua formação. Recentemente, o filme Easy Rider passou a fazer ainda mais sentido. Baskerville comprou uma mo­to e passou a fazer longas viagens pela América Latina, na companhia de um velho amigo de palco, o ator Jairo Mattos, que ele conheceu durante a temporada de Notícias Silenciosas, no Rio dos anos 1990.

Baskerville é um sujeito diplomático, diz Mattos, “prima pelo diálogo mais do que pelo conflito”, e o aparente desinteresse com a elegância esconde um universo organizado e metódico. Até 2015, ele usava óculos remendados com fita isolante. A atriz Aldine Müller, que atuou em Suburbano Coração, protestou contra o desleixo e presenteou-o com dois modelos. Um deles é o mesmo que Baskerville usa ainda hoje. Tem lentes de diâmetro curto, o que lhe confere a aparência de um Sigmund Freud destemperado. O outro par de óculos ele perdeu.

Mattos conta que Bakerville teimou em comprar uma Harley Davidson pa­ra que eles pudessem pegar estrada, mas que aos poucos foi convencido de que uma BMW era a melhor opção. Feita a troca, começaram as viagens. Uma delas foi para a Patagônia, com trechos de até dez horas sem parada. “Ele é corajoso, topou fazer a viagem sem ter experiência e passou bem no teste; essa é uma viagem muito dura e com grandes diferenças de temperatura”, narra o amigo, que tem o projeto de transformar as viagens em um programa de TV.

Entre as inúmeras histórias que ele conta e que renderiam um reality sobre dois tiozões motoqueiros loucos por farra e paisagens, surge na memória de Mattos o episódio de uma ventania de 80 km/hora. A estrada que pegaram na Argentina tinha, em diversos pontos, altares com imagens de Gauchito Gil, mistura de figura mitológica e religiosa popular no país. Mattos conta que parou em um desses altares para pedir que o vento diminuísse e garante que seu pedido foi atendido meia hora depois. Talvez seja o maior confronto de visão entre os dois amigos: para Mattos, Baskerville é demasiado cético e, por isso, nunca confirmou a ninguém a versão do companheiro de estrada. “Ao contrário, ele nega que tenha acontecido.”

Segundo Fernando Fecchio, que Baskerville dirigiu em A Geladeira, peça do teatro grotesco escrita pelo argentino Copi (1939-1987) e que tem como protagonista um homem em confronto com uma vida solitária, o diretor “tem muito amor pelo trabalho, se envolve muito com as pessoas e abre um diálogo muito franco com os atores e toda a equipe, que em geral é sempre a mesma”, diz. “Isso enriquece demais o trabalho. O rigor acaba aparecendo como uma consequência, porque todos se contagiam”, elogia.

Para Aldine Müller, a paciência é uma qualidade inegável do diretor. “O Nelson é ator. Por isso, diferentemente de outros diretores, que apenas passam para o ator o que eles imaginam do trabalho mas não o levam propriamente até o re­sultado que esperam, o Nel­son vai te conduzindo, vai te propondo exer­cí­cios e especificando pacien­te­mente o que ele pretende”, diz.

No depoimento de Fecchio está contida uma qualidade que talvez atravesse todos os trabalhos de Baskerville. Em sua trajetória, não só de artista, mas de professor, ele agregou pessoas, gêneros, estéticas, situações. Do caos e da inquietação, puxa um fio condutor.

 

2018 deve definir destino de Inhotim

Instituição precisa de soluções para continuar em pleno funcionamento. Na foto, a escultura "Inmensa", de Cildo Meireles. (foto: Tibério França)

Em um ano para lá de difícil na cena das artes visuais, marcado por censuras e protestos idiotizantes, 2017 terminou com uma péssima notícia: a queda do mecenas Bernardo Paz, gerando incerteza no futuro de Inhotim.

A notícia não merece ser considerada de fato uma surpresa na história da arte brasileira, já que todas as iniciativas importantes que tiveram origem na iniciativa privada não se sustentaram de forma pacífica após a morte, queda ou falência de seu criador.

Foi assim com o Museu de Arte de São Paulo, Masp, criado por Assis Chateaubriand, e o Museu de Arte Moderna de São Paula e a Bienal de São Paulo, ambos surgidos por desejo de Ciccillo Matarazzo, para citar dois casos paulistanos. Todas essas instituições atravessaram e atravessam períodos de turbulência financeira ou ética, sem uma estrutura que lhes assegure vida permanente.

Na raiz dessas crises encontra-se a mesma dificuldade agora enfrentada por Inhotim: retrato de seu criador, Bernardo Paz, como será possível garantir continuidade a um projeto tão pessoal?

Instalação Narcissus garden, Yayoi Kusama
Instalação Narcissus garden, Yayoi Kusama, 1966. (foto: Inhotim.org.br)

O comprometimento do empresário com o local parecia inequívoco. Inhotim foi inaugurado em 2004, de forma estrondosa, com aviões fretados para levar os 700 convidados ao espaço onde guias, vestidos como se estivem no Jurassic Park, serviam espumante fartamente. Nesse primeiro momento, o parque foi alvo de críticas por expor artistas vistos em qualquer coleção internacional e sem relação com o local. Aos poucos, Paz foi alterando o sentido do local, focando a produção brasileira, reforçando os laços entre arte e natureza, convidando artistas para criarem obras em diálogo com a exuberância do contexto.

A inauguração do pavilhão de Claudia Andujar, há dois anos, pode ser vista como o ápice desse processo. Não há artista que melhor exprima a relação entre meio ambiente e arte que ela e seu pavilhão, não só merecido como necessário, frente ao massacre que os índios seguem sofrendo no Brasil.

Contudo, assim como os mecenas que saíram de cena e deixaram as instituições a deriva, a ausência de Paz será sentido a curto prazo. Afinal, residente do parque, figura permanente no almoço do restaurante Tambaqui, ele garantia um padrão de qualidade que dificilmente será mantido.

Inhotim já é uma Oscip, organização civil de interesse público, mas sem um patrono a altura de Paz, dificilmente o desenvolvimento do parque será garantido. A fragilidade dos Museus de Arte Moderna, tanto carioca quanto paulista, a trajetória irregular do Masp e as crises constantes da Bienal apontam que deixar o melhor espaço de arte contemporânea do Brasil nas mãos da iniciativa privada é temerário.

Na cidade de São Paulo, é inegável, a instituição com trajetória mais sólida e consistência é a Pinacoteca do Estado, apesar de sua recente semi-privatização, sendo transformada em OS (organização social). A Pinacoteca, em seus mais de cem anos, teve diretores importantes como Aracy Amaral, Fabio Magalhães, Emanoel Araújo, Marcelo Araújo e Ivo Mesquita, tendo uma política de aquisição de acervos e exposições sem paradigmas. A Pinacoteca sediu um debate importante sobre arte construtiva quando Amaral era diretora, se abriu às performances na gestão de Magalhães, conquistou público massivo com Emanoel por ocasião da mostra de Rodin e assim sucessivamente. Agora, com o alemão Jochen Volz a frente, ela inaugura uma nova fase mais internacional, o que era necessário.

A Galeria Lygia Pape
A Galeria Lygia Pape, instalada em Inhotim. (foto: Inhotim.org.br)

No entanto, é inegável que o que Inhotim se tornou a grande referência da arte brasileira no país, com artistas que não são vistos de maneira adequada no resto do circuito, como Cildo Meireles, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Miguel Rio Branco, Tunga, Adriana Varejão e Andujar, para citar aqueles com pavilhões permanentes.

E essa permanência não merece estar fincada na visão patrimonialista da elite brasileira, que sempre mistura privado e público com fins escusos.

Até agora, a direção de Inhotim vem buscando manter os patrocínios já logrados anteriormente, mas instituições de arte como Inhotim, para sobreviver dignamente precisam do apoio de políticas governamentais consistentes.

Nesse sentido, parece estarrecedor que o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) não tenha tido algum tipo de atuação visível para viabilizar a manutenção de Inhotim. Tanto ele como o governo de Minas Gerais precisam entrar nesse debate de forma decisiva, ou a abertura do local, com os guias vestidos como em um parque pré-histórica, terá sido apenas o prenúncio de um fim desastroso.

 

Leonardo Cohen: entre a Bíblia e o Kamasutra

Cohen tenta finalizar uma letra em sua casa em Los Angeles. A foto, de 1982, é de Dominique Isserman.

Havana, 17 de março de 1961. Da janela de seu hotel, o jovem autor de dois elogiados livros de poesia vê tropas correndo pelas ruas e ouve a artilharia antiaérea. Deixara a barba crescer ao estilo de Che Guevara e vestia-se como um legítimo guerrilheiro. Como diz a biógrafa Sylvie Simmons, no livro I’m Your Man (editora BestSeller), ele se sentia atraído pelas ideias comunistas da mesma forma que se sentia atraído “pelas ideias messiânicas da Bíblia”. A experiência algo bizarra na invasão da Baía dos Porcos, e nas noites em que vagou pelas vielas e becos da capital cubana “com um caderno numa das mãos e uma faca de caça na outra”, rendeu alguns poemas, ao menos uma canção, Field  Commander Cohen ( Nosso espião mais importante/Ferido na linha de batalha/Jogando ácido de paraquedas em festas diplomáticas”) e a tentativa de um romance, The Famous Havana Diary. Mas principalmente mostra como Leonard Cohen, talvez o mais original sedutor da canção, sempre esteve em busca de algo que aplacasse sua inquietação e angústia.

“Pode ser qualquer coisa que funcione, vinho, catolicismo, budismo, LSD”, disse certa vez, sem mencionar o amor das mulheres, quase sempre correspondido (que o digam Joni ­Mitchell, Nico, Janis Joplin e, entre tantas outras, a atriz Rebecca De Mornay). Aos 13 anos aprendeu hipnotismo num livro e experimentou seus novos conhecimentos com a bela governanta que trabalhava em sua casa. O truque funcionou e ela docilmente tirou as roupas.  A revelação mágica daquele corpo teve efeito tão grande sobre o aspirante a escritor quanto os ensinamentos do avô, rabino importante em Montréal, onde Cohen nasceu. Diria-se que a hipnose voltou-se contra o hipnotizador. A cena depois foi descrita em seu primeiro romance, A Brincadeira Favorita , de 1963, publicado no Brasil pela Cosac Naify. Como se fechasse um ciclo, na música Because of, uma das melhores de Dear Heather, disco lançado quando já tinha 70 anos, ele entoa os versos (em tradução livre): “Por causa de algumas canções/ Em que falei de seus mistérios/As mulheres têm sido/Excepcionalmente gentis/com minha velhice./Elas arrumam um lugar secreto/Em suas vidas ocupadas/E me levam até lá./Então ficam nuas/Cada qual à sua maneira/e dizem,/Olhe para mim, Leonard/Olhe para mim pela última vez./E inclinando-se sobre a cama/Me cobrem/Como se eu fosse um bebê com frio”.

A hipnose também funcionava muito nos espetáculos ao vivo, em que a plateia entrava num estado de comunhão e adoração, cantando cada verso de So Long Marianne ou Hallelujah, duas de suas mais famosas canções, com os olhos fechados ou fixos naquela figura elegante que se movia lentamente no palco e parecia se dirigir a cada um com atenção especial. Depois que a manager Kelly Lynch sumiu com todo seu dinheiro (cerca de US$ 5 milhões), aproveitando-se dos seis anos em que ele ficou meditando num mosteiro budista, iniciou uma série de turnês mundiais, que duraram de 2008 a 2013. Mesmo nesse último ano, já visivelmente cansado e talvez doente, emagrecido em seu terno de listras e sob o indefectível chapéu Fedora, o Captain Mandrax de outros tempos, quando entornava três garrafas de Chatêau Latour no camarim, se entregava de corpo e alma ao público, em shows que duravam três horas e meia. Chegava a ajoelhar-se no chão, com o punho fechado, num gesto de intensidade que poderia parecer teatral não fosse a verdade em sua voz. Vinte anos antes, em Paris, voltou seis vezes para o bis. O público francês espelhava sua rara disposição e não se cansava de aplaudir, de pé, como se o tempo tivesse deixado de existir. Não à toa, dizia-se, meio brincando, “que se uma francesa tivesse apenas um disco, seria um do Leonard Cohen”.

leonard cohen
Cohen se apresenta no festival da Ilha de Wight para 600 mil pessoas. Era 1970, ele tinha lançado dois discos apenas, mas já era adorado na Inglaterra. Sua banda,The Army, foi assim batizada porque a turnê às vezes parecia uma batalha: na Alemanha alguém da plateia apontou uma arma para o cantor. O fato de ele ter recebido a multidão com a saudação nazista não deve ter ajudado. Foto: Reprodução do encarte de Leonard Cohen: Live at the Isle of Wight 1970.

A primeira vez

Curiosamente, sua primeira aparição em um show como artista solo quase durou alguns segundos apenas. Convidado pela cantora folk Judy Collins, que havia gravado Suzanne com sucesso, ele tremia tanto, “como uma vara”, que pediu desculpas e abandonou o palco, só voltando depois de encorajado pela linda amiga. Para a biógrafa Simmons ele revelou, com o humor fino e autoderrisório que lhe era peculiar: “De alguma forma consegui terminar e achei que ia cometer suicídio. Ninguém sabia o que fazer ou dizer. Acho que alguém pegou a minha mão e me tirou do palco. Todos nos bastidores sentiram muita pena de mim e não conseguiram acreditar em como eu estava feliz, no quanto estava aliviado por ter dado errado. Eu nunca tinha sido tão livre”.

A música surgiu bem cedo em sua vida. Seu pai era o bem-sucedido dono de uma confecção de roupas finas (“já nasci num terno”, diria mais tarde) e sua mãe “uma judia russa, de generoso espírito tchekcoviano ”. Teve aulas de piano quando criança e, já adolescente, tocou clarinete na escola e em casas noturnas, onde “vivia cantando e bebendo”. Na mesma época se encantou com a poesia de Yeats e Garcia Lorca – este, seu grande ídolo, ao lado de Ray Charles e Hank Williams -, e começou a escrever seus primeiros versos. Comprou também um violão, com o qual aprendeu a tocar canções socialistas (“os socialistas eram os únicos que tocavam violão naquela época”), baladas escocesas, flamenco, o folk de Woody Guthrie e o folk-blues de Leadbelly.  No segundo ano da faculdade, fundou com dois amigos a banda de covers Buckskin Boys. Tocavam basicamente um country bem-comportado, em igrejas e escolas. Até que descobriram o calipso no pequeno bairro negro de Montréal e Cohen começou a improvisar naquele ritmo, cantando sobre as pessoas que passavam na rua.

Porém, a música só se tornou sua atividade principal quando tinha 32 anos e gravou, entre 1967 e 1968, o primeiro disco, Songs of Leonard Cohen. Quatro meses mais velho que Elvis, era um ancião no meio. Antes, publicou seis livros, quatro de poesia e dois romances, pelos quais recebeu críticas em geral bem favoráveis. No Canadá era já bem conhecido, pois fazia leituras em turnês com outros poetas, dentre eles o amigo e grande mentor Irving Layton. Também se apresentava com uma banda de jazz de até 12 instrumentistas, que era o que mais gostava. Seu jeito meio tímido, com que falava seriamente coisas às vezes surreais ou irônicas, desconcertava e seduzia quem o via. Como em suas canções, os poemas e histórias têm muitas nuances e ambiguidades, são a um só tempo tristes e engraçados, metafísicos e eróticos, engajados e hedonistas. Basta ver os títulos de alguns de seus livros para se ter uma ideia: Flowers for HitlerThe Energy of SlavesBeautiful Losers. Cohen gostava de brincar com os contrastes e de inverter expectativas. Beautiful Losers, seu segundo romance (em fase de tradução para o português), de 1966, foi o que fez mais barulho. Em linhas gerais, conta a história de um triângulo amoroso entre um antropólogo, um separatista por Québec e uma descendente dos índios iroqueses. Um dos três se mata, outro, com sífilis, enlouquece. O estilo é caleidoscópico, vai do surrealismo à pornografia, sem, no entanto, perder o fio da meada. Um crítico disse que era “uma mistura de James Joyce com Henry Miller”. Mas é uma obra única, como quase tudo que Cohen fazia.

Entre os fãs do livro, estava um certo Lou Reed, que Leonard conheceu quando decidiu se mudar para Nova York, justamente para tentar se tornar músico, já que a literatura lhe rendia muitos elogios mas pouco dinheiro. Instalado no mítico Chelsea Hotel, que intitula outra de suas canções mais conhecidas, Chelsea Hotel nº2 – estão nela as famosas linhas contando o caso com Janis (cantadas com candura e afeto, apesar da crueza da descrição): “Você me chupava na cama desfeita/enquanto a limousine te esperava na esquina” –, passou a frequentar a Factory de Andy Warhol e trocar ideias com Patti Smith, a quem considerava, com entusiasmo (e razão), “um gênio, absolutamente brilhante, vai se tornar uma grande potência!”. Numa das noitadas, fez uma jam com Jimi Hendrix. Tocaram Suzanne, uma das favoritas do guitarrista: “Ele era uma figura gloriosa, e foi muito gentil comigo, tocando sem distorções para que minha voz aparecesse”. O encontro mais importante, no entanto, foi com o produtor John Hammond, que havia descoberto Bob Dylan e Billie Holiday para a Columbia Records. Alertado pelos rumores, foi ao pequeno aposento de Leonard no quarto andar do Chelsea e, olhando a estranha combinação de livros no criado-mudo, em que conviviam, lado a lado, Myra Breckinridge, de Gore Vidal, romance satírico sobre uma transsexual, e um tomo do filósofo Martin Buber sobre a iluminação judaica, sentou-se na beira da cama e pediu para ouvir algumas composições. Depois de três músicas – entre elas, claro, Suzanne –, Hammond foi categórico: “Vamos assinar um contrato agora. Bob Dylan que se cuide!”

De 2008 a 2013, Cohen fez incontáveis shows no mundo inteiro para cobrir o roubo de sua manager. Acabou sendo um prazer para todos.

O falso rival

Dylan, obviamente, nunca teve que “se cuidar”. Mas ambos sempre foram muito comparados. O perfil básico é o mesmo: judeus, literatos, obcecados por metáforas bíblicas, tendo partido os dois do folk mais engajado para depois seguir caminhos próprios. As diferenças, porém, também são grandes, e há até quem defenda que Cohen é quem merecia o Nobel de literatura. A verdade é que Dylan sempre esteve mais próximo da poesia beat de Allen Ginsberg e proto-beat de Walt Whitman, com versos enormes, muitas imagens espalhadas, numa tendência para a entropia vertiginosa, utilizando-se de formas mais improvisadas ou aparentemente desalinhadas, ao passo que seu amigo canadense, a quem admirava muito, buscava a carpintaria exata, a concisão, formas mais tradicionais da canção, inspirado não apenas pelo blues, country e folk, mas também pelas baladas europeias de contadores de histórias como Jacques Brel e Edith Piaf, sem mencionar o decisivo flamenco, que aprendeu brevemente de um espanhol suicida, e moldou seu dedilhar pouco ortodoxo. Mais próximo do rock, Dylan sempre fez mais sucesso, principalmente nos EUA, onde Cohen nunca foi muito bem compreendido (o que diz muito sobre os americanos). Houve até um produtor que, ao ouvir Various Positions, o disco de 1984, em que se encontra não apenas Hallelujah como Dance me to the End of Love, disse: “Olha, Leonard, eu sei que você é genial, só não sei se é bom o suficiente”, e não lançou o disco na terra de Trump, deixando para os europeus, que sempre foram muito mais fiéis a Cohen, o prazer de comprá-lo e ouvi-lo em suas casas. Um tempo depois, ao receber um dos muitos prêmios em sua vida (que inclui também um literário, o Príncipe de Astúrias), Cohen falou em seu discurso: “Fico sempre muito comovido com a modéstia do interesse da gravadora pelos meus discos”.

Certa vez, quando se encontraram num café em Paris, nos anos 1980, tiveram uma conversa reveladora do jeito como cada um encarava o ofício. Dylan adorava Hallelujah, a qual considerava “linda como uma oração”, e perguntou a Cohen quanto tempo ele tinha demorado para compô-la. Envergonhado de admitir que tinha sido mais de cinco anos, baixou para dois. E perguntou por sua vez, em quanto tempo Dylan tinha feito I and I. “Quinze minutos”, foi a resposta já tradicionalmente imodesta do gênio de Duluth. Numa outra conversa entre os dois, recontada deliciosamente por David Remnick na última entrevista que Cohen deu pouco antes de morrer, para a New Yorker, Dylan teria dito, enquanto dirigia o carro  para mostrar uma fazenda que comprara: “Para mim, você é o número 1. Eu sou o número zero”. Com sua gentileza lendária e cavalheirismo, Cohen concordou prontamente.

Na mesma matéria, Dylan mostra grande conhecimento da obra do falso rival, e faz uma avaliação generosa: “Quando as pessoas falam de Leonard esquecem de mencionar suas melodias, que, para mim, são tão geniais quanto suas letras. Mesmo as linhas de contraponto dão um aspecto celestial para as canções. Acho que ninguém chega perto disso na música moderna”. E faz uma análise detalhada de Sisters of Mercy, do primeiro álbum, além de elogiar músicas bem mais recentes, como Going Home e Show me the Place. “Suas canções são profundas e verdadeiras, sempre multidimensionais, que fazem você sentir mas também pensar”, diz. Compara Cohen a Irving Berlin: “Ambos ouvem melodias que a maioria de nós mal consegue ouvir. Ele é um músico ex­tremamente sofisticado”. ­Remnick também conversou com Suzanne Ve­ga, que se  saiu com uma boa definição a respeito do segredo nas músicas de Leonard, não muito distante do que disse o cantor roufenho de Like a Rolling Stone: “São uma combinação de detalhes bem realistas e um senso de mistério”. O próprio Cohen, que sempre declarou a dificuldade de escrever as letras, dizendo que chegava a levar anos, e que já se pegou batendo a cabeça no chão para fechar um verso,  mencionou a importância dos detalhes nos seus escritos. (Há mil outros “segredos”, claro, como a combinação de vozes femininas e angelicais no coro, e sua voz cavernosa, resultado de milhões de cigarros fumados. Ou o uso surpreendente de um sintetizador barato, em contraste com a sutileza e lirismo das letras.)

Paraísos artificiais e reais

Esse mistério vem muito de sua “conexão com as esferas”, uma espiritualidade que, mesclada à curiosidade sensual, desembocou num híbrido perfeito de romantismo e ironia, humor e desespero, a carnalidade mais terrena e a busca religiosa. Muito desse mistério se forjou na ilha de Hydra, para onde foi no final dos anos 1960, fugindo da chuva depressiva de Londres, carregando basicamente sua Olivetti e o famoso casaco de chuva azul. O sol dispensou o casaco, mas a Olivetti permaneceu firme na mesinha de madeira colocada na varanda da casa caiada de branco que comprou com a herança de uma tia-avó. Sua vida era frugal como a de um monge hedonista. Tinha ainda duas cadeiras, “como as pintadas por Van Gogh”, uma cama, alguns livros, velas, garrafas de vinho, um violão e uma vitrola, em que discos de Bessie Smith, Robert Johnson e Nina Simone giravam até derreter. Ele também derretia sob o efeito de ácidos, haxixe ou anfetamina, e literalmente conversava com as margaridas enquanto tentava escrever, debruçado sobre a máquina. “Era uma viagem atrás da outra tentando enxergar Deus. Geralmente tudo acabava numa ressaca horrível.” A modelo norueguesa Marianne Ihlen, sua primeira e mais conhecida musa, é quem cuidava da casa. Com algo de mítico e primitivo, como notou Remnick, a  ilha, em que os carros eram proibidos e a eletricidade uma dúvida constante, lembrada por Henry Miller em sua “beleza nua e selvagem”, reunia boêmios e artistas, “amantes em todos os graus de paixão e angústia, e platônicos frustrados”, bem ao gosto do jovem bardo, que se sentia verdadeiramente à vontade no berço de nossa confusão mitológica

Impossível não pensar nos fulgores ensolarados de Hydra quando se depara com o disco que ele gravou bem próximo da morte, na sala de sua casa, com produção do filho Adam (ele deixou também a filha Lorca, ambos frutos do casamento com Suzanne Elrod. Há ainda uma neta, filha do cantor Rufus Wainwright). O contraste é muito forte. Intitulado You Want it Darker, algo como “você quer mais escuro”, é uma prestação de contas com a vida e uma aceitação serena do fim – certamente conquistada na severa disciplina do mosteiro em Monte Baldy, Los Angeles, sob a batuta de Roshi, o minúsculo mestre zen que foi seu amigo e guia espiritual por 40 anos -, não sem alguma dose de humor e até sarcasmo. Deus, ou Jesus, aparece tanto como um jogador quanto como um traficante ou um curandeiro. A esperança, que já existiu, mesmo numa canção tão ácida como The Future (“Há uma rachadura em tudo/É assim que entra a luz”), é nula: “Um milhão de velas queimam pelo amor que nunca vem”. O coro brada “Hineni”, palavra em hebreu usada por Abraão quando aceitou o sacrifício de seu filho (tão bem descrito pelo próprio Cohen na canção The Story of Isaac), para na sequência, de modo determinado, ele afirmar: “Estou pronto, Senhor”. Só quem tem coração de gelo não se arrepia. Faz lembrar também uma música anterior, do excelente Old Ideas, de 2012, The Darkness, em que diz: “‘Peguei’ a escuridão/Bebendo da sua taça/Não tenho futuro/Me restam poucos dias/O presente já não é prazeroso/Tenho coisas demais para fazer”.

A morte já vinha mostrando seu capuz e sua foice. Pressentindo-a, o cantor e compositor falou para Remnick que não tem medo dela: “só espero que não seja muito desconfortável”. No final de julho deste ano, Cohen recebeu um e-mail em que um amigo próximo de Marianne contava que ela estava muito mal (ela viria a morrer pouco depois). Sua comovente resposta viralizou na internet: “Bem, Marianne, chegou o momento em que estamos tão velhos que nossos corpos já estão se desfazendo. Acho que em breve seguirei seu caminho. Saiba que estou tão perto de você que se estender a mão talvez consiga tocar a minha. E eu sempre te amei pela sua beleza e sabedoria, mas não preciso repetir isso, pois é algo que você sabe muito bem. Só quero te desejar uma muito boa viagem. Adeus, minha querida amiga. Com amor infinito, te vejo na estrada”.

Desse jeito, a tão temida estrada parece realmente bonita.

MAIS

Assista a três vídeos sobre Leonard Cohen selecionados por Daniel de Mesquita Benevides:

Leonard recita algumas poesias no documentário Ladies and Gentlemen, Mr. Leonard Cohen

Cohen canta Suzanne e explica o motivo de ter perdido os direitos sobre a música

Uma performance da música Hallelujah na turnê de 2013

A ira de Vigna

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"São todos iguais. Falam sempre de morte, vazio e solidão. Mas são muito engraçados", comenta Elvira sobre seus livros. Foto: Diego Rousseaux

Escritora, jornalista e ilustradora brasileira, Elvira Vigna foi diagnosticada com um câncer agressivo em 2012 e acabou falecendo em julho de 2017. Deixou, porém, inéditos a serem publicados, entre texto e artes. Agora, a editora todavia lança o livro de contos Kafkianas, com apresentação de Carolina Vigna Prado e posfácio de André Conti.

Leia uma das últimas entrevistas dadas por Elvira, concedida a Daniel de Mesquita Benevides e publicada na edição 9 da CULTURA!Brasileiros, em março de 2017:

Há muitos e muitos anos, Bob Dylan concedeu uma entrevista a um repórter brasileiro. Com uma condição: que fossem feitas cinco perguntas apenas. O pobre jornalista, que conhecia a fundo a obra do bardo, caprichou. Ao se ver diante do hoje Prêmio Nobel de Literatura, o que ouviu como respostas foram apenas dois no, dois yes e um perhaps. Elvira Vigna não é Bob Dylan, evidentemente. Mas o humor talvez se assemelhe. Sua exigência para dar entrevista é que ela fosse feita por e-mail. Explicou que não gosta muito de falar. Justo. Mandadas as perguntas, suas respostas foram gentilmente imediatas. Mas capciosa­mente curtas. Este jornalista viu-se, então, de calças não menos curtas. Sorte es­tar­mos no verão.

É fato que a fama de mal-humorada a persegue. Mas quem a conhece melhor diz que Elvira no fundo é doce. E realmente arredia, por timidez ou por não lidar bem com protocolos, diplomacias e que tais. “Acho que ela é única em vários sentidos. Como pessoa, ela não transige, não faz concessões, é muito coerente com o que acredita, é muito feminista, muito de esquerda, é firme na ideia de uma literatura literária, não feita para venda, mas para transformar. E ela age assim. Não aceita convites para eventos em que não acredita. As pessoas têm de se adaptar a ela, ela não se adapta às pessoas. Como escritora é a mesma coisa. O texto dela tem uma potência, diz exatamente aquilo que pensa”, afirma a escritora e crítica Noemi Jaffe.

Um prólogo faz-se necessário. Vigna é uma das vozes mais interessantes da nossa literatura. Seus livros, como ela mesma diz, “são todos iguais. Falam sempre de morte, vazio e solidão. Mas são muito engraçados.” É dis­cutível, porém, se são mes­mo todos iguais. Há sempre uma nova experiência com o narrador ou narradores. A questão de como contar uma história é central em sua obra e surge das maneiras mais diversas. Mudam cenários, cenas e motivações. Já a graça a que ela se refere existe, de fato, mas é muito peculiar, não para todos os gostos. O leitor precisa entrar na dela, sintonizar em seu canal, seguir o fluxo no mesmo diapasão. Vale o esforço.

Sua trajetória é também peculiar. Foi tarifeira da Air France em Paris, tem diploma da Universidade de Nancy em Literatura, curso feito num convênio com a UFRJ, e trabalhou em todos os principais jornais brasileiros, Correio da ManhãJornal do BrasilO GloboFolha de S.PauloO Estado de S.Paulo. Ilustrou e escreveu vários livros infantis, pelos quais ganhou alguns prêmios, incluindo um Jabuti e um APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte). Fez duas exposições com suas gravuras. Teve algumas editoras, todas falidas. Por uma delas publicou, entre 1970 e 1972, uma pérola do desbunde jornalístico, A Pomba, algo como uma versão mais erotizada de O Pasquim. Tem também uma novela em quadrinhos, algumas peças não encenadas, roteiros não filmados e crônicas (na falta de uma palavra melhor). De 1988 para cá, escreveu dez romances adultos, todos bastante elogiados pela crítica. Nada a Dizer, de 2010, ganhou o prêmio da Academia Brasileira de Letras; Por Escrito, de 2014, foi segundo lugar no Oceanos (antigo Portugal Telecom); e o mais recente, Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas, venceu o prêmio da APCA.

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As capas do primeiro ano da revista A Pomba, editada por Elvira entre 1970 e 1972. Foto: Divulgação

Putas, apelido já aceito, é, talvez, o livro mais acessível que já escreveu. Não que sua escrita seja exatamente difícil. É… idiossincrática. Num dos textos da série Morrendo de Rir, publicados pela revista Pessoa, que podem ser lidos em seu site, vigna.com.br, Elvira conta o seguinte episódio, que explica, em parte, e de forma muito direta, o que foi dito até agora: “Minha agente, a Anja, um amor de alemoa, é categórica: Não faço mais sucesso porque: 1) sou mulher, feminista e velha; 2) escrevo esquisito; 3) não sorrio pras pessoas pra quem devia sorrir. Sendo que, acrescenta, desiludida, se eu sorrisse, os dois primeiros itens não teriam tanta importância”.

Uma das chaves para a compreensão do livro está no título: o formato lembra, realmente, um palimpsesto. Personagens e histórias se acumulam em camadas que parecem se repetir, mas a cada órbita narrativa ganham novos significados e, antes de serem cobertos por outros fatos e palavras, deixam vestígios de sua passagem. O enredo é simples (suas implicações é que são complexas): João, sujeito razoavelmente rico, egoísta, casado com Lola, gosta de sair com putas. Talvez seja um vício, que se retroalimenta porque sempre insatisfatório. Ficamos sabendo de suas desventuras sexuais através da narradora. É para ela que ele conta, com seu jeito meio autista, de sua prospecção pela rua Augusta, o que inclui o velho castelinho kitsch da boate Kilt, e das explorações por inferninhos em Brasília ou Rio. As conversas de mão única se dão numa editora prestes a falir. Ambos tomam uísque caubói em copinhos de plástico, ela no sofá, ele em sua mesa. Xerazade invertida, João parece querer evitar algum destino ruim ao relatar suas dezenas e uma noites. Ouvinte calada, ela talvez tente seduzi-lo com seu silêncio. É, reiterando o vaticínio da autora, um encontro de solidões, numa situação de vacuidade, com a morte rondando. Dito assim, parece leitura para cortar os pulsos, mas Elvira tem razão: é muito engraçado também. A ideia de palimpsesto ainda está em sua gênese: ela jogou fora toda uma versão anterior do livro, insatisfeita com o tom.

“João e a moça no sofá (eu) eram reais, e são mais reais agora.” Tudo o que escreve é baseado em coisas “vividas, vistas ou ouvidas.” No site Estudos Lusófonos, do professor Leonardo Tonus, há um ótimo depoimento seu: “Tenho muita clareza sobre o motivo de eu fazer literatura. Pretendo, com ela, tornar minhas as histórias que fui obrigada a viver. Só tem um jeito de elas se tornarem minhas: é passarem pelos outros. Essa tentativa se dá no ‘mundo comum’, um termo da Hanna Arendt que designa o espaço das diferenças que me separam e me aproximam desse outro. É, portanto, um espaço da intersubjetividade, esse, onde minha literatura existe. Ou seja, para que ela se dê, é preciso que haja um outro, uma outra maneira, que não a minha, de viver a vida. Aí reconheço a minha como sendo minha. (…) A má notícia é que essa literatura – minha e de outros colegas do contemporâneo – é árdua. Não só para nós, os escritores que a propomos, mas também para esse outro, o leitor, que é convidado a participar daquilo que ainda não está pronto, que nunca fica pronto, daquilo que não só não tem um significado a oferecer como, pelo contrário, se declara falho, necessitado de sócios para sua ressignificação contínua. Esse compartilhar, esse admitir insuficiências e necessidades, a admissão de que precisamos da alteridade para viver, isso exige esforço. Alteridade vem de alterar. E alterar, principalmente alterar a si mesmo, dá um enorme trabalho”.

A dívida com o jornalismo e as madeleines da vida é evidente. O famoso gatilho de Proust também dispara suas narrativas no aspecto mais fugidio, subjetivo. Mas não se pense em autoficção. À minha pergunta, “Narradora e autora… qual a distância?”, sua resposta é caracteristicamente ambígua e concreta: “Bem medida ou, pelo menos, bem procurada. O narrador nunca é eu, nem foi. É alguém que tem uma distância precisa de mim hoje, de mim em qualquer outra época. Uma proximidade afetiva: sabe de mim, gosta de mim. Mas consegue me ver. O narrador é um lugar de onde aquilo que quero compartilhar pode existir. É muito difícil de achar, pelo menos por esta que vos fala”. Continuo: “Achei especialmente interessante o que escreveu sobre as imagens serem mais incompletas, porém mais polissêmicas. As palavras e mesmo a memória parecem insuficientes também. A literatura seria uma tentativa de dar algum sentido a tudo isso?”. A resposta surge na tela como névoa passageira. E estranhamente precisa: “É, exatamente. Mundos incomple­tos, polissêmicos. A insuficiência co­­mo medida de con­vivência”. Em outra situação, pontuou, como se temesse ser mal compreendida e sentisse a ne­cessidade de deixar mais clara essa “insuficiência” de que fala: “A literatura serve para te desestabilizar, para te botar mal, com dúvida”.

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Autorretrato. Ilustradora premiada, Elvira estudou gravura na Escola de Belas Artes, no Rio

Para Cristhiano Aguiar, jornalista, editor, crítico literário e professor do Centro de Comunicação e Letras do Mackenzie, “ela tenta escrever contra a literatura”. E acrescenta, concordando com Noemi: “Acho que ela também questiona uma posição social ‘careta’ – tradicional e formal – do escritor. Ela retira a formalidade, retira a idealização. Acho que ela tam­bém quer retirar, na escrita e na postura dela, uma aura de intensa legitimidade. Ela quer ‘desgourmetizar’ a literatura, eu acho”. Já o crítico Manuel da Costa Pinto tem opinião semelhante, mas num sentido menos positivo: “Ela tem o pessimismo de um Graciliano Ramos, de um Dalton Trevisan, embora seja mais urbana. Sua obsessão feminista com a questão das diferenças de gênero, com a brutalidade das relações sociais, beira às vezes o caricatural. É mais uma postura do que algo com autenticidade. Ela quer épater le bourgeois, só que o burguês não se choca mais”. Às aproximações de Ma­nuel, que, não obstante, vê grandes méritos nos livros de Vigna, se poderia acrescentar o nome de Raduan Nassar, em especial aquele de Um Copo de Cólera, cuja virulência, ora seca, ora lírica, com­bina com os descaminhos amorosos e sexuais nas tramas vignianas.

A publicação A Pomba pode ter feito, em menor escala, esse papel de épater os burgueses. Momento único da chamada imprensa nanica, era bastante subversiva para a época, ainda que os censores, pouco espertos, não percebessem. Numa entrevista para o blog português Som À Letra, ela conta: “A censura liberava as edições para a gráfica sem notar que quando falávamos do nazifascismo alemão estávamos falando deles”. A redação ficava em seu apartamento, no Rio. Elvira, à época com 20 e poucos anos, cuidava mais da produção, e seu então companheiro, Eduardo Prado, da edição. O ambiente era de descontração total, com muita risada e jogatinas de pôquer rolando soltas: “Ninguém fechava a porta. O edifício estava em construção e, na verdade, ainda não tínhamos licença da prefeitura para habitar o apartamento em obras. Então era um movimento constante o dia inteiro, e não só de jornalistas, mas também de pedreiros e operários. Não tinha nada que pudesse ser chamado de rotina”. O cartunista Quino uma vez passou por lá. Joel Silveira, Domingos Oliveira e Ziraldo eram alguns dos colaboradores. As capas sempre traziam nus, que também ocupavam as páginas internas. Era uma provocação aos tempos conservadores da ditadura e também à revista masculina Fairplay, que tinha demitido o casal. Nada convencional, claro. Havia também nus masculinos, “o que era um escândalo”, e os modelos eram muitas vezes negros ou pessoas comuns, bem distantes do padrão das revistas comerciais. Os textos falavam de psicanálise a literatura, entre mil temas, sempre com humor e inteligência.

Começou a escrever por causa de uma de suas editoras, a Bonde, que cometia a “imprudência” de só publicar autores novos. Escolheu de início a literatura infantil, porque queria se comunicar com os dois filhos, a quem “não entendia”. No fim das contas, eles a entenderam tanto que hoje também encararam o sonho das pequenas editoras: David Nicolau fundou a Estado da Arte e Carolina acaba de abrir a Uva e Limão. Quando cresceram, abandonou seu monstrinho Adrúbal (personagem criado por ela) e, em 1988, lançou um primeiro livro de temática adulta. Sete Anos e um Dia, disponível na íntegra em seu site, trata de quatro amigos no período pós-abertura. Um entrevero com a editora, José Olympio, fez com que abandonasse a literatura pelo jornalismo por quase uma década. A volta se deu pela Companhia das Letras, onde está até hoje. Ela mandou vários originais pelo correio e Maria Emília Bender, que viria a editar todos os seus livros a partir dali, se interessou: “Seus livros não são exatamente fáceis. Ela sempre encobre as coisas, tem sempre um mistério, um segredo, e um segredo que às vezes é tão secreto que fica quase criptografado. É uma voz muito particular, diferente de tudo o que eu já tinha lido. Tem zero pieguice. Muitas vezes ela é cruel, o que eu acho bem interessante. É uma literatura áspera, que morde. E ela não é nada óbvia. Sua opção preferencial é pelas mulheres e pelos losers urbanos, ex-strippers, transexuais de subúrbio, jornalistas do terceiro escalão. Há uma indefinição nas coisas, pode ter acontecido algo criminoso ou não. É cerebral e visceral ao mesmo tempo, e esse é o ouro dela”, diz Bender.

Grande parte da crítica considera o Putas seu melhor livro. Noemi Jaffe, que ainda não o leu, fica por ora com Por Escrito: “Gosto muito da polifonia no Por Escrito. Cada personagem tem uma voz muito própria. É difícil ser polifônico e manter a individualidade dos personagens. Ela é fera. É impressionante como ela vai passando de uma situação para outra sem que a gente perceba as passagens”. Já a própria escritora – e também Costa Pinto – prefere uma cria menos beneficiada pelos pequenos holofotes da mídia. Como declarou em conversa pública com Manuel: “A um Passoé um livro único, e é o melhor que eu fiz. É um comentário sobre a peça A Tempestade, de Shakespeare, em que a ficção se desmancha em pleno palco. Um personagem conta a história do outro, mentindo. Quero reeditar no ano que vem, não sei se vou conseguir, é um livro de não venda, acadêmico, para estudioso de literatura.” Ao contrário, parece promissor.