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Hegel versus Nietzsche

A dialética cura.

Anos atrás, traduzi um artigo de Gérard Lebrun, no qual ele dizia que “a dialética pacifica”. Para ele, isso era uma critica, não um elogio. A dialética teria conflitos apenas de mentirinha, destinados a depois serem superados. Ela não dava valor suficiente ao conflito, sempre redutível, sempre curável. Sendo nietzschiano, Lebrun pensava o conflito como agônico, levando finalmente à morte, nunca à paz.

Na dialética, a fila anda. Ela cura o passado. Este foi lugar da tese e antítese, da qual o presente é, ainda que temporariamente, uma síntese. Nada restou do passado, tudo veio para a nova síntese. Não sobra resto, lembrança, saudade.

A dialética é bola para frente, por isso é terapêutica. Tudo o que ficou de ruim é dissolvido, como quando um bom massagista tira a dor muscular com um cotovelo forte e sabiamente aplicado. Dói muito! mas cura. A dor mata, sim, mas a dialética salva porque não deixa nódulos de dor nos músculos, na coluna.

Já para Nietzsche, o conflito é sempre agônico, antagônico. Nele temos uma guerra dura, severa. Temos o insuperável. Para os nietzschianos, negar que haja algo irredutível em cada singularidade é inaceitável. Sempre há algo que sobra, resta, não se dissolve. As singularidades são extremamente potentes.

isso vale para Hannah Arendt, para muitos cientistas sociais, para os psicanalistas de hoje.

Para Freud, porém, havia cura. A cura era tão importante que, no tardio “Análise terminada e análise interminável ” ele conta de um príncipe russo que tardava a sarar, até que por volta de 1913 Freud lhe fixou um deadline: é este ano. Seja o que for, este ano termina sua análise. E deu certo. O grão-duque voltou para a Rússia. Mas não deu certo, confessa Freud, porque uns anos depois o russo voltou a ele, e não estava bem. (O curioso é que tinha havido a Revolução Russa, ele perdeu título, riquezas e parentes, mas Freud pensava que, se estivesse mesmo curado, dispensaria nova análise: o que é obviamente um delírio de Freud; mas, se isso não é acreditar na cura, não sei o que seria).

Curar é superar, descartar os resíduos, quando o passado o trauma ficou realmente para trás. Mas os psicanalistas de hoje entendem que não ha cura, o passado está presente na identidade de cada um. Nunca uma crise é plenamente resolvida

Nesse resíduo nietzschiano há um elemento trágico, que lembra – curiosamente, dado que os dois se opõem em tudo – o trágico hegeliano. Para Hegel, a tragédia não é uma história triste, como na mascara da tragédia o rosto sorrindo (e rindo na da comédia). Ela é a situação em que duas particularidades opostas têm ambas razão, mas não chegam a uma síntese, não sobem a um patamar superior em que as duas se integram. Isso, que para Hegel é um fracasso, é uma incapacidade de síntese, é em suma a tragédia – e assim destoa da condição humana tal como esta deve ser – para Nietzsche é o que é: é a condição humana. Toda crença na síntese é uma enorme autoilusão.

O projeto dialético consiste em acabar com essa situação, em promover um encontro, uma conciliação não oportunista, que não se limita a superar dificuldades momentâneas, mas é uma efetiva resolução dos problemas. Na base de toda utopia reside uma dialética, ainda que não o saibam os utopistas. Mas, para os nietzschianos, o máximo a que temos acesso é à redução de danos, ao gerenciamento de crises e de perdas.

No fim da linha, a dialética sorri. Ao longo de toda a linha, Nietzsche pesa – algo muito pesado, que talvez seja chamado de responsabilidade. Para o nietzschiano, utopia, dialética e superação são apenas ilusões, que nos rondam, que nos enganam sobre o que somos. Para quem quer curar – mesmo – o mundo, uma dialética é necessária.

Mestre Didi: em nome daqueles que vieram antes

Em 2017, foi comemorado o centenário de Mestre Didi, como era chamado o soteropolitano Deoscóredes Maximiliano dos Santos. Artista plástico, escritor e sacerdote, recebeu diversas homenagens no es­tado onde nasceu. Agora, é a vez da trajetória de Didi ser celebrada pela Galeria Almeida e Dale, em São Paulo, com a exposição Mo Ki Gbogbo In – Eu saúdo a todos que tem abertura no dia 7 de abril.

Para compreender a arte de Mestre Didi, é preciso entender a forte ligação dele com a ancestralidade. Filho de uma ialorixá com muita influência na introdução do Candomblé no País, o artista dedicou sua vida a preservar a memória de seus ancestrais africanos e afro-brasileiros por meio das narrativas visuais, escritas e orais que produziu.

Para Antônio Marcos dos Santos Cajé, mestre em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas pela Universidade do Recôncavo Baiano e amigo do artista, a questão da ancestralidade em Mestre Didi não pode ser vista apenas sob o olhar religioso: “Quando falamos de ancestralidade, falamos de cultura no geral. Ela tem um papel central na religião, mas não só. Fala-se em nome de um conjunto maior”, afirma.

O artista tinha uma enorme preocupação com a identidade da população negra. Acreditava que, por meio do reconhecimento das histórias passadas, era possível fortalecer a luta contra o racismo. “Mestre Didi criou um projeto para crianças até 14 anos para que aprendessem sobre seus ancestrais por meio de contos e da tradição oral”, comenta. Essa iniciativa remonta à vida do próprio Didi, tendo em vista que cresceu no Ilê Axé Opó Afonjá, onde aprendeu sobre suas raízes nas histórias que eram contadas principalmente por Mãe Anininha, a qual considerava uma avó, e Mãe Senhora, sua mãe biológica. Para o pesquisador, esse era um ato político do artista, que “não participava de movimentos, mas movimentava sua própria comunidade”.

Mestre Didi, ‘Sasara Ati Aso’, 1960

Com sua mulher, Juana Elbein dos Santos, e do fotógrafo Pierre Verger, que tem fotografias na mostra (assim como Mário Cravo Neto), Mestre Didi foi à Nigéria e à República do Benin em 1967. Patrocinada pela UNESCO, iriam fazer uma comparação entre a arte sacra produzida no Brasil e na África Ocidental. “Foi uma viagem na qual ele foi buscar suas raízes. Por isso, foi a partir dela que ele começou a compreender muito melhor as suas origens”, declara Antônio Marcos.

As obras presentes na exposição Mo Ki Gbogbo In datam majoritariamente de um período posterior à essa descoberta feita por Didi. Desta forma, é possível visualizar com muito mais afinco esse encontro de Didi com o que seria sua identidade. São 48 esculturas do artista exibidas pela Almeida e Dale, em parceria com a Paulo Darzé Galeria, de Salvador. Além delas, são expostos ibirís e xaxarás originais e depoimentos de Mestre Didi. A partir de 21 de abril, o artista também terá mostra especial no Museu Afro Brasil, com curadoria de Emanoel Araújo, intitulada Um Deoscóredes – 100 anos do Alapini Deoscóredes Maximiliano dos Santos.

Agenda: confira os destaques da semana 19 a 25 de maio

Ismaïl Bahri, 'Soundings', 2017

 


ABERTURAS

Ismaïl Bahri, ‘Soundings’, 2017

Ismaïl Bahri: Instrumentos, individual no Espaço Cultural Porto Seguro, abertura em 22/5.

Assinada por Marie Bertran, curadora independente, e por Marta Gili, diretora do Jeu de Paume, de Paris, a exposição reúne nove videoinstalações do artista visual, a maior parte delas apresentada no centro de arte contemporânea parisiense entre junho e setembro de 2017. Em São Paulo, a mostra – primeira individual do artista na América Latina – conta com a correalização de Expomus Exposições, Museus, Projetos Culturais Ltda.


Alexandre Copês, ‘s/t’.

Arte Atual Festival: demonstração por absurdo, coletiva no Instituto Tomie Ohtake, até 3/6.

Alexandre Copês, Arthur Chaves, Carina Levitan, Carolina Caliento, Guilherme Peters, Paul Setubal e Pedro Hórak são os artistas presentes na coletiva que marca a presença do Tomie Ohtake no Festival Path. Com curadoria de Paulo Miyada e sua equipe do Núcleo de Pesquisa e Curadoria da instituição, a mostra tem base no “conceito matemático de prova por contradição ou redução ao absurdo”.


Eleonore Koch, ‘Sem Título’, 1982.

Mínimo, múltiplo, comum, coletiva na Pina Estação, abertura em 19/5.

A exposição, que tem curadoria de José Augusto Ribeiro, curador da Pinacoteca, apresenta trabalhos caracterizados por figurações simples, planas e sintéticas, por vezes beirando o limite da abstração. Essas imagens reproduzem, no geral, cenas de solidão – pelo isolamento de seres e objetos ou pelos espaços vazios, sem presença humana.


Mira Schendel, ‘Sem título’ da série Sarrafos, 1987.

Mira Schendel: Sarrafos e Pretos e Brancos, individual na Bengamin & Gomide, abertura em 22/5.

Produzidos sobre uma base totalmente branca, na qual uma haste de madeira preta se sobressai, nos Sarrafos “o caráter tridimensional do elemento acaba por transformar efetivamente o jogo, ao materializar aquilo que, por princípio, deveria ser virtual e ilusionista. Desenvolvida entre 1985 e 1987, a série Black and White, que precede Sarrafos, é ‘lírica’, uma vez que sua ênfase está no movimento e no espaço. São pinturas de têmpera e gesso que, à distância, remetem a painéis planos pontuados por arcos e linhas. Porém, depois de uma inspeção mais minuciosa, revelam pequenas variações de textura que projetam sombras e formam sutis relevos esculturais.


Maria Laet, ‘Pneuma I’, 2016.

Maria Laet: Poro, individual na A Gentil Carioca, abertura em 19/5.

“As relações entre a natureza e  a cultura, esferas que se sobrepõem e articulam plástica e sensorialmente distintas percepções da vida e de suas camadas de tempo” são base para a investigação do repertório da artista nesta exposição, sob curadoria de Bernardo José de Souza.


Marcelo Moscheta, ‘A História Natural e Outras Ruínas (Cap. 15), 2018

Marcelo Moscheta: A História Natural e Outras Ruínas, individual na Galeria Vermelho, abertura em 22/5.

Marcelo Moscheta observa as transformações na paisagem natural, sejam feitas pelo homem, por ele mesmo enquanto agente, ou por processos naturais de erosão e sedimentação. O artista apresenta obras realizadas em diferentes técnicas que dão à essas metamorfoses caráter monumental ou iconográfico. Ao justapor de maneira proporcional o homem e a natureza como motivadores dessas transformações, Moscheta humaniza a natureza, aproximando-a de um espírito personalizado.


Ivens Machado, ‘Sem título’ (Performance com bandagem cirúrgica), 1973–2018. FOTO: Acervo Ivens Machado/David Geiger

Ivens Machado: corpo e construção, individual na Carpintaria da Fortes D’Aloia & Gabriel, abertura em 19/5.

A mostra apresenta seis esculturas realizadas entre 1991 e 2006, um tríptico fotográfico a partir da Performance com bandagens cirúrgicas, de 1973, e uma série de fotos com registros inéditos da mesma performance, editado a partir da recuperação de negativos do artista.


PALESTRA

Guy Debord e Raoul Vaneigem, idealizadores da Internacional Situacionista.

Situacionismo: 50 anos, palestra na Adelina Galeria, em 19/5.

Nesta palestra, ministrada pela professora de história da arte Magnólia Costa, será discutida a formação da Internacional Situacionista, suas conexões com as artes visuais e o programa político do movimento, segundo a teoria de Guy Debord.

 

50 anos de maio de 1968

Estudantes nas ruas do bairro Quartier Latin nos protestos de 68, em Paris. FOTO: Reprodução/Facebook

*Por Helena Wolfenson

1968 foi o ano das revoltas estudantis estrondosas. Uma onda de gritos por liberdade varreu todo o planeta, com a mesma sincronia que o espantou. Sua maneira de ser, de existir e de se desmanchar no ar foi única; porém, como diz Caetano Veloso em depoimento ao jornalista Zuenir Ventura: “Para acontecer de novo, teria de ser muito diferente”. Em Paris, o movimento eclodiu porque a burocracia moralizante da Universidade de Nanterre proibiu a entrada de rapazes no alojamento feminino. Mas as razões de fundo que levaram às explosões juvenis em todo o mundo são até hoje estudadas e explicadas sob diversos pontos de vista.

No período pós-guerra, triplicou a densidade demográfica da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. O fenômeno dessa explosão populacional chamado baby boom criou, na virada da década de 1960 para 1970, uma juventude cuja profunda insatisfação moral e cultural veio à tona através de sua participação massiva nos movimentos revoltosos recém-nascidos. A impressão de que o status quo, hipocritamente, parecia estar evoluindo de vento em popa começou a se diluir. O PIB crescia, o poder aquisitivo também, e essa geração, dos chamados baby boomers, estava nas universidades, uma juventude três vezes maior do que a anterior, mais rica, contudo mais insatisfeita, descontente e inquieta.

Em 67 morreu Guevara, em 68 Luther King e Bobby Kennedy
Eram tempos de guerra no Vietnã, o primeiro conflito televisionado e que gerou uma profunda angústia entre os civis, principalmente os jovens e artistas. Ativistas políticos se propagavam pelo mundo, havia uma conscientização planetária da injustiça da guerra e de seus campos de batalha. Paralelamente, o conservadorismo de direita lutava contra as ações sociais e coletivas. No fim de 1967 houve o assassinato de Che Guevara, logo em abril de 1968 Martin Luther King, o líder carismático da causa negra, foi morto. Meses passados, e o então candidato democrata à Presidência dos Estados Unidos, Robert Kennedy, teve o mesmo destino de seu irmão mais velho, o ex-presidente John Kennedy, assassinado alguns anos antes, e o republicano Nixon foi reeleito. No fim do ano, o homem chegou à Lua.

Nos esportes, foi o ano das Olimpíadas do México, boicotadas em junho e que só ocorreram em outubro. As bandeiras feministas eram levantadas em todos os cantos. Na França, a imaginação juvenil buscava a tomada do poder. Jimi Hendrix, Beatles, Bob Dylan, pop art, tropicália… as artes se renovavam, se engajavam politicamente. Esse foi o chamado ano zero da globalização, a primeira vez em que se vislumbrou um cordão que interligaria Sul e Norte, Leste e Oeste, não por questões geográficas ou físicas, mas humanas e, acima de tudo, jovens.

Oriundos de todos os cantos do planeta, países com governos e culturas distintos se encontravam sob um denominador comum. Eram tempos de Guerra Fria, o moralismo, as estritas e burocráticas normas do mundo dividido causavam efeitos agonizantes na juventude daquele ciclo de prosperidade econômica. O mês de maio de 1968 estabeleceu-se como símbolo de uma época, uma luta essencialmente contra a autoridade, a paterna, em particular, e o modelo de família vigente até então. Seu legado permitiu o nascimento de milhares de novos canais de expressão nas artes, de novas formas de contestação social e de novos tipos de relações humanas.

Como nos grandes centros, alguns países da América Latina foram tomados pela efervescência inebriante de 1968, também fatídico para nós, brasileiros. Em dezembro foi promulgado o AI-5, que enterrou de vez o pouco que ainda restava de atividade democrática no País, jogando-nos num período de trevas, perseguições e censura durante quase duas décadas. Um pouco antes disso, sentindo os ventos libertadores da Europa, o Rio de Janeiro começou a demonstrar grandes articulações de massa, através de manifestações de rua.

A cidade chegou a parar por alguns dias, como na lendária Passeata dos 100 Mil. A impressão que se tinha era a de uma coletividade envolvida em uma só causa, que escapava do estereótipo do futebol e do Carnaval. No entanto, os que estavam realmente por dentro dessa movimentação eram uma minoria – atuante, barulhenta, que fazia estardalhaço e criava sem parar. Alguns de seus representantes, os que resistiram às prisões, às torturas, ao exílio e ao tempo, são hoje, em sua maioria, grandes nomes da cultura nacional, da política e da academia.

De emos a neo-hippies é o mesmo: falta ideologia
As ditaduras militares na América Latina se erguiam em nome da liberdade e contra o comunismo. Tinham como primeiro pretexto manter a segurança. Para proteger as sociedades do temido comunismo, impedia-se qualquer forma de oposição, das mais ingênuas às mais contundentes. Uma indignação latente e reprimida alastrava-se em vários campos da sociedade.

A juventude não tinha espaço para a expressão política, a cultura encontrava os seus canais fechados pelo sistema burocrático e corporativista da esquerda e da direita. Há quem diga que o mundo se libertou de normas rígidas e que a juventude passou a ser reconhecida e ouvida. Outros crêem que seu legado gerou uma despolitização nas gerações seguintes. As tão sonhadas e inovadoras formas de expressão já foram absorvidas pelo sistema. A sociedade não se libertou da angústia e do mal-estar de então. Houve uma sucatização do ensino. Os milhares de grupos adolescentes de hoje, que buscam sua identidade na mercadoria, de emos a neo-hippies, todos padecem do mesmo vazio: a falta de ideologia.

Enxergar esse momento através de pessoas e não de documentos foi uma escolha. Os jovens de então, que não acreditavam em ninguém com mais de 30 anos, hoje ultrapassam os 60. Se esse foi o período da história da humanidade em que a juventude encontrou seu lugar, participou e absorveu mudanças que ainda desabrochavam, como será que aqueles que contribuíram com a história estão hoje? O que pensam? Como enxergam a juventude atual? Como construíram suas vidas a partir desse rompante?

Mexer com a memória, penetrar nessa história foi a nossa busca ao fazer esta reportagem. Entrevistamos cinco personagens que, de formas diferentes, em locais diversos, absorveram a força dessa energia no ano de 1968. Pessoas que hoje estão entre os 60 e os 70 anos e na época se indignavam com uma sociedade que consideravam injusta e hipócrita, e que, vista sob aquela ótica, assim permanece. A memória e a história se confundem nas mentes desses vividos adultos. Enxergar a história partindo de olhares subjetivos, tentar ver o mundo da forma como foi visto por eles e, finalmente, o que ficou daquele mês, ano ou década foi o que encontramos nos relatos feitos por nossos protagonistas.

Paris, maio, ano de 1968, o estudante de economia da Escola de Lausanne, na Suíça, Ladislau Dowbor, aos 27 anos de idade, passava uns dias na “Cidade Luz” para visitar amigos. Dias que acabaram virando meses, tamanha a efervescência das ruas parisienses. Seu relato é um olhar de quem teve o privilégio de presenciar a força do movimento ali, no seu momento histórico. A abrangência e as conseqüências desse movimento foram inesperadas, e a França em particular foi um estopim importante em todo o processo. “Alguém precisa pôr o fogo no estopim e isso se dá em Paris na forma de manifestações estudantis”, como testemunhou Dowbor.

Estavam em andamento alguns movimentos de contestação em relação à educação, outros em relação à Guerra do Vietnã. O processo de descolonização de algumas regiões da África também estava em curso. A compreensão da injusta e profunda interligação das economias do Primeiro e do Terceiro Mundo, uma como causa da outra, se iniciara. A esquerda também buscava uma renovação nos seus canais de expressão e uma alternativa que fugisse aos moldes antigos da política partidária burocrática e sindical. Esse era o pano de fundo do quadro vivido pela juventude universitária, não só na França, mas também na Itália e na Alemanha. Já a juventude norte-americana vivia às voltas com a Guerra do Vietnã. “Foi como jogar uma pedra em um lago e ver suas ondas se espalharem.”

Seu carro era um dos únicos que andavam no Quartier Latin
Um jovem alemão residente na França, Daniel Cohn-Bendit, era o líder do movimento francês. “Daniel, o vermelho”, como era chamado por seus seguidores e por toda a mídia (por conta de seus cabelos ruivos), guardava em si duas características marcantes da geração de 1968 e também o seu legado: a língua afiada e um forte destemor frente às autoridades.

As primeiras manifestações nas universidades parisienses eram muito focalizadas em reivindicações da esfera estudantil, mas a resposta do governo francês foi de extrema violência. Conduta que se revelou de uma burrice tática, pois fez o movimento crescer e tomar todas as universidades da capital. Foi uma reação em cadeia, que causou também a união de outros setores da sociedade contra a repressão. O tiro saiu pela culatra. “Todas as universidades fecharam. A polícia tomou as ruas, a repressão se instalou. Pela primeira vez houve uma coalizão entre líderes estudantis e de sindicatos. Houve uma paralisação geral da cidade, os transportes públicos não funcionaram, os distribuidores de gasolina pararam, as escolas fecharam suas portas. Criou-se um movimento de férias nacionais e foi se instaurando um medo generalizado nas camadas não-organizadas da população.”

Como Ladislau estudava na Suíça e havia ido a Paris de carro, um Citroën Deux Chevaux, com o tanque cheio, ao final de três dias de paralisação o seu era um dos poucos carros que andavam pelas ruas do Quartier Latin. O clima era inebriante, Ladislau não conseguia ir embora, começou a participar das muitas reuniões que se organizavam por quarteirões. Todos, por não irem ao trabalho ou à universidade, estavam nas ruas, nas casas, nas esquinas, se encontrando, discutindo, criando frases, pensando em propostas sonhadoras para um mundo diferente. Colocavam- se papéis e frases nas paredes, todos participavam escrevendo: “Era como se descobríssemos que era legítimo ter sentimentos que iam além da busca organizada e disciplinada de alguns porcentuais de aumento do PIB. O movimento tornou-se extremamente amplo e o vento de liberdade que soprava era enorme, as pessoas estavam felizes e criando nas ruas”.

O povo ocupou as ruas e praças. Os dizeres das paredes tornaram-se símbolos mundiais, saíram das universidades, atravessaram oceanos, conclamando o poder do amor, da juventude, escancarando a hipocrisia do sistema e das autoridades repressoras. “De Paris a Woodstock – chegou até a abrir algumas frestas de luz na ditadura então vigente no Brasil”, conclui o economista. O movimento perdurou por algumas semanas, até que, como era de se esperar, a polícia e o Exército o sufocaram.

O presidente francês Charles De Gaulle se uniu ao então primeiro-ministro alemão e voltaram a colocar a polícia para reprimir, mas agora em uma ação muito mais organizada e sistemática do que a primeira. Dissolveram o movimento através de prisões seletivas dos líderes estudantis; Daniel Cohn-Bendit foi expulso do país e voltou para a Alemanha; criou-se uma campanha televisiva massiva, chamando os trabalhadores de volta ao batente, ameaçando-os de demissão.

O sentimento que ficou cravado na mente de muitos daqueles jovens que viveram o Maio de 68 francês, e na memória do economista Dowbor particularmente, foi extremamente poderoso, pois, por um instante, foi possível perceber o que era gozar a vida sem portas, sem barreiras burocráticas, sem horários nem fórmulas. Foi um pulso criativo para uma geração desorientada. A herança desse tempo é muito mais de ordem comportamental do que da esfera política. Para aquela geração, o que estava na mesa eram as contundentes transformações do ponto de vista moral e cultural, que remodelaram as relações humanas – entre professores e alunos, autoridades e população, homens e mulheres, pais e filhos, vizinhos.

Todos os movimentos libertários, como o da liberdade sexual, feminista, gay, ecológico, o fortalecimento do movimento negro e a expansão de correntes artísticas como a pop art e o tropicalismo, entre outros, seguramente se alimentaram dessa ruptura. “Foi um basta para toda aquela geração que nos dizia: calem as bocas, vocês têm televisão, carro e geladeira, querem mais o quê?”, afirma Ladislau.

Depois de dois meses no Brasil, foi preso como comunista
A geração 68 buscava coerência nas ações, procurava entender o mundo a partir de outro viés. As autoridades impunham à população um leque de ordens a ser seguidas para evitar o caos, mas, quando tais ordens foram descumpridas, o que se viu foi a criação livre, a harmonia, não o caos. Como diz Dowbor: “Sabíamos onde estava o mal, mas não onde estava o bem. Por polarização natural, apoiávamos o comunismo, mas era por um nivelamento artificial do antiamericanismo”.

Em Paris, Ladislau, um polonês nascido na França, começou a ter contato com algumas organizações da esquerda brasileira, país onde cresceu e se radicou, e decidiu voltar ao Brasil e partir para a luta. “Eu, que financiava os meus estudos trabalhando nos trens noturnos internacionais, aproveitava as escalas em Paris para participar das reuniões. A opção da luta armada não me parecia apresentar mistérios, estava no ar, todos conheciam bem a resistência vietnamita, a Revolução Cubana, a guerrilha de Angola, de Moçambique, de Bissau… Fazia parte das opções. Pessoalmente, não me julgava capaz de definir grande coisa, pela própria idade e insuficiência de cultura política, e, quando as pessoas com quem convivia em Paris, com outro nível de experiência, me chamaram, fiz as malas e fui.”

Depois de dois meses no Brasil ele foi preso, tido como terrorista e comunista. Depois de uma semana estava solto, era antes do AI-5. “De certa forma, as próprias torturas justificavam a nossa luta armada, como os policiais e os militares justificariam a tortura com o fato de estarmos armados. Nos processos de polarização, o culpado é sempre o outro”, argumenta o ex-guerrilheiro.

Depois de 1968, Ladislau entrou nas organizações clandestinas de esquerda Vanguarda Popular Revoluconária (VPR) e Vanguarda Armada Revolucionária (VAR-Palmares). Foi preso, torturado e exilado. Hoje é professor titular no departamento de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), nas áreas de economia e administração.

Primeiro chegam os cães, depois os gatos, todos dando as boas-vindas no “Lar Dulce Lar”, como ela mesma gosta de chamar a sua casa em Cunha, na Serra do Mar, entre a praia e o campo, entre São Paulo e Rio de Janeiro, entre Ubatuba e Parati. Com cheiro de madeira, livros, revistas, discos, cerâmicas e muita vida espalhada por todos os cantos. A espaçosa e aconchegante casa foi construída por Dulce Maia de Souza há três anos, depois que ela se mudou de um sítio na mesma região. Basta um passeio no jardim e já se pode notar que a senhora de olhar profundo e cabeleira toda branca tem um vício: as árvores, plantas e flores.

Desde que se mudou para essa casa em Cunha, já plantou mais de 6 mil pés de árvore dentro e fora de seu terreno. “Quando voltei ao Brasil, depois dos anos de exílio, me mudei para Floripa, porque queria viver perto da praia.” Lá conseguiu refazer sua vida pós-exílio, ganhou algum dinheiro vendendo por 300 mil dólares os terrenos que comprara por apenas poucos mil. “Alguma coisa está muito errada neste país, não?”, indaga Dulce, que procurou outro rumo depois que a especulação imobiliária se instalou na Lagoa da Conceição, em Florianópolis, capital de Santa Catarina.

Ela chegou a Cunha há exatos 15 anos, e nunca mais saiu. Conhecida por todos na cidade, hoje a ex-guerrilheira da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) é diretora de uma ONG para projetos de proteção da flora e da fauna brasileira na Serra da Bocaina, a Econsenso, e fundadora de outra na cidadezinha onde vive.

Atéia por convicção, ela diz que sua religião é a solidariedade
Aos 70 anos, ela não pára, sobe e desce escadas, vai e volta da cidade com o seu conservado jipe preto, está sempre viajando a trabalho, recebe amigos e cuida da casa em que vive com um de seus dois filhos adotivos, o mais novo, Isaías, de 20 anos. Dulce diz que a tortura a deixou com a cabeça meio ruim e, por isso, prefere se cercar de gente, de vida, “para não pensar muito nas suas cicatrizes”. A política está presente até em suas veias, raízes e fios brancos de cabelo.

Atéia por convicção, Dulce Maia diz que sua religião é a solidariedade. Seus santos são Che Guevara, Ho Chi Minh (líder e herói da luta antiamericana no ex-Vietnã do Norte) e Amílcar Cabral (líder do movimento que derrubou o colonialismo português na Guiné-Bissau e em Cabo Verde). Em 1966, Judith – codinome pelo qual ela se identificava entre os companheiros de luta clandestina – entrou para o grupo de guerrilha urbana VPR, uma organização da ultra-esquerda brasileira que, como muitas outras na época da ditadura, acreditava na mudança com base na luta armada. Formada por estudantes, operários e ex-militares que compunham o recém-deposto governo João Goulart, a organização tinha em sua liderança Carlos Lamarca, o ex-capitão do Exército morto anos depois pela repressão.

Nessa mesma época, ainda como Dulce, ela perambulava entre São Paulo e Rio de Janeiro enquanto produzia shows e encontros culturais, principalmente no Teatro Maria Della Costa. “Trabalhávamos em forma de cooperativa, cada um ajudava com o que sabia e podia, o Ricardo Ohtake (hoje diretor do Instituto Tomie Ohtake) fazia os cartazes, Gil, Vandré e Chico Buarque tocavam e cantavam para fazer com que a venda de ingressos dos shows fosse revertida para mantermos muitos companheiros na clandestinidade.”

Muito amiga do artista plástico Zé Roberto Aguilar e do cantor e compositor Jorge Mautner, era chamada pelos amigos de “sacerdotisa do kaos”, uma espécie de brincadeira com o livro e pseudomovimento que Mautner inaugurara na época. “Éramos de uma confraria, digamos assim.” A guerrilha foi um caminho natural para ela, talvez por conta de sua formação, vinda de uma família politizada, humanista e libertária, pais socialistas – sua mãe havia sido presa durante a ditadura de Vargas -, ou pela situação em si, pelo meio em que vivia, como ela mesma aponta. “Eu nunca tive medo de pegar em armas, porque havia muita confiança, amor e crença na autenticidade dessa luta. Acho que se não tivéssemos feito isso haveria um vazio na história de nosso país em relação ao resto do mundo.”

Fez ponta em O Bandido da Luz Vermelha como uma marchadeira
No ano de 1968 ela se dividia entre Rio e São Paulo. Sempre atuante, envolvida com o trabalho do dramaturgo Zé Celso Martinez Corrêa e toda a turma do Teatro Oficina, Dulce ainda era guerrilheira da VPR, mas esse fato não era uma informação pública, pois seguia as estritas normas de segurança das organizações militantes.

Nem todos conheciam Judith. Para a maioria, ela era apenas Dulce. Uma mulher de 30 anos, bonita e elegante. Ninguém suspeitaria que andava com uma arma na bolsa. “Esse foi um ano cheio de ações de luta armada. Mas foi também o ano de Roda Viva (peça escrita por Chico Buarque e produzida por ela, com direção de Zé Celso e cenário e figurino realizados pelo artista plástico e cenógrafo Flávio Império). Foi o ano da inauguração da sede do Masp na Avenida Paulista, das reuniões com os companheiros de luta na Casa de Vidro da Lina ( a arquiteta que projetou o Masp, Lina Bo Bardi), no Morumbi. Foi a estréia do filme inaugural do cinema marginal, O Bandido da Luz Vermelha, do cineasta Rogério Sganzerla, em que fiz até uma ponta como uma marchadeira (como ficaram conhecidas as mulheres que participaram da Marcha da Família com Deus pela Liberdade). Teve o Caetano com o show Opinião, as montagens teatrais como Arena Conta Zumbi e Liberdade, Liberdade, e finalmente o cinema revolucionário de Glauber Rocha, com Terra em Transe, que foi um marco revolucionário para a época.”

Foi o ano em que a peça O Rei da Vela, também montada pelo Oficina, foi apresentada em Florença, na Itália, e convidada para o Festival de Nancy, na França: era a exportação do movimento tropicalista para terras estrangeiras. Exatamente no mês de maio de 1968, Dulce estava no Rio de Janeiro e recebeu um telefonema de Zé Celso, seu grande amigo, pedindo para que ela fosse buscá-lo no Aeroporto de Viracopos. “Eu havia ficado no Brasil porque tinha de cuidar do Teatro Oficina.”

Zé Celso estava em Paris e assistiu da sacada do prédio à cena de o cineasta Jean-Luc Godard, com quem estava filmando, ser espancado pela polícia. Sua solidariedade espontânea fez com que, do primeiro andar, arremessasse objetos na polícia, que respondeu com uma bomba de gás lacrimogêneo. Zé Celso voltou para o Brasil com um tampão nos olhos, assustado e ao mesmo tempo maravilhado com o movimento francês.

Logo após sua chegada, militantes brasileiros que estavam em Paris, organizados pelos movimentos daqui, vinham desembarcando e importando os sopros de liberdade e de contestação que envolviam a França de então. As ações de rua no Brasil tomaram forma semelhante à das parisienses, mas com a enorme diferença de que aqui havia uma ditadura militar.

Dulce foi presa em janeiro de 1969, época em que guardava (escondia) muita gente em aparelhos (esconderijos, na linguagem das organizações clandestinas) espalhados pela cidade, transportava pessoas com cortina nos carros e vendas nos olhos. Conta que no dia de sua prisão havia desmontado alguns desses aparelhos e voltava para a casa dos pais, no Brooklin, bairro da capital paulista. Já era meia-noite quando invadiram a casa. “Minha mãe ficou em pânico, contou-me que foi como ver o meu caixão saindo, avançou e agrediu um policial para tentar impedir que me levassem.”

Foi durante o tempo em que ficou presa, de janeiro de 1969 a junho de 1970, que Dulce Maia perdeu a mãe. Madre Assunção, diretora da prisão, telefonou ao juiz auditor pedindo autorização para que ela fosse ao enterro. Mas o pedido foi negado. “Não fugiria em uma situação dessas, pois esses gestos humanos devem ser reconhecidos.” Dulce tinha certeza de que não morreria na Penitenciária Feminina, no Carandiru. “Eu não vou morrer aqui, vocês são todos parte de uma engrenagem podre, eu, ao menos, tenho uma causa”, dizia aos seus torturadores. Resistiu como ela mesma nunca imaginara ser capaz. Foi torturada constantemente por cinco meses. “Os militares já não me agüentavam mais, tinham raiva de mim pela minha situação ali, por resistir, por ser mulher”, revela Dulce. Acabou sendo libertada em troca do embaixador alemão seqüestrado no Rio de Janeiro.

As seqüelas dificultaram seu retorno à vida normal
Em junho de 1970, junto com outras presas, saiu da cela diretamente para um avião militar, ainda algemada, e voou para a Argélia, país recém-libertado do colonialismo francês. Seus cabelos ficaram brancos repentinamente, após algumas sessões de tortura. Passou por coisas horríveis, desaprendeu a falar e a escrever, teve de recomeçar sua vida em lugares distantes e muito debilitada.

Depois da Argélia seguiu para Cuba, em busca de tratamento médico. Em 1973, estava no Chile, quando Pinochet derrubou Allende. Foi, então, para o México e depois para a Bélgica. Lá ficou até abril de 1975, quando aterrissou em Lisboa, onde a ditadura cinqüentenária de Salazar havia caído. O último destino de Dulce antes da volta ao Brasil foi a Guiné-Bissau, país que conseguiu a independência do colonialismo português após a queda de Salazar. Em 1979, com a Lei da Anistia, foi a primeira exilada a retornar ao País.

Após nove anos de exílio, Dulce chegou ainda trêmula e frágil. As seqüelas da tortura dificultaram seu retorno à vida cotidiana. Apesar de no exílio ter criado vínculos fortíssimos com pessoas que conheceu, amigos queridos com os quais mantém relações até hoje, também passou por maus bocados. Ainda tem seqüelas, mas assume se cuidar muito. “Sou uma articuladora, mas não sou uma pessoa articulada.”

Dulce se vê como uma humanista que lutou contra um regime de exceção, e diz: “Contribuímos muito para a volta da democracia, mas hoje um movimento assim não teria sentido. A luta deve continuar, mas talvez a fórmula atual seja cada um no seu setor, podendo contribuir para que haja mudança, em seu exercício cotidiano.”

Hoje, além de cuidar das duas ONGs de preservação e educação socioambiental, ainda colhe frutos do difícil mas precioso período que viveu intensamente. A boa relação que mantém com algumas entidades internacionais e amigos que fez durante o exílio, por exemplo, abriram as portas para que conseguisse enviar mais de dez jovens de Cunha para estudar medicina em Cuba, reconhecida pela excelência de seus cursos. Em alguns momentos, como qualquer pessoa, questiona a vida que viveu. E lembra da conversa que teve com um amigo e companheiro de luta, em Paris, quando desejou ter sido uma dona Maria lá da Mooca, que passa a manhã lavando a calçada e depois prepara a macarronada para sua enorme família. O amigo pensou em como teria sido a vida se fosse um bancário. Mas, ao final, ela admite: “Nossas vidas são emocionantes até hoje”.

Aos 70 anos, se orgulha de seu passado. Não é, e nunca seria, uma matrona acomodada. Irmã de Carlito e Hugo Maia, dois importantes nomes do jornalismo e da publicidade brasileiros, Dulce sempre teve a comunicação no sangue e, apesar de não ser uma comunicóloga por profissão, vive de se comunicar. Dona de uma memória impecável, ela carrega na cabeça um emaranhado de fios capaz de ligar todos a qualquer um. E qualquer um a todos.

Ao relembrar aqueles tempos de tortura, mas também de muitas realizações, criações e laços fortes, ela, que se encaixaria nos grandes perfis de heroínas do século XX, que como mulher independente e lutadora sofria preconceitos e repressões, diz não sentir um peso na memória, pois esse é um passado ainda presente em suas lembranças, relações e conversas diárias. Dulce se diz excessivamente otimista em relação ao mundo e ao ser humano. Ainda sonha com a transformação social. Sobre a atual conjuntura política não se sente comprometida com nenhuma bandeira, movimento ou partido. “Não é só porque sou de esquerda que irei apoiar cegamente qualquer um.”

Para ela, a esquerda ainda resiste maniqueísta, sectária e moralista, e o povo brasileiro ainda se mostra covarde, acomodado e estranho. “A política hoje é promíscua”, afirma, ao mesmo tempo em que não avança em seu radicalismo, sempre ponderando que houve evoluções em termos da democracia tanto no governo FHC quanto está havendo no de Lula. “Não somos vítimas nem heróis de uma época. De nada me arrependo.” A luta de Dulce e de muitos outros pode ter sido feita com exageros e com excessos, muitas vezes inevitáveis frente às circunstâncias, mas foi uma luta carregada de paixão e de compromisso.

Arquiteto e designer, Luciano Devià é daquelas figuras que durante a juventude abriram a cabeça e descobriram um mundo mais real do que o transmitido nas antigas salas de madeira – semicirculares e inclinadas – das sisudas universidades renascentistas da Itália, sua terra natal. Desiludiu-se com as estruturas da sociedade, lutou, levantou bandeiras, foi barbudo e cabeludo, descobriu que como arquiteto ele só conseguiria produzir com algum engajamento político. Frustrou-se com as poucas mudanças atingidas e partiu para bem longe. Saiu de Torino, na Itália, aos 33 anos, em 1975, em busca de outra vida, de renascer em terras completamente desconhecidas.

A não ser pelas canções de João Gilberto, pelo piano de Tom Jobim, pelos traços de Oscar Niemeyer e pelas ousadias cinematográficas de Glauber Rocha, o Brasil, para ele, era um ilustre desconhecido. Eram terras distantes, quentes, tidas como promissoras e completamente desligadas de sua vida italiana. “No Brasil morri e nasci de novo e me encontrei completamente perdido como Dante Alighieri quando encontrou o inferno.” Ao chegar, não tinha dinheiro no bolso e passou a ganhar a vida com o que era, na Itália, o seu hobby: virou pianista na noite de São Paulo.

Era natural a aliança entre operários e estudantes
Para ele, o ano de 1968 foi o marco simbólico daquela busca por mudança e de desapego às raízes. Foi o ápice da crise de insatisfação contra a antiquada estrutura de educação universitária italiana – Luciano estava no quarto ano da Faculdade de Arquitetura do Politécnico di Torino, uma das primeiras escolas de arquitetura construídas durante o fascismo.

Para os jovens estudantes aquele foi o ano em que começaram a enfrentar as rígidas estruturas estabelecidas. Eram tempos de contestação pelo mundo todo, de uma nova forma de expressão. Tempos de Bob Dylan, de Woodstock e dos Beatles. Mas para Luciano Devià tudo isso estava bem mais distante do que o que acontecia ali ao lado: os operários com excesso de carga horária, explorados ali mesmo em sua cidade, na Fabbrica Italiana di Automobili Torino, a Fiat.

A fusão da indignação estudantil com o movimento operário era a ordem natural das coisas naquela cidade industrial. Tentava-se preencher o vazio que havia entre esses dois mundos tão próximos e, ao mesmo tempo, tão incomunicáveis. Enquanto Devià e seus colegas começavam a questionar o sentido que havia em produzir uma arquitetura que não se relacionava com o social, com o político, com o real, os migrantes do sul da Itália instalados nas cidades do norte trabalhavam como robôs nas fábricas e ainda eram vítimas de preconceitos regionais.

Esses fatos não eram discutidos dentro do ambiente acadêmico. “Os programas universitários eram cuidadosamente elaborados para que não houvesse tempo de pensar em questões como essas”, explica Devià. “Até os 24 anos eu era um alienado, nunca havia me questionado sobre a importância da política.” As contestações chegaram alfinetando a ele e a toda a sua geração. Torino não é uma Roma, muito menos uma Paris. Até 1968 a universidade continuava sendo uma ilha intocada diante das mudanças que estavam em curso nos outros centros. “Ainda íamos de gravata-borboleta para a faculdade”, o que era um símbolo da profunda austeridade e da hierarquia, até aquele momento, inquestionável.

Depois de tanto tempo ele se mantém fiel àquelas premissas
Em 1968, começava então o movimento de ocupação das universidades italianas, e passou-se um ano inteiro praticamente sem aulas, um ano de discussões, encontros, reuniões, assembléias, nos quais os estudantes, professores e operários de Torino se mobilizaram. O poder do dinheiro, algo conclamado pelos pais dessa geração, estava sendo questionado em nome de coisas mais importantes, como as relações humanas e o amor. “Descobríamos ali o mal que o dinheiro poderia causar, como diria Caetano Veloso, ‘era a força da grana que ergue e destrói coisas belas’.”

Mais tarde, em 1969, um grupo de estudos do qual Luciano fazia parte passou por um concurso público para a construção de um novo hospital psiquiátrico, na cidade de Bérgamo. Começava a se questionar na Itália o papel dos hospitais psiquiátricos e Luciano entrou de cabeça nessa questão. “Chegamos a abrir as portas de hospitais psiquiátricos e a fazer passeatas pela cidade, junto com os ‘loucos’, reivindicando tratamentos mais humanos.”

Foi o estopim que desencadeou a consciência nos estudantes de arquitetura de que nunca teriam resolvido o real problema dos doentes mentais propondo um belíssimo e novo hospital. Era necessário levá-lo como um problema político. “Nesse período, do ponto de vista da nossa formação humana, houve uma revolução. Abrimos as nossas cabeças ali no provincianismo de Torino.” Passeatas, salas de aula fechadas e cabeças abertas. Mudanças eram necessárias para seguir. As gravatas-borboletas foram substituídas pelas golas rulês, moda no movimento estudantil europeu, e o questionamento do mundo virou parte do ambiente acadêmico.

“Vivi aos 24 anos a magia de descobrir um mundo diferente e possível. Aprendi que só se podia resolver as coisas a partir de um pressuposto político.” No entanto, passado o fervor desse rompante, a vida começou a tomar os seus velhos trilhos, embora algumas partes tenham descarrilado das antiquadas linhas.

A efervescência estudantil se abrandou, alguns professores tidos antes como “imortais” deixaram suas cátedras, a grade curricular se adaptou em partes às reivindicações estudantis, a política psiquiátrica foi repensada e reformulada. Alguns preconceitos foram rompidos, e percebeu-se principalmente o poder e a ingenuidade dessa juventude. “Tudo era muito bonito e ingênuo, tinha-se a impressão de que realmente podíamos mudar o mundo. Existia uma ingenuidade ao pensar que todo rico na Itália era filho-da-puta, e que todo cara de esquerda era bom caráter.

Muitas vezes não se contratava um marceneiro ‘bravissimo’ (muito bom) por ele acreditar em Mussolini – esses extremismos e sectarismo que hoje não existem mais.” Hoje Luciano se decepciona com o rumo que muitos dos seus colegas de faculdade em 1968 tomaram. “Muitos dos líderes estudantis de então acabaram ligados a partidos mafiosos, à corrupção. Foi uma desilusão.” O ciclo continua.

Devià tem hoje 64 anos, trabalha como designer e arquiteto, se instalou em São Paulo e, depois de 40 anos passados, se mantém fiel às premissas daqueles anos rebeldes. Enxerga a força que teve essa geração na vida dele e no mundo, mas também percebe que algumas daquelas reivindicações se deturparam. A pseudoliberdade que se instaurou no mundo moderno tem suas mazelas.

Luciano, hoje como ontem, não economiza munição. Para ele, eventos como a Casa Cor servem como exemplo de deformação absurda. “Dá nojo pela ostentação diante da realidade brasileira. É uma elite econômica que não tem nada a ver com a realidade social do País.”

Liberdade sexual, divórcio, filhos, estudos, teatro, alimentação vegetariana, independência. Essas são algumas das mudanças ocorridas na vida da terapeuta paulista Tai Castilho, em um período em que reviu todos os seus ideais. Para ela os caminhos indicados vieram na forma de mudanças comportamentais e na absorção de novos costumes radicais para a época.

Moça vinda do interior de São Paulo para viver na cidade grande, buscava uma vida certinha, em que as coisas caminhassem nos eixos, já que dentro de sua própria casa não era bem assim. Em 1964, se casou, para sair da casa dos pais e tentar construir sua vida ideal. Sua casa era esconderijo dos livros proibidos pela ditadura Vivia um casamento tradicional e resolveu estudar. Entrou para um cursinho pré-vestibular no centro de São Paulo, quando passou a ter um contato mais direto com os movimentos estudantis.

Com uma filha de 2 anos e um filho recém-nascido, marido médico, Tai começou a perceber um mundo diferente do seu. Emocionante e, ao mesmo tempo, aterrorizador. “Era muito comum pessoas próximas sumirem da noite pro dia. Anos depois de estudar com uma menina, vejo papéis com o rosto dela estampado em todos os cantos, com os dizeres: ‘Procura-se!’. Professores do cursinho desapareciam para nunca mais voltar”, conta ela sobre o seu primeiro contato com o mundo da clandestinidade e da luta armada.

Entrou para um grupo vindo do Teatro Oficina, passou a freqüentar os ambientes juvenis e da classe teatral, os bares da Rua Maria Antônia, mas revela: “Ao mesmo tempo em que eu estava querendo constituir família, ter um lar agradável e certinho, havia em mim um desembaraço juvenil”. Sua vida de aprendiz de atriz durou pouco, já que era uma realidade escondida da família e seus colegas do teatro não imaginavam como ela vivia ao atravessar a porta da rua. “As pessoas que faziam teatro eram malvistas pelas famílias tradicionais” e, nas coxias e nos palcos, era considerado caretice ser casada da forma que ela era. “Eu era simpatizante da causa, mas, por ter filhos, guardava em mim um medo silencioso. Em 1970, nasceu o terceiro, ainda do mesmo casamento.”

Por tudo isso, a aparência insuspeita de sua casa acabou transformando-a em esconderijo dos livros proibidos pela ditadura. “Não podíamos ter obras de Marx, Engels, Lenin, Che ou qualquer outro autor comunista.” Após 1968, ela entrou para a faculdade de fonoaudiologia e participou de movimentos estudantis. Era amiga de Vladimir Herzog, um dos mártires daqueles tempos negros, morto nos porões da ditadura. Depois disso, virou vegetariana, passou a usar saias longas, cabelos muito compridos e os filhos foram estudar na antroposófica escola Rudolph Steiner, de pedagogia Waldorf.

Tai Castilho é de uma geração em que se escolhia entrar de cabeça no radicalismo da política ou no desbunde comportamental. O desapego às normas do sistema urdiu uma geração criadora e ativa. Acabou indo viver a contracultura e a militância com uma geração seis anos mais nova do que a sua.

Acabou indo viver a contracultura e a militância com uma geração seis anos mais nova do que a dela. “Eu queria ser uma intelectual de esquerda, uma desbundada, uma sem-lenço e sem-documento, mas em 1971 me vi acabando a faculdade com três filhos pequenos e separada. Ao mesmo tempo em que queria dar conta da maternidade, uma coisa fascinante para mim, existia a liberdade sexual que tanto me dava prazer.”

Tai nunca foi muito bem aceita em nenhuma das tribos que freqüentava, por conta da sua dicotomia, sua contradição vital. E foi se distanciando do partidarismo do movimento: “A esquerda partidária lidava bem mal com a questão da sexualidade e das drogas”. Com um olhar iluminado pelos 40 anos passados, a terapeuta que se especializou, não por acaso, em famílias e casais, conclui: “As nossas reivindicações foram se realizando por entre as brechas do sistema e dando outras cores para o mundo tão sectário e segmentado da esquerda versus direita. A minha geração foi muito reprimida sexualmente, a de minha mãe nem se fala. Usufruíamos dessas mudanças ainda com muito medo – o que mudou muito para as gerações seguintes. Foi o nosso legado”.

Depois da separação, enquanto cursava a faculdade, Tai mudou-se para uma casinha na Vila Beatriz, então um bairro popular de São Paulo, com os filhos e muitas coisas novas na cabeça. Começou a se libertar de sua permanente dicotomia e passou a viver a liberdade com as crianças. “Nesse momento, os fantasmas da moral eram um pouco exorcizados, as crianças viviam peladas pelo jardim, os vizinhos se aproximavam, era uma delícia.” Desvencilhou-se dos seus ideais de família tradicional e, com isso, começou a se especializar nas relações da família moderna.

Sou um homem sem raiz. Me vi sempre como um retirante nortista classe média, de família pequeno-burguesa: mãe professora, pai funcionário público, duas irmãs, todos nascidos no Maranhão. A certa altura me vi no Rio e depois, durante 13 anos, vivendo em várias cidades do sul de Minas. As raízes soltas ao vento. Não sei dizer se isso foi bom ou ruim para a minha formação humanística.

Medir as palavras me fez deixar de ser nortista e virar mineiro
Às vezes, o descompromisso com tribos ou comunidades pode provocar uma espécie de frieza nas relações. Ou carência e dependência. Não entrava em conversa sem antes saber muito bem o que estavam dizendo, quem estava falando. Medir palavras e gestos me fez deixar de ser nortista e virar um típico mineiro. Isso favoreceu a amizade que, apesar do tempo e da distância, sei que ainda cultivamos – os amigos e eu – na nossa memória afetiva.

De Barbacena assisti ao golpe de 1964. Com As Palavras, de Sartre, numa das mãos e O Púcaro Búlgaro, de Campos de Carvalho, na outra, tentava antever o que aconteceria depois daquilo. O vestibular para a Faculdade de Direito da Universidade do Estado da Guanabara, em 1965, foi o passaporte para a minha iniciação prática na política, no materialismo histórico e dialético, procurando entender o que era a mais-valia, a luta dos contrários e a inexorável vitória do proletariado sobre a burguesia.

Os dias passavam cheios de sonhos, utopias, revoluções, imperialismo ianque, sovietes, ouro de Moscou, Guerra Fria, teorias políticas, confrontos armados, policiais nas ruas, torturas, prisões, medo, gritos de ordem e desordem, sirenes cruzando as avenidas do centro da cidade. Quero crer que 1968 foi o ano mais violento de todos. Quebra-quebra, cadáveres aparecendo nos jornais, estudantes atropelados pela cavalaria, o Calabouço, modesto restaurante de estudantes, se transformando em símbolo da repressão, da ditadura, da intolerância e do terror. O Estado se transformara em terrorista. Os terroristas em vítimas. No meio disso, jovens gritando por melhores escolas, abaixo a ditadura, viva o povo brasileiro, o povo no poder e outras palavras que surgiam aqui e no mundo inteiro.

Aqui, 1968 não proporcionou um bom encontro entre estudantes e operários. Trabalhadores brasileiros rejeitavam os cabelos grandes, os óculos redondos, as barbas por fazer. Éramos comunistas, agitadores, ateus. Nas portas das fábricas nos atiravam palavrões na cara. Se para o País e para os brasileiros revoltados, 1968 foi o ano terrível, para mim, janeiro de 1971 foi o ano do horror. Preso em Santa Teresa, em companhia de um amigo, dentro de casa, desapareci por dez dias. Literalmente eu sumi nos porões da ditadura.

Choques elétricos e espadas zunindo sobre minha cabeça
Quando consegui ser libertado, tomei o rumo do auto-exílio e durante dois anos perambulei por uma Europa tomada de hippies, drogas, sexo e rock-and-roll. Meus sonhos não morreram, mudaram apenas. Tornaram-se, de alguma maneira, mais frágeis e mais solitários. Em Londres, em Paris, em Estocolmo, em Lisboa, em Bruxelas, vi passar diante de meus olhos belíssimos seres humanos, imundos e com barbas sujas, em busca de um banho, de uma cama para descansar os ossos, de um bálsamo para as feridas que não eram apenas suas, eram de tempos imemoriais.

Depois, percebi que as pessoas passaram a se isolar. A arte se individualizou. A constatação era a de que o mundo se tornara para sempre capitalista. Perdemos a guerra, nós, que acreditávamos na revolução, na sociedade justa e igualitária. A ditadura política e ideológica deu lugar à ditadura do dinheiro. Uma ditadura sem cara, sem rosto, sem grupos contra os quais pudéssemos lutar. A luta pela sobrevivência me fez crer que eu era mais capaz de viver bem do que eu mesmo pensava que era.

Durante alguns anos me dediquei a uma vida alternativa, simples, morando no campo, escrevendo para meu próprio deleite e umbigo. Virei um outsider, um marginal do bem, à margem de qualquer coisa que o sistema pudesse oferecer. Aguardei ansiosamente a passagem dos cometas que iriam mudar o rumo das coisas. Qual o quê! As coisas só pioraram.

De artesão, escritor inédito, me transformei em publicitário e poeta medianamente conhecido em Minas. Fui diretor de redação da Revista Palavra, juntamente com Ziraldo e uma turma de jovens e nem tão jovens assim, talentosos e de almas gigantescas. Naquele período em que convivi com o terror atrás das paredes, os choques elétricos e as espadas zunindo sobre minha cabeça em passeatas pelo centro do Rio, senti a presença permanente de Jean-Paul Sartre, um anjo a proteger minha consciência para que eu não sucumbisse ao comodismo. Sartre foi e tem sido a minha maior influência.

De lá pra cá, minha cabeça mudou pouco. Procurei me desvencilhar das inutilidades do pensamento, amei meus filhos mais do que a mim mesmo, da minha mulher de então guardo lembranças amorosas e rancorosas – como todos os casais do mundo – e hoje, aos 60 anos, voltei a me apaixonar. Com isso, acho que rejuvenesci alguns anos, o suficiente para assistir, talvez, ao nascimento de uma nova geração, de um novo homem, como queria Guevara.

Difícil? Sim, é dificílimo, se levarmos em conta a tendência do mundo e do Brasil. Mas nada é em vão e nada do que aconteceu no mundo nos primeiros anos dos últimos 40 foi em vão. Porque 40 anos depois ainda consigo respirar a liberdade daquela época, o burburinho de uma juventude e de uma geração inquieta, irrequieta, rebelde com causa. Desse tempo ficou a cicatriz que acaricio toda vez que o vento do comodismo busca me fazer ficar de joelhos diante de um mundo injusto e cruel.

Sei que faço pouco para mudar o mundo, mas sei que me recuso a aceitar um mundo que se tornou imune às mudanças. Um mundo que se tornou medíocre, mesquinho, violentamente covarde. Um mundo onde os heróis são aqueles que saem do nada e se dão bem na vida: jogadores de futebol, campeões de Fórmula 1, campeões de tênis. Ou então aqueles que se exibem nas TVs e viram celebridades. E atiram palavras ocas para a multidão embevecida. Este é o mundo que venceu. Eu era do mundo que perdeu.

Deslocamentos I

No auditório do Sedes Sapientiae, em São Paulo, reduto do estudo e a formação em psicanálise desde 1975, uma plateia atentíssima ouviu mais de 15 palestrantes. Eles refletiram, a partir de diferentes lugares do pensamento, sobre as angústias, terrores e perdas que formam parte do sofrimento do sujeito contemporâneo.

A proposta da comissão organizadora, o Coletivo Escutando a Cidade, formado pelas psicanalistas Alessandra Sapoznik, Luiza Sigulem, Miriam Chnaiderman, Pedro Robles e Soraia Bento e a antropóloga Paula Janovitch parte da ideia Freudiana de “deslocamento”, ligado à plasticidade pulsional, a como as pulsões se movimentam dentro do aparelho psíquico e à possibilidade da criação. O sujeito é perpassado pela cultura e nesta movimentação sempre exposta, corre o perigo – dentre outros – de na falta de um “contorno”, de um “píer” onde se amarrar, trazer para o desenvolvimento do sujeito consequências determinantes entre a vida e a escuridão.

Mudanças de posição, de território e fluxos sociais podem remeter a um “não-lugar”, a uma deriva.

Mas será que este não pode devir um lugar em movimento? Uma outra possibilidade de referência? Pergunta-se o grupo.

Deslocamentos convidou acadêmicos, escritores e especialistas que apresentaram textos ao longo de quatro mesas: Novas Histórias, A língua errante e/ou o apátrida, Narrativas do éxodo e da diáspora Através da cidade. O evento, ainda, foi encerrado por uma apresentação dos músicos Yousef Salf, instrumentista palestino, Yannick Delass, compositor e cantor congolês, e Emir Panzo, poeta angolano.

paginaB acompanhou o evento e trará para o leitor/ouvinte podcasts com as apresentações da conferência.

Nesta primeira matéria, traremos as falas referentes à mesa A língua errante e/ou o apátrida com a participação do psicanalista e professor Nelson as Silva Junior como coordenador da mesa e, na sequência, as falas de Caterina Koltai, socióloga, psicanalista e professora aposentada da PUC-SP, também autora de Psicanálise e Política – O estrangeiro e Totem e Tabu, um mito freudiano; Marcio Seligmann Silva, professor titular de Teoria Literária na UNICAMP, pesquisador do CNPq, crítico literário e tradutor, autor de O local da diferença. E, por último, Peter Pál Pelbart, filósofo, ensaísta, professor titular de filosofia na PUC-SP, editor da N-1 Edições e autor de O avesso do niilismo.

 

Ouça as apresentações

Uma cidade no vazio da cidade que já existe

A exposição é fruto de um extenso trabalho de pesquisa sobre as ocupaçōes do centro da cidade, como a Nove de Julho - Foto: PáginaB
A exposição é fruto de um extenso trabalho de pesquisa sobre as ocupaçōes do centro da cidade, como a Nove de Julho - Foto: PáginaB

A luta por moradia é uma questão endêmica no Brasil. Em São Paulo há aproximadamente 600 mil sem teto. Paradoxalmente, há cerca de 600 mil edifícios abandonados pelos proprietários, sem função social, espalhados pela capital.

A luta por moradia não é exclusividade de um único movimento. Apenas sob a bandeira da FLM – Frente de Luta por Moradia, existem outras 13 siglas que se uniram em prol do movimento.

Na segunda feira 14 de maio de 2018, paginaB participou da inauguração da exposição Ocupar, Resistir, Construir e Morar, que traça a história do movimento em fotos, mapas e quadrinhos, na ocupação Nove de Julho que integra uma dessas bandeiras e está embaixo do guarda-chuva do MSTC – Movimento dos Sem-Teto do Centro.

À entrada da ocupação Nove de Julho, como em todas as outras ocupações da FLM, há regras. As pessoas precisam se identificar com nome, RG e CPF.

A Nove de Julho funciona em um antigo prédio do INSS, Instituto Nacional do Seguro Social, que estava abandonado há 30 anos, no centro da cidade. Hoje, dois anos após a ocupação pelo MSTC, o edifício em constante reforma abriga 121 famílias. De acordo com o movimento, cada família paga 200 reais para ajudar a manter a ocupação, reformar os espaços e construir novos cômodos.

Na apresentação pública, que aconteceu durante a abertura, uma das moradoras que veio do Rio de Janeiro, falou “Quando cheguei aqui senti como se tivesse nascido de novo. Aqui temos idosos, cadeirantes e as pessoas me tratam bem o tempo todo. Minha Casa Minha Vida deveria ser contemplado a partir de movimentos de moradia, porque aqui as pessoas estão preparadas para ocupar essas casas. Aqui temos regras, respeito e compromisso”.

Dentro do prédio, funciona ainda um cursinho popular organizado pela Uneafro. O objetivo do curso, de acordo com a organização, é colaborar com a formação de cidadãos “porque o sistema exclui os pobres e pretos”, explicou.

Já nos corredores de acesso, fotos, em sua maioria sub-expostas, em alto contraste, em sombras e cores densas, trazem imagens sobre o cotidiano das ocupações. De forma organizada. Do outro lado do corredor, a historia é desenhada em quadrinhos em preto, branco e realces vermelhos.

Quadrinho criado para a exposição da ocupação Nove de Julho - Foto: PáginaB
Quadrinho criado para a exposição da ocupação Nove de Julho – Foto: PáginaB

Além dos desenhos e das fotos, a montagem apresenta também os mapas que compõem o trabalho de doutorado de Jeroen Stevens, urbanista, professor da Universidade de Leuven, nos arredores de Bruxelas, na Bélgica. Stevens promoveu uma extensa pesquisa sobre ocupações no centro de São Paulo. O trabalho envolveu dezenas de pessoas e durou cerca de quatro anos, e viagens entre o Brasil e a Bélgica. Ao todo, ele e mais de 30 dos seus alunos, produziram mais de 43 mil fotos nesse período.

O trabalho de Stevens propunha mapear e compreender o projeto urbanístico desenvolvido organicamente pelas ocupações. “Está na moda arquitetos desenvolverem projetos participativos. Eu não quero criar um projeto e então convidar a comunidade para participar. Eu quero participar da ocupação e junto com eles aprimorar o projeto que o movimento já esta fazendo”, disse.

Foi assim que acabou morando por 15 meses em ocupações ligadas à FLM, mas foi na ocupação Nove de Julho, gerida pelo MSTC, Movimento Sem-Teto do Centro, onde ele passou a maior parte do tempo. “ Eu quero estar com as pessoas na ocupação. Por isso fizemos essa exposição (aqui), não queria que isso ficasse apenas dentro de uma sala do Mackenzie com três outros acadêmicos”, ele explica. Na sua visita mais recente, Stevens apresentou sua tese para uma banca na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

A cidade das ocupações

Durante os quatro anos em que acompanhou as ocupações, Stevens pesquisou o impacto social e urbanístico das reformas elaboradas dentro dos edifícios na cidade de São Paulo. Ele diz, ainda, ter aprendido mais com os moradores e militantes dos movimentos de moradia que conheceu do que em sua faculdade, “Eu nunca vi um urbanista fazer um projeto desses”. Foi graças ao convívio que o pesquisador aprendeu a falar português.

O estudo gira entorno do mapeamento das ocupações do centro da cidade como sendo uma nova cidade, inserida na realidade da primeira. “Quando se junta todos esses prédios [ocupados], temos uma cidade sendo construída nos vazios da cidade que já existe. A cidade da luta por moradia”. Os quadrinhos e as fotos são um complemento importante que ressalta a analise urbanística realizada pelo pesquisador.

De acordo com o levantamento realizado por ele, essa cidade de ocupações somaria cerca de 25 mil pessoas, dentre as quais 10 mil são moradores e outras 15 mil pessoas são participantes diretos ou indiretos da vida urbana da cidade de ocupações.

Para se ter uma ideia, essa tal cidade dispersa no centro paulistano teria mais habitantes que municípios paulistas como Bofete e Ouro Verde, com 9.618 e 7.800 pessoas, respectivamente, de acordo com o Censo do IBGE de 2010.

Um das particularidades dessa cidade, segundo o pesquisador, é o ritmo da vida das pessoas que compõem essa população, “Essa cidade não para. Estão o tempo todo reformando, construindo, pintando, tudo para terem um lugar digno para morar”, afirmou. De fato, mesmo durante a abertura da exposição, havia, por todos os lados, pessoas trabalhando na reforma do prédio. Mesmo durante o debate, trabalhadores carregavam dezenas de sacos de cimento para uma sala que estava sendo reestruturada.

 

Pagar para morar

Todo o trabalho de pesquisa de Jeroen Stevens começou quando ele visitou a antiga ocupação do Hotel Cambridge, também no centro de São Paulo. Foi lá que ele conheceu, por intermédio de um amigo, a coordenadora do MSTC, Cármen Silva.

A coordenadora do Movimento dos Sem-Teto do Centro é bastante conhecida dentro e fora dos movimentos de luta por moradia. Uma das razões, além da sua notável liderança, é a acusação que pesa sobre ela.

Cármen Silva, em 2016, foi acusada de coagir moradores para o pagamento de taxas da ocupação Nove de Julho. Em vídeos compartilhados na internet é possível ver Cármen criticar aqueles que atrasam o pagamento das taxas. Em outro vídeo, ela discute com uma moradora, que acabou sendo expulsa da ocupação após votação em assembleia. Ao portal G1, a ex-moradora disse que depois de sair da ocupação passou a receber ameaças, inclusive de morte. Há dois anos, o Ministério Público investiga o caso. Até o momento, oito pessoas foram ouvidas.

Cármen mantém-se firme em sua posição. Durante a abertura da exposição, em rápido pronunciamento e sem citar o ocorrido, ela ressaltou a importância da contribuição dos moradores para a ocupação e concluiu: “Eu tive que descer até o pó para conhecer a grandeza da solidariedade […] Aqui, nós estamos preparando cidadãos para ser parte do Estado, não à parte dele. O sentido da sociedade é a organização e como eu, há muitas outras carmens por aqui”.

O pesquisador Stevens, que viveu o cotidiano das ocupações, concorda com a importância de colaborações e o pagamento de algumas taxas para manter as ocupações, “é impressionante o que [os moradores] fazem nas ocupações com tão pouco dinheiro do aluguel. Em termos arquitetônicos, não teriam como pagar pelas reformas”, explicou.

Stevens cita, como exemplo de bom uso de recursos e boa manutenção, a Ocupação Mauá, que fica no antigo prédio do hotel Santos-Dumont e que foi abandonado nos anos 1980. A Mauá é, atualmente, a ocupação mais antiga do centro de São Paulo em atividade. Em 2018, ela completou 11 anos. Os argumentos de Stevens, quanto ao trabalho de reforma urbana e função social dos ocupantes, resumiu-se a uma foto do antigo hotel abandonado ao lado do mesmo prédio, agora reformado e que se tornou símbolo da luta por moradia no estado de São Paulo.

Ocupação Mauá, no prédio do antigo hotel Santos-Dumont antes (esquerda) e depois (direita) de ser ocupada
Ocupação Mauá, no prédio do antigo hotel Santos-Dumont antes (esquerda) e depois (direita) de ser ocupada

No debate sobre os sistemas alternativos de como ter acesso à moradia, toda informação é pouca. Trata-se de uma realidade complexa e da qual o Estado está longe de dar conta.

João Moreira Salles reflete sobre os descaminhos das utopias

Manifestação popular na China maoísta. Foto: Divulgação

Maio de 1968. A revista francesa Le Nouvel Observateur publica uma matéria que entraria para a história: o filósofo Jean-Paul Sartre entrevistando o então estudante Daniel Cohn-Bendit. Numa clara inversão de papeis, era o mestre que indagava ao aluno, de 23 anos, o que ele pensava sobre os rumos do país. A famosa entrevista diz muito sobre aqueles dias, quando os jovens ocupavam as ruas de Paris, questionando a tradição e propondo que “a força do movimento é que ele se apoia numa espontaneidade incontrolável”, como defendia Cohn-Bendit.

Esse sentimento de intensidade, de quem testemunha algo único na história, é um dos temas principais de No Intenso Agora, novo filme de João Moreira Salles. O longa-metragem, que ainda não tem data de estreia, marca o retorno do cineasta às telas depois de um hiato de dez anos – seu último trabalho lançado foi Santiago, em 2007. Exibido no festival de Berlim e recentemente no É Tudo Verdade, o filme reflete sobre a construção das utopias e seus descaminhos. Como ponto de partida, o cineasta se valeu de um acervo particular: as imagens que sua mãe, Eliza Gonçalves, produziu durante uma visita à China em 1966, no início da Revolução Cultural.

Em entrevista à CULTURA!Brasileiros, o diretor conta que encontrou o material enquanto editava Santiago. “Quando estava terminando o filme, senti falta de incluir imagens da minha família. Pedi que procurassem no acervo do meu pai e me mandaram uma caixa com um pouco de tudo: registros de aniversários, férias, viagens. E nessa caixa, havia um rolo de 16 milímetros, que não era um suporte usual para filmes caseiros”. O olhar estrangeiro de sua mãe foi uma boa surpresa. “Eu não conhecia as imagens e quando as vi pela primeira vez fiquei bastante tocado, elas me deram certa concretude daquilo que durante tantos anos eu a ouvi falar. Eu vi os registros dos guardas vermelhos, a muralha, os posters do Mao Tsé-tung, estava tudo lá”, afirma.

Salles não incluiu o material em Santiago e o armazenou por dois anos até começar a idealizar o novo trabalho. Em No Intenso Agora, as imagens produzidas por sua mãe se alternam com registros de Maio de 68, da Primavera de Praga e da ditadura militar brasileira. A voz em primeira pessoa do diretor narra o filme, estabelecendo a ligação entre as sequências. “Relacionar as imagens da minha mãe com as de 68 é um pouco o mistério do filme, para algumas pessoas ele funciona, para outras não. A ligação de fato não é evidente”, afirma.

Para o diretor, o que realmente une as duas experiências é o sentimento de plenitude. “No caso de minha mãe, ela tinha uma alegria de estar em um lugar totalmente diferente, conversando com pessoas que vinham de um mundo que ela não podia conceber. Ela se maravilha com isso. Já na França de 68, é uma paixão política, a ideia de fazer parte de um coletivo que caminha em direção à igualdade. Essa sensação de estar por inteiro em alguma coisa é o que tornou possível estabelecer esses paralelos entre a viagem de minha mãe, que evidentemente não foi motivada por razões políticas, e os movimentos de 1968, movidos pelo desejo de mudar o mundo”.

Em uma das primeiras cenas do documentário, um trabalhador francês fala sobre a greve de 1967, a maior da França até então: “Os operários perceberam que o essencial era a dignidade de cada um, serem homens realmente e não apenas consumidores. Não existirem apenas, mas viverem”. A fala já revela bastante do espírito que presidiria o ano seguinte. Segundo o historiador Lincoln Secco, da Universidade de São Paulo, os movimentos de 68 foram uma consequência do crescimento econômico do pós-guerra. “Nas sociedades como a europeia e americana, houve uma melhoria dos padrões de vida que trouxe à tona outras reivindicações associadas à ideia da utopia, do sonho mesmo”, afirma.

Ao longo do filme, aparecem muitas imagens de estudantes rindo durante essas intensas e rápidas três semanas que, futuramente, muitos lembrariam como os melhores momentos de suas vidas. No entanto, o diretor também revela outro lado, o que o curador do É Tudo Verdade, Amir Labaki, chama de “ressaca pós-utópica”. “Qualquer paixão, seja erótica ou política, transforma-se em outra coisa, passa e perde a intensidade. A partir de então, a questão que se coloca é: como voltar a viver no cotidiano banal? Muitas pessoas que participaram dos movimentos de 68 seguiram em frente, não ficaram presas à nostalgia daquele período. Outras não conseguiram. É o caso da minha mãe, que foi muito feliz por um período e depois não teve mais capacidade de sustentar isso”, afirma Salles.

O longa-metragem não revela que a mãe do cineasta se suicidou em 1988. Porém, as referências à morte são muitas. Uma das sequências mais impactantes mostra o funeral do estudante tcheco Jan Palach, que se matou logo após os tanques soviéticos invadirem o país, encerrando o governo progressista de Alexander Dubček. Inúmeras pessoas compareceram ao enterro para se despedir não só do estudante, mas de um projeto de país que fora totalmente arruinado. O escritor e ex-presidente tcheco Václav Havel comenta o incidente: “A morte de Palach, que teria sido inexplicável em outro momento, foi perfeitamente compreendida por toda a sociedade. Porque essa morte foi uma expressão limite do nosso estado de alma”.

Mesmo ocupando um espaço menor no longa-metragem, as imagens da Primavera de Praga, e sua posterior repressão, têm grande importância na narrativa. São registros de cineastas amadores que filmam rápido, em um afã por testemunhar a história. Diferentemente das imagens de Paris, nestas há uma atmosfera de medo, uma cautela por parte dos observadores que parecem temer a repressão. Para Salles, esse material talvez seja a “maior revelação do filme”.

O diretor defende que a invasão da Tchecoslováquia foi a “pá de cal” dos sonhos da geração de 68, que via no país um caminho possível para o socialismo. “Ao contrário do Maio Francês, ali as pessoas testemunharam o seu país ser destruído. A verdade é que, com a entrada dos tanques, caiu o pano dos sonhos daquela geração, não havia mais modelos a seguir. E aí começa a tristeza”, afirma.

Manifestação popular na China maoísta. Foto: Divulgação / Videolar

Desconfie das imagens

No Intenso Agora também é um filme sobre as imagens. Como um historiador que olha para um documento, Salles analisa milimetricamente o material que tem diante de si. Com seu olhar treinado, ele percebe as várias nuances que existem em uma foto. Cita como referência dois grandes nomes do cinema brasileiro: Eduardo Coutinho, a quem o filme é dedicado, e Eduardo Escorel, que é o montador do longa-metragem. “Eles me ensinaram a desconfiar das imagens”, afirma.

Ao longo do documentário, Salles congela várias cenas, procurando os vestígios, as pistas que elas carregam sobre o seu tempo. “Quem merece estar na imagem? Essa é uma questão essencial. No Brasil, por exemplo, a empregada doméstica está sempre de fora das fotos da família. A imagem se organiza da mesma maneira como as classes sociais; isso é um ponto central de No Intenso Agora”.

No caso de Maio de 1968, Salles afirma que é possível perceber que o protagonismo do movimento ainda permaneceu com os homens brancos. “Você olha para as imagens e vê, por exemplo, que os negros nunca ocupam o centro do quadro, estão sempre nas bordas. Ou que as mulheres ficam muito mais caladas, são os homens que falam”.Para poder enxergar essas nuances, Salles conta que é preciso passar muito tempo olhando para as imagens até “tornar-se íntimo delas”. O filme nasceu assim na ilha de edição, de uma vontade do diretor de analisar esse material de arquivo, que trata de uma história coletiva, mas também da sua própria.

Para tratar desse ponto de vista íntimo, Salles adotou a primeira pessoa do singular, recurso que já empregara em Santiago. O cineasta afirma que, nos últimos anos, se interessa cada vez por filmes que chama de intransferíveis: “São obras que só podem sair da sensibilidade de um indivíduo, aquele que os fez. Nesse sentido, a primeira pessoa do singular não é inevitável, mas ela se oferece de maneira sedutora”. Por isso, ele acredita que seus dois últimos trabalhos se destacam perante os demais, que não têm tons biográficos. “Não é que eu rejeite os filmes anteriores, mas tanto Santiago quanto No Intenso Agora têm um aspecto interessante por serem uma extensão de mim mesmo. Isso dá uma força a eles que gosto de encontrar em outras produções”.

A primeira pessoa é um recurso comum em muitos documentários recentes. Indagado se essa atitude seria um contraponto à busca de uma objetividade inalcançável, o cineasta responde: “Acredito que não devemos abrir mão da ideia de verdade; um mundo do puro relativismo em que qualquer versão tenha o estatuto de verdade, é um mundo perigosíssimo. Vivemos esse risco hoje. Minha posição, como cineasta, é apresentar as circunstâncias sob as quais produzo minha obra. O público precisa entender de onde você está falando, quais são condições, todas elas: de raça, gênero, classe e etc”.

Amparado nas forças das imagens, No Intenso Agora é um filme sobre o sonho de um mundo mais justo. Impossível sair do cinema sem pensar no presente. Salles garante que esse é o intuito: que as pessoas reflitam sobre a política contemporânea. Ele afirma que é possível traçar paralelos entre o que aconteceu nos anos 1960 e a situação atual. Porém, prefere deixar que as pessoas façam suas próprias associações, não querendo “determinar como elas devem pensar”.

Ainda assim, o diretor comenta os aprendizados que o ano de 1968 trouxe: “A estabilidade do sistema não está garantida. Assim como emergiu o maio francês, vieram a Primavera Árabe, os protestos de 2013 no Brasil, entre outros. Essas coisas acontecem, elas brotam onde não poderíamos imaginar. Maio de 1968 provou que essa anarquia festiva é uma possibilidade sempre à espreita dos regimes que se acham sólidos e estabelecidos”.

Jorge Hue, um senhor arquiteto

O arquiteto Jorge Hue, no dia em que completou 90 anos de idade, em sua casa, no Rio. Foto: Marcos Pinto

“Minha desconfiança vem de um comentário que Oscar Wilde fez no prefácio de O Retrato de Dorian Gray. Ele diz mais ou menos o seguinte: ‘Quando fala de si, a pessoa é sempre complacente ou absolutamente corrosiva’. Mas, se você estiver em uma ilha deserta, deitado na areia, sem a necessidade de uma esteira de vime, como cantou Vinicius em Tarde em Itapoã, mas deixando o pensamento correr e fluir, a vida surge de maneira caleidoscópica. Tudo que você fez e sentiu vem de maneira muito mais nítida.”

A observação de Jorge Hue, na manhã desta sexta-feira, 6 de agosto de 2013, dia em que ele completa 90 anos, vem de forma voluntária, e sucede o comentário inicial de que devíamos passar por momentos cronológicos para traçar um perfil que desse conta de sintetizar, em poucas páginas, sua irrepreensível trajetória profissional. Mas Hue, que engavetou o diploma de sociólogo para fazer história como arquiteto, não quer mesmo holofotes, tampouco voltar-se para o próprio umbigo para cantar os louros do passado.

Movido por essa tônica dominante, com impressionante serenidade e conhecimento, Hue começa a discorrer sobre uma série de questões. E assim conduz a conversa do começo ao fim, com uma sutileza que torna suas façanhas quase imperceptíveis. Ele não fala explicitamente sobre si, mas diz muito sobre quem é. De quebra, oferece lições valiosas de sabedoria. De maneira que a conversa a seguir, como as obras de seus pares Oscar Niemeyer e Lucio Costa, que assina o projeto do moderno edifício onde ele vive no Parque Guinle, seguirão estruturalmente despojadas e objetivas. Sem grandes intervenções, dispensemos, então, o supérfluo. Afinal, menos sempre será mais, como escancarou Mies van der Rohe, um de seus mestres.

Desejo
As únicas coisas que eu gostaria que continuassem sempre comigo: a lucidez, a generosidade e a coragem. Seria muito difícil que alguém como eu pudesse ter tido sete filhos, 16 netos e 11 bisnetos – aliás, o 12o está prestes a chegar! –, sem que tivesse o tempo todo presente em minha vida o sentido de coragem e generosidade. A coragem deve estar em tudo. Ela não é um otimismo besta, pelo contrário, é conforto permanente com tudo.

Romana – Banheiro com box, chuveiro, vaso, bidê e cama de massagem, de inspiração romana. Rio de Janeiro, 1962

Ensaios e uma carta
Tenho uma grande quantidade de textos sobre os mais variados assuntos, que jamais publiquei, e tinha também a pretensão de publicar um livrinho de ensaios nesta data, mas não os concluí. Só que a qualquer momento posso escrevê-los, ou simplesmente me deitar no chão e ditar essa coisa toda. Posso fazer um devaneio e gravar. Por que não? São nove ensaios e, por fim, uma carta aberta ao neto de um dos meus bisnetos. Os ensaios são sobre coisas práticas, como a caneta, o lápis, a barba, para não encher o saco de ninguém. Pequenas digressões sobre objetos e divertimentos. O primeiro ensaio é sobre a revitalização do tempo. Outro se chama A Barba do Faraó. Me interesso muito pela história da barba, tenho um livro chamado Thousand Beard. Aliás, depois de uma escravização de anos e anos fazendo a barba, descobri, há três, o quanto é confortável não fazê-la (Hue sempre usou bigode). Outro ensaio se chama A Lua e a Roda. Mas por que a Lua? Porque a roda não surgiu como uma coisa intuitiva, e ela é totalmente intuitiva. Basta dizer o seguinte: os astecas, os maias e os incas não tinham rodas. E, se você observar a lua cheia, lógico deveria intuir a roda. Claro que as bigas romanas, e mesmo as egípcias, já tinham rodas, mas isso não quer dizer que ela se consolidou. A África até então desconhecia a roda. A Ásia ainda não tinha a roda.

Três mulheres e o amor
Antes da carta que deixarei para meu tataraneto, haverá um ensaio chamado As Três Mulheres. São elas: Nossa Senhora, mãe de Jesus Cristo, Maria Madalena e Madame de Warens (Françoise-Louise de Warens), que foi quem iniciou Jean-Jacques Rousseau no amor. Ela foi, para ele, a descoberta do saber junto com uma coisa sublimada, que é a ideia de um sexo mais ligado à natureza, ao saber, à delicadeza, ao toque, ao cheiro, ao calor, à proximidade, à identificação de ideias. O caminho peripatético, toda uma série de revelações tão extraordinárias para Rousseau, que, por uma série de razões, quando, depois de três anos idílicos, teve de abrir mão de tudo isso e voltou para ela, somente dois anos depois, ele encontrou Madame de Warens casada e infeliz. Foi aí que ele perdeu totalmente sua segurança, que perdeu o Paraíso”

Mutações do mundo
Noventa anos é uma vida razoável. Já vivi e vi tantas coisas que não tenho a mínima perspectiva do que acontecerá em 180 anos. O galope que nós fomos conduzidos pela evolução da informática nos coloca numa descartabilidade total. Mesmo coisas estáveis, feito a arquitetura, passam a ser presas de vicissitudes que ninguém pode programar. O Edifício Manchete, por exemplo, por ser do Oscar (o arquiteto Oscar Niemeyer), é tombado pelo IPHAN. Não podem modificar nada, então, sob certo aspecto, ele é um condenado. Sob o ponto de vista de segurança, tecnologia, falta de terminais de computadores, velocidade nos elevadores, vulnerabilidade das esquadrias, má situação de todo o sistema de ar condicionado e a própria doença do tempo, que corrói determinados processos construtivos de concreto, ele não é perene. Perenes são as pirâmides do Egito. Até mesmo os objetos têm em si o micróbio da própria morte.

Turma de notáveis
Li um livro muito interessante, Flores Raras (Flores Raras e Banalíssimas, de Carmen L. Oliveira, recém-adaptado para o cinema por Bruno Barreto), que conta a história da Elizabeth Bishop e da Lota de Macedo Soares. Quando foi pensado o Aterro do Flamengo, evidentemente entrou gente muito boa no projeto, não só a Lota, mas Roberto Burle Marx, Reidy (o arquiteto Affonso Eduardo Reidy), que fez o projeto do MAM, Lucio Costa, Alcides Rocha Miranda, gente da melhor qualidade. O aterro poderia ter sido uma pista, mas foi transformado em um jardim incrível. Faço aqui também justiça a Luiz Emygdio de Mello Filho, que não só era médico, era, sobretudo, um botânico extraordinário. Com o Roberto ele trabalhou na escolha minuciosa de espécies de convivência. O jardim em si é um monumento de acertos, pois ele tem o micróbio da própria transformação, é uma coisa viva. Temos palmeiras e babaçus que morrem depois dos 40 anos. No final da vida, as palmeiras, por exemplo, dão um pendão maravilhoso, morrem, e naturalmente são substituídas, pois, na sequência de séculos, aquelas sementes que caíram vão germinando outras palmeiras.

Obra em retrospectiva – As fotos e desenhos reproduzidos aqui integram o livro Jorge Hue (editora Contracpa). Lançada em 2010, reúne imagens de trabalhos, testemunhos de profissionais e de amigos sobre o arquiteto

Lucio Costa
Foi chamado um primeiro arquiteto (para a construção do prédio onde mora Jorge Hue). Esse camarada tinha um projeto que era uma série de prédios afrancesados. Os herdeiros sentiram a impropriedade do gesto e pediram uma consulta ao Lucio, que disse: ‘Isso aqui vai se transformar em uma grande senzala do palácio’ (o Palácio Laranjeiras, que fica dentro do Parque Guinle e é a residência oficial do governador do Rio de Janeiro, embora, o atual, Sérgio Cabral, não tenha optado por morar lá). E Lucio criou essa coisa inédita, de fazer uma série de prédios, todos embebidos nos princípios básicos do Le Corbusier – pilotis, lajes soltas e independentes, quase a pré-ideia de um loft, com grandes áreas de depósitos onde afloram colunas de sustentação, um brise e uma clautra de tijolo, que filtram as aventuras do Sol. Os únicos pontos de determinação de uma exigência técnica são os pontos hidráulicos. Fora isso, você pode tirar todos os outros elementos do apartamento que ele vira um espaço único. Uma ideia absolutamente extraordinária. O prédio foi construído de 1943 a 1948. O projeto inicial previa sete edifícios, mas foram construídos apenas três. O empreendimento imobiliário foi um fracasso, as pessoas ficavam completamente tontas de morar em um espaço único como esse.

Improvisos no Planalto
A primeira vez que fui convidado a trabalhar no Palácio do Planalto, durante o governo Costa e Silva, me deparei com a seguinte cena: uma sala relativamente longa, com teto acachapado, vidro nas laterais, vidros no fundo e como paisagem a savana! Havia um sofá de madeira e umas espécies de bancos laterais, que lembravam aqueles troncos de cones nos quais os elefantes são chamados, no circo, para por um pé em cima e levantar a tromba. Com a pressa de inaugurar o Palácio do Planalto – e o governo tinha farto dinheiro na mão, mas não importava móveis verdadeiros –, réplicas de peças do Mies van der Rohe foram colocadas lá. Tudo feito com metal dourado e parafuso. Rachavam com o tempo. Cópias de fundo de quintal, feitas a martelo.

Marx, Burle Marx
Minha casa foi invadida por uma série de policiais, às três horas da manhã. Estavam à paisana, mas todos armados. Houve uma coleta de livros, tiraram uma série de títulos suspeitos de minha biblioteca. Um deles, do Burle Marx, imediatamente chamou a atenção deles. Disseram: “Por favor, o senhor tem a necessidade de nos acompanhar até o Ministério da Aeronáutica”. Tratado com correção, fomos ao aeroporto Santos Dumont, no Comando do Espaço Aéreo. Entrei, por volta de 5 horas, quando vi, sem poder trocar uma palavra com eles, dois amigos meus, marido e mulher. Fui levado para outra salinha, onde fui interrogado. Respondi a várias perguntas, mas fui levado de volta a minha casa.

Substituição – O arquiteto foi chamado a São Paulo para complementar um apartamento que estava apenas no esqueleto, após a morte do autor do seu projeto. “O cenário era catastrófico, lamacento e pinguento”, lembrou ele. O resultado ficou assi

Memória do cárcere
Passado algum tempo que Jorge Eduardo (Jorge Eduardo Hue, filho do arquiteto, que militava contra o regime militar) vivia clandestinamente, outros amigos estavam desaparecidos. Um rapaz muito simpático, filho de um diplomata que teve contato com Jorge Eduardo, foi torturado e mencionou meu nome. Eu tinha ido levar o projeto do Palácio do Planalto, que era meu, do Bernardo (o arquiteto carioca Bernardo Figueiredo) e do Roberto (o paisagista Roberto Burle Marx). Quando voltei para casa, vi um sujeito estranho, de costas, fazendo pipi, e fui parado por um mundo de meganhas. Pedi apenas que eles me deixassem estacionar o carro na garagem, mas não pude entrar em casa, porque ela estava cercada. Soube depois que ela tinha sido invadida e os telefones cortados. Fui encapuzado e me fizeram ficar de cócoras no banco de trás de um carro de passeio. Paramos em um quartel na Rua Barão de Mesquita – coisa que soube depois, somente quando saí. Encapuzado, fui levado a uma câmara frigorífica e obrigado a tirar toda minha roupa. Absolutamente nu, me deixaram sozinho. Um frio e um calor danado, que variava de 5 a 30 e tantos graus. Com uma frequência regular, eles vinham em grupos de três, fazendo sempre as mesmas perguntas ordinárias: nome, nacionalidade, nome da mãe, nome do pai… Pouco depois as perguntas foram adensando até chegar à situação em que mudou o tratamento. Tudo foi ficando pior… A namorada do meu filho chamada de puta, Jorge Eduardo chamado de viado… Quando era deixado sozinho ouvia gritos, uivos, lamentos, murmúrios e som de pancadaria. No final de todo esse interrogatório um desses camaradas me deu um tremendo safanão. Passaram-se horas e horas até que vieram outros três, que me tiraram de lá e me fizeram vestir um macacão azul. Nessa altura, com o frio que estava sentindo, o macacão veio bem a calhar. Eles, então, me conduziram para um dos corredores até um lugar onde o chão era úmido, com cheiro de urina. Vi deitada no chão, nua e gemendo, uma moça de 17, 18 anos. Eu a observava por baixo do capuz e percebi que ela estava muito frágil. Choramingava, pedia um médico. Fui levado por dois camaradas uniformizados até a minha cela. Uma cela retangular. Havia nela uma pia, à direita um vaso sanitário rachado e um cano na parede, um pseudochuveiro… Aí é que está a coisa imoral desse negócio. Esses rapazes, que gratuitamente me tratavam com a maior estupidez, eram apenas jovens em serviço militar. Não tinham nenhuma convicção política e não estavam ali defendendo bandeira alguma. Eram movidos por pura estupidez.

Liberdade?
Vieram de novo me interrogar. Trouxeram uma pranchetinha em tamanho A4, um lápis-tinta, uma cor meio roxa, indelével, e o papel era pautado, em folhas soltas. Um extenso questionário. “Quem é De Gaulle?”. “Até que ponto está ligado ao Partido Comunista?”. De novo citaram nome dos meus amigos, queriam saber das minhas ligações com o menino, que, depois de levar choques elétricos, me denunciou. Meu posicionamento era nenhum, tanto quanto tenho agora. Só ajudei pessoas de organizações. Respondi, copiosamente, às perguntas. Escrevi, escrevi… Quando terminei, veio um meganha que me pediu os papéis e o lápis para eu não ter como me suicidar (risos). Depois disso, uma sessão de fotografias. De frente, de perfil, com numeração… Era quase noite quando me levaram para o mesmo banheiro e a menina ainda estava lá, sentada na mesma posição. Eu, descalço e de macacão, novamente de capuz. Veio, então, um camarada que fez uma série de perguntas e disse: ‘Lendo seu questionário encontramos um depoimento sincero, e o senhor vai ser liberado’. Cerca de dois meses depois, recebi um telefonema de alguém dizendo que era do Exército e que eu precisava ir buscar algumas coisas que eram do meu interesse. Preocupado, falei com meu cunhado, que é advogado: ‘Olha João, estou indo ao Ministério da Guerra’ (o episódio aconteceu em janeiro de 1972, em pleno governo Médici que, ironicamente, contratava os serviços de Hue). Entrei numa sala, tinha lá uns sacos e uma grande quantidade de livros meus, entre os quais, o do Burle Marx (risos).

Perfeccionismo – Desenho com minúcias de detalhes de um salão no Rio Janeiro, feito no ano de 1956

Quatro rodas
Demorei muitos anos para me sentir no direito de comprar um carro conversível. Comprei um de segunda mão, mas muito conservado. Tinha sete filhos, e eles é que tinham a preferência. Para me dar o direito de comprar o carro fiz um estudo de dois anos, a fim de saber quantos dias perfeitos existiam no Rio de Janeiro, dias nos quais eu poderia decretar feriado nacional. Eles deveriam ser antecedidos e sucedidos por outro dia perfeito, se não não poderiam ser considerados perfeitos. Encontrei 11 dias por ano. Foi então que me dei o direito de ter o carro. Nesses dias perfeitos eu saía de manhã, chegava até um determinado ponto da Barra, e, quando via a pedra da Gávea do lado oposto, voltava para casa. Nunca tive um objeto em toda minha vida que eu tenha gostado tanto quanto gostei desse carro, um MG conversível, de 1958. Fiquei com ele por dez anos, de 1975 a 1985. Quando o vendi tive certeza absoluta de que estava envelhecendo.

Além da vida
Para uma pessoa de 90 anos a vida desfila, de maneira impressionante. E, é claro, sempre valeu a pena viver. As coisas se fundem: alegrias, tristezas, tudo que você conquistou. Mas não preciso de data alguma para celebrar essas coisas. A partir de um determinado momento elas estão sempre presentes. E não há nenhum sentido mórbido nisso. Pelo contrário, até mesmo minha amiguinha morte é tão alegre quanto as coisas boas da vida.

Depois de quase três horas de uma aprazível conversa, intercalada por cerca de 20 ligações telefônicas de familiares e amigos ansiosos por parabenizar Hue pelos 90 anos, a entrevista chega ao fim. O encontro foi testemunhado pelo cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, fundador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo – USP, membro da Comissão da Verdade, e Presidente da Comissão da ONU para a Síria. Personagem de capa da edição de agosto de 2012 de Brasileiros, Paulo Sérgio é amigo incondicional de Hue desde a década de 1960. Foi ele que, em um gesto de coragem e lealdade, acolheu, em São Paulo, Jorge Eduardo, o filho do arquiteto, perseguido pelo governo Médici. Em dia tão especial, Paulo Sérgio fez questão de pegar a ponte-aérea para visitar o grande amigo e sua inseparável companheira, Anna Luiza, espécie de Madame de Warens de Hue – muito embora, claro, ele tenha tido sorte maior do que a de Rousseau.

Letieres Leite, guardião da Mãe África

O maestro baiano Letieres Leite empunha uma flauta transversal. Foto: Fernando Eduardo

* Da coleção de excelentes entrevistas e reportagens do Marcelo Pinheiro

O talento do maestro baiano Letieres Leite talvez encontre páreo somente em sua determinação. Aguerrido, como o cerca de 1,1 milhão de africanos que, escravizados, desembarcaram em Salvador e fizeram de sua terra natal um dos terrenos mais férteis para a música do Brasil, Letieres não poupou esforços para impor suas convicções artísticas. Aos 20 anos, sozinho, deixou a capital baiana, onde estudou Artes Plásticas na Universidade Federal da Bahia (UFBA), para se aventurar em uma casa de shows no Sul do País. Saxofonista e flautista, ao chegar em Florianópolis, em 1981, com o diminuto cachê recebido pelas apresentações, teve de encarar a difícil rotina de, por quase dois meses, dormir embaixo de um viaduto. Pouco depois, na capital gaúcha, viveu dias melhores. Integrou um respeitado grupo da cena instrumental da época, a Banda de Nêutrons, e foi além. Autodidata na escrita musical, foi convidado a assinar arranjos para a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre.

De volta a Santa Catarina, em 1985 embarcou em uma viagem para a Espanha com um grupo de músicos. Quando os amigos voltaram para o Brasil, decidiu ficar por lá, pegou um trem e foi parar na Áustria. Em Viena, onde Beethoven e Mozart fizeram história e Strauss e Schubert nasceram, Letieres aprimorou seus conhecimentos musicais. O ingresso em renomados conservatórios veio depois de, no carnaval vienense, encantar a população local e o prefeito da cidade ao apresentar arranjos de escola de samba para peças sinfônicas. Depois de breves temporadas musicais na Inglaterra, França e Suíça, voltou ao País em 1994.

Também inspirado pelo vanguardismo de maestros que marcaram a história da UFBA, como o alemão Hans-Joachim Koellreutter e os suíços Walter Smetak e Ernst Widmer, Letieres tem pleno domínio intelectual de sua arte, mas nem por isso abre mão do despojamento e da irreverência visíveis nas apresentações com a Orkestra Rumpilezz. Com esse mesmo misto de informações, o maestro conversou com nossa reportagem, por telefone, enquanto se deslocava para um compromisso em Olinda. Na primeira quinzena deste mês, ele esteve na cidade histórica pernambucana escrevendo arranjos para uma nação de candomblé chamada Xambá, que há quase 90 anos mantém viva a tradição da cultura bantu. Bem-humorado, o regente batuqueiro brinca que está se sentindo aluno das crianças de cinco, seis anos, que intuitivamente sabem bem mais do que ele sobre a riqueza do Xambá. Com a palavra, Letieres Leite, Guardião da Mãe África e maestro aprendiz.

CULTURA!Brasileiros – Você estudou Artes Plásticas na UFBA no final dos anos 1970. O que o levou à decisão de abandonar a pintura e se dedicar à música?
Letieres Leite – Desde pequeno queria ser pintor, e até meus 20 anos tinha certeza de que era isso que ia fazer da vida. Como aluno de Artes Plásticas, pude participar dos seminários livres de música. Comecei a entrar nessa onda (Letieres tocava saxofone e flauta transversal) e deu tudo muito certo. Logo passei a me apresentar em um evento organizado pelos alunos, a Mostra de Som Universitário contra a Ditadura, e o jogo virou.

O seminário era nos moldes daquele criado pelo Koellreutter no começo dos anos 1960? Em 1980 ainda havia no campus da UFBA a mesma efervescência cultural que marcou a gestão do reitor Edgar Santos?
Edgar fez uma grande revolução, não só na UFBA, mas em toda a Bahia. Transformou a música, o teatro, a dança e a cultura de Salvador, porque fez um investimento altíssimo para que tudo isso acontecesse. No campo da música, trouxe da Europa mestres como Koellreutter, Widmer e Smetak. Quando comecei a frequentar os seminários, Koellreutter já tinha partido do Brasil, mas tive a sorte de pegar os últimos anos do Bastianelli (o maestro italiano Piero Bastianelli) e do Smetak na UFBA. A faculdade ainda respirava aquele ambiente dos anos 1960, tanto que, em 1980, participei do primeiro Festival de Música Instrumental da Bahia, que teve (o guitarrista)
Hélio Delmiro e (o saxofonista) Victor Assis Brasil como convidados.

Seu talento musical teve influência familiar?
Não mesmo. Aliás, até eu resolver tocar não sabia de ninguém da minha família que fosse envolvido com música. Depois é que fui descobrir que um tio-avô foi maestro de uma orquestra de Petrolina, em Pernambuco. Apesar de ele também tocar saxofone, não tive o menor contato com ele.

Antes de participar dos seminários você já tinha algum conhecimento dos instrumentos?
Aos 12 anos, em Salvador, tive a sorte de estudar em um colégio público chamado Severino Vieira, que tinha uma orquestra afro-brasileira criada pela pesquisadora Emilia Biancardi. Entrei nessa orquestra e toquei flauta e sax durante dois anos. Foi o primeiro contato com a música afro-brasileira que tive na vida. Uma experiência tão forte que ficou comigo até hoje. Foi lá também que tive os primeiros contatos com professores de música que eram mestres populares e que me ensinaram a tocar percussão. Um deles, Mestre Moa do Katende, com quem tenho contato até hoje e para quem até fiz uma composição, me deu uma consciência muito forte sobre essa herança musical, algo que serviu como um subsídio para que, depois, eu pudesse entender a força dessa música e quisesse estudá-la. Acho que o começo da Rumpilezz, ou seja, das matérias que quis desenvolver em relação à música afro, veio desse período de descobertas no colégio. Nos trabalhos que fiz na Europa esses elementos já estavam muito bem colocados em mim. Sempre tratei a música instrumental com essa intenção. Quando toquei com Paulo Moura em Montreux, em 1992, o som já era bem parecido com o que faço hoje.

Vocês tocaram juntos no festival de jazz?
Sim. Uma das músicas que apresentei para o Paulo era um frevo, chamado Saideira, e a segunda parte tinha um ijexá em que eu fazia a percussão. Paulo foi um grande incentivador das minhas ideias, porque também gostava da combinação do sopro com a percussão.

Ele fez parte da geração de músicos que, nos anos 1960, explorou matrizes africanas, como os maestros Moacir Santos e Abigail Moura, da Orquestra Afro-Brasileira, e grupos como Os Ipanemas…
Exatamente. E foi uma feliz coincidência eu ter me reencontrado com ele em Montreux – fui aluno do Paulo, em 1984, quando morei em Porto Alegre – porque essa reaproximação fez com que eu insistisse na ideia de improvisar música brasileira por meio desse formato, de percussão e sopro, que me levou ao conceito da Rumpilezz.

 

Enquanto educador, para além da questão musical, mas também do conhecimento da ancestralidade africana, como você desenvolve a formação dos músicos?
Como disse, a estética musical da Rumpilezz surgiu bem antes de a orquestra existir. E todos eles sabem que esse conceito veio também da compreensão de que em muitos países a influência musical da diáspora negra tem organizações próprias, com muito rigor, algo que nós, no Brasil, ainda não tínhamos desenvolvido bem.

Faltavam métodos de aprendizado por aqui?
Sim. E fui entender a falta desse rigor por aqui quando passei a pesquisar a música de Cuba, que também veio da diáspora africana, tem a mesma clave que existe na música daqui, mas é diferente da nossa, por causa das combinações étnicas que aconteceram no Brasil e na maneira como executamos essas mesmas referências. No Brasil, até bem pouco tempo atrás, não havia, por exemplo, a consciência dos subgêneros africanos, algo que os cubanos e os músicos de jazz americanos começaram a desenvolver no final da década de 1940. Quando fui estudar na Europa é que, por conta própria, passei a fazer minhas anotações, partindo, primeiramente, do que eu já sabia desde Salvador. Foi na Europa que comecei a entender que a forma estrutural de toda música derivada da diáspora tem modelos semelhantes de estruturação e rigor. Os estudos em Viena permitiram que eu organizasse as barras de compassos, a duração das notas, o tal “fechamento europeu”, coisas que ainda não eram concebidas teoricamente para a sutileza rítmica que há na música que veio parar por aqui com a diáspora africana.

Até então, sobretudo com o trabalho de maestros como Moacir e Abigail, essas ações eram isoladas em iniciativas de registro, mas não na construção de métodos de ensino.
Acho que esses maestros criaram soluções para que os músicos que viessem depois deles combinassem a seção rítmica e os outros instrumentos com maior tranquilidade. Veja, por exemplo, que nas músicas do Moacir – e digo isso porque tive a oportunidade de estudar seu repertório – os músicos conseguem tocar a anotação afro porque ele cria fórmulas em que a influência percussiva conversa com o piano, com o contrabaixo. Abigail Moura também pensava assim, mas trazia a música em uma essência muito mais próxima das matrizes africanas do que do jazz.

Para além da música instrumental e do samba, essa influência também é muito presente em nossa canção popular.
Sim. É um privilégio de quem trabalha com a música brasileira. Veja o caso da bossa nova: tive a oportunidade de estudar o violão do João Gilberto e percebi que, nele, mesmo que tudo seja organizado de outra forma, também existe essa clave da diáspora. João não atrasa ou adianta a melodia ao bel-prazer. Ele interfere na batida de seu violão justamente porque percebe onde a clave africana está acontecendo. João é alguém que sabe que essa população foi tirada de suas origens na marra, por meio de um grande holocausto, como assim considero, mas que também acredita que essa tragédia construiu algo complexo, tão bonito, que tem de ser respeitado. Quando criei o conceito do disco A Saga da Travessia e tive de pensar nos navios negreiros que ancoraram na costa brasileira, criei também uma imagem de alento. Fantasiei que eles chegavam aqui com o júbilo de que não seriam completamente destruídos, como se pudessem prever: “Chego aqui quase destruído, mas meu descendente vai ser Pixinguinha, meu descendente vai ser Jackson do Pandeiro, meu descendente vai ser Batatinha”. A ideia do Travessia para mim, é justamente propor um júbilo, enaltecer a possibilidade de, em meio à tragédia, poder criar uma arte que influenciou a música das Américas. O jazz, o blues, o samba e até o tango, todos esses gêneros vieram da diáspora.

A Saga da Travessia foi lançado seis anos após o primeiro trabalho da Rumpilezz. Esse longo hiato trouxe distinções entre os dois trabalhos?
Para mim, esse álbum é uma evolução natural da ideia do primeiro, que era bem mais didático. Todos os arranjos e execuções das composições deste novo disco ficaram completamente em sincronia com essa ideia de clave africana e da exploração de seu poder da forma mais consciente possível. Consegui fazer com que os trombones e os trompetes, por exemplo, tocassem em sincronicidade com a percussão, ritmicamente amalgamados. Neste novo trabalho, não tive a menor preocupação de parecer didático. Utilizei, por exemplo, toques de compasso par que foram transformados em ímpar. Senti uma liberdade composicional inédita, tanto no aspecto harmônico quanto nas melodias. A diferença fundamental entre o primeiro disco da Rumpilezz e este segundo vem justamente dessa liberdade. Acho que outro fator central é que, desde o começo, tive um mote muito claro, a questão da travessia atlântica da diáspora, algo que deu um sentido ideológico para as composições desse novo disco.

Mesmo não lidando com o formato na Rumpilezz, você colabora com vários artistas da canção. Como é, por exemplo, sua relação com a música de Gilberto Gil, homenageado por você em Professor Luminoso.
Não é à toa que chamei Gil de professor. Aprendi muito com ele. Na música popular brasileira há vários momentos em que a origem rítmica africana foi muito bem utilizada, mas o trabalho do Gil tem grande importância, para mim e para a Orkestra Rumpilezz, porque, nas coisas que ele faz, não existe apenas o aspecto rítmico. A música de Gil também traz formas de harmonia e melodia que assumem um caráter contemporâneo, uma intenção que coincide com meu desejo, porque, por mais que eu me baseie em elementos ancestrais que estão na música instrumental, minha ideia também é fazer música contemporânea. O ijexá, um dos toques que Gil recriou,
por exemplo, vem embalado na maneira toda especial de ele extrair o balanço do seu violão.

Como foi ter tocado com ele em São Paulo?
Tivemos a felicidade de fazer alguns concertos com ele no Sesc Pompeia. Nesses encontros a sensualidade que há na música de Gil ficou ainda mais evidente. Foram momentos muito felizes para mim, porque eu sempre soube que a música dele está direcionada para os mesmos conceitos que eu defendo. Por isso mesmo não hesitei em fazer essa homenagem para ele.

Aliás, esse encontro com Gil atesta outra faceta importante da Rumpilezz, a versatilidade da orquestra para dialogar com outros artistas…

Tenho o costume de aproximar a orquestra de compositores que impõem desafios rítmicos. Lenine, por exemplo, que já tocou com a gente, sempre gostou de brincar com os ritmos de Pernambuco e, a partir deles, fez construções interessantes. Estou em Olinda, na condição de aprendiz, e percebo o quanto ele defende a música daqui. Vi esse mesmo respeito com a música baiana quando me propus a desvendar o violão de Caymmi, que traz linhas de baixo e divisões rítmicas prontas e precisas. A aproximação da Rumpilezz com o trabalho dele foi muito leve. Geralmente levo os arranjos para ensaiar com a orquestra e começo pela sessão rítmica para depois seguir para as partituras de sopro. Com as composições do Caymmi aconteceu algo interessante, porque nelas tudo está pronto e muito bem insinuado. Ao conhecer o violão do Caymmi descobri que ele tinha plena consciência da construção abrangente que há em sua música. Algo que parece vir de seu inconsciente, e que está evidente no resultado de tudo que ele fez. Algo bonito de perceber. Elementos que estão diretamente ligados ao melhor da música brasileira.

Aliás, vi há dois anos o show do projeto Goma Laca, que reunia músicas de influência afro compostas desde 1902, mas arranjadas por você e com execução de músicos contemporâneos. Tanto no show quanto no disco (ouça e baixe o álbum) é impressionante constatar a modernidade daquelas composições, quase seculares…
Exatamente. Tudo ali parece estar ligado com a música do presente, não é? Tanto que escrevi os arranjos para o disco, mas quando chegou a hora de tocá-los ao vivo coloquei todas as partituras em um envelope, guardei-as embaixo de uma mesa e falei para os músicos: “Vamos fazer tudo do zero”. Eles concordaram e conduzi os arranjos na base da onomatopeia, coordenando baixo, piano, canto e bateria. Claro, deu tudo muito certo. Fizemos ali uma espécie de vivência dessas composições.

Gostaria de encerrar a conversa falando da experiência de perpetuar suas ideias por meio da Rumpilezzinho. 
O projeto nasceu em uma escola de música que tive na Bahia. Quando percebi que havia um grande número de alunos que não podiam pagar pelas aulas, decidi criar esse projeto social. Alguns deles eram tão talentosos que, indiscutivelmente, tinham de continuar com a gente. Depois percebi que havia outra vertente ainda mais dependente de apoio: a de mulheres que desejam tocar instrumentos de orquestra popular. Quando estudei na Europa, toquei em orquestras de Berlim, de Viena, de Londres, e sempre havia mulheres tocando contrabaixo, bateria, sopros. Fiz então uma turma especial, que ganhou o nome de Rumpilezz de Saia. Chegamos a ter quase 40 meninas estudando música e formamos várias delas. Ainda tenho dificuldade de manter esses projetos, porque eles são tocados com apoio da iniciativa privada. Apesar de termos enfrentado um intervalo sem atividades por falta de apoio, a Rumpilezzinho continua na ativa até hoje. A metodologia é a mesma da orquestra, mas inclui instrumentos elétricos, como guitarra, teclado e contrabaixo. Seguimos firmes, de forma consistente.

MAIS
Ouça a íntegra do álbum A Saga da Travessia no canal do Youtube do Selo Sesc.
O CD pode ser comprado por meio da loja virtual do Sesc (acesse)

Gilberto Mendes, o navegante da vanguarda

Gilberto Mendes e a cadela Mel que, segundo ele, não o faz viajar ao exterior nem para tocar com a Filarmônica de Berlim. Foto: Luiza Sigulem

*Da coleção de excelentes entrevistas e reportagens de Marcelo Pinheiro!

A menos de um mês de completar nove décadas de uma vida intensa, o compositor Gilberto Mendes recebe nossa reportagem, em Santos. Arejada pelo vento que rasga as janelas  frontais, a pequena e aprazível cobertura onde ele mora fica a dois quarteirões de uma das praias da cidade litorânea que deu ao mundo o clube de futebol que eternizou o Rei Pelé. Gentil, Gilberto aguarda na soleira da porta. Esbanja lucidez, astúcia e bom humor. Predicados que jamais o abandonaram, nos mais de 70 anos em que ele vem atuando como figura luminar em sua arte.

Autor de obras centrais, pioneiro da música experimental aleatória no País e inventor de peças de teatro musical – com intervenções dramáticas, muitas vezes, aliadas ao canto, quase happenings –, Gilberto é também diretor artístico do festival Música Nova e um dos signatários do manifesto de mesmo nome, lançado em 1963. Carta de intenções do movimento, o texto foi publicado na revista Invenção, dos poetas concretistas Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos.

Criado por Gilberto um ano antes da publicação do manifesto, o festival defendia uma ruptura com a música nacionalista, de forte acento folclórico, e acaba de completar 50 anos da realização de sua primeira edição. Ao se lembrar desses dias, o compositor abre um parêntese para esclarecer sua relação com o maior nome de nossa música clássica: “Até hoje, o Brasil não soube mensurar a importância de Villa-Lobos. Ele é associado à coisa do nacionalismo, mas o que importa é a modernidade da música que ele fez e não o fato de ele ter ritmos brasileiros em sua obra. Se ele tivesse nascido na Finlândia, obviamente, usaria ritmos finlandeses. A organização moderna da linguagem dele é o que realmente interessa e o brasileiro ainda não entendeu isso. Algo natural, porque ele esteve muito tempo nas mãos de nacionalistas, retrógrados, que queriam uma música com base no folclore. A inventividade é o que interessa no Villa-Lobos”.

Atento às manifestações de vanguarda do Pós-Guerra,  Gilberto integrou um grupo de maestros e compositores sintonizados com o ímpeto modernista que impregnou as artes a partir dos anos 1950. Entre eles, Régis e o irmão Rogério Duprat, Willy Corrêa de Oliveira, Júlio Medaglia e Damiano Cozzella. Nomes reincidentes entre as melhores produções da música clássica e popular lançadas no Brasil a partir da segunda metade do século 20. Enquanto Willy e Gilberto, amparados pelas experiências radicais da poesia concreta, subvertiam linguagens clássicas, Rogério e Júlio davam embalagem estética ao tropicalismo e à MPB, nos ousados arranjos que escreveram para jovens artistas como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Chico Buarque, Jorge Ben Jor e Ronnie Von que, submetido à batuta de Cozzella, lançou, em 1968, um irreconhecível álbum homônimo, psicodélico e cheio de experimentações, cultuado, hoje, por colecionadores.

Nascido em Santos, em 1922, Gilberto é filho do médico Odorico Mendes, que morreu quando ele tinha apenas 5 anos, e da professora primária Ana Garcia Mendes. Cresceu seduzido pelos encantos do mar, que desembocava na orla vizinha a sua casa, mas esteve breves períodos fora do País. Morou em Praga, na extinta Tchecoslováquia, onde aprofundou pesquisas e testemunhou os acontecimentos de 1968 (a Primavera de Praga). Nos Estados Unidos, lecionou na University Wisconsin-Milwaukee, no estado de Wisconsin, entre 1978 e 1979. Quatro anos mais tarde, voltou ao país para dar aulas na Universidade do Texas, em Austin. Gilberto acumula mais de 30 viagens internacionais para divulgar sua música, mas revela que jamais abandonaria a cidade natal. Vive com Eliane, sua companheira há mais de 30 anos, e a cadela Mel. Diz, sorridente, que deixou de viajar para o exterior com a mulher, há algum tempo, para não abandonar a fiel escudeira sozinha em casa: “Não saio de perto dela, nem se a Filarmônica de Berlim me convidar para executar uma peça minha!”, brinca, enquanto enche o animal de afagos.

 

Cinema, mar e música

Das memórias de infância, Gilberto lembra as frequentes idas com a mãe ao cinema e o fascínio dos primeiros filmes falados. Em 1992, quando se aposentou e defendeu seu doutorado na USP, onde passou a lecionar em 1980, proferiu um discurso em que ele se disse apaixonado por cinema, a ponto de pensar que se tornaria um cineasta em vez de músico. Mas que tipo de diretor teria sido ele? Experimental? Fiel à narrativa clássica? Meditativo, ele responde: “Antonioni, A noite”. Depois, fica em silêncio, divaga e diverge. Diz que queria mesmo era ser escritor. “Eu escrevia histórias e fazia o desenho para a capa dos meus livros. Reunia a turminha do bairro para contar histórias e as inventava na hora. Na maioria das vezes, tramas de detetives. Se eles desconfiavam quem era o assassino, eu dava um jeito de mudar o desfecho”, diverte-se.

Mas nas três horas que se seguem, ele volta a demonstrar obsessão pelo poder do cinema de contar belas histórias. Discorre sobre musicais alemãs da década de 1930,  a invenção do imaginário havaiano por Hollywood, cantarola sucessivas canções, com uma paixão explícita por elas, e até imita entusiasmado, repetidas vezes, o Carlitos de Chaplin. Muda de assunto e recorda, em seguida, que passeios furtivos pelo mar, em sua adolescência, também eram recorrentes: “Santos era um convite à vadiagem. Havia, na praia, duas canoas da minha família e não faltavam vagabundos pra colocá-las no mar comigo. Meu progresso musical poderia ter sido outro…”.

Para alguém que construiu uma trajetória como a dele, o comentário parece descabido. Não condiz com a reputação do compositor de obras cultuadas, como Motet em Ré Menor (música para coral, sobre poema de Décio Pignatari, originalmente intitulada Beba Coca-Cola, que inclui um arroto e teve o nome trocado para evitar problemas jurídicos), Santos Football Music (que propõe inusitadas intervenções da plateia e dos músicos, como gritos de gol, emissão de vogais e uma partida de futebol com direito a arbitragem e minitraves sobre o palco) e Nasce-Morre (música aleatória baseada em poesia concreta de Haroldo de Campos).

Humilde, Gilberto sugere que a iniciação tardia nos estudos musicais talvez tenha limitado seu potencial. Algo difícil de concordar, mas é fato que antes de embarcar na música, por dois anos ele insistiu que seria advogado. Cursou a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da USP, até ser intimado por Miroel, casado com sua irmã Míriam, a questionar os rumos que tomava: “Botei a mão no piano pela primeira vez aos 20 anos. Comecei idoso. Meu cunhado foi quem falou: ‘O que você está fazendo estudando Direito? Você não percebeu que é músico?’. Ele recomendou que eu entrasse para o conservatório de Santos e também no clube de regatas, para nadar e tratar da minha asma. Vim para cá e me meti com política, com o velho partidão. Fazia trabalhos de difusão de cultura, mas debaixo da cultura havia certo veneno marxista. Perdi muito tempo, até que Erasmo, meu irmão mais velho, me deu outro pito: ‘Você deixou de estudar Direito, largou a faculdade pela metade e fica se metendo nisso. Você não ia ser compositor?’. Aquilo doeu em mim. Eu havia acabado de ver o filme Os Sete Samurais, do Kurosawa, e estava admirado com o domínio do ofício daqueles extraordinários espadachins. Fiquei pensando que eu, ao contrário deles, não tinha domínio nenhum sobre mim”.

A intimação do irmão surtiu efeito imediato. O caminho que o consagrou vem sendo perseguido desde então, há sete décadas, e Gilberto ainda está em plena atividade. Autor de dois livros dedicados à música – Odisseia Musical – dos Mares do Sul à Elegância Pop/Art Déco (1994), que registra sua tese de doutorado, e Viver sua Música: com Stravinsky em meus Ouvidos, Rumo à Avenida Nevskiy (2007), ambos publicados pela Edusp –, ele tem outras duas obras na manga. Uma coletânea de artigos publicados em jornais, que será lançada em 2013 pela Editora Perspectiva, e um primeiro romance, ainda sem título, que acaba de ter carta branca da Editora Algol para ser publicado. Gilberto também está na reta final de uma maratona de filmagens que faz com o filho Carlos Mendes, cineasta, que em 2005 lançou o documentário Gilberto Mendes, uma Odisseia Musical. Carlos decidiu aproveitar a entrevista e saiu de São Paulo para visitar o pai. Revela que decidiu compor a série de 90 microfilmes pela preocupação de fazer perpetuar a obra do pai para as futuras gerações. Os filmes vêm sendo lançados, capítulo por capítulo, e estarão todos disponíveis no YouTube, a partir de 13 de outubro, quando Gilberto completa 90 anos.

Multidirecional como o vento, aberto como o oceano

Durante o encontro, Gilberto relembra muitas das histórias narradas nas sete horas de entrevistas registradas por Carlos. Vêm à tona os encontros com Olivier Toni e Claudio Santoro, maestros que exerceram grande influência em sua carreira, os seminários com Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen, em Darmstadt, na Alemanha, berço da neue musik, que atravessou o Atlântico com ele e ganhou aqui acentos brasileiros, sob o nome, literal, Música Nova. Mas essas são histórias para serem descobertas, minuciosamente, nas dezenas de filmes feitos por Carlos.

Questionado sobre sua relação com a música popular, Gilberto (que durante a entrevista insiste que é um compositor múltiplo, capaz de escrever até música ruim), faz deliciosas revelações de seus primeiros contatos com dois nomes que revolucionariam a canção no Brasil e no mundo: “Ouvi Chega de Saudade, pela primeira vez, no rádio. Fiquei intrigado, pois era uma música muito bonita e completamente fora do que se fazia na época. No mesmo dia, fui comprar o compacto que tinha Desafinado do outro lado. Fiquei tão entusiasmado com João Gilberto quanto fiquei com os Beatles. Quem trouxe o primeiro disco deles foi o Carlos, o compacto de I Wanna Hold Your Hand. Ouvi e achei aquilo tão lindo quanto ouvir Chega de Saudade, uma coisa muito nova em termos de samba e ali estava algo novo em termos de rock, que para mim era porcaria, uma deturpação do blues e do boogie-woogie. Eu tinha horror ao som da guitarra nos tempos do Elvis Presley. Quando ouvi os Beatles, pensei: ‘Mas que esquisito, eles estão conseguindo fazer essa maravilha com uma guitarra?!’”.

Ao discorrer sobre a bossa nova, Gilberto parte em defesa de Tom Jobim, atribuindo a ele a invenção formal do gênero: “O Jobim frequentou aquele grupinho da Orquestra Sinfônica Brasileira ligado ao Claudio Santoro, que queria uma nova música para o Brasil, e isso incluía uma renovação da canção. O Santoro tem peças tipicamente bossa nova, mas que são eruditas. A bossa teve influência direta do jazz, mas, indiretamente, ela herdou a harmonia francesa do Debussy. Algumas das minhas primeiras canções também tinham essa característica e as pessoas vêm me perguntar se eu fui influenciado pela bossa, mas ela nem existia quando fiz essas canções. Teoricamente falando, a bossa é 100% Jobim”.

Minutos antes da nossa partida, a última pergunta pede a Gilberto Mendes que defina, às vésperas de completar 90 anos, quem é Gilberto Mendes. Ele observa que o vento  acaba de mudar de direção e explica que as novas rajadas vem do sudoeste. Diz que é um pouco como o vento, multidirecional, outro tanto como o mar, aberto para o mundo, e conclui: “Gilberto Mendes, cidadão santista. Filho de um médico e de uma professora primária. Uma pessoa marcada pelo lugar onde mora. Sempre tive essa coisa oceânica, dos mares, pois o mar é também uma abertura para o mundo. Sonhava com o Havaí e até realizei meu desejo de ir para lá. Na minha infância, havia, no mínimo, dois navios por semana que iam para a Europa. As linhas espanholas eram as mais baratas e você ainda podia ir de terceira classe, pois era ali que estava o lado intelectual do navio. Os estudantes e os professores pobres, que iam fazer graduação ou mestrado na Europa. O fino do navio era a terceira classe. Os jornais daqui tinham as duas últimas páginas repletas de anúncios de agências internacionais de turismo. Uma delas, japonesa, se chamava Osaka, e eu ficava fascinado só de pensar no Japão. Outras, levavam à Finlândia, à Inglaterra. Lembro também de uma companhia italiana de navios que se chamava Blue Star Line, o que, para mim, soava como um belo nome de canção”.

Percepção natural para alguém como Gilberto, que enxerga a vida pela lente sensorial da música. Nos despedimos, com a promessa de voltar para comemorar seu centenário. Ele sorri, tímido, e diz: “Combinado!”.