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2011 | Antonio Dias: construção de um lugar que não acaba

Manivelas (Cranks), 1999. Foto: Divulgação

*Por Moacir dos Anjos

A obra de Antonio Dias (1944-2018) é múltipla. Não se reduz a estilos e tampouco é fiel a técnicas ou à eleição de temas. Ao longo de quase 40 anos, o artista fez pinturas, objetos, instalações, disco, fotografias e filmes, promovendo um desmonte rigoroso de qualquer hierarquia entre os meios de expressão que usa. Por vezes se refere de modo explícito à política, embora nunca resvale para o ativismo. Noutras, discute o funcionamento do meio institucional da arte, preferindo, contudo, o comentário oblíquo, ao que se apresenta como imediato e aparente.

O lugar incerto do corpo no mundo é, a todo instante, também insinuado como questão importante, mas não como relato da memória ou como mecanismo de subjetivação da obra. Ainda que cada conjunto de trabalhos assemelhados de Antonio Dias (agrupados em séries conceitualmente coesas ou apenas por aproximações do suporte usado) possua a marca da singularidade e do acontecimento único – sendo irredutíveis, portanto, a uma totalidade ausente -, não há nessa individuação sinais de dispersão ou isolamento. Considerada em conjunto, sua obra permite contínuos deslizamentos semânticos e se torna lugar de trânsito e contágio entre o que é diferente e distante. Pondo em contato cadeias de significação distintas, a obra de Antonio Dias é rizoma, modelo de realizar alianças provisórias, mas amplas.

Muitos dos trabalhos de Antonio Dias carregam, inscritos em sua forma aparente, as marcas do embate e do enlace simbólicos que perpassam toda a sua produção. Em várias das pinturas da década de 1960, a figuração esquemática trazida da cultura popular e de massa (principalmente do graffiti e das histórias em quadrinhos) é deliberadamente truncada, bloqueando a fluidez narrativa e a capacidade de comunicação ligeira encontradas em suas referências de origem. A contenção cromática desses trabalhos (há neles quase apenas preto, amarelo, vermelho e branco) e a ordenação precisa das figuras no suporte pintado revelam, ademais, a adesão do artista a um código construtivista que tampouco tem aqui preservados seus ideais de afastamento do que é incerto ou impuro. Em Nota sobre a Morte Imprevista (1965), trabalho característico desse período de improvável sobreposição de tradições tão distantes, três dos quatro quadrados em que o suporte se divide são ocupados por imagens que parecem deslizar para fora dos espaços em que estão inscritos, não chegando a compor a história de violência que sugerem existir no mundo. No quadrado que resta de tal superfície, essa dinâmica centrífuga se acentua mais ainda, fazendo com que as imagens ganhem volume e se tornem objeto mole, projetando horizontalmente os signos de morte antes contidos no espaço vertical da pintura. A aproximação entre suporte pintado e lugares vividos e o simultâneo desmanche da rigidez construtiva contidos nesses trabalhos, fazem ecoar, na produção inicial de Antonio Dias, as duas principais vertentes que, à época, se afirmavam em seu entorno: a Nova Figuração brasileira e o Neoconcretismo. Não há qualquer sentido de síntese, contudo, nesse avizinhamento crítico; há, antes, tensionamento entre características daquelas vertentes, agenciado pelos deslizamentos entre significados diversos que marcam a obra do artista.

Essa exuberância sintática é abandonada em grande parte da produção da década seguinte, a qual se volta, ao contrário, para a magreza do conceito preciso. É desse período a série A Ilustração da Arte (1974), composta de trabalhos que investigam a própria demarcação simbólica do que é arte e sua inserção no espaço coisificado das trocas mercantis. Fiel à sua visão inclusiva e contaminada do mundo contemporâneo, Antonio Dias explora nessa série a ideia de circuito, modelo descritivo adequado para apreender o deslizamento contínuo entre valores estéticos e econômicos por meio do qual emerge o consenso – sempre provisório e sempre aspirante à permanência – em torno da suposta validade universal de determinados padrões de juízo. Em A Ilustração da Arte/Um & Três/Gerador (1974-1975), a circularidade cumulativa dessa relação é representada como imagem gráfica que é, ela própria, contudo, também artefato de arte – ambigüidade que apenas confirma o atamento entre os termos sobre os quais se debruça o artista. A volatilidade desse processo valorativo é ainda trazida por Antonio Dias para o âmbito da apresentação formal de sua obra no trabalho A Ilustração da Arte/Um & Três/Chassis(1974-1975): fazendo de quatro hastes metáfora do espaço que o quadro (arte) ocupa no mundo, ele as retrai e expande, como a ilustrar, por meio desse deslizamento físico, dois casos exemplares de sua acomodação aos mecanismos que regem o mercado de produtos artísticos.

A partir do contato que estabelece, em 1976, com artesãos nepaleses que fabricam papel em variadas texturas, Antonio Dias realiza trabalhos que parecem apontar para um campo de investigação criativa em tudo diverso de suas preocupações então correntes. Há também nesses trabalhos, contudo, as marcas da atenção que o artista concede aos fluxos simbólicos que, a todo instante, produzem atritos entre cadeias semânticas distintas. Ao incorporar, de maneira deliberada e precisa, os materiais e as técnicas dos artesãos do Nepal em sua própria obra, Antonio Dias transporta-os para o circuito da arte culta, o qual lhes atribui sentidos e valores diferentes dos que possuíam antes. Esse processo de re-significação opera, entretanto, também no sentido inverso: chamando um desses trabalhos de A Ilustração da Arte (Eu e os Outros) (1977) ou gravando juntas, em A Ilustração da Arte/Ferramenta & Trabalho (1977), a marca de sua mão e a do artesão que lhe dá auxílio, Antonio Dias parece propor a ampliação daquele circuito para que igualmente abarque, de forma crítica, a discussão sobre os limites entre arte e artesania, entre autoria e gesto repetido, entre o interesse somente pelo conceito e o encanto tátil pela matéria crua.

Embora o amolecimento da rigidez gráfica que marca a maior parte da série A Ilustração da Arte ganhe visibilidade apenas a partir de seu contato com outra cultura, trabalhos feitos simultaneamente àqueles incluídos na série e executados em uma variedade grande de mídias, dão forma nova à convulsão simbólica que anos antes inaugurara a obra do artista. São exemplos eloqüentes disso os trabalhos Partitura para Intérpretes Perigosos (1972), Conversation Piece (1973) e Uma Mosca no Meu Filme (1976). É o trabalho intitulado Poeta/Pornógrafo (1973), entretanto, que dentre esses melhor indica, em sua arquitetura simples, o desdobrar constante de significados que é a obra de Antonio Dias. O trabalho é formado por dois pares de semicírculos de neon pendurados desde o teto: um emanando calma luz azul (o poeta) e o outro um rosa luxuriante (o pornógrafo). A despeito da polaridade aludida no título e confirmada pela disposição espacial do objeto, há nesse trabalho sugestão de unidade cindida, de círculos inteiros que se teriam quebrado em metades e deslizado em sentidos opostos. Não existe aqui nostalgia, contudo, de uma situação de suposta completude. A ruptura do que se poderia imaginar inteiro é ontológica e o deslizamento de volta a círculos íntegros, uma possibilidade que não se realiza nunca. Há apenas o pulso contínuo de um movimento que jamais se completa, que se prolonga no percurso infinito que, simultaneamente, aproxima e separa territórios simbólicos distintos.

Essa operação de deslizamento se faz também visível, de outros modos, nas pinturas recentes do artista. Em Caramuru (1992), duas telas de grande dimensão são justapostas e cobertas por, além de tinta acrílica, materiais condutores de energia (grafite, ouro, malaquita), trazendo em potência a idéia de fluxo que o diagrama aplicado sobre elas só acentua. Na recorrência a uma forma que lembra um circuito, há também remissão aos conceitos que marcam a série A Ilustração da Arte – autofagia artística que permanentemente adensa e expande a trama poética tecida por Antonio Dias. Já nas pinturas da série Autonomias (2000), telas de variados formatos e tamanhos são colocadas lado a lado e também sobrepostas, criando a ilusão de que podem deslizar umas sobre as demais e produzir configurações diferentes das apresentadas pelo próprio artista. O fato de porções do suporte serem cobertas por matérias e padrões diversos (do monocromo à mancha) obriga também o olho a mover-se entre as várias texturas e áreas cromáticas de que se compõem esses quase-objetos.

É talvez Anywhere is My Land (1968), contudo, o trabalho do artista que melhor realize essa operação metonímica em relação ao conjunto de sua obra. Salpicando a tela pintada de negro com tinta branca, Antonio Dias cria sobre sua superfície uma miríade de pontos desordenados e de diversos tamanhos. Superpõe, ainda, a este espaço, uma malha reticulada e larga, igualmente pintada, conferindo valor idêntico a qualquer dos pontos ali situados. Essa anulação de hierarquia – sugerida desde o título do trabalho – faz com que cada um desses pontos seja um acesso possível à metafórica e fluida geografia que representa na tela.

Assim como em Anywhere is My Land, a obra de Antonio Dias é formada por pontos (trabalhos) que se conectam entre si, sem ordenação de importância ou de cronologia. Embora retrospectivamente os trabalhos se agrupem em conjuntos ou séries, eles resistem a enquadramentos estanques e, a todo momento, anunciam deslizamentos rumo às fronteiras que somente aparentam isolá-los de outros tempos ou conteúdos simbólicos. A obra de Antonio Dias é refratária, portanto, a qualquer genealogia formativa, o que permite que trabalhos passados ganhem significações distintas das já assentadas, a partir de seu contato e confronto com trabalhos mais novos. É esse acolhimento generoso de sentidos variados que produz o enervamento extenso e denso da obra.

Por promover conexões entre cadeias semânticas diversas, a obra de Antonio Dias põe em evidência aquilo que está no meio, o que habita os interstícios de campos de significação precisos e o que mina de lugares que se supunham vedados. No trabalho intitulado O Espaço Entre (1969-1999), dois grandes blocos de minério – mármore branco e granito negro – são perfurados em inúmeros pontos e têm seus buracos “recheados” com a matéria extraída do bloco de cor distinta, criando espaços de permuta e contato íntimo entre as duas matérias. Carregando um deles a inscrição The Beginning (O Começo) e o outro a inscrição The End (O Fim), esses dois blocos híbridos evocam, quando aproximados, o que há de possibilidade comunicativa latente no que é comumente tomado por lugar de ausências. Operação semelhante é realizada no tríptico chamado Projeto para o “Corpo” (1970), em que duas telas (uma branca salpicada de tinta preta e outra pintada de modo inverso) acolhem, respectivamente, as inscrições energy (energia) e memory (memória) e ladeiam uma terceira tela, deixada vazia como recipiente para tudo o que o ato criativo engendra. É esse intervalo de infinitos possíveis que Antonio Dias assinala, ainda de outra forma, no disco de vinil chamado Record: The Space Between (1971). Em um lado do disco, se encontra A Teoria do Contar, gravação do som ritmado de um relógio, interrompida, a cada três segundos, por momentos de silêncio de duração idêntica e onde qualquer coisa cabe. No outro lado, pode-se escutar A Teoria da Densidade, registro do ciclo respiratório de uma pessoa, intercalado por pausas que trazem, em potência, toda a força cognitiva da língua e da fala. Por demarcar a distância que separa o ruído mecânico do orgânico, o objeto delgado e leve em que estão gravados, subverte, no plano simbólico, sua própria corporeidade: o disco se torna espesso e denso, plataforma para o que não se conhece. São muitas as maneiras pelas quais o artista enuncia a natureza incompleta e fecunda de sua obra.

Esse lugar de possibilidades diversas é tratado de maneira propositiva no trabalho Faça Você Mesmo: Território Liberdade (1968), diagrama construído no piso que sugere a existência de um espaço simbólico para a experimentação e o invento. Em vez de representado de modo elíptico como em outros trabalhos, tal espaço assume aqui a concreção autoral própria dos mapas, construções feitas a partir do que o cartógrafo assinala como marcos que orientam seu percurso sobre um certo território. É nesse espaço de afirmação das singularidades que Antonio Dias finca a bandeira de O País Inventado (1976), pano vermelho que ostenta a mais recorrente marca de sua obra: a ausência do canto superior direito do que, a olhos habituados aos perímetros de formas regulares, seria um retângulo. Índice de aspecto central da produção de Antonio Dias, essa marca remete a uma falta absoluta, irreparável e difusa; à inexistência de uma totalidade que resuma e explique uma obra em mutação constante – obra que é construção de um lugar que não acaba. O que há nela de permanente e o que ancora a poética firme do artista é justo a afirmação de sua transitoriedade e incompletude. Uma obra por onde deslizam, em torrente simbólica incessante, as impurezas de que se constitui o mundo.

Sesc_VideoBrasil traz mudanças na próxima edição: agora é uma Bienal

Exibição de obras do 20° Sesc_Videobrasil: à esquerda, 'Contornos', de Ximena Garrido-Lecca, e, ao fundo, 'Há terra!', de Ana Vaz. FOTO:: Everton Ballardin

Ao abrir a convocatória para a próxima edição do Sesc_VideoBrasil, as entidades parceiras trouxeram uma novidade: decidiram substituir o título “festival” por “bienal”. A mudança tem como objetivo colocar-se de forma mais explícita no contexto global da arte. Até o dia 10 de agosto, serão recebidas, portanto, as inscrições para a 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_VideoBrasil.

Para Solange O. Farkas, fundadora da Associação Cultural Videobrasil e curadora do projeto, que este ano também tem no painel curatorial Gabriel Bogossian, Luísa Duarte e Miguel López, as atualizações – como a mudança do nome – já são comuns na história do Sesc_VideoBrasil. “Eu chamo de fases. Já passamos por várias delas, fomos de um festival nacional apenas de vídeo para um festival internacional focado nos países do Sul geopolítico. Depois tornou-se um festival mais híbrido, não apenas de uma linguagem como o vídeo, mas pensando em mais linguagens”, explica Solange. Desta forma, as alterações tornaram-se coisas comuns em seu julgamento.

A mudança no nome não modifica bruscamente o projeto. Afinal, ele já tinha todas as características de uma Bienal: acontece de dois em dois anos, volta-se para a arte contemporânea e tem um recorte para uma área do planeta (o Sul). Solange acredita que é esse recorte geopolítico que enfatiza o papel particular do Sesc_VideoBrasil como uma Bienal: “Não é apenas mais uma Bienal, é uma Bienal que tenta suprir uma lacuna importante. Uma Bienal que dá voz a essa produção desse lugar do mundo que ainda tem dificuldade de acesso e visibilidade”.

Proposta

Usando uma estratégia comum a bienais, o projeto adota a iniciativa de partir de um conceito. “A partir de agora, usamos de uma proposta curatorial para selecionar os artistas”, conta a curadora. Para ela, essa talvez seja a grande mudança que o peso do novo título carrega. O open call ainda será considerado para a escolha dos artistas que participarão, mas agora há a sugestão de um ponto de partida para o pensamento e construção da obra.

Nesta edição 21 do Sesc_VideoBrasil, que terá as peças selecionadas expostas no Sesc 24 de Maio entre outubro de 2019 e fevereiro de 2020, a proposta das instituições aos artistas consiste na ideia de Comunidades imaginadas. Pega de empréstimo de um estudo de Benedict Anderson, a noção de comunidades imaginadas surge para o projeto pegando como exemplo o estudo das comunidades indígenas.

Inclusive, foi aberta a participação para artistas oriundos dessas diferentes comunidades étnicas. “Sabemos que existe uma produção superimportante de artistas que fazem parte de grupos étnicos e que acabam operando apenas dentro de seus universos. O universo das artes não olha tanto para esse lugar. Ainda há certo preconceito contra isso”, conta Solange. Há a perspectiva de inclusão ao voltar esse olhar para a produção desses grupos.

A noção de comunidades imaginadas busca discutir a questão do nacionalismo e de como esses grupos o conduzem na arte. Um episódio ocorrido na Organização Mundial do Comércio, no qual um comunicado criticava a tendência a rejeitar aquilo que se é estrangeiro foi uma das coisas que fomentaram a escolha do tema: “Ficamos olhando por todos os lados, percebendo os espectros políticos disso, como a chave para a compreensão de disputas”.

A escolha também relaciona-se com a pesquisa que o curador Gabriel Bogossian desenvolveu ao se debruçar sobre o trabalho de Pasolini. “A ideia concebida por ele de um terceiro mundo transnacional, que começava nas periferias de Roma e se estendia a países fora dessa categoria, é importante nesse processo”, comenta Farkas. E completa: “Queremos trabalhar com essas comunidades que estão às margens do conceito de Estado ou de nação, ou nas suas brechas, nas suas bordas. Podemos falar de comunidades de artistas, de comunidades indígenas. Estamos falando de comunidades nos sentido de grupos que estão à margem do conceito clássico de comunidade. Às vezes até mesmo banido deste conceito”.

A curadora acredita que o tema é muito atual, do agora. “Eu acho que é necessário pensar e discutir essas questões, falando de certa forma também de comunidades fictícias ou utópicas. Em geral, de comunidades clandestinas, que geram políticas minoritárias”, diz. A intenção também é fazer pensar e refletir sobre formas deturpadas de nacionalismo pregadas por alguns políticos ao redor do globo hoje: “São pontos que, no campo da arte, temos esse poder e essa responsabilidade de através de uma produção do sensível, que é a arte, fazer pensar sobre essas questões que nos afetam muito hoje em dia. Não apenas nos países do Sul, mas principalmente nesse lugar do mundo onde a Bienal Sesc_VideoBrasil opera”, finaliza.

 

Ismaïl Bahri: ‘instrumentos’

Ismaïl Bahri convoca a voz e o pensamento do homem comum que circula pelas ruas de Túnis, como intérpretes de territórios afetivos que um dia ele deixou para trás e que agora resgata poética, intelectual e politicamente no filme Foyer.

Nas ruas, ele filma uma folha de papel em branco, fixada a poucos centímetros da objetiva de sua câmera. O experimento, aparentemente formal, aos poucos é adensado pelas vozes dos transeuntes, intrigados com o estranho artifício em torno do qual se reúnem.

O trabalho faz parte da mostra Instrumentos, em cartaz no Espaço Centro Porto Seguro, até 5 de agosto. Em entrevista à ARTE!Brasileiros ele falou com Leonor Amarante.

Agenda: confira os destaques da semana 28 de julho a 3 de agosto

Ícaro Lira, Museu do Estrangeiro, 2015-2017

Ícaro Lira, Museu do Estrangeiro, 2015-201721ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, convocatória para seleção de artistas, até 10/8

Inscrições de obras em qualquer formato e linguagem vindas do Sul Global, de países de língua portuguesa e de integrantes de povos originários de qualquer país. Os artistas selecionados participam da exposição no Sesc 24 de maio e nas atividades paralelas no Galpão VB (São Paulo, Brasil), entre outubro de 2019 e fevereiro de 2020 e passam a concorrer a cinco prêmios, concedidos por um júri internacional.


100 anos de Athos Bulcão, individual no CCBB-SP, abertura em 01/8

A exposição, com curadoria de Marília Panitz e André Severo, oferece ao espectador a possibilidade de conhecer o seu especial processo de produção, com a exibição de mais de 300 trabalhos, alguns dos quais inéditos, realizados entre os anos 1940 e 2005. Obras de artistas mais jovens que direta ou indiretamente foram influenciados por Athostambém serão apresentadas.


Thiago Honório, Pau-Brasil, 2014

Verzuimd Braziel: Brasil Desamparado, coletiva no Museu Histórico Nacional, até 16/9

Exposição faz parte de um conjunto de mostras vencedoras do Prêmio CNI SESI SENAI Marcantonio Vilaça, que estão em cartaz no MHN. Coletiva do curador premiado Josué Mattos tem André Parente, Anna Bella Geiger, Carla Zaccagnini, Cildo Meireles, Clara Ianni, Dalton Paula, Daniel Jablonski & Camila Goulart, Daniel Santiago, Ivan Grilo, Lourival Cuquinha, Regina Parra, Regina Silveira, Santarosa Barreto, Thiago Honório, Thiago Martins de Melo e Vitor Cesar.


 

Rodrigo Torres, série Neolític Express, 2018

Rodrigo Torres: Mr. Fusion, individual na SIM Galeria em São Paulo, abertura em 28/7

O artista expõe 14 obras, de conceito análogo ao gadget cinematográfico, e traça um paralelo entre globalização, passado e futuro por meio de obras de arte em cerâmica. As peças indicam a renovação das formas de trabalhar a escultura, que ganhou novos rumos a partir da década de 1960 no Brasil pelas mãos de personalidades como Tunga, com sua transcendência onírica, e Helio Oiticica, criador dos interativos ‘Bólides’.


Flávio Shiró, Sem título, 2007

Flávio Shiró: Flávio Shiró, individual na Pinakotheke em SP, até 11/8

O artista comemora 90 anos de idade com exposição que remonta 70 deles dedicados à arte. Com curadoria de Max Perlingeiro e do próprio Shiró, a mostra é uma retrospectiva que reúne 26 pinturas, 12 obras sobre papel, fotografias, objetos pessoais e cinco curta-metragens, com direção de Adam Tanaka e Margaux Fitoussi.


Alberto Ferreira, Pé Ante pé, 1960

Alberto Ferreira: Intuição, individual na Lume, abertura em 2/8.

Com curadoria de Paulo Kassab Jr., a mostra apresenta ao público 15 obras do fotógrafo – nove delas inéditas, redescobertas recentemente de seu acervo. “Alberto Ferreira tinha a intuição que faz com que os grandes fotógrafos prevejam os fatos frações de segundos antes de acontecerem. Recortou cada segundo dos lugares por onde passou para tornar cada uma de suas fotografias cada uma imagem definitiva”, afirma o curador.


Vitor Mizael: Naturam Impossibile, individual na galeria Murilo Castro em BH, até 26/8

A exposição é composta de um conjunto de desenhos, pinturas e instalação.
Pássaros que não voam, que estão presos uns aos outros, que não pousam, plantas que florescem mesmo tendo suas raízes expostas.  Além da impossibilidade real da existência dessas criaturas elas também nos remetem ao prazer e a dor de estarmos ligados uns aos outros, de voar sem ter pouso ou repouso, da necessidade de nossas raízes mas do perigo de expor o nosso cerne e o desejo intenso de fazê-lo.


Delson Uchôa, Flor do Cerrado

Delson Uchôa: Autofagia – Eu Devoro Meu Próprio Tempo, individual na galeria Anita Schwartz Galeria de Arte no RJ, até 18/8

Com obras em prestigiosas instituições brasileiras e estrangeiras, uma característica desta produção de Delson Uchôa é o que ele chama de “autofagia”. Frequentemente ele volta a um trabalho antigo e o amplia, enxertando outras pinturas ou pedaços de seu “banco de pele”, as sucessivas camadas de pintura sobre resina retiradas do chão.


Simone Fontana Reis, Nem Tudo que Reluz é Ouro

2o. Círculo de Mulheres, conversa no MuBE, em 2/8

Simone Fontana Reis convida para uma reflexão sobre o papel da mulher na transformação da paisagem e sua ligação com a preservação do meio ambiente. Para direcionar a conversa, modos de vida de sociedades ancestrais amazônicas estarão em pauta. Participam do debate, o curador do museu, Cauê Alves, a ativista indígena Cristine Takuá, entre outras profissionais convidadas: antropólogas, arquitetas, outras lideranças indígenas, artistas, escritoras, biólogas, curadoras, filosofas, arqueólogas, geólogas, paisagistas e decoradoras. O encontro é aberto ao público de todos os gêneros.

Stones: versões brasileiras e bootlegs

Mick Jagger

 

Filhos bastardos

Mick Jagger assoprou 75 velinhas, nesta quinta-feira, 26 de julho de 2018. Um dos maiores ídolos e ícones da história do rock há mais de 50 anos, e em plena atividade, Jagger também carregou ao longo da extensa carreira de bandleader o status de símbolo sexual de sucessivas gerações.

Casado por duas vezes, com Bianca Jagger e Jerry Hall, Jagger teve sete filhos com quatro diferentes mulheres – entre elas, como bem sabemos, a brasileira Luciana Gimenez, mãe de Lucas Jagger, hoje com 19 anos. Mas foram as relações extra-conjugais e o assédio frequente das groupies que fizeram a fama de sex symbol do roqueiro setentão.

Segundo a biografia Mick: the Wild Life and Mad Genius of Jagger (algo como Mick: a Vida Selvagem e o Gênio Louco de Jagger), lançada em 2012, pelo jornalista Christopher Andersen, o esguio e lascivo líder dos Stones teria ido para a cama com mais de 4 mil mulheres. O livro (não autorizado, naturalmente) especula, inclusive, que Jagger teria se envolvido com celebridades do calibre de Angelina Jolie, Uma Thurmann e a ex-primeira dama francesa, Carla Bruni.

Suposições à parte, na virada dos anos 1980 para os 90, cinco bandas de rock britânicas tinham à frente vocalistas com fisionomia muito similar – sem contar os demais trejeitos performáticos no palco e a influência musical – à de Jagger. Saiba quem são eles (na foto, em sentido horário):

Mark Gardener – vocalista e guitarrista base do quarteto Ride, de Oxford. Com o fim do grupo, em 1996, o guitarrista solo Andy Bell integraria, depois, o Oasis, como baixista (veja clipe de Twisterella).

Ian Brown – Vocalista dos Stone Roses, banda de Manchester que misturava elementos dançantes à uma música fortemente influenciada pelo psicodelismo dos anos 1960 (veja apresentação ao vivo de Fools Gold).

Richard Aschroft – Vocalista e principal compositor do grupo Verve, que fez grande sucesso mundial com a canção Bittersweet Symphony, carro-chefe do terceiro álbum Urban Hymns.

Gaz Coombes – Vocalista e guitarrista do Supergrass, banda que surgiu como um trio em Oxford, mas depois tornou-se um quarteto. Influenciada por bandas mod, como The Who e The Kinks, fizeram grande sucesso com a canção Allright

Tim Burgess – Líder dos The Charlatans, grupo de Northwitch, com sonoridade semelhante à dos Stone Roses, mas com acento ainda mais dançante (veja clipe de The Only One I Know).

Versões brasileiras

Inquestionável, o Rolling Stones é uma das bandas mais influentes de todos os tempos. No Brasil, o grupo liderado por Mick Jagger e Keith Richards vem inspirando músicos desde os anos 1960, como os paulistanos do The Brazilian Bitles, que transformaram o hino I Can’t Get No (Satisfaction) em Não Tem Jeito; do The Youngsters, que fizeram uma versão enérgica de I Wanna Be Your Man; e dos Os Baobás, que verteram em português o clássico psicodélico Paint It Black e deram a ele o título literal (e, inevitável dizer, capcioso) Pintada de Preto:

Ouça as músicas:

The Brazilian Bitles – Não Tem Jeito

The Youngsters – I Wanna Be Your Man

Os Baobás – Pintada de Preto

Os reis dos Bootlegs

por Gonçalo Junior

Explicam os dicionários que o termo em inglês bootleg se refere a uma gravação de áudio ou de vídeo do trabalho de um artista ou banda musical, que pode ser realizada diretamente de um concerto ou de uma transmissão via rádio/televisão e até sobras de estúdios. Um bootleg inclui, às vezes, entrevistas e materiais inéditos, descartados por serem considerados inadequados para um produto comercial, bem como passagens de som, ensaios etc. Na prática, define os discos não oficiais, publicados quase sempre de forma pirata e dirigidos principalmente aos fãs mais dedicados de artistas.

Essa condição faz com que esse mercado negro se tornasse um paraíso de aproveitadores e oportunistas que, não raro, apenas muda a foto da capa e relança o mesmo conteúdo. The Beatles foi um dos grupos de rock com mais bootlegs da história da música. Um dos primeiros discos da banda foi o Kum Back, que trazia diversas versões de músicas gravadas para o álbum Let It Be mixadas pelo engenheiro de som Glyn Johns. Na década de 1970, a indústria do bootleg expandiu-se. As gravações ao vivo, ainda que fossem as mais comuns, possuíam qualidade ruim, já que eram feitas em meio ao barulho e gritos da multidão. Outros bootlegs eram feitos diretamente da cabine de som do artista, geralmente sem o consentimento da equipe que trabalhava nos concertos. As capas dos bootlegs também tinham qualidade ruim.

Um bootleg famoso da época é The Greatest Group on Earth dos The Rolling Stones. Em parte por causa de sua longevidade e quantidade de turnês, a banda é, provavelmente, o grupo recordista de LPs, CDs e DVDs nesse formato. A maioria se limita a reproduzir shows raros, de qualidade muitas vezes ruins, sofríveis até. Por outro lado, essa deficiência se justifica a aquisição de certos tesouros. Alguns selos italianos especializados em bootlegs fazem algo muito legal: indicam no verso a qualidade do álbum por uma cotação que vai de 1 a 4 símbolos de “+”. Se são +++ ou ++++, pode comprar que o produto é bom.

Brasileiros selecionou, entre centenas de bootlegs dos Stones, treze álbuns que valem a pena procurar:

“Lennon traz palavras como ‘imagine’ e ‘paz’. Um bom legado”

O jornalista norte-americano James A. Mitchell, autor de John Lennon em Nova York: os anos da revolução (foto: Linda Remilong)
O jornalista norte-americano James A. Mitchell, autor de John Lennon em Nova York: os anos da revolução (foto: Linda Remilong)

A reportagem que abre a seção 30 Dias da edição de setembro de 2015 da Brasileiros foi dedicada ao novo livro do  jornalista norte-americano James A. Mitchell, John Lennon em Nova York: Os Anos da Revolução.

A pesquisa sobre os primeiros dias do ex-beatle na metrópole foi tema da reportagem Desarmado e Perigoso. A seguir, bate-papo virtual com o autor, em troca de e-mails feita dias após o fechamento da edição de setembro.

Brasileiros – Como se deu seu interesse pelos Beatles e John Lennon.
James A. Mitchell – Eu sou jovem para ter sido um dos adolescentes que primeiro responderam à beatlemania, mas cada nova geração, incluindo a minha, descobriu e continua a descobrir a música da banda. A influência dos Beatles era – e ainda é – sentida em áreas que vão além da canção popular. Muito antes de começar o livro, eu estava entre aqueles que admiram a criatividade e a arte dos Beatles, uma banda verdadeiramente única.

O que o motivou documentar os primeiros anos de Lennon em Nova York?
Eu queria abordar o período de uma perspectiva diferente. Existem exaustivos escritos biográficos sobre Lennon, que viveu uma vida extraordinária e fascinante, repleta dos maiores triunfos e das tragédias mais sombrias, mas eu não tinha o interesse de repetir a abordagem dessas obras e fui atraído por essa história singular. A introdução do livro parte de depoimentos dos membros de banda Elephant’s Memory, que passou um tempo considerável com Lennon, no entanto, essa está esquecida. A pesquisa se desenvolve à medida em que, baseada em motivações políticas, a administração do presidente Nixon tenta deportar Lennon dos Estados Unidos. Essa história – que bem reflete tudo o que era bom e ruim sobre meu país durante aquele período – capturou meu interesse.

Além das decisões familiares, você acredita que o distanciamento de Lennon com as causas políticas na segunda metade dos anos 1970 foi dado também por um desencanto ideológico?
Talvez, mas também me parece uma questão de prioridades pessoais. Lennon continuou a, generosamente, dar sua rica contribuição para Nova York em outras causas, mas procurou não ser o centro das atenções do público ou da TV. Havia certamente algum desencanto, conforme narrei no livro, com pessoas que tentaram usar Lennon para suas agendas pessoais. Ele tinha discordado, por exemplo, com os métodos e as mensagens de Jerry Rubin e com isso decidiu lutar sua própria luta – pacificamente e em seus próprios termos. Embora eu não tenha me debruçado sobre sua vida pessoal, a decisão de Lennon de ser mais um pai para Sean do que ele tinha sido capaz de ser para Julian parece ser a busca de um homem a procura de paz com seu passado de pai ausente.

Se Lennon estivesse vivo, em que causas sociais e políticas você acredita que ele estaria envolvido hoje?
Aquelas que são baseadas nos princípios fundamentais para os quais ele se dedicou. É verdade que todos nós podemos mudar algumas opiniões à medida que envelhecemos, mas o registro mostra que Lennon e aqueles que lutaram pelos direitos individuais – seja para grupos minoritários, como o movimento feminista, a causa dos direitos dos homossexuais e dos imigrantes – têm continuado a fazê-lo. O próprio Lennon tinha explicitado que alguns dos “ativistas” estavam mais interessados ​​em ser “contra” certas coisas ou pessoas, como a Guerra do Vietnã e o presidente Nixon, por exemplo. Mas, depois de Nixon, essas pessoas acharam outras causas importantes para protestar, mas Lennon – e Gloria Steinem, John Kerry, Ron Dellums e outra pessoas citadas no livro – certamente manteria valores de defesa das liberdades civis.

Depois de terminar o livro, houve mudanças na forma como você interpreta Yoko Ono?
A crítica de longa data que diz que Yoko separou os Beatles deve ser esquecida. Essa foi uma decisão tomada por John e Paul. Apesar da influência de Yoko, como artista livre, Lennon sempre fez o que queria. Claro, ele nunca encontrou outro parceiro musical que poderia corresponder ao que ele e McCartney fizeram juntos, mas Yoko era verdadeiramente uma parceira de vida, que ajudou a manter os olhos de Lennon bem abertos às novas ideias. Especialmente sobre o feminismo, causa que ele abraçou com entendimento genuíno. Há críticos que apontam para o seu comportamento antifeminista, perceptível em algumas letras, enquanto jovem, mas Lennon era produto de uma geração onde tais atitudes eram comuns. Ele foi um dos primeiros a compreender que esse comportamento era errado.

Que semelhanças você vê entre movimentos dos anos 1960, como Panteras Negras, Panteras Brancas e o Partido Internacional da Juventude, e manifestações recentes, como Occupy Wall Street? Lennon deixou herdeiros revolucionários? Quem são eles?
Sempre houve e sempre haverá organizações como Panteras ou Yippies. Algumas vêm e vão, como a moda ou a música popular. Há um também um legado deixado por Lennon: o casamento do rock-and-roll e do ativismo, na caridade e na política. Algo visto em eventos de grande proporção como Live Aid e na atitude de artistas como Bob Geldof (criador do festival organizado em 1985, que colheu fundos para o combate da fome na África), que reconheceu o poder da mídia e da música para chamar a atenção global quando necessário. Assim como John e Yoko usaram esse mesmo interesse em sua lua de mel para deflagrar uma campanha pela paz, celebridades ativistas de hoje, como Angelina Jolie e Brad Pitt, têm ajudado a salvar muitas vidas. A história tem um jeito especial de mostrar quem estava do lado correto de certas coisas. Nos EUA, quando se pensa no presidente Nixon, se pensa em guerra e corrupção na política. Os pensamentos que John Lennon traz à mente das pessoas são palavras como “imagine” e “paz”. Um bom legado.

Desarmado e perigoso

Livro-reportagem retrata o ativismo político que marcou a fase inicial de John Lennon (na foto, com Chuck Berry e Yoko Ono) em Nova York e colocou o ex-beatle na mira do FBI. Foto: Jeff Albertson/Corbis

Aos beatlemaníacos de plantão, uma boa-nova: acaba de ser lançada a primeira edição brasileira de John Lennon em Nova York: Os Anos da Revolução (Editora Valentina, 248 páginas). Originalmente publicado no exterior há dois anos, o livro-reportagem do jornalista norte-americano James A. Mitchell retrata os primeiros anos do ex-beatle e de Yoko Ono na metrópole.

Aos não iniciados, trata-se de período divisor na vida e na carreira artística de Lennon, que transcorre a partir do verão de 1971, com o estabelecimento definitivo do casal na metrópole, passa pelo nascimento do filho, Sean Ono Lennon, em 1975, e tem final trágico na noite de 8 de dezembro de 1980, a fatídica segunda-feira que assombrou o mundo com a notícia do assassinato de Lennon pelo fã Mark David Chapman, que, após três dias de vigília em frente ao edifício Dakota e horas depois de pedir um autógrafo na capa do recém-lançado LP Double Fantasy, deflagrou cinco projéteis de um revólver calibre 38 contra seu ídolo, diante dos olhos horrorizados de Yoko.

A última década de vida do ex-beatle em solo norte-americano também é tema do documentário Os Estados Unidos X John Lennon (2006), de David Leaf e John Scheinfeld, exibido no Brasil em 2010. O “duelo” e os “anos de revolução” expressos nos títulos das duas obras dizem respeito a uma série de comportamentos provocativos de Lennon, concentrados, sobretudo, na primeira metade de permanência em Nova York, período abordado no livro.

Ao lado de Wayne “Tex” Gabriel, guitarrista do Elephant’s Memory, Lennon recebe o amigo Mick Jagger no Record Plant (1972). Foto: Bob Gruen/bobgruen.com
Ao lado de Wayne “Tex” Gabriel, guitarrista do Elephant’s Memory, Lennon recebe o amigo Mick Jagger no Record Plant (1972). Foto: Bob Gruen/bobgruen.com

Na interpretação do então presidente Richard Nixon, a influência mundial do ex-beatle e, claro, seu enorme poder econômico poderiam resultar no engajamento e financiamento de perigosas insurreições da juventude norte-americana contra sua gestão. De grande valor, os dois trabalhos documentais são complementares. Portanto, àqueles que viram o filme, vale celebrar a coincidência e garantir logo a aquisição do livro escrito por Mitchell.

Com narrativa distanciada, construí-da a partir do cruzamento de testemunhos de diversos personagens, John Lennon em Nova York: Os Anos de Revolução é um grande livro-reportagem. Entre dezenas de depoimentos, claro, prevalecem relatos do convívio de Lennon com os cinco músicos da também politizada Elephant’s Memory, sua banda de apoio, de convívio quase diário entre 1971 e 1973. Além desses relatos e de outros, registrados entre 2010 e 2013, período de produção do livro, Mitchell enriqueceu a obra com uma rigorosa pesquisa de documentos que abordam acontecimentos em jornais, revistas, livros, programas de rádio e TV. Equação que, ao final da leitura, constrói um retrato fascinante do longo processo de maturação da personalidade e das convicções políticas de John Lennon, acentuado a partir do momento em que ele cruza o Atlântico, aos 31 anos de idade.

Em protesto que reuniu cerca de 500 pessoas, o casal pede a retirada de tropas britânicas na Irlanda do Norte (1972). Foto: AP Photo/Ron Frehm/Editora Valentina
Em protesto que reuniu cerca de 500 pessoas, o casal pede a retirada de tropas britânicas na Irlanda do Norte (1972). Foto: AP Photo/Ron Frehm/Editora Valentina

Em solo norte-americano surge esse novo homem, que capitula aos dias subjetivos de desbunde contracultural para tornar-se militante efetivo em defesa das liberdades individuais de minorias mantidas à margem por Nixon, como os jovens soldados condenados a morrer em nome da pátria no Vietnã e mentores intelectuais da chamada Nova Esquerda, como Jerry Rubin e John Sinclair, dois dos mentores do Youth International Party (o Partido Internacional da Juventude, cujos seguidores eram chamados de yippies, corruptela de hippie), e Bob Seale, líder dos Panteras Negras, grupo de ativismo surgido na década anterior que chegou a usar táticas paramilitares para defender os direitos civis da população negra. 

A suspeição de Nixon sobre as reais intenções da ida de Lennon para os Estados Unidos foi inicialmente fundamentada pelo posicionamento obsessivo do músico em pedir o fim das ações das tropas norte-americanas na Guerra do Vietnã (operação iniciada em 1965, na gestão do antecessor de Nixon, o democrata Lyndon B. Johnson). Crítica que ficou explícita na canção Give Peace a Chance e nos chamados Bed Ins, protestos cobertos pela imprensa que ele e Yoko fizeram na cama, em Amsterdã, na Holanda, e Toronto, no Canadá, logo após se casarem no início de 1969.

Mas o cerco contra o atrevimento do ex-beatle ganha novas dimensões com sua chegada em definitivo a Nova York. Pouco depois, procurado por Jerry Rubin)2), Lennon torna-se voluntário da frente de articulação do chamado John Sinclair Freedom Rally, festival que incluiu estrelas como Stevie Wonder e o poeta beat )Allen Ginsberg em defesa de Sinclair, que, além de integrar o núcleo intelectual dos yippies também era líder do White Panther Party, o Partido dos Panteras Brancas, facção de jovens brancos solidários à causa dos Black Panthers. Sinclair estava preso havia quase dois anos e condenado a uma década de reclusão, depois de cair em uma cilada e oferecer dois cigarros de maconha a um policial infiltrado em meios aos yippies. O festival foi realizado em 10 de dezembro de 1971. Dois dias depois, com o impacto da adesão de Lennon, Sinclair estava solto.     

 

Lennon, Yoko, o produtor Phil Spector (deitado) e os músicos do Elephant’s Memory, no camarim do Madison Square Garden (1972). Foto: Bob Gruen/bobgruen.com
Lennon, Yoko, o produtor Phil Spector (deitado) e os músicos do Elephant’s Memory, no camarim do Madison Square Garden (1972). Foto: Bob Gruen/bobgruen.com

Em decorrência do envolvimento com o escândalo Watergate, Nixon renunciou em agosto de 1974, não sem antes causar muitos transtornos para o casal. Logo após a realização do John Sinclair Freedom Rally, Nixon determinou que J. Edgar Hoover, poderoso-chefão do FBI, a polícia federal dos EUA, destacasse investigadores para ficar 24 horas na cola de Lennon. Personagem mitológico havia décadas, Hoover tornou-se célebre na caçada a gângsteres durante a Lei Seca, nos anos 1940, mas morreu, em 1972, sem enquadrar o ex-beatle.

O monitoramento ostensivo do FBI sobre o dia a dia do casal incluía escutas telefônicas e informantes infiltrados, a caráter, na boêmia nova-iorquina. No rol de alcaguetes relatados no livro estava também um colaborador com status de majestade, o cantor Elvis Presley, que procurou Nixon para se voluntariar como araponga de Lennon. Em paralelo, o presidente tentou, sem sucesso, deportar o casal dos Estados Unidos, com a justificativa de que seu visto temporário não poderia ser renovado, devido a complicações com a polícia britânica, decorrentes de um flagrante por porte de maconha em 1968, fato que originou um moroso processo judicial. Em outubro de 1975, depois de longa batalha travada por seu advogado John Wildes, uma das fontes do livro, Lennon enfim conseguiu visto permanente nos EUA.

“Lennon jamais teve o período inicial de sua vida em NYC examinado com tanta profundidade e clareza”, afirma Lee Ranaldo, ex-guitarrista da banda Sonic Youth. Foto: Divulgação
“Lennon jamais teve o período inicial de sua vida em NYC examinado com tanta profundidade e clareza”, afirma Lee Ranaldo, ex-guitarrista da banda Sonic Youth. Foto: Divulgação


Ídolo de Bob Dylan e um dos patronos da música folk e country norte-americana, o compositor Woody Guthrie (1912-1967) costumava estampar no corpo de seu violão a frase “this machine kills fascists” (em bom português, “esta máquina mata fascistas”). A sentença, somada à fama de andarilho que cruzava o país de instrumento em punho, sintetizava a faceta política de Guthrie, um trovador em defesa da justiça social. Não por acaso, Dylan surgiu na cena musical de Nova York em meio às transições políticas e comportamentais do começo da década de 1960, fazendo o mesmo: vertia acordes de violão e letras extensas em verdadeiros hinos de conscientização política, caso de The Times They Are A-Changin’ e Blowin’ In The Wind.

Naquela primeira metade dos anos 1960, entre os fãs ilustres de Bob Dylan o mais famoso deles era John Lennon. Em 28 de agosto de 1964, ocorreu o antológico primeiro encontro entre os Beatles e Dylan. Para além da controversa história de que foi ali que aconteceu, no Hotel Delmonico, em Nova York, a primeira experiên-cia dos Beatles com maconha, oferecida por Dylan, o encontro abriu caminho para uma nova fase dos quatro rapazes de Liverpool. Chegava ao fim a fase juvenil marcada pelo romantismo ingênuo de canções como Help, Eight Days a Week e I Love Her e passava a ser construído o repertório que mudou o comportamento jovem na trinca de obras-primas Rubber Soul (1965), Revolver (1966) e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967). Com o fim oficial dos Beatles em abril de 1970 e o decreto “the dream is over” (o sonho acabou) expresso na canção God, do seu primeiro álbum solo John Lennon/Plastic Ono Band lançado em dezembro daquele ano, Lennon deixou de lado o pacifismo contemplativo da geração Flower Power. Desarmado e perigoso, como Guthrie e Dylan, deu início ao ativismo político retratado neste livro essencial.

MAIS
Leia entrevista com o jornalista James A. Mitchell, autor de John Lennon em Nova York: os anos da revolução.

Cartaz do John Sinclair Freedom Rally, festival em defesa da liberdade do líder do White Panther Party, condenado a dez anos de prisão pelo porte de dois cigarros de maconha. Dois dias após o evento, Sinclair foi solto em liberdade condicional. Foto: Divulgação
Cartaz do John Sinclair Freedom Rally, festival em defesa da liberdade do líder do White Panther Party, condenado a dez anos de prisão pelo porte de dois cigarros de maconha. Dois dias após o evento, Sinclair foi solto em liberdade condicional. Foto: Divulgação

 

Em nome do pai

João Candido Portinari, fundador e diretor-geral do Projeto Portinari. Foto: Paula Giolito

A celebrada volta dos painéis Guerra e Paz ao Brasil é, sobretudo, o ápice de uma emocionante história de luta pela memória do gênio de Brodósqui. Luta que nasceu da inquietude de seu filho, João Candido, perante a terrível constatação do escritor Antonio Callado, grande amigo e biógrafo de Portinari, que em entrevista a Ralph Camargo, em 1977, desabafou: “Segregado em coleções particulares e salas de bancos, Candinho vai se tornando invisível. Vai continuar desmembrado nosso maior pintor, como o Tiradentes que pintou?”.

Contestar a triste profecia de Callado, por intermédio do Projeto Portinari, tornou-se o grande desafio da vida de João Candido. Em entrevista à revista IstoÉ Gente!, em 2003, ano do centenário do nascimento de Portinari, ele revelou ao repórter Fábio Farah que, aos 18 anos, era avesso ao ambiente artístico vivido ao lado do pai: “Achava chatíssimo. Como lamentei mais tarde não ter aproveitado aquilo!”.

O “aquilo” a que João Candido se referiu era muito mais que o cumprimento de protocolos sociais. Era a própria obra do pai e seu significado bruto de identidade de um País que ele também amava, mas que abandonou para estudar Matemática, na França, e fazer doutorado de Engenharia de Telecomunicações, nos Estados Unidos.

João Candido vivia fugindo da sombra onipresente do pai, mas estaria fadado a, obsessivamente, reencontrar seus numerosos vultos e defender com todas as forças a magistral obra de Portinari.

“Eu tinha um tio francês, Pierre, um grande professor de Matemática e Física. Ele me ajudou a aprender Matemática quando eu tinha 12 anos e foi um pouco meu guru. Uma espécie de alternativa ao meu pai. Como bom francês, o Pierre só acreditava na França e me convenceu a estudar Matemática por lá. Com 18 anos, fui interno de um daqueles liceus dantescos de Paris e, depois, passei no concurso da Escola Nacional de Telecomunicações. Eu me formei em engenharia e fui para os Estados Unidos, onde fiz doutorado no MIT, em Massachusetts. Recebi o convite da PUC do Rio para voltar ao Brasil, em 1966. Um período meio maluco, pois eu estava ao mesmo tempo desesperado por estar muito tempo sem vir ao Brasil. Também estava sem rumo na minha própria vida. Recebi o convite de voltar para PUC e ajudar a criar o Departamento de Matemática. Mais de dez anos depois é que tive a ideia de fazer o Projeto Portinari e pedi uma licença sem vencimentos. Meus amigos diziam pasmados: ‘Você está completamente louco! Largar uma carreira como a sua na matemática para mergulhar em uma coisa absolutamente desconhecida e sem futuro!’. Eu realmente fui contra a opinião de todo mundo”, recorda.

Nostálgico de um País que não mais reconhecia, ele conta que o “chamado” para a missão de entregar as tais “cartas” deixadas pelo pai ao povo brasileiro veio de um museu dedicado ao artista-símbolo do povo holandês: “A gota d’água foi uma visita que eu fiz ao Museu Van Gogh, em 1978, que me deu um baque. Mas, se eu não contar os precedentes disso, não vai dar para entender. Voltei ao Brasil, e o País que amo e do qual morria de saudades estava tomado por militares. Vivi dez anos fora, sem ter amigos para reencontrar – meus amigos eram todos do meu tempo de futebol de praia, no Leme, sabe-se lá onde é que eles estavam! –, e também não tinha consciência política e histórica do momento que o País vivia. Estudava muito e nada mais. Lidava com alunos ligados à guerrilha e isso me emocionava muito, porque me deparei com um Brasil irreconhecível. O meu Brasil, de quando eu tinha saído, de uma identidade muito forte marcada em mim, praticamente não existia mais! Uma coisa de muita melancolia. Lembro-me de que, às vezes, parava o carro em uma rua deserta e ficava chorando de saudades desse Brasil que carregava em mim e que não via fora de mim. Lembro de um artigo do Celso Furtado no Estadão que o título era: Quem somos?. Era exatamente essa a questão. Cheguei ao Museu Van Gogh com essa carga toda que acabei de te passar e vi aquele prédio de quatro andares parecendo um formigueiro de gente. Crianças, velhos, pobres e ricos se acotovelando. Já conhecia o museu, tinha ido acompanhado de meu pai, quando eu era criança, e naquele momento parei e pensei: ‘O que é que essas pessoas estão procurando aqui? Estão vindo buscar a pintura, no sentido intelectual? Comparar estilos e pinceladas?’. Nada disso, elas estavam ali para ganhar uma injeção de identidade na veia. Elas saíam fortes dali. Tinham a identidade revelada de uma forma poética, através do olhar e do talento de um imenso artista nacional. Aí, veio a inevitável comparação: ‘E nós, no Brasil?’. Nós também tínhamos um pintor que fez isso, um pintor que pintou o seu povo, a sua terra e a sua alma. E onde é que ele estava? Em lugar nenhum!”

Em uma sala emprestada pelo amigo, professor e presidente da Fundação Rui Barbosa, Américo Jacobina Lacombe – espaço descrito como “quase uma delegacia, dessas com escrivão, delegado e só” –, com móveis usados, “de jacarandá preto”, doados pelo Itamaraty, João Candido fundou, em 1979, o Projeto Portinari.

Ancorado inicialmente por documentos do pai e outros que herdou do acervo da própria mãe, Maria, entusiasta e devota memorialista da obra e da vida do marido, João Candido encontrou grande acolhida de parceiros fundamentais para os grandes êxitos que alcançaria. A extinta companhia aérea Varig, por mais de dez anos, subsidiou as viagens feitas pelo projeto, para mais de 20 países.

A Rede Globo deu início a uma campanha de quatro anos, com exibições diárias de vinhetas pedindo informações que levassem a obras e documentos. Braço imprescindível dessa ação foi também o apoio dos Correios, que dedicou ao projeto a Caixa Postal 500, de fácil memorização, para facilitar o fluxo de informações. A exemplo da Varig e do Itamaraty – este fundamental para as ações no exterior –, todos os parceiros fizeram de suas filiais espécies de sucursais do Projeto Portinari.

Os dias de Fundação Rui Barbosa foram breves. Já em 1980, João e equipe foram acolhidos definitivamente pela PUC-RJ, e as pesquisas e descobertas empenhadas por eles mostrariam facetas particulares do próprio País e de um rico período histórico.

“Os documentos que encontramos começavam a falar mais da vida que da obra desse pintor, um homem que teve um papel dentro de sua geração, que ia muito além da pintura. O Clarival do Prado Valladares, um importante historiador de arte, costumava dizer que Portinari foi um polo de captação e irradiação das principais preocupações estéticas, artísticas, culturais, sociais e políticas do seu tempo. Estamos falando da mesma geração de Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Heitor Villa-Lobos, Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo, Carlos Drummond de Andrade, Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Jorge Amado e tantos outros. Uma geração brilhante. Ao levantar toda a documentação e cruzar esses documentos com as obras e entre si, construímos uma grande base de informações, capaz de iluminar o processo histórico, cultural e político brasileiro dos anos 1920 até 1960.”

Em 1980, a emissora carioca possibilitou ao Projeto Portinari outra rica experiência: a produção de um Globo Repórter dedicado ao pintor, dirigido por ninguém menos que Eduardo Coutinho, o maior documentarista do País. Coutinho foi tomado pela ideia de ignorar depoimentos previsíveis de intelectuais, artistas, críticos de arte e historiadores, e partiu com João Candido e o cinegrafista Dib Luft à pequena Brodósqui, a terra natal de Portinari, no interior de São Paulo, imortalizada e tornada universal por seus pincéis e suas cores.

“Logo que fizemos o primeiro encontro para discutir o programa, o Eduardo me disse, enfático: ‘Olha João, não vamos ficar no Rio entrevistando político, artista e intelectual, não. Vamos lá para Brodósqui, porque é lá que está a chave do mistério’. E que mistério era esse? O grande mistério de essa cidadezinha ser o berço de um menino que nasceu em condições de extrema humildade e se tornou o grande pintor Portinari. Tínhamos uma fotografia de meu pai, aos 9 anos, na escola – pouca gente sabe, mas ele estudou somente até a terceira série do primário –, um menino pobre, com 11 irmãos e todos eles trabalhavam nas fazendas de café. Decidimos ir para Brodósqui eu, o Coutinho, e um terceiro amigo, que também era um sujeito fantástico, o Dib Luft. Encontramos colegas de escola, retratados nessa foto, que na época já estavam com mais de 80 anos e fizeram relatos belíssimos. Esse é um momento divisor, pois foi justamente aí, quando meu pai tinha 9 anos, que passou pela cidade um grupo de artistas itinerantes que vivia de decorar igrejinhas das cidades do interior e que chamou meu pai para pintar umas estrelinhas no teto da capela. Foi a primeira coisa relacionada à pintura que ele fez na vida. Encontramos outro velhinho que também fez esses trabalhos com meu pai, e ele foi categórico em afirmar que: ‘Doente para aprender arte, Candinho era o primeiro a chegar e não saía nem para almoçar’. Em dado momento, ele diz que também fazia de tudo para ajudar os artistas e que, para ele, não havia diferença entre pintura e escultura. Era tudo a mesma arte. Um depoimento incrível, pois ele responde o mistério apontado pelo Eduardo. Essa gente, apesar de pobre e muito humilde, tinha grande sensibilidade e inteligência. Meu avô, por exemplo, chegou em Brodósqui, formou um grupo de música, deu a ele o nome de Carlos Gomes, e o primeiro desenho que meu pai fez foi, justamente, um retrato do Carlos Gomes! Essa gente veio de um País com tradições seculares. Trouxe no sangue a sensibilidade artística italiana.”

A volumosa descoberta de documentos e o encontro de importantes fontes demandariam ao projeto a elaboração de um programa de história oral, amplamente influenciado pelo trabalho do CEPEDOC, da Fundação Getúlio Vargas. Para a alegria de João Candido e de seus pesquisadores, vestígios de um País construído por outros grandes homens, esquecidos na cortina de fumaça de nossa turbulenta história, surgiam entrelaçados à rica trajetória de vida de Portinari.

“Encontramos pessoas incríveis, que tinham convivido com ele e que também tiveram extrema importância para o Brasil, mas que caíram no mais completo esquecimento, como o Celso Antônio, um grande escultor, que participou da aventura fantástica que foi a construção do prédio do antigo Ministério da Educação e Saúde, que hoje é o Palácio Gustavo Capanema (o mesmo local onde Portinari foi velado, em 1962, e onde Guerra e Paz foram restaurados, a partir de 2010). Uma riquíssima experiência interdisciplinar reunindo arquitetos, como Lucio Costa, Niemeyer e Reidy; paisagistas, como Burle Marx; pintores, como Portinari e Guignard; e escultores, como o Bruno Giorgi e o Celso Antônio – que encontramos, pobre e absolutamente esquecido, morando no subúrbio do Rio de Janeiro. Fizemos com ele o que deve ter sido sua última entrevista. Celso morreu dois meses depois e o depoimento dele foi emocionante.”

As mais de três décadas de pesquisas, amparadas por ciência e tecnologia, renderam ao Projeto Portinari a impressionante marca de cinco mil obras localizadas e catalogadas, e mais de 30 mil documentos reunidos. Trabalho feito a duras penas, que custou até mesmo incursões policiais a favelas, em busca de falsários, mas que enriqueceu e que continua a enriquecer a ação que mais orgulha João Candido, o Programa Acesso, que procura levar ao maior número de brasileiros as mensagens de paz e harmonia social tão caras a Portinari.

Em 2003, ponto alto das comemorações do centenário de nascimento do pintor, João e sua equipe realizaram o que, até então, foi seu feito mais notável, a publicação do catálogo raisonné, a mais completa fonte de referência sobre a obra de um artista, algo planejado por ele desde os primeiros dias de projeto. “Já em 1978, estava anotado na minha cadernetinha, onde organizava as primeiras ideias. Por aqui, só os maiores especialistas tinham ideia do que era um catálogo raisonné. Não tínhamos experiência formada no Brasil sobre um trabalho dessa natureza. Esse é o primeiro catálogo raisonné ao sul do Equador, não só na América Latina.”

No texto em que apresenta o Projeto Guerra e Paz, João Candido recorre ao poeta alemão Rainer Maria Rilke, em Elegia de Duíno, para definir como ele se sente a cada vez que alcança seus êxitos: “Se o arcanjo que está por trás da estrela descesse apenas um passo em minha direção, meu coração explodiria”.

A maior visita feita pelo “arcanjo por trás da estrela” a João Candido começou a ser ensaiada no final de 2007, quando ele soube que o prédio sede da ONU, em Nova York – outra grande aventura modernista, projetado por Le Corbusier, e um grupo de arquitetos que incluía Oscar Niemeyer –, entraria em ampla reforma e só reabriria em agosto de 2013.

Estava João Candido perante a oportunidade única de vislumbrar a volta de Guerra e Paz ao Brasil e de também promover a itinerância das duas obras monumentais pelo mundo. Os painéis foram doados, como um presente do Brasil, na inauguração da ONU, em 1957, em cerimônia na qual nem Portinari nem Niemeyer puderam participar, por conta do envolvimento de ambos com o Partido Comunista. A América vivia então o auge da violenta paranoia McCarthista.

Obcecado pelo simbolismo da obra, Portinari abreviou a própria vida para legar à humanidade a mensagem universal de Guerra e Paz. Severamente intoxicado com a superexposição às tintas, ele teve uma hemorragia, em 1953, e foi proibido de pintar por seus médicos, “proibido de viver”, como definiu em uma entrevista após o diagnóstico letal.

Ignorando todas as advertências, Portinari empenhou mais de quatro anos de estudos e nove ininterruptos meses para gestar os 280 m2 de Guerra e Paz. Morreria cinco anos depois, deixando uma obra sem precedentes. Um gigante espelho do País, estilhaçado em mais de cinco mil pedaços, como atesta João Candido.

“Quando ele pinta o Brasil também está falando da guerra e da paz. Ele nunca pinta o Brasil sem paixão. Tem sempre o drama e a poesia, o lírico e o trágico, a fúria e a ternura. A todo momento em que pinta o Brasil, Portinari passa mensagens éticas, humanas e sociais, que chegam ao ápice em Guerra e Paz. Os painéis carregam uma mensagem que vai além do Brasil, transborda fronteiras e vai para a humanidade toda. A ida de Guerra e Paz a São Paulo causará grande impacto. Haverá elementos que não houve no Rio: um tempo maior de exposição e quase 200 estudos originais. Nem meu pai pode vê-los em seu conjunto, pois estiveram sempre espalhados em coleções particulares. Será um grande e emocionante evento. Depois, partiremos para a itinerância internacional, que vai começar em 2012, ano do cinquentenário da morte de meu pai, e vai até 2013, quando a obra deve voltar para a ONU, e nós ainda nem tivemos tempo para pensar nisso. Nossa ficha ainda não caiu!”.

O Brasil contemporâneo em Milão

André Komatsu, Base Hierárquica, 2011-2014

Todos os anos o Padiglione D’Arte Contemporanea di Milano, o PAC, escolhe um país ou um continente para ser o tema de sua exposição de verão. Na edição passada, a África foi o continente escolhido. Países como Japão e Cuba também já tiveram suas temporadas. Este ano é a vez do Brasil ocupar o espaço expositivo do pavilhão. É o que conta Jacopo Crivelli Visconti, curador da mostra Brasile: Il coltello nella carne (Brasil: Navalha na Carne) ao lado de Diego Sileo. A exposição teve abertura no dia 3 de julho e se estende até 9 de setembro.

Convidado pelo PAC para a curadoria, Jacopo não teve muitas dúvidas de que forma abordaria a arte brasileira em tempos atuais: “No meu ponto de vista, se quisermos falar da arte brasileira hoje em dia, não tem como não partir de uma discussão sobre as questões políticas e sociais”. Apesar disso, confessa, estava um pouco cansado da literalidade das exposições que são expressamente políticas: “Muitas vezes [essas exposições] forçam uma leitura rasa dos trabalhos, como se o trabalho de arte, quando lidam com questões políticas ou sociais, se resumissem apenas àquilo”.

O desafio para ele foi justapor, em vários momentos, trabalhos que têm conotações muito claras a trabalhos que não têm ou não sugerem esse tipo de leitura, pelo menos à primeira vista. “Através dessa justaposição, o público é levado a ver alguns trabalhos que teoricamente são apenas esculturas ou pinturas abstratas pelas conotações e interpretações que elas podem ter como obras que refletem um contexto carregado socialmente e politicamente. E, por outro lado, ler obras muito políticas – ou que refletem isso de forma mais clara por terem sido estudadas com esta finalidade – como obras mais poéticas”, conta Jacopo.

Desta forma, foram reunidos trinta artistas brasileiros (ou em atividade no Brasil) de diversas gerações e com trabalhos em várias linguagens e formatos para que integrassem a mostra. São eles: Ícaro Lira, Cinthia Marcelle, Ana Mazzei, Letícia Parente, Regina Parra, Vijai Patchineelam, Berna Reale, Celso Renato, Mauro Restiffe, Luiz Roque, Daniel Steegmann Mangrané, Tunga, Carlos Zilio, Maria Thereza Alves, Clara Ianni, Francesco João, André Komatsu, Runo Lagomarsino, Leonilson, Sofia Borges, Paloma Bosquê, Jonathas de Andrade, Iole de Freitas, Daniel de Paula, Deyson Gilbert, Fernanda Gomes, Ivan Grilo, Carmela Gross, Tamar Guimarães e Maurício Ianês.

 

Um dos momentos em que Jacopo considera que esse contraste entre o que é mais explícito e o que é mais abstrato aparece é no espaço onde está uma instalação de Fernanda Gomes (Sem Título/Casetta, 2016) e, ao lado dela, uma instalação de Ícaro Lira (Campo Geral, 2015). “De alguma forma, os dois trabalhos são próximos, porque usam materiais muito simples. Mas se for feita uma leitura rasa, o trabalho do Ícaro é um trabalho didático e político. E o trabalho da Fernanda seria um trabalho totalmente abstrato em questão de estrutura”, pontua o curador. Ele acredita, porém, que essa colocação dos trabalhos junto a pinturas de Celso Renato que também estão dispostas ali leva a fazer leituras que geralmente não são feitas: “São nessas fricções desses trabalhos que está a parte mais interessante da exposição”.

O período das obras se expande dos anos 70 até obras de 2018, inclusive algumas estão sendo comissionadas pelo próprio PAC. É o caso da instalação Somos, de André Komatsu, artista da Galeria Vermelho que representou o Brasil na 56ª Bienal de Veneza. Feita com cimento em pó, sacos de cimento usados e ferro. Segundo o artista, o trabalho surge a partir de observações suas das fotografias de Marcel Gautherot na construção de Brasília e do contexto dos vilarejos em que viviam os candangos, obreiros que trabalharam na construção da capital.

“Uma dessas cidades/vilarejos surgiu a partir dos restos de material da construção de Brasília. Ela foi denominada como Sacolândia, porque as casas eram feitas com uma estrutura meio mambembe, de sarrafos/restos de madeira. As paredes eram feitas do acúmulo de sacos de cimento”, conta Komatsu. Gautherot quis publicar um livro com fotografias sobre esses vilarejos, mas foi boicotado pelo governo: “Quando eu soube dessa história, comecei a desenvolver esse projeto pra cá, porque a exposição tem, de certa forma, a intenção de trazer um caráter um pouco histórico e político”.

O contraste desenvolvimentista da cidade construída com os vilarejos em que viviam os construtores dela voltou a atenção do artista para a relação de desigualdade existente ali. Para André, se for pensado um ponto de vista menos idealista e utópico, ainda se vive em uma estrutura colonial: “Nós vivemos uma herança escravocrata. De certa forma, essa utopia [desenvolvimentista] torna-se uma mentira”. Interessado pelas questões políticas e sociais, o artista aponta que os trabalhos na exposição não são literais nesse sentido, como já pontuado anteriormente por Jacopo. “Acho que, de fato, é algo que a arte permite. Ela não precisa ser literal”.

 

Lucas Dupin e suas crônicas sobre o chão

Lucas Dupin, Sem título, Série 7 performances para a Pça. do Patriarca, 2018. FOTO: Alessandra Haro

Um homem atrai os pombos da Praça do Patriarca jogando comida para eles. Deixa que se aproximem. Quando se forma um bom grupo de aves em volta dele, solta uma bombinha para dispersá-los. Esse roteiro é o que conduz um vídeo-performance sem título que é exibido na exposição Rés do Chão, de Lucas Dupin, na galeria Lume até 28/7.

“A mão que afaga é a mesma que apedreja”, o artista usa verso icônico de Augusto dos Anjos para resumir a ideia por trás da performance citada. Ela é uma das sete que ele preparou para executar na Praça do Patriarca, em São Paulo. Natural de Belo Horizonte, o artista já perambulou bastante pelo Brasil e pelo mundo para estudar arte e participar de residências. Dupin foi vencedor do 2º Prêmio Energias da Arte, dado pelos institutos Tomie Ohtake e EDP. Participou de residências no Canadá, no Reino Unido e mais recentemente na FAAP, em São Paulo.

Os trabalhos apresentados na exposição na Lume são resultado de vários processos de Lucas ao longo dos anos. Apesar de terem contextos que remetem ao tema urbano, não foram pensados em um contexto grupal para a exposição. “Não tinha a intenção de fazer uma retrospectiva, tampouco de pegar um tema”, comenta e continua: “Depois pensei e vi que tinha tudo a ver como chão, com esse olhar para baixo”, diz.

Lucas Dupin, Jardins Suspensos, 2015-2018

Lucas também afirma que gosta de ouvir o que suas obras dizem: “Eu não faço nenhum projeto a partir de uma premissa, é sempre a partir de um processo de diálogo, de escuta. Por isso, tem trabalhos de inúmeras linguagens, inúmeros formatos e inúmeros assuntos”. Para ele, é uma dificuldade no mundo de hoje, onde as coisas têm que encaixar de forma muito fácil.

Acabou vendo, então, a intersecção entre os trabalhos que tem anos de distância a partir da execução e caiu em um texto de Antônio Cândido. Em A vida ao rés do chão, o sociólogo e crítico literário que completaria 100 anos em 2018, comenta a duração do gênero crônica, que estaria sempre “ao rés do chão”, por ser transitória e tratar de temas comuns.

Assim, Dupin chegou ao título da mostra e declara o quão próximo de uma crônica sua exposição e todo o seu trabalho de pesquisa são: “Me interessa justamente tomar aquilo que é o mais banal e prosaico possível, deslocar e lançar um outro olhar. Gosto de levar as coisas para um outra lugar”.

Desenhos de estalinhos estourados no chão e mesmo fotografias de elásticos de jornais lançados na rua são algumas dessas coisas simples que Lucas coloca em outra perspectiva. Na obra mais falada da exposição, Jardins Suspensos, ele cultiva entre os vãos das pedras portuguesas pendentes plantinhas intrusivas que retirou da calçada em frente à galeria.

“Apesar de ser Rés do Chão, de ter essa proposta de olhar para baixo, os trabalhos têm a dimensão do tempo, da permanência”, diz. Isso porque o artista está sempre buscando a marca do tempo nos objetos que usa para seus trabalhos, seja nos restos de calçadas de pedras portuguesas, populares no século 19, ou na duração do processo de feitura da obra, como pintar bituca por bituca de cigarro em aquarela. É desta forma que o artista mostra que o cotidiano banal ainda importa para a arte.