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Uma nova consciência e juventude

Daniel Jablonski, "Diante do Aparelho", 2016
Daniel Jablonski, “Diante do Aparelho”, 2016

Como os jovens veem o período de ditadura militar pelo qual o Brasil passou entre as décadas de 60 e 80? Esse é o recorte da exposição Estado(s) de Emergência, realizada pelo Paço das Artes. A mostra apresenta o tema pela perspectiva de artistas que nasceram na época da abertura política e redemocratização do País.

A exposição é apresentada na Oficina Cultural Oswald de Andrade, no bairro do Bom Retiro. Isso porque a instituição não tinha uma sede definitiva, tendo sido tirada da Cidade Universitária/USP em 2016 e funcionando no Museu da Imagem e do Som (MIS-SP) desde então. Em setembro, finalmente, o Paço recebeu a boa notícia de que terá um novo lugar para chamar de seu. Cedida pelo Governo do Estado de São Paulo, a casa da instituição agora será o Casarão Nhônhô Magalhães, em Higienópolis. A inauguração contará com uma exposição de Regina Silveira.

Cinthia Marcelle e Tiago Mata Machado, “Comunidade”, 2011.

Estado(s) de Emergência, a última exposição do Paço antes de se fixar na nova sede, tem curadoria de Priscila Arantes e Diego Matos, e se forma na intensa vontade que a curadora, que também é diretora artística, tinha de falar sobre o assunto nessa perspectiva. O recorte se deu ao pensar sobre o próprio trabalho do Paço que, segundo ela, “trabalha nas bordas”. O projeto já vinha sendo realizado há dois anos, quando Arantes convidou Diego para realizar a curadoria conjunta, por afinidades em pesquisas.

“Trabalhamos muito com resistência. Não só no sentido temático e político da palavra, mas micropolítico também. Ampliando a palavra: uma arte que resiste a entrar no mercado, que cria críticas em relação a pensamentos hegemônicos”, diz Priscila. Muitos dos artistas selecionados –  como Lais Myrrha, Daniel Jablonski, Rafael Pagatini e Romy Pocztaruk – já passaram pela instituição em trabalhos para a Temporada de Projetos, realizada todo ano. Para Diego, o tema sempre o fascinou e o inquietou desde sua formação escolar. Ele já havia realizado uma exposição no Paço, pela Associação Cultural Videobrasil, com certa similaridade a essa. Ele pontua que a exposição também reflete outras, como o Estado de violência no Brasil. “A ideia de um Estado extremamente conflituoso e a ditadura talvez seja última sombra disso”.

Fernanda Pessoa, Histórias que o Nosso Cinema (Não) Contava, 2017. Stills do trailer

A história de ditaduras ao redor do mundo, especialmente na América Latina, já tinha sido abordada em outras mostras ao longo da existência do Paço. As mais conhecidas talvez sejam as individuais Operação Condor, do português João Pina, realizada em 2014, e Migrações, do argentino Marcelo Brodsky, que aconteceu em 2016.

Diego conta que observa desde 2013 uma ascensão do assunto ditadura militar na produção desses artistas mais jovens. “Existe um termo que acho bastante interessante, que já vi, por exemplo, Márcio Seligmann também concordar e a própria Priscila. Uma ideia de desassombramento, porque são pessoas que, como não viveram ou não têm uma relação traumática direta necessariamente com o tema passam a olhar para isso de uma forma mais acurada, até como pesquisadores propriamente”, comenta Matos.

Mais um still do trailer to filme de Fernanda Pessoa

Para os dois curadores, o que leva artistas mais jovens a falarem sobre a ditadura, mesmo não tendo vivido sua pior fase ou ter tido algum contato direto, são vários fatores. Os mais evidentes seriam a crise institucional da Nova República, trazendo um desejo de entender como se chegou até isso, e a transparência trazida nos últimos 15 anos pelo governo. A última, que permitiu a realização da Comissão Nacional da Verdade e o acesso a vários documentos da época, oferecendo muito material para trabalharem.

O artista Daniel Jablonski, que apresenta na exposição o trabalho Diante do Aparelho, de  2016, decidiu homenagear os esconderijos de diversos militantes perseguidos na ditadura com sua obra. Apartamentos que serviam como moradia ou espaço para reuniões eram chamados de “aparelhos” na época. “Entre 2008 e 2011, quando fui morar sozinho, tive a ideia de fazer uma espécie de inventário de todos que parraram pelo meu apartamento pela primeira vez”, explica.

As pessoas posaram para o artista embaixo de um letreiro com o nome do apartamento, o qual ele intitulou “aparelho”, por uma razão histórica e afetiva. “Além da questão política, ele também tem uma questão demográfica muito interessante. O ‘aparelho’ foi o primeiro apartamento de muita gente, porque a maioria dessas pessoas que vivem neles tinham 20 e poucos anos mesmo. Estavam não só planejando uma ‘revolução’ contra o Estado, mas promovendo uma mudança de costumes contra o modelo de afeto, de sexualidade e de família que existia na casa dos parentes”, aponta Jablonski.

Detalhe da obra de Daniel Jablonski

Já Fernanda Pessoa apresenta na íntegra o seu filme Histórias que o nosso cinema (não) contava. Premiado em vários festivais dentro e fora do Brasil, o longa é uma montagem de trechos de quase 30 filmes populares. Muitos, do gênero pornochanchada, da década de 70, demonstram alguma relação com o período ditatorial. Ela conta ter aprendido muito sobre como era o funcionamento da sociedade no longo processo de pesquisa e montagem do filme.

O longa também aborda, de forma muito forte, outras questões de opressão que existiam, como o machismo simbólico. Fernanda considera que o que mostra isso de forma mais explícita é uma analogia que aqueles filmes traziam entre o corpo feminino e o milagre econômico prometido pelos militares. “Eu fiz o filme justamente para tentar entender um momento que eu não vivi. Acho que o problema hoje é que ainda não estudamos direito o que foi a ditadura”, confessa.

Livro reforça Walter Zanini como intérprete da arte contemporânea

Há livros que causam curiosidade antes de serem lançados pelo protagonismo do objeto de estudo. Este é o caso de Walter Zanini: vanguardas, desmaterialização, tecnologia na arte, com textos do crítico, professor, historiador e curador Walter Zanini, com organização de Eduardo de Jesus, professor da Universidade Federal de Minas Gerais. O fecho intelectual da pesquisa resulta da estreita relação de Zanini com a vivência cotidiana da arte, revelando enigmas de sua fisionomia artístico intelectual.

O método Zanini de trabalhar inclui troca de experiência com os artistas e uma incansável forma de questionar o papel da arte. Dois momentos exemplificam essa prática: o laboratório de arte criado no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo MAC/USP (dirigido por ele desde a sua inauguração em 1963, onde abre espaço a
jovens artistas, à arte conceitual, arte postal, videoarte, performance e poéticas tecnológicas, até 1978) e, suas curadorias renovadoras na 16a e 17a edições da Bienal de
São Paulo. Foi ele quem instituiu a analogia de linguagem ao eliminar, definitivamente, o conceito de exposição das obras por países, compondo um grupo internacional de
críticos e curadores de museus para ajudá-lo nesta tarefa. O livro é uma investigação teórico-conceitual da presença das tecnologias na produção artística, no Brasil e no
exterior, a partir da passagem dos séculos 19 ao 20. Os textos revelam o olhar sistemático do crítico sobre a função reveladora da arte contemporânea, em um processo em constante mutação. Os textos mostram o avanço da arte, quando os processos artesanais de produção foram postos frente a frente às inovações tecnológicas e seus diversos canais. Há muito o que descobrir nessas camadas sobrepostas que têm como ponto de partida as experiências da Art Nouveau e da Deutsche Werkbund. A pesquisa passa por análises de movimentos das vanguardas históricas, como o futurismo italiano e o russo, dadaísmo
e construtivismo, chegando aos anos de 1980. Essa linha do tempo perpassa pela arte cinética, arte cibernética e eletrônica, crise do objeto, a contestação dos suportes
tradicionais e a evolução da videoarte.

O capítulo inaugural refere-se à arte e uma de suas questões de identidade. Da Arte Artesanal e Mecânica à Arte Eletrônica problematiza as interfaces entre arte e
tecnologia à luz de suas relações com as transformações da arquitetura e do design no século 19. Desse período seorigina o capítulo sequencial Arte cinética, o impulso para
o imaterial, aspectos da contribuição do cinema de artista e experimental. Vários grupos ligados ao movimento são citados como o Zero, de Dusseldorf, 1957, do qual partici-
pou o brasileiro Almir Mavignier; Recherche d ́Art Visuel (GRAV), de Paris, 1960, comandado pelo argentino Júlio Le Parc; MID de Milão,1964; Anonima, de Cleveland,1960,
entre outros. O trabalho de Abraham Palatnik no Brasil é só citado e, depois comentado em outro segmento. O cenário das exposições, a partir desse momento, muda substancialmente, misturando trabalhos tradicionais com realidades imagéticas inéditas que surgiam de novas máquinas, incorporando as múltiplas manifestações do
período caracterizadas pela imaterialidade. Em Impulso para o imaterial há o “incontestável reconhecimento da obra musical de John Cage” e de dois alunos preferidos: Robert Rauschenberg, seu também colaborador, e de Allan Kaprow, criador da arte corporal. A expressão “desmaterialização da arte” surgiu pela primeira vez com a crítica americana Lucy R. Lippard, em artigo assinado com John Chandler, em 1968. Em uma de suas entrevistas diz que “hoje tudo, incluindo a arte, existe dentro de uma situação política”. Esse olhar novo surgiu em Lippard, depois de uma viagem que ela fez à Argentina, em 1968, onde conheceu artistas engajados no movimento arte/ política, dentro dos acontecimentos de maio de 1968. O grupo CoBRA aparece nesse capítulo com destaque para Asger Jorn, e sua ideia de “laboratórios de estudos, como os institutos científicos”. O objetivo do artista dinamarquês era ensinar jovens a alcançarem não só resultados artísticos práticos como também crescerem no campo da teoria da arte. Os temas fragmentados, não longos, tentam demonstrar o pensamento de Zanini, sobretudo,
em dois segmentos aos quais ele se dedicou: a videoarte no Brasil, em que traça um histórico das primeiras experiências eletrônicas que surgem por aqui, entre 1969 e 1973. Enquanto nos Estados Unidos esse movimento já tomava corpo no final de 1960, no Brasil, por falta de recursos, se inicia tardiamente. Zanini comenta a arte e a tecnologia “como manifestações que remontam do período entre 1940 e 1950 com as experiências cibernéticas de Abraham Palatnik, precursor da complexa passagem dos procedimentos artesanais da arte no Brasil”. Não havia ferramenta portátil para os artistas nessa época dos imensos computadores IBM, quando um só deles ocupava uma sala de 50 metros quadrados.

“Waldemar Cordeiro, o pioneiro da arte por computador, associado ao físico Giorgio Moscati, demonstrou em 1969 os primeiros resultados de sua pesquisa, que teve
reconhecimento internacional, mas logo interrompida com sua morte em 1973”. Depois dele, outros artistas foram atraídos pela eletrônica como Wesley Duke Lee, Artur Barrio, Gabriel Borba Filho e Antonio Dias. E, entre os teóricos, Zanini comenta a participação de Vilém Flusser, intelectual checo, fundador da disciplina Teoria da comunicação, na Faap, do qual fui aluna. O discurso multimidiático de Flusser, teórico definido por Zanini como “o filósofo de aderência fenomenológica, identificado sobretudo a Heidegger”, atraiu artistas e teóricos de todo o mundo. Ao falar dos Primeiros tempos da arte/tecnologia no Brasil, Zanini observa que, sobre “sob influxos internacionais, as experiências comportamentais
foram logo seguidas pela rápida propagação do uso de audiovisuais e filmes super-8 e 16 mm, às vezes registros de ações conceituais”.

O intenso envolvimento do crítico com os problemas estruturais da arte contemporânea está refletido ao longo dessa coletânea, como uma espécie de fio condutor. Nos textos reunidos em Aspectos da contribuição do cinema de artista e experimental emerge o grupo de Milão, liderado por Lucio Fontana, argentino/italiano, autor do Manifesto del movimento spaziale per telezivione, 1952, exprimindo a convicção de que “a arte deveria se libertar de sua materialidade”. Entre os trabalhos citados aparece o do Grupo Fluxus, que Zanini trouxe à Bienal de São Paulo, em 1983, e colocou o Brasil em contato com a obra de Vostel. “A iniciativa de um vídeo do coreano Nam June Paik, em 1965, marca o momento inaugural da videoarte”, anota Zanini. Paik influenciou artistas como Vito Acconci, Bruce Nauman, Davidson Gilliotti. Também optaram pela videoarte Dan Graham, Dennis Oppenheim, Richard Serra, Bill Viola, Gary Hill e outros mais.

No conjunto, o livro reforça que Walter Zanini é um dos críticos brasileiros mais expressivos no comprometimento com a arte contemporânea mundial e seu trabalho, obra de consulta permanente.


Walter Zanini – Vanguardas, Desmaterialização, Tecnologias Na Arte
Jesus, Eduardo De
Wmf Martins Fontes
R$ 25,00

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Novo território de arte e cultura sustentável

Imagem: SEVENDE / C Gross / Divulgação

Com a missão de preservar e fomentar a memória e a experiência artística contemporânea na cidade de ITU e região, a Fábrica de Arte Marcos Amaro – FAMA inaugurou mais duas salas de exibição. Em menos de um ano, uma equipe chefiada pela diretora da Fundação, Raquel Fayad, e o curador e organizador, Ricardo Resende, colocou em pé uma seria iniciativa e importante investimento do artista e empresário Marcos Amaro.

Em junho de 2018, a FAMA deu início aos trabalhos abrindo sua primeira exibição, intitulada O Tridimensional na coleção Marcos Amaro: frente, fundo, em cima, embaixo, lados, volume, forma e cor.

“De Aleijadinho, passando por Almeida Júnior à Adriana Varejão, Cildo Meireles, Iole de Freitas e Nelson Leirner, esses são alguns dos nomes que compõem a exposição – que se inicia no século XVIII e alcança a contemporaneidade, permitindo um percurso na História da Arte Brasileira. A mostra apresenta o acervo em formação, que tem como interesse o ato escultórico como categoria artística do tridimensional. Nessa configuração, os trabalhos saem do bidimensional para o tridimensional, entre o que seria uma pintura ou um relevo sobre a parede. Uma instalação ou uma escultura. De pequeno, médio e grande porte, com cor ou sem cor: é como a coleção se constituiu ao longo dos últimos dez anos”, diz Resende.

Os trabalhos selecionados trazem um recorte da Coleção de Arte Marcos Amaro para os galpões da FAMA. Nos jardins que rodeiam a fábrica em restauro, foram instaladas algumas das esculturas da coleção. Ao mesmo tempo, estas farão parte de uma exposição especialmente organizada junto à Prefeitura para serem expostas nas avenidas da cidade.

Estão presentes aí obras de Emanoel Araújo, Gilberto Salvador, Marcos Amaro, Mestre Didi, Mário Cravo Júnior, José Resende, León Ferrari, Caciporé Torres, Sérgio Romagnolo e José Spaniol.

Após meses de visitação, parcerias com instituições da região e o início de relacionamento com escolas, a FAMA já conta com mais dois espaços restaurados
para exibição. A exposição O Tempo e a Gravura no Espaço – Sala Negra apresenta a Coleção Guida e José Mindlin de Matrizes de Gravura, recentemente adquirida pela
Fundação Marcos Amaro.

Organizada pelo bibliófilo José Mindlin (1914-2010), que tinha paixão pelos livros, e sua esposa Guita (1916-2006), é uma coleção única. Essa coleção de 450 matrizes é o núcleo da exposição que reúne uma seleção de xilogravuras que mostram a dramaticidade do gesto de gravadores como Renina Katz (1925), Djanira (1914-1979), Mestre Noza (1897-s.l.1984), Oswaldo Goeldi (1895-1961). Na sequência trabalhos mais lúgubres como O Pássaro (2015-2018), de Laura Lima, com coautoria do artista Zé Carlos Garcia, uma escultura feita de penas negras que simulam um pássaro morto caído no chão. De alta dramaticidade, fantasmagórica, parece ter saído de uma das matrizes vistas na exposição. A textura final das penas e seu posicionamento parecem dar vida a uma xilogravura, agora expandida no espaço. Nuno Ramos (1960) faz uma homenagem ao Oswaldo Goeldi ao gravar em baixo relevo sobre uma “lápide” de mármore branco uma imagem das suas xilogravuras banhada de óleo enegrecido, criando as sombras que caracterizam suas gravuras. Goeldi, como Nuno Ramos, é um artista que irradia uma densidade literária, que pode ser observada também nas pinturas de Rodrigo Andrade, nas gravuras de Wesley Duke Lee, na pintura de Iberê Camargo, de Siron Franco e na instalação de Tunga.
Independentemente de critérios curatoriais ou das escolhas das obras, que costumam ser sempre o alvo de críticas eminentemente estéticas, há um imenso valor ético e estético em colocar este acervo à disposição do público.

Agora, além das reformas arquitetônicas e da finalização das salas de reserva técnica, está na mira o planejamento e capacitação de um educativo capaz de acompanhar, escutar, contar histórias e sistematizar as experiências de visitação.

Na rota contrária ao fechamento de espaços culturais no país como um todo e da censura prévia na construção de projetos, a FAMA se coloca na rota de investir em cultura e arte contemporânea, permitindo que jovens e adultos sejam motivados a perguntar, a pensar e a refletir.

Uma exposição com partido, sim!

Andar de cima
Renata Lucas, Andar de cima, 2018

Inaugurada dois dias antes do segundo turno das eleições presidenciais e chamada pelos
próprios organizadores de “mostra-manifesto”, Rejuvenesça! é uma exposição que não tem medo de tomar um partido quando se trata de defender a democracia e os direitos no Brasil. Produzida pela artista Renata Lucas, a mostra conta foi concebida em poucas semanas, num caráter de urgência para se posicionar em um momento conturbado da História do país, trazendo obras dos artistas Anri Sala, Arto Lindsay, Carla Zaccagnini, Carlos Fajardo, Nedko Solakov, Mauro Restiffe, Renata Lucas e Rodrigo Andrade. Outros artistas que endossam a iniciativa, embora ainda não tenham obras instaladas no espaço são Dominique Gonzalez Foerster, Iran do Espirito Santo e Micol Assael.

Ainda sem ter tempo estabelecido para seu encerramento, Rejuvenesça! se propõe a ser uma mostra progressiva, agregando obras que chegarem ao seu espaço expositivo. A ideia se constrói na intenção de caracterizar um ponto de resistência tanto dos artistas que se propõem a participar quanto do próprio espaço.

A Casa do Povo se dispôs – e ainda se dispõe – a realizar uma série de inciativas em defesa do Estado de Direito, numa posição clara contra tempos funestos que parecem estar por vir, como Renata discorre em uma carta de apresentação: “O candidato mais votado no primeiro turno das eleições presidenciais incorpora um discurso fascista, cuja principal bandeira é recobrar um dos momentos mais sombrios de nossa história: a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985)”. O candidato citado pela produtora é Jair Bolsonaro, eleito presidente da República para os próximos quatro anos.

A continuação da exposição por esse tempo ainda não determinado indica, portanto, uma forma de lutar contra propostas descabidas do, agora, presidente. Na introdução, Lucas também critica a isenção de agentes da arte em relação a esse momento: “A atual edição da Bienal de São Paulo, assim como diversas instituições e galerias de arte, procurou manter-se neutra diante da barbárie, comportando-se como se nada acontecesse à sua volta”.

Portanto, além de marcar uma posição nesta conjuntura, Rejuvenesça! também se propõe a pensar sobre os rumos da arte em um novo governo cuja base de apoio provocou os dois episódios mais desfavoráveis à manutenção da liberdade artística nos últimos anos: o boicote à exposição Queermuseum e as difamações ao artista Wagner Schwartz pela performance La Bête. Somados às declarações preocupantes do presidente eleito sobre arte e cultura, esses acontecimentos provocam grande apreensão no meio.

Afinal, é ele quem sempre pontua que artistas se aproveitam dos incentivos dados pelo governo e que disse, sobre o incêndio no Museu Nacional: “Já está feito, já pegou fogo. Quer que eu faça o quê?” Portanto, o desprezo de alguns em relação ao que a eleição desse candidato representa poderia significar uma obediência a alguns princípios repressores de seu plano de governo em relação à cultura e à arte. Renata ainda escreve, na carta-manifesto: “Em contraposição a essa cínica indiferença, nós, artistas que aqui nos apresentamos, criamos uma mostra que contou com a solidariedade da Casa do Povo, espaço democrático que entende a arte como ferramenta crítica dentro de um processo
de transformação social”.

Livro debate arte, direito e liberdade em momento oportuno

Organizado por Cris Olivieri, advogada com especialização em gestão de processos comunicacionais e culturais e mestre em administração das artes pela Universidade de Boston, e Edson Natale, músico, escritor e jornalista, o livro nasce num momento mais que oportuno no Brasil. É o primeiro livro de uma série que a ser lançada pelo selo Edições Sesc, sob o título de Gestão da Cultura e do Entretenimento.

Em 2017, presenciamos uma enxurrada de casos de intolerância – como se não bastassem as de ordem racial, politica e econômica – especificamente à diversidade cultural.

O encerramento da exposição Queermuseu, em Porto Alegre, o veto à sua exibição no Rio de Janeiro; a proibição da peça O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu em Jundiaí; os ataques ao MAM, em São Paulo, pela exibição da performance La Bête, com o artista Wagner Schwartz; assim como ameaças a curadores e artistas, provocaram inúmeras manifestações em defesa da liberdade e integridade de obras e expressões artísticas.

Cientes da importância deste debate os organizadores criaram uma interessante interlocução que, a partir de diferentes autores – advogados, dramaturgos, educadores, produtores culturais, líderes religiosos –  atuantes nas áreas da cultura ou da comunicação, trouxeram contribuições à ideia de liberdade, como garantia da expressão artística – sejam legais, oferecidas pela Constituição ou por conceitos teóricos.

Os depoimentos, editados em subtemas ou perguntas e com parágrafos curtos, permitem acompanhar e percorrer o livro sem transformar o tema num único depoimento narcisista ininteligível.

Aqui a diversidade está garantida pela maneira em que cada um se expressa. O diretor de teatro e dramaturgo Zé Celso diz em Arte Por Quê?:“Nossa vocação é criar com o universo. Se existem deuses e demônios criadores, estão em nós e em toda natureza ou em lugar nenhum. (…) Fazemos parte dos Sem Nada – mas com Arte podemos conseguir transmutar os Sem Arte, para q não destruam o Planeta Terra: os que tatuaram em suas cabeças a Cruz Enrolada num Cifrão: $$$$+++…”. Ou em Direitos Individuais e Liberdade de Expressão:“São mais que direitos sociais, são direitos sagrados humanos como são pra personagem Antígona; são próprios da natureza humana. Transcende os Tribunais e os Julgamentos”.

Fernando Baril, “Cruzando Jesus Cristo com o Deus Shiva”, 1996, obra exposta na exposição Queermuseum.

Já, Benjamin Seroussi, curador e gestor cultural, diretor da Casa do Povo em São Paulo, salienta em O que faz a arte?: “Em época de censura, a própria existência da arte é questionada… Não podemos deixar de nos perguntar como chegamos a essa estranha situação em que precisamos justificar a própria existência da arte. Ela pode ser julgada apressadamente como boa ou ruim, mas não por isso deixa de ser arte…”. “Neste curto texto, convidamos o leitor a passear por algumas situações nas quais a arte está em jogo e onde ela age.”  ‘SITUAÇÃO 1: ARTE PRODUZ CONHECIMENTO”, “SITUAÇÃO 2: ARTE  DESORGANIZA”, e assim por diante, “ARTE CRIA SEUS PRÓPRIOS MUNDOS”, “ARTE FAZ POLÏTICA”, “ARTE COMO FERRAMENTA”, “ARTE GERA CONTROVÉRSIAS”.

A partir de diferentes perspectivas, todos os colaboradores do livro – desde o escritor, cronista e roteirista Antonio Prata até Cleomar Rocha, pós-doutor em poéticas Interdisciplinares e Estudos Culturais da UFRJ; Don Clóvis Rodrigues, bispo emérito da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil; e Juca Kfouri, referência no jornalismo esportivo brasileiro – poderiam concordar, de alguma forma, com a frase do humorista, dramaturgo e escritor Jô Soares: “A coisa está no ouvido de quem escuta, e não de quem fala”.


Direito, Arte e Liberdade
Cris Olivieri E Edson Natale
Edições Sesc São Paulo

R$ 65,00

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A linguagem afro-brasileira e universal de Rubem Valentim

Relevo Emblema N. 4, 1977. acrílica sobre madeira, 100 X 150 X 5 cm. Acervo Museu de Arte Moderna da Bahia
Composição 12, 1962. Óleo sobre tela. A obra foi doada para o acervo do Masp pelos galeristas Ana Dale, Antonio Almeida e Carlos Dale Junior 61

Em seu “Manifesto Ainda que Tardio”, publicado em 1976, o pintor, escultor e gravurista baiano Rubem Valentim (1922-1991) deixava bastante claro de onde emergia sua arte: “Minha linguagem plástico-visual-signográfica está ligada aos valores míticos profundos de uma cultura afro-brasileira (mestiça-animista-fetichista). Com o peso da Bahia sobre mim – a cultura vivenciada; com o sangue negro nas veias – o atavismo; com os olhos abertos para o que se faz no mundo – a contemporaneidade”. Ele buscava, como dizia no mesmo texto, “uma linguagem universal, mas de caráter brasileiro”, sem se filiar a nenhum dos movimentos ou correntes artísticas estrangeiras ou nacionais.

Imagem: Rubem Valentim, Pintura 2, 1960 / Foto: Tomás Toledo, curador-chefe do MASP

Ainda assim, em sentido contrário às palavras do próprio artista, boa parte da crítica, do mercado e da historiografia da arte definiu Valentim como um artista basicamente construtivo, relegando à segundo plano o universo simbólico de sua obra, ligado ao candomblé, à umbanda e à cultura afro-brasileira. Houve uma “insistência em enquadrá-lo, um tanto à força, no contexto das correntes construtivas canônicas, forjadas no eixo Rio-São Paulo, apartando das reflexões os sentidos religioso, espiritual e social, portanto político, que são parte integrante da conformação de seus trabalhos e de sua vida como artista”, afirma Fernando Oliva, curador da mostra “Rubem Valentim: Construções Afro-Atlânticas”, uma grande individual do artista em cartaz no Masp até março de 2019.

Marcus Lontra, curador de “Rubem Valentim: Construção e Fé”, outra exposição do artista baiano em cartaz em São Paulo, na Caixa Cultural, segue na mesma linha. “Assim ele se tornava mais palatável. Quiseram adocicar o Rubem Valentim dizendo que ele era um modernista com temperinho brasileiro. Como se falassem: ‘Vamos jogar um dendê aqui nesse escargot’. Mas acontece que o dendê não era o final, era a base”, diz Lontra. “Quer dizer, o Valentim parte dessa visualidade africana e, com um olhar erudito, sintetiza isso através da cor e da forma.”

De outro lado, quando não foi classificado como construtivo ou concretista, Valentim foi visto como um artista “místico, sobrenatural e mágico”, sendo enquadrado em um universo folclórico também simplificador de sua obra. “É equivocado e muito limitador da potência deste artista reduzi-lo a apenas construtivo ou apenas tributário da cultura do candomblé”, diz Oliva. “Nós queremos apresentar o artista total que ele era, que transitava e fazia a síntese entre formas associadas ao abstracionismo geométrico de linhagem europeia, canônico, e as formas que ele encontrou originalmente nas religiões de matriz africana”, explica.

A proposta de apresentar uma leitura mais complexa da obra de Valentim, destacando seu caráter híbrido e sua força política, é o que move as duas mostras em cartaz em São Paulo. No Masp, 80 pinturas e 12 esculturas perpassam principalmente os períodos em que o artista residiu no Rio de Janeiro (1957-1963), em Londres e Roma (1963-1966) e em Brasília (1967-1981). A exposição privilegia também os três elementos do candomblé com os quais ele mais se relacionou: a flecha de Oxóssi, o machado de Xangô e as hastes de Ossain (ou Ossanha). “Essas formas do candomblé são um ponto de partida, mas o que ele faz é depurar, sintetizar, recriar e transfigurar essas formas em outros elementos. E aí está a potência do seu trabalho. Como todo grande artista, ele cria um universo próprio, algo único e original”, diz Oliva.

A exposição no Masp é parte do ciclo “Histórias Afro-atlânticas”, eixo curatorial do museu em 2018, constituído por mostras individuais de artistas cujas obras são atravessadas por questões raciais e por uma grande exposição coletiva que sintetizou o tema. Com foco na diáspora negra e nos “fluxos e refluxos” entre África, Américas e Europa, ressaltando as violências e resistências que marcaram essas histórias, o museu deu sequência aos ciclos de “Histórias da Loucura e Histórias Feministas” (2015), “Histórias da Infância” (2016) e “Histórias da Sexualidade” (2017). O eixo curatorial em 2019, também focado em narrativas não tradicionais, é intitulado “Histórias Feministas, Histórias das Mulheres”.

Na Caixa Cultural, a mostra com cerca de 60 pinturas e uma escultura também se concentra no universo simbólico e na questão da negritude na obra de Valentim. Com foco no período em que o artista viveu em Brasília e nos anos finais de sua vida, passados entre a capital federal e São Paulo, a exposição apresenta o que Lontra considera “uma obra híbrida, perturbadora, que atua no território da fantasia e da formação da identidade nacional”. “Ele rompeu as designações tradicionais; desprezou anacrônicas fronteiras entre o popular e o erudito, entre o nacional e o internacional, entre razão e emoção”, escreve o curador no texto de apresentação da mostra.

ENGAJAMENTO E ATUALIDADE

Valentim nasceu em Salvador, em 1911, e cresceu em contato íntimo com um universo sincrético. Apesar de ser de família católica e ter feito a primeira comunhão, frequentava com o pai os terreiros de candomblé da cidade. Formado em odontologia, passou a se dedicar à produção artística com mais afinco na segunda metade dos anos 1940, quando se aproximou do pensamento de esquerda e de artistas como Mário Cravo Jr., Carlos Bastos e Raymundo de Oliveira. Juntos deram início a um movimento de renovação nas artes plásticas na Bahia. Valentim ainda cursou jornalismo no início dos anos 1950, em busca de uma formação mais humanista, e a partir do meio desta década começou a incorporar em suas pinturas os emblemas e signos do candomblé e da umbanda. Com o uso de cores fortes e formas geométricas, criou um repertório pessoal “com base em uma complexa dinâmica de recortes, subtrações e justaposições”, como explica Oliva.

Relevo Emblema N. 4, 1977. acrílica sobre madeira, 100 X 150 X 5 cm. Acervo Museu de Arte Moderna da Bahia

A geometria e as preocupações formais, no entanto, não se sobrepunham às questões simbólicas, como ressaltou o próprio artista: “Nunca fui concreto. Tomei conhecimento do concretismo através de amizades pessoais com alguns dos seus integrantes. Mas logo percebi, pelo menos entre os paulistas, que o objetivo final de seu trabalho eram os jogos óticos e isto não me interessava. Meu problema sempre foi ‘conteudístico’ (a impregnação mística, a tomada de consciência dos valores culturais de meu povo, o sentir brasileiro)”. Neste sentido, tanto o movimento de enquadrá-lo em correntes construtivas como o de chamar sua obra de mágica e sobrenatural acabaram por tirar de Valentim seu caráter político, retomado agora de modo atento nas duas mostras paulistanas. No Masp, a discussão ganha profundidade também em um grande catálogo que, além de apresentar a exposição, reúne textos históricos, desenhos e anotações de cadernos do artista e ensaios inéditos de Lilia Schwarcz, Helio Menezes, Lisette Lagnado e Marta Mestre, entre outros.

Como explicam os curadores, Valentim foi um artista engajado não só no conteúdo de sua obra visual, mas também nas posições políticas que assumiu em textos e entrevistas ao longo da vida. Em seu manifesto, por exemplo, escrito em plena ditadura militar, Valentim se posiciona como defensor do intercâmbio entre todos os povos e nações, mas contra o colonialismo cultural e a subserviência aos padrões vindos de fora; defende uma poética visual brasileira que beba na iconografia afro-ameríndia-nordestina, mas que fuja de modismos e das “violentações caricatas do folclore e do genuíno”; e afirma, por fim, que “a arte é uma arma poética para lutar contra a violência como um exercício de liberdade contra as forças repressivas”.

Relevo Emblema 78, 1978, acrílica sobre madeira. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Compra do Governo do Estado de São Paulo, 2013

“Diferentemente do discurso purista do modernismo, Valentim representa a possibilidade real de construção de uma linguagem que reflita especificidades brasileiras”, diz Lontra. E são essas especificidades, para o curador, que devem ser identificadas e destacadas, especialmente no contexto atual. No momento em que o Brasil elege um presidente que ofende quilombolas e despreza os direitos humanos, em que o país vivencia assassinatos como o da vereadora negra e feminista Marielle Franco e do mestre de capoeira Moa do Katendê, retomar a obra de Valentim e seu caráter político ganha nova potência e significado.

“Nós estamos diante de violências constantes, com o Brasil revelando toda sua maldade, o horror de uma classe média reacionária. E tem essa ideia do país cordial, da nação boazinha, que é o discurso do opressor e que não engana mais. Antes de aceitar nossa miscigenação temos que aceitar que a mulher negra foi estuprada”, diz Lontra, ressaltando a importância de identificar os elementos negros como fundamentais na história da arte brasileira e na compreensão de um país mestiço. “E acho que o Rubem assumiu essa questão política de modo muito forte e importante. Ele nunca escondeu a violência”. Sobre o futuro próximo, o curador conclui: “Agora temos que enfrentar a ameaça à democracia. E a arte sempre enfrentou isso: ditadura, perseguição, ausência de apoio. E seu papel vai continuar sendo esse, de mostrar o Brasil de verdade”.

 


Rubem Valentim: Construções Afro-Atlânticas

De 14/11/2018 a 10/03/2019
MASP – Av. Paulista, 1578, São Paulo

Rubem Valentim: Construção e Fé

De 07/10/2018 a 06/12/2018
CAIXA CULTURAL – Praça da Sé, 111


 

Não terminou de acabar

Carlos Pasquetti
Carlos Pasquetti, Trabalho sobre máscara de gás, 1972, Foto 24 X 18 cm

*Por Paulo Miyada.

A exposição “AI-5 50 Anos – Ainda não terminou de acabar” encerrou-se no dia 4 de Novembro, uma semana após o término das eleições presidenciais do Brasil. Desde que o cargo maior do poder executivo voltou a ser decidido pelo voto direto da população, nunca havia acontecido uma campanha eleitoral em que os debates públicos e as discussões privadas tenham discutido tanto o legado e a amplitude da ditadura militar. Relativização, negação, desinformação e má-fé mostraram suas presas em tentativas de reescrever a história como uma revolução heroica e nacionalista. Do outro lado, toda sorte de esforços por elucidação e justiça reparativa – entre os quais essa exposição certamente se encontra – provaram-se insuficientes e constataram que está em jogo mais do que a disputa com os discursos obscurantistas atuais: segue em aberto a tarefa de completar os ciclos de reparação histórica e refundação institucional que foram apenas parcialmente cumpridos da longa, barganhada e incompleta “redemocratização” do Brasil.

Paulo Miyada, curador e pesquisador de arte contemporânea e atual diretor criativo do Instituto Tomie Othake

Como uma ação cultural e artística, a exposição esteve no polo oposto às tentativas de relativizar os dados deixados pela ditadura militar no Brasil. Quando se tenta minimizar o impacto do golpe e sua política repressiva afirmando que os “excessos” do regime atingiram apenas os radicais de esquerda, três perversas injustiças são cometidas: 1. Não é verdade que apenas terroristas radicais foram presos, torturados e mortos, o exemplo de Vladimir Herzog é um dentre centenas de casos de brutais violências contra quem apenas exercia sua cidadania; 2. Mesmo nos casos dos combatentes diretos ao regime que seguiram vias de luta armada e guerrilha urbana, nunca deveria caber ao Estado o papel da retaliação sem todo o aparato jurídico que fundamenta o Estado de Direito – se o governo atua pela lei do olho-por-olho, dente-por-dente, qual a referência que sobra para que os cidadãos atuem de forma diferente?; 3. Além dos casos de violência direta de Estado por meio de mortes, exílios, torturas, prisões arbitrárias e retirada de direitos políticos de seus cidadãos, a ditadura fichou e vigiou mais de 300 mil cidadãos por meio de seus órgãos de censura, além de operar políticas sistemáticas de censura da imprensa, da cultura e da arte. As consequências desse último ponto extravasam em muito o âmbito da ditadura que se tenta relativizar, e foram elas que receberam especial atenção na mostra, que partiu do contexto das artes visuais para entender o custo do silenciamento da população e prestar homenagem aos que souberam expressar algo quando nada poderia ser dito. O que se vive agora é um rescaldo ardente do quão profundo foi o dano deixado pelos anos do regime militar, agravado pelo caráter precário das instituições democráticas que não foram tão revistas e fortalecidas nas últimas 3 décadas quanto teria sido necessário. Nesse sentido, o AI-5 ainda não acabou mesmo de terminar, e tudo leva a crer que seus efeitos serão ainda mais sentidos nos próximos anos. Parece que se perdeu o véu de moralidade que ainda exigia alguma discrição das reencenações mais perversas da autoritária violência de Estado. Os primeiros a entrarem na linha de fogo serão, justamente, aqueles para quem a ideia de redemocratização esteve sempre entre a lenda e a hipérbole: os negros, os indígenas, os LGBTQ+ e os miseráveis. Por isso mesmo, a persistência da luta e da resistência terá neles sua raiz, seu motivo e seu saber.

*Paulo Miyada, curador e pesquisador de arte contemporânea, é atual diretor criativo do Instituto Tomie Othake e curador convidado da 34a Bienal de São Paulo

 

Enquanto isso

Enquanto isso
Coleções, 1968/1973

Na bela sala oval da Biblioteca, fundada originalmente em 1925 como Biblioteca Municipal de São Paulo que mudou seu endereço em 1942, na gestão dPrestes Maia para o novo edifício, projetado pelo arquiteto Jacques Pilon, considerado um marco da arquitetura Moderna em São Paulo, se justapõem várias memórias.

Sala da Biblioteca

 

“O imaginário de Vilela, forjado na belicosidade da ditadura, encontra ecos no mundo pré-guerra, com as touradas de Lorca ou as urgentes questões do mundo contemporâneo. Conflitos passando por Iraque, Síria, ou Turquia… Seus trabalhos representam um chamamento de fúria e desejo, de atenção e movimento em direção ao desconhecido”, diz Rodrigo.

 

Vilela trabalha carvão, nanquim e óleo sobre papel e tecido com força particular, como se esses materiais lhe permitissem dizer o que quer. De repente uma lembrança, de repente um grito.

Na instalação Coleção 1968/73, de 2014, apresentam-se cento e dez livros de aço. Eles possuem, em seu interior, publicações censuradas pela ditadura e o manual de tortura Kubark, do Exército estadounidense, utilizado nos treinamentos de oficiais brasileiros, apresentam marteladas e cortes, como reatualizando o trauma interior.

Nem tudo é culpa nossa

Charles Cosac, fundador de uma das mais importante editoras de cultura e arte contemporânea no Brasil, a Cosac Naify, atual diretor da Biblioteca Mário de Andrade, escreve na abertura do catálogo da exposição sobre o título de Nem tudo é culpa nossa.

 “A força da obra de Vilela me dá a triste certeza de que fizemos praticamente tudo errado. Mas o torpor desse sentimento já não nos fere nem amua. De tão bruto, incisivo e exclusivo, acaba nos redimindo, fazendo acreditar que nem tudo é culpa nossa. Narrativa em preto e branco de uma sociedade sombria repleta de contradições, desigualdades e violências, sua obra parece refletir o sentimento de uma comunidade vulnerável, mas verdadeira. Não por acaso, dialoga concretamente com o entorno da Biblioteca, nossa Praça Dom José Gaspar. Esta que é registro fiel, hoje, da cena urbana paulistana”.

Visite!!


Serviço
27/11/2018 a 24/02/2019
Biblioteca Mário de Andrade
Rua da Consolação, 94 Centro
bma.sp.gov.br  

 

Boicote Internacional à Bienal de São Paulo

ENQUANTO O ARTISTA QUISSAK JÚNIOR ERA AMEAÇADO DE PRISÃO PELA OBRA BANDEIRA NACIONAL, O AMERICANO JÁSPER JOHNS RECEBIA O PRÊMIO DE PINTURA, COM FLAGS, NA MESMA 9a BIENAL DE SÃO PAULO

C

omo uma ditadura pode modificar a fisionomia cultural de um país? O Brasil já experimentou desse veneno com o Golpe de 1964, quando o regime militar passa a ditar normas para todos os setores da sociedade e, as artes plásticas não fogem à regra.

Um dos torpedos é desferido na Bienal Internacional de São Paulo, em sua edição de 1967/1968, quando minutos antes da inauguração, a Polícia Federal retira a obra de Cybele Varela por julgá-la “ofensiva” às autoridades. O jovem artista Quissak Júnior é ameaçado de prisão por seu trabalho, cinco óleos sobre tela, moduláveis, representando a bandeira brasileira. Contrapondo-se a essa proibição, os Estados Unidos, com a maior sala na exposição, o Ambiente USA: 1957/1967, exibiram a bandeira americana em Three Flags, de Jasper Johns, um dos Prêmios Bienal de São Paulo, ao lado de César, Cruz Dias e Pistoletto.

Na edição seguinte, com a promulgação do AI5 (Ato Institucional no 5), a situação piora. O crítico Mário Pedrosa é ameaçado de prisão, assim como Mário Schenberg. Muitos intelectuais saem do País e outros são exilados.

No Rio, a polícia invade o MAM e fecha a exposição que reunia as obras dos brasileiros que participariam da 6a Bienal de Paris. O ministro das relações exteriores, José de Magalhães Pinto, em artigo publicado pela Folha de S. Paulo, dizia que as obras continham mensagem contra o regime e “pretendiam incompatibilizar o governo com a opinião pública”. Diante da repressão a participação dos brasileiros se restringe às áreas de arquitetura, urbanismo e música.

Nesse ano de 1969 a Bienal de São Paulo sofre seu maior revés, o “boicote internacional”, que começa com os artistas brasileiros e transcende as fronteiras, chegando aos Estados Unidos, França, México, Suécia e Holanda, onde muitos artistas aderiram ao movimento. Na Europa, a ação era liderada pelo crítico francês Pierre Restany, amigo de Mário Pedrosa, que na reunião no Museu de Arte Moderna de Paris, declara: ”O protesto cultural toma aqui uma súbita expansão, e isto é somente o início”. A petição de boicote contou com 321 assinaturas e teve adesão de Pablo Picasso. Pontus Hultem, sueco, um dos mais  atuantes críticos na época, responsável pela formulação do conceito do Beaubourg, de Paris, foi um dos militantes do movimento. O manifesto chegou a Nova York, com artigo no New York Times, criticando a censura brasileira nas artes. No Itália, o Corriere della Sera publicou: ”A Bienal está em perigo por causa da situação política do Brasil”. Eduard de
Wilde, diretor do Stedelijk Museum, de Amsterdã, foi um dos primeiros a aderir ao boicote e a Holanda, o primeiro país a se retirar e o último a voltar ao Ibirapuera.

Enquanto o artista Quissak Júnior era ameaçado de prisão pela obra “Bandeira Nacional”, o americano Jásper Johns recebia o prêmio de pintura, com “Flags”, na mesma 9a Bienal de São Paulo

Fora dos muros da Bienal de São Paulo, os artistas também militavam. Em 1967, Nelson Leirner e Flávio Motta, com humor e críticas veladas, fazem grandes de bandeiras de tecido, impressas em serigrafia, com imagens de literatura de cordel, futebol e carnaval, e vendem no cruzamento av. Brasil com rua Augusta, em São Paulo. Ambos são confundidos com ambulantes e as bandeiras confis cadas. No mesmo ano, Antonio Henrique Amaral lança o álbum de xilogravuras O meu e o Seu, com forte sátira aos militares. A partir de 1968, com a edição do AI-5, artistas utilizam metáforas alusivas ao regime. Cláudio Tozzi, além do painel Guevara Vivo ou Morto, trabalha a série Parafusos, referência à dura realidade vivida pelos brasileiros na época. Em 1971, Tomoshige Kusuno, convidado da II Bienal de Antuérpia, é proibido de fotografar sua obra ambiental no gramado próximo ao pavilhão da Bienal, considerada pelos militares “ocupação de área de segurança nacional, pela proximidade ao quartel”.

S/T, Claudio Tozzi, 1971. Liquitex Sobre Duratex, 115x104cm

Apesar da marcação sob pressão, os artistas às vezes conseguiam driblar os censores. No Salão Nacional de 1971, o mais importante da época, Antonio Henrique Amaral, recebe o prêmio Viagem ao Exterior, com a série Brasiliana, telas de grande formato, com forte crítica ao regime, tendo bananas como tema. Regina Vater também recebe o mesmo prêmio com a série Nós, de 1972.

Quem viveu este período, com certeza, não quer ver a história se repetir, muito menos os artistas plásticos que, ao longo da história, são alvo constante de qualquer regime de exceção.

Silêncio e apagamento em torno do AI-5

Antonio Dias, The Last Bedroom , 1968, óleo sobre tela, plástico, 61 X 50 cm, Coleção Marta e Paulo Kuczynski

OBRASIL TEM UM ENORME PASSADO PELA FRENTE”: a frase de Millôr Fernandes nunca pareceu mais atual e resume com precisão a sensação de parte significativa do público que se reuniu na última semana de outubro no Instituto Tomie Ohtake para debater o futuro do País, às vésperas da eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República. O encontro, organizado em torno da exposição “AI-5 – Ainda não terminou de acabar”, desempenhou uma dupla e profundamente conectada missão: discutir o conteúdo da exposição em cartaz no centro cultural até o último dia 4 de novembro e ao mesmo tempo atualizar essa reflexão até os dias de hoje, evidenciando os nexos entre a herança do período ditatorial e o retrocesso repressivo vivenciado na atualidade.

Mais uma vez, constatou-se que o silêncio e o apagamento em relação aos feitos no período da ditadura são profundamente responsáveis pelo retorno virulento de políticas de negação dos fatos históricos, de hostilidade em relação a práticas culturais que se propõem a expor as feridas do passado e do presente, e pelas tentativas crescentes de forjar narrativas que reconstroem e modifi cam esse passado, transformando as vítimas em algozes e os algozes em heróis. Estudantes, artistas, críticos e editores presentes na Assembleia foram unânimes em concordar que o silêncio é o principal responsável por
esse fantasmagórico renascimento das ações repressivas. E não apenas em relação ao passado mais recente. Tal fenômeno se repete em processos históricos mais longos,
como a escravidão e o genocídio indígena, negados por não terem sido devidamente expurgados. Esse diagnóstico compartido repete de certa forma aquele já esboçado na
exposição “Osso”, realizada no mesmo espaço também com curadoria de Paulo Miyada e que é assumidamente o ponto de partida da mostra sobre o AI-5.

O desejo de refletir sobre esse momento terrível da história brasileira, de suspensão de direitos e perseguição política por parte do aparelho de Estado, não é fruto apenas do aniversário de 50 anos do Ato Institucional n.o 5, mas sim da sensação de que era preciso tratar dessas questões latentes. Ele nasce tanto da experiência de reunir obras contemporâneas interessadas em lidar com esses fantasmas como do esforço em criar um espaço de reflexão simbólica sobre a violência social intensa no país. “Osso” – tanto a mostra como o debate que suscitou – unia duas pontas importantes: a expressão artística de questões sociais e políticas e a denúncia em relação a um caso específico de injustiça contra Rafael Braga, enquadrado injustamente na lei anti-terrorismo por carregar produtos de limpeza.

Tal esquecimento negociado não ocorreu em países como Argentina e Chile. Ao invés da anistia “conciliadora”, os países vizinhos julgaram e encarceraram aqueles que tomaram o poder pelas armas. E continuam nesse movimento de expurgo, como comprova o atual processo encaminhado no Chile contra os militares envolvidos numa ampla rede de corrupção. Do ponto de vista da arte, o paralelo é o mesmo. Enquanto o que se viu no
Brasil foi um silenciamento em relação à produção mais crítica dos anos 1960, o predomínio de uma postura de autocensura institucional e o menosprezo por essas ques-
tões no período posterior, nos países vizinhos houve um esforço – tanto institucional como da sociedade civil – para instituir memoriais capazes de transmitir à população os feitos trágicos do período militar. É bem verdade que temos em São Paulo o Memorial da Resistência, mas seu alcance e dimensão ficam muito aquém da gravidade dos fatos sobre os quais se debruçam.

Os memoriais têm sentido para além do campo simbólico. São ações efetivas que impedem o apagamento da memória, mas são também testemunhos de como a arte é vital para a elaboração desses traumas. O projeto desenvolvido por Nuno Ramos para o Parque de la Memória, em Buenos Aires, e que ainda está por ser construído, parece tocar com precisão no nervo dessa questão da visibilidade/esquecimento. A proposta, uma das 18 vencedoras do concurso realizado em 2000 envolvendo mais de 600 projetos de 44 países, é ao mesmo tempo singela e contundente: o artista propôs recriar parte do “Olimpo”, temido centro de tortura da capital argentina, porém invertendo sua aparência arquitetônica. Aquilo que é opaco, como as paredes, seriam feitos em vidro, enquanto as aberturas, como
portas e janelas, passariam a ser de mármore negro, explicitando assim o caráter oculto e terrível das perseguições do regime.

Autor de algumas das obras mais contundentes sobre a situação social e política do país, como 111 – trabalho que se debruça sobre a chacina do Carandiru, em 1992 –, Nuno se diz assustado com a “loucura discursiva” que vivemos no País. Sua resposta a essa violência veio na forma de uma série de performances, trabalhos quase teatrais, desenvolvidos nos últimos meses. Essas apresentações, que entrelaçam discursos, narrativas televisivas, debate político, tragédias (como “Antígona”) e alegorias (como “Terra em Transe”) estão disponíveis no youtube. “Momentos muito agudos trazem reflexões mais imediatas”, diz o artista, enfatizando a importância de lidar com as coisas no calor da hora, expressa no título “Aosvivos”, que dá nome a trilogia das peças.

Talvez o aspecto que mais assuste Nuno seja o insuportável grau de violência de nossa sociedade, “essaviolência anônima, contra o anônimo”. “Matam 63 mil pessoas por ano, com índices sempre crescentes, passando pelos vários governos, e a gente tolera”, lamenta. No entanto, ele pondera que não devemos deixar a arte levar a culpa, acreditar que por causa do acirramento das tensões ela deveria tomar para si o papel de responder sempre aos acontecimentos. “Arte tem que ser boa, como for”.

Resgate

Voltar atrás e rever esses movimentos esque- cidos pelas instituições, pela crítica e pelo circuito artístico é algo vital, se quisermos encontrar caminhos que bloqueiem aqueles que defendem o fim do caminho democrático no País. Nesse sentido, a exposição AI-5 pinça na nossa história recente dois projetos de grande importância – simbólica e conceitual – que merecem ser reavaliados nos dias de hoje, quando buscamos novas saídas. O primeiro deles é o plano elaborado por Mario Pedrosa para o novo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, depois que este foi destruído pelo fogo em 1978 (qualquer semelhança com o caso do Museu Nacional não é mera coincidência). Logo após o desastre, Pedrosa sugere reestruturar o museu em torno de cinco eixos vitais para a compreensão da arte brasileira, com núcleos dedicados às artes negra, indígena, popular, do Inconsciente e contemporânea. O segundo é a tentativa liderada por Aracy Amaral de reorientar a Bienal de São Paulo, transformando-a numa espécie de polo latino-americano, capaz de estimular a troca, a produção e a exibição da arte regional como forma de fortalecimento político e cultural. Ambos não saíram do papel, mas são – juntamente com o resto da produção de seus autores – fontes vitais de realimentação nesse processo de resgate de modelos capazes de orientar o processo de resistência diante das tentativas de esfacelamento da cultura nacional.