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Recomendações de leitura

Foe  J.M.Coetzee Tradução de José Rubens Siqueira, Companhia das Letras, 144 páginas

 

A Biografia de Elizabeth I, contos e ficção compõem as recomendações de leitura da Série Imperdíveis. Confira.

Recomendações de leitura

Fim da História

Lydia Davis, Tradução de Julián Fuks, José Olympio, 210 páginas

Uma mulher tenta escrever um livro ao mesmo tempo que junta pedaços de memória do amado, também escritor, 12 anos mais novo, que conhecera na faculdade em que dava aulas. A dificuldade em pôr fim à sua obsessão coincide com a dificuldade em terminar o livro.

O Fim da História, Lydia Davis, Tradução de Julián Fuks, José Olympio, 210 páginas

TRECHO 
“Eu não era com ele a mesma que era com outras pessoas. Tentava não ser tão determinada, tão ocupada, tão apressada quanto eu era sozinha e com amigos Tentava ser gentil e silenciosa, mas era difícil, e isso me confundia. Também me exauria.”

A AUTORA
Vencedora do Man Booker International Prize 2013, a norte-americana Davis é uma das melhores contistas de nossa época. Publicou seis livros de narrativas breves. Este é seu único romance. Ela também é tradutora de Proust e Flaubert.

A Definição do Amor

Jorge Reis-Sá, Tordesilhas, 253 páginas

Ligada a uma máquina no leito de hospital após sofrer um AVC, Suzana está grávida de 12 semanas. Francisco, seu marido, decide não interromper a gestação e escreve um diário de luto enquanto espera o nascimento do bebê. Num estilo poético e fragmentado, lembra da vida de casado e tenta imaginar o futuro sem a amada.

TRECHO 

A Definição do Amor
Jorge Reis-Sá, Tordesilhas, 253 páginas

“Nego o lado vazio da cama. Olho-o e não o vejo. Pego em almofadas do armário e, colocando-as por debaixo dos lençóis, tapando-lhes a cabeça como tantas vezes ela se fez depois de pousar a leitura, mantenho a luz acesa para a saber ao meu lado, impedindo-me de dormir.”

O AUTOR
O português Jorge Reis-Sá tem formação em biologia. Lançou os poemas de Instituto de Antropologia, o livro de contos Terra e os romances Todos os Dias e O Dom.

 

Foe 

J.M.Coetzee, Tradução de José Rubens Siqueira, Companhia das Letras, 144 páginas

Após um motim que a obriga a abandonar o navio, Susan Barton consegue chegar a uma ilha, onde encontra um homem chamado Cruso e seu escravo Sexta-Feira. De volta à Inglaterra, busca o escritor Daniel Foe para que ele conte, em livro, sua história. Só que Foe, para sua aflição, não tem muito apego aos fatos.

Foe 
J.M.Coetzee
Tradução de José Rubens Siqueira, Companhia das Letras, 144 páginas

TRECHO 
“Digo a mim mesma que converso com Sexta-Feira para educá-lo, para que saia do escuro e do silêncio. Mas será verdade? Há momentos em que a benevolência me abandona e uso palavras apenas como o meio mais curto para sujeitá-lo à minha vontade.”

O AUTOR
Vencedor do Nobel de Literatura em 2003, o sul-africano Coetzee, de 76 anos, ainda ganhou dois Man Booker Prize. Publicou mais de 20 livros, entre romances, ensaios, crítica literária e memórias.

 

 

Elizabeth I: Uma Biografia
Lisa Hilton, Tradução de Paulo Geiger, Zahar, 399 páginas

TRECHO 

Elizabeth I: Uma Biografia
Lisa Hilton, Tradução de Paulo Geiger, Zahar, 399 páginas

“Quando a princesa infanta Elizabeth acordou no berçário, toda a paisagem de sua infância tinha mudado de forma imperceptível, mas irrevogável. Sua mãe, a rainha Ana, morrera na manhã anterior (…), a cabeça arrancada do corpo pela lâmina oscilante de um espadachim francês”

A AUTORA
A inglesa Hilton estudou História da Arte em Florença e Paris. Tem vários livros publicados e colabora para The New Yorker, The TimesVogue e BBC History Magazine.

O ovo da serpente e a reascensão da extrema-direita

Plínio Salgado, o chefe integralista, fala a seguidores no Rio de Janeiro. Foto: Arquivo Público e Histórico de Rio Claro

Eles começaram a ser chamados de “galinhas verdes” pela cor da camisa e a rapidez com a qual se dispersaram de um confronto com integrantes da Frente Única Antifascista na Praça da Sé, em São Paulo, em outubro de 1934. Eram seguidores do paulista Plínio Salgado, criador da organização inspirada no fascismo italiano, a Ação Integralista Brasileira. O conflito, conhecido como Revoada dos Galinhas Verdes, deixou um rastro de sangue. Morreram seis guardas civis e o estudante de Direito Décio Pinto de Oliveira, da Juventude Comunista. Não é, portanto, a primeira vez que a extrema-direita assombra o Brasil.

O legado da extrema-direita

Naquele tempo, o país contava 40 milhões de habitantes. Estima-se que um milhão tenha aderido às fileiras do integralismo, sob o lema “Deus, Pátria e Família.” Apropriaram-se de símbolos nacionais, como a bandeira verde e amarela. Além disso, a inscrição do sigma, letra grega que representa soma, em outra bandeira e na manga esquerda da camisa verde. A saudação integralista remetia ao movimento fascista crescente na Europa: com o braço direito levantado e a mão espalmada, bradavam a expressão Anuaê! Do tupi, “Você é um irmão!”

Lançado dois anos antes do conflito da Praça da Sé, o movimento ganhou adesões de peso, como o jurista Miguel Reale. Seu filho, Miguel Reale Júnior, foi um dos autores do pedido de impeachment de Dilma Rousseff. Oito décadas atrás, a família já circulava no entorno dos poderosos. O plano do chefe dos integralistas era ser presidente da República e suceder a Getúlio Vargas no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Em campanha, defendia o nacionalismo, o corporativismo e o combate às organizações sociais baseadas no socialismo.

Candidato às eleições previstas para 1938, Plínio Salgado soube nos bastidores da política que Getúlio preparava um golpe para continuar no poder. De olho em um posto de ministro no futuro governo, promoveu um desfile de milhares de integralistas diante do Palácio do Catete. A intenção era demonstrar força e apoio ao presidente. De uma janela do 2º andar do palácio, Getúlio distribuiu sorrisos e acenos, em 1º de novembro de 1937. Nove dias depois, decretou o Estado Novo e colocou o integralismo na ilegalidade. Mais seis meses e um comando armado integralista atacou o palácio, com a intenção de depor Getúlio na marra. Não deu certo. Plínio Salgado passou um tempo escondido e depois partiu para o exílio em Portugal. Naquela ocasião, o fascismo foi barrado pelo golpe do Estado Novo. Agora pode ser impedido nas urnas.

 

Museu Bispo do Rosário garante sua existência

Manto de Arthur Bispo do Rosário é colocado em bolha para desinfestação em método para dedetizar sua obra. FOTO: Divulgação

Localizado em Jacarepaguá na zona Oeste do Rio de Janeiro, o Museu Arthur Bispo do Rosário Arte Contemporânea, anteriormente nomeado Nise da Silveira, hoje é uma referência para a arte contemporânea. Ele ocupa um espaço dentro de do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, antigamente conhecido como Colônia Juliano Moreira.

Conhecida historicamente como um local que abrigou pessoas consideradas “desviadas” da sociedade, a instituição recebia internos com problemas psiquiátricos, além de alcoólatras e dependentes químicos. Marginalizadas pela sociedade e negligenciadas com o preconceito que sofriam no século XX, essas pessoas eram levadas para lá, onde ficavam isoladas do mundo externo.

No início da década de 50, foi criado um núcleo para abrigar as produções artísticas dos internos da Colônia. Muitos passavam parte do tempo se dedicando às atividades oferecidas pelo segmento de arteterapia.

Um dos pacientes da Colônia foi Arthur Bispo do Rosário, portador de esquizofrenia paranoide (segundo sua primeira ficha de internação), que dedicou-se com prazer a seu fazer artístico. Desde então, muito aconteceu em torno de sua figura. Teve seus trabalhos registrados em reportagens e documentários, mas só em 1982 teve peças expostas fora da Colônia, no MAM do Rio, com curadoria de Frederico Morais.

Após sua morte, em 1989, realizam-se várias mostras com obras do artista, dentro e fora do Brasil. Arthur, inclusive, representa o Brasil na 46ª Bienal de Veneza. E, em 2002, o espaço museológico dentro da Colônia passa a ter seu nome. Em 2012, se torna um dos principais artistas convidados da 30a Edição da Bienal de São Paulo, com cerca de 300 peças espalhadas em 300 m2.

 

Bispo tornou-se um dos grandes símbolos da reforma psiquiátrica e da luta anti-manicomial no Brasil, pela integridade e defesa dos pacientes com transtornos.

Curador do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea desde 2014, Ricardo Resende encontrou, com muito entusiasmo, um desafio pela frente ao assumir o cargo: “O meu trabalho tem sido de uma conscientização da instituição de uma necessidade e da importância de preservarmos e conservarmos o trabalho do Bispo”. Por conta dos materiais usado pelo artista, a obra é de caráter bastante vulnerável. Ricardo já teve, durante a carreira, experiências com instituições que se encontravam em estado precário, como o Museu de Arte Contemporânea, quando funcionava no prédio da Bienal, e o MAM-SP, antes de ser presidido por Milú Vilella.

O curador conta que desde que a obra foi trazida da cela de Bispo, em 1989, para uma exposição, nunca houve uma intervenção que cuidasse de sua preservação com tal intensidade como essa realizada desde 2017. De uns anos para cá, a equipe começa um trabalho de readequação da reserva técnica, onde ficam guardados os trabalhos, para que existissem condições ideais de conservação dos objetos. Ricardo ressalta o total apoio e condições dados por Raquel Fernandes, diretora do museu desde 2013, para que todo o trabalho começasse a ser realizado.

A obra do Bispo reúne centenas de objetos feitos de madeira, tecidos, plásticos e fios, que deram lugar a uma quantidade insetos. A desinfestação e higienização da obra começou em 2016, passando por um processo de construção de uma bolha hermeticamente fechada, na qual se mantém apenas o hidrogênio, tirando o oxigênio. “O processo consiste em asfixiar todos os seres viventes que possam existir na obra. Isso levou um ano”, conta Resende. Todas as 804 obras de Bispo, que constituem o acervo, passaram por essa técnica de desinfetação e higienização.

Ao mesmo tempo, aproveitou-se para iniciar um trabalho de catalogação de todo o acervo, feita pela própria equipe do museu, com coordenação de Christina Penna, que foi também responsável pela catalogação de Portinari. No momento, comenta Ricardo, o acervo consolidado já foi catalogado, mas ainda falta um material residual, que era desconhecido, e também estava na reserva técnica do museu. Além disso, toda a obra de Bispo foi fotografada por Rafael Adorján.

Patrocinadores

Esta sucessão de processos dará origem ao catálogo raisonné de Arthur Bispo do Rosário, que será impresso graças ao apoio dado pela Galeria Almeida e Dale  ao museu. “Eles nos proporcionaram à verba necessária para garantir o processo de catalogação e também assumiram o compromisso de imprimir o catálogo para nós”, diz o curador.

Além da novidade do catálogo raisonné, o museu que vinha tendo o apoio da Fundação Marcos Amaro na readequação da reserva técnica, com o objetivo de chegar a um padrão ideal de preservação e conservação e na renovação museográfica das salas expositivas, recebe hoje um novo patrocínio necessário para a reforma do Pavilhão Ulisses Viana, onde encontra-se a cela que Bispo viveu e desenvolveu grande parte de sua obra.

“Marcos Amaro agora está nos dando o aporte para que façamos a recuperação do pavilhão onde se encontra a cela do Bispo do Rosário, onde ele produziu grande parte de sua obra. Recentemente, descobrimos que a cela onde ele viveu foi toda  desenhada”, comenta Resende. Com esta descoberta, o local precisará passar por um processo de restauração retirando camadas de tinta pra revelação das obras.

As paredes da cela onde Bispo era mantido durante a internação guardam vestígios de sua passagem por lá. FOTO: Divulgação

O prédio terá reforma desde o telhado até a parte elétrica, tornando-se visitável para ser aberto ao público. O curador ainda conta que, com a recuperação do pavilhão onde Arthur foi mantido, existe um desejo de que o museu seja transferido para lá, dando uma ambientação melhor para a obra. [Com relação a importância desta iniciativa leia texto do Professor Dunker]

Firmando um histórico de colaborações a instituições e artistas, a Fundação Marcos Amaro (FMA) já apoiou também, este ano, a artista Brígida Baltar com o Prêmio de Arte Marcos Amaro, na SP-Arte. A artista da Galeria Nara Roesler recebeu 25 mil reais e teve a obra Venho do Mar (2017) adquirida pela instituição. No final de setembro, a FMA decidiu não apoiar apenas um artista com o prêmio aquisição em parceria com a ArtRio, mas sim um projeto. A contemplada foi a coletiva AMIGO EAV 2018.2, com curadoria de Bernardo Mosqueira, da Escola de Artes Visuais do Parque Lage.

O apoio ao museu Bispo do Rosário é o primeiro grande apoio da FMA a uma instituição, conta a diretora geral Raquel Fayad. Ela classifica a iniciativa de ajudar com o aporte necessário como algo “primordial”, considerando a grandeza de Bispo. Ela também destaca que esse é um dos papeis que a FMA procura cumprir: “Nós entendemos que não somos apenas nós que estamos desenvolvendo, mas que também precisamos criar uma rede de museus que necessitam de recursos para atingirem as condições ideais museológicas e museográficas de funcionamento”, ressalta.

Tombamento

Para manter a equipe do museu, a instituição conta com verba pública vinda da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Além disso, após ter dois pedidos de tombamentos negados (pelo INEPAC e pelo Iphan do RJ), o museu finalmente conseguiu que o acervo fosse tombado, agora pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan Nacional), em setembro passado.

 

Arquitetura e Espaço: a Soberania da Imagem

Reconstituição das Celas

[Este é o quarto texto de uma serie de sete, elaborados pelo Professor titular em Psicanálise e Psicopatologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP, Christian Dunker, que estamos publicando semanalmente. Sobe o título A Educação do Olhar e a Leitura de Imagens –  Desafios Éticos para os Museus“, já abordamos

1] Curadoria como sistemas simbólicos em conflito,
2] Forma estética e contradição social 
3] Formalização e Temporalidade

Resumo

Pretendo mostrar como as práticas de mediação convidam ao encontro com a obra como experiência de leitura reconstrutiva. Este processo pode ser entendido como experiência ética de reconhecimento, envolvendo forma estética e contradição social. A função ética do discurso, concentrada na noção de letra determina modos de relação com a obra que são também modelos de relação intersubjetiva com o outro. Apresento este tema a partir de sete desafios éticos para os museus contemporâneos.

4. Arquitetura e Espaço: a Soberania da Imagem

 Oimpacto da vida digital tem uma relação sincrônica e contemporânea com a reformulação do lugar social dos museus. Mais do que nunca é preciso pensamento museológico para mostrar que o contemporâneo não é transparente e imediato a nós mesmos. O contemporâneo só se obtém pelo trabalho de recriação do passado, como um passado possível para um futuro contingente. É este trabalho, que cria o contemporâneo como não idêntico a si mesmo e não redutível ao “isso tudo que está aí”, como totalidade coerente e harmônica ou desarmônica, tanto faz.

 A experiência digital não acontece toda de uma vez, em todos as posições, assim como o capitalismo não é o mesmo em todos os lugares. O relógio da história não marca a mesma hora em todos os seus quadrantes.

Neste “novo tempo” convém lembrar que museu não é só curadoria, ele se torna mais do que nunca arquitetura e ambiência.

Isso acontece, talvez, pelo alto nível de profanação da imagem que as novas telas impuseram à nossa relação com a imagem. Virtualmente todo conteúdo de todos os museus está “disponível” em escala reduzida e miniaturizada das telas de computadores, telefones e assemelhados. Isso não é só uma questão de escala, mas também de experiência do espaço, e de compartilhamento intersubjetivo, da relação com a imagem. Posso apreciar o Louvre sentando em meu vaso sanitário, ou melhor, diante de uma réplica perfeita do urinol de Duchamp. Posso ter todo Gugenheim ou Moma em meu próprio banco do parque, que não é Giverny. Posso decidir inclusive que aquela experiência acabou, simplesmente fechando a tela: ”Sou o senhor do meu tempo e o soberano doador de meu olhar, na duração que melhor me aprouver, sem que ninguém tenha o direito de perturbar esta experiência solitária”. Parodiando Primo Lévi: “É isto um museu?”.

Andando pelo Carré des Arts (1993), da pequena cidade francesa de Niemes, projetado por Norman Foster, em frente a um templo grego, percorrendo a arquitetura de Renzo Peano para o Instituto de Arte de Chicago (2009) ou o Museu Gugenheim de Bilbau (1992), de Frank Ghery, percebe-se uma consciência de que a experiência com a imagem precisa ser reinventada como experiência de circulação, como espaço público que modifica a concepção tradicional de enquadre. Lembremos a tese de John Berger em “Modos de Ver”, a forma pintura a óleo nasce como uma espécie de reapossamento de si, como retrato, como reapossamento da experiência da natureza perdida, ou da história ancestral e mítica, que define a tela como a moldura de um cofre. Os modos modernos de ver tem relação direta com os modos de possuir. Por isso os novos espaços museológicos precisam inventar novos modos de possuir e no limite criticar as formas estéticas pelas quais nos achamos senhores e possuidores da imagem, quando a verdade de alienação, articulada pela gramática de nossa fantasia, é que são as imagens que nos possuem. Essa teria sido a tese de Lacan e também de Foucault, em suas leituras divergentes sobre “As Meninas de Velásquez”.

Ainda não se entende muito bem porque no Brasil, a experiência do Museu da Resistência permanece tão excepcional, e o museu da escravidão não sai do papel. Sincrônico com o fato de sermos o último país latino americano a ter instituído uma comissão da verdade para investigar os crimes da ditadura civil-militar.

Fachada do Museu da Resistência em São Paulo
Reconstituição das Celas

Não seria a emergência de uma cultura de ódio no passado recente brasileiro, também derivada da carência de recursos de memória e de reconstrução de experiências traumáticas, que, como sabemos uma vez não elaboradas tendem a retornar com efeitos de repetição e violência piores e mais devastadores, porque desgarrados no tempo. É a intrusão do passado no presente sem a mediação do futuro. É a repetição do passado da violência de Estado com a mesma sanção e tolerância, mas agora dirigido ao assassinato de jovens negros de periferia, por exemplo.

Temos aqui dois exemplos importantes: o Museu do Holocausto de Berlim, que procura reconstruir a experiência sombria dos campos de concentração, com sua arquitetura vertical e opressiva, com suas rampas desequilibradoras, mas também no diálogo desta ambiência com a máquina que re-escreve automática e interminavelmente a Torá hebraica.  Assim a obra separa e contempla esta contradição que é o tratamento do humano como coisa, como máquina e sua recuperação, que pode se também mecânica, reproduzindo na forma o que o conteúdo quer esquecer.

Outra estratégia para o problema da recolocação da imagem é o museu do Apartheid em Johanesburg, África do Sul. Um museu que proíbe fotos de qualquer área interior. Logo na bilheteria somos sorteados: “brancos” ou “não-brancos”. E a entrada é bífida para cada qual, gradeada e inacessível para quem está do outro lado, somos levados ao desconforto imediato de que “estamos perdendo algo”, concomitante com a realização de que o  outro também está perdendo algo simplesmente por estar no outro corredor.

O museu não é todo assim, mas esta preparação, reduzida a uma breve experiência com a discriminação educa o olhar e introduz uma leitura de tudo que se seguirá pela sua apropriação corporal, movida pelo instante de desempatia radical.

 

 

 

Dicas de leitura

dicas de leitura
A Loucura dos outros, Nara Vidal

Por Vivian Mocellin

As relações interpressoais, amor e desespero, histórias breves, lendas, anedotas da Antiguidade greco-latina e Revoluções. Confira as dicas de leitura da ARTE!Brasileiros.

Esferas 1 – Bolhas

Peter Sloterdijk, Tradução de José Oscar de Almeida Marques. Estação Liberdade, 576 páginas

Neste primeiro volume da trilogia Esferas, Sloterdijk retoma a investigação sobre o homem e sua relação com o outro e seu entorno. Para ele, a qualidade dos espaços íntimos estabelecidos entre as pessoas (como entre mãe e filho) é essencial para recuar ou entrar no mundo.

Peter Sloterdijk, Esferas 1 – Bolhas

TRECHO 

“Como o conhecimento sempre leva de volta a casa e, consequentemente, evoca o nascimento ou revela pela primeira vez seu sentido, os heróis que regressam devem lutar mais uma vez com o dragão à entrada do portal materno.”

O AUTOR 

Mago da filosofia contemporânea, o alemão Peter Sloterdijk (1947) é reitor da Universidade Superior de Design, em Karlsruhe, e autor de diversos livros – Crítica da Razão Cínica, de 1983, lhe deu fama.

O Livro das Coisas Estranhas

Michel Faber. Tradução de Simone Campos, Rocco, 528 páginas

O missionário Peter Leigh se junta aos colonizadores do distante planeta Oásis, habitado por seres dóceis, mas de aparência perturbadora. Sua missão é continuar o trabalho de evangelização dos alienígenas. Enquanto isso, na Terra, as catástrofes assumem proporções cada vez maiores.

dicas de leitura
Michel Faber, O livro das coisas estranhas

TRECHO 

“Aquele rosto não se parecia em nada com um rosto. Era uma enorme casca de noz aberta, róseo-esbranquiçada. Ou não: parecia-se ainda mais a uma placenta com dois fetos – talvez gêmeos aos três meses de gestação, cegos e calvos – aninhados cabeça com cabeça, joelho com joelho.”

O AUTOR 

Criado na Austrália, o holandês Faber lançou oito livros, dentre eles Sob a Pele, adaptado para o cinema com Scarlett Johansson no papel principal.

A Filha Perdida

Elena Ferrante, Tradução de Marcello Lino, Intrínseca, 176 páginas

Com as filhas crescidas indo morar com o pai no Canadá, Leda vai descansar no litoral sul da Itália. Lá ela se envolve com uma jovem mãe e sua filha pequena, o que desencadeia uma série de lembranças de sua infância infeliz e de suas frustrações na vida adulta como mãe e esposa.

dicas de leitura
Elena Ferrante, A filha perdida

TRECHO 

“Observei-a voar rumo ao asfalto e senti uma alegria cruel. Enquanto ela caía, pareceu-me um ser asqueroso. Fiquei apoiada na grade não sei por quanto tempo olhando os carros que passavam em cima dela, trucidando-a. Depois percebi que Bianca também observava, ajoelhada.”

 A AUTORA 

Usando um pseudônimo, a autora italiana virou um fenômeno de vendas e crítica, notadamente com sua tetralogia napolitana, iniciada com A Amiga Genial.

A Loucura dos Outros

Nara Vidal, Reformatório, 136 páginas

22 mulheres e suas histórias de amor e desespero. Cada conto traz o nome de uma delas. Ifigênia, um divertissement de terror, é o único que foge ao realismo. No mais, incesto, traições e suicídio assombram as personagens, que a autora trata, no entanto, com toques de humor.

Nara Vidal, A Loucura dos outros

TRECHO 

“Como foi parar ali, naquela maternidade? (…) Nunca quis cuidar de ninguém. Nunca pediu pra segurar bebezinho em hospital. Tinha medo de quebrar, porque a vontade era de soltar os braços e ver cair no chão mais um rebento por quem ela sentia completo desprezo.”

A AUTORA 

Mineira, Nara é formada em Letras pela UFRJ e tem mestrado em Artes pela London Met University. Publicou vários infantis. Este é seu segundo livro de contos.

Antologia Fantástica da Literatura Antiga

Marcelo Cid (org.), Ateliê Editorial, 264 páginas

Reunião de cerca de 300 histórias breves, lendas e anedotas da Antiguidade greco-latina. Vai desde Homero, no século VIII a.C., até o século VI d.C.  Entre os demais autores, estão Plutarco, Heródoto, Luciano de Samósata, Sêneca, Platão, Virgílio, Horácio, Ovídio e Plínio, o Velho.

Marcelo Cid (org.), Antologia Fantástica da Literatura Antiga

TRECHO 

“Assim como a aranha no centro da teia sente imediatamente quando uma mosca rompe um fio dela e corre ligeira para aquele lugar, como se lhe doesse a ruptura daquele fio, também a alma do homem, quando ferida alguma parte do corpo, passa apressada para lá.” (Heráclito de Éfeso)

O AUTOR 

Diplomata e escritor, Cid (1975) traduziu do latim a Dialética de Santo Agostinho e publicou, entre outros, o romance Os Unicórnios (7 Letras).

Subjetividade e Verdade

Michel Foucault. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. WMF Martins Fontes, 306 páginas

Registro do curso sobre a vida sexual na Antiguidade, anterior, portanto, à obsessão cristã pela carne. Ministrado pelo filósofo no Collège de France em 1981, parte de sua História da Sexualidade e antecipa O Uso dos Prazeres e O Cuidado de Si, editados no ano de sua morte, 1984.

dicas de leitura
Michel Foucault, Subjetividade e verdade

TRECHO 

“A hipótese de trabalho é a seguinte: é verdade que a sexualidade como experiência não é independente dos códigos e do sistema de proibições. Mas de imediato é preciso lembrar que esses códigos são espantosamente estáveis, contínuos, lentos em se mover.”

O AUTOR 

O francês Michel Foucault (1926-1984) é, seguramente, um dos filósofos mais influentes dos últimos 50 anos, principalmente por seus estudos sobre controle social.

 

33 Revoluções e Cinco Contos

Canek Sánchez Guevara, Tradução de Julián Fuks, Tusquets Editores, 128 páginas

Narrativa sobre o despertar de um jovem cubano, negro, filho de militantes. Morto o pai depois de uma falsa acusação de peculato, a mãe em Madri e separado da mulher, ele se vê às voltas com um cotidiano massacrante; sua fuga são os livros, o sexo eventual e a música de vanguarda.

dicas de leitura
Canek Sánchez Guevara, 33 Revoluções e cinco contos

TRECHO 

“Um concerto de impropérios o mantém em movimento até chegar ao prédio. Suspira diante do elevador encalhado no térreo e sobe com cansaço os sete andares. Em seu apartamento, a solidão o recebe com toda sua nudez e o convida a deitar ao lado dela.”

O AUTOR 

Neto de Che Guevara, nasceu em Havana, em 1974, e morreu na Cidade do México, em 2015. Escritor, músico, fotógrafo e artista gráfico, saiu de Cuba aos 22 anos.

Romance 11 Livro 18

Dag Solstad. Tradução de Kristin Lie Garrubo, Numa Editora, 160 páginas

Burocrata numa cidadezinha na Noruega, Bjorn Hansen questiona a mediocridade de sua vida após duas separações e um filho que nunca vê. Não bastam o teatro, a amizade do dentista ou a literatura de Kafka e Borges. Precisa de algo diferente. É quando põe em ação um plano inusitado.

dicas de leituraTRECHO 

“Sabia o que estava fazendo. Estava plenamente consciente de que, depois de ter vivido com ela por sete anos, sua contribuição mais importante para preservar o relacionamento era uma série de crises de ciúmes simulados. Ele a desvendara. Não tinha ilusões com relação a ela.”

O AUTOR 

Admirado por escritores como Murakami e o conterrâneo Knausgaard, Dag Solstad (1941) é tido como um dos mais importantes autores noruegueses.

O fascismo se infiltra no poder

Foto: Agência Brasil

Texto de Luciano Martins Costa*, originalmente publicado em 07/04/2017

O processo político em curso no Brasil, desde a eleição presidencial de 2014, é um projeto em que o fascismo se infiltra no poder. Dito assim, cruamente, pode parecer um daqueles manifestos que circulavam nos meios universitários e sindicais durante a ditadura militar.

Dirá, então, o leitor ressabiado, que se trata de um exagerado alarmismo, uma vez que não se observam por aí aquelas milícias que precedem os regimes totalitários.

Acontece, porém, que, em toda a história contemporânea, desde as modernas democracias representativas, o fascismo se coloca de forma sutil, pero no mucho.

O fascismo se infiltra no poder

As milícias já foram às ruas, manipuladas pela mais assombrosa campanha de mídia registrada neste lado do mundo. Saíram, bateram panelas, mostraram suas faces rosadas e foram devidamente descartadas, como o são as minorias silenciosas depois de usadas. Agora frequentam apenas as redes sociais digitais.

Entregou-se, então, o poder ao chamado “baixo clero” do Congresso. O que se viu foi a sequência de revelações escapadas como gás metano do esgoto, de uma operação policial cujo objetivo era apenas criminalizar um dos lados da diversidade ideológica – exatamente aquele que poderia conter o domínio do poder central pelo fascismo.

O grupo deposto cometeu certamente seus desatinos, deixou-se engordar deliciosamente com o melaço da corte e fechou os olhos aos sinais evidentes de que havia algo de podre em seus domínios.

Mas o pragmatismo, ah, sempre o pragmatismo, aconselhava à brandura com os seus corruptos, e a presidente foi deposta acreditando que estava sendo vítima de uma “batalha da comunicação”.

O que está em curso não é uma simples batalha: é uma guerra de extermínio contra o projeto de capitalismo com diretrizes sociais experimentado na primeira década deste século.

É curioso observar que até mesmo destacados agentes desse projeto de reversão para o capitalismo “puro e duro”, indivíduos qualificados por décadas de exercício decente de suas atividades como juristas, comunicadores, líderes comunitários ou educadores, seguem candidamente a manada, sem se dar conta de que estão limpando o terreno onde será enterrada toda inteligência.

Como explicar, por exemplo, que um parlamentar declaradamente nazista seja convidado a pregar sua doutrina de violência e intolerância num clube de judeus, provocando risos de simpatia e aplausos entusiasmados? O que é mais significativo? O aplauso dos mentecaptos presentes ou o silêncio daqueles intelectuais da comunidade judaica que se arvoram em gestores da consciência coletiva?

O mais significativo é certamente essa modorra, essa falta de uma ação política nos termos propostos por Hanna Arendt, ou seja, a ação política é inerente à condição humana.

O fascismo é exatamente o lado oposto dessa moeda: a imposição de uma condição humana de submissão por meio da negação da política.

O projeto fascista em curso no Brasil tem poucas possibilidades de se estabelecer no longo prazo, e quem diz isso é o guru dos gestores desse processo, o economista austríaco Ludwig von Mises.

Von Mises defendeu a admissibilidade do fascismo (exatamente como os judeus que aplaudem Bolsonaro), em seu livro intitulado “Liberalismo”.

Mas os leitores de Von Mises costumam omitir que seu guru defende o fascismo apenas como um meio de intervenção por curto prazo “um improviso para fazer face a uma emergência” – nas próprias palavras do autor.

No caso, a “emergência” é a destruição de todos os projetos de intervenção do Estado no campo social, oferecendo o território para privatizações.

O que vem depois é o campo arrasado sobre o qual será preciso construir novamente um projeto de bem-estar coletivo, inclusivo, democrático.

Como a História é plena de ironias, a ironia no caso presente é o fato de que os construtores desse projeto de demolição usam como massa de manobra as classes médias urbanas, manipuladas por uma mídia irresponsável. Que vão pagar o preço dessa aventura.

Essa é uma das razões pelas quais chamamos esses indivíduos de “midiotas”.

*Luciano Martins Costa é crítico de mídia.

 

Sidney Amaral: Entre a afirmação e a imolação

Sidney Amaral, Incômodo, 2014. Obra do acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. FOTO: Isabella Matheus

Falecido em meados de 2017, aos 44 anos, o artista Sidney Amaral tem exposição na Galeria Pilar até 27 de outubro. O MASP realiza, no dia 6 de outubro, palestra sobre o artista com Claudinei Roberto da Silva, intitulada Insurgência, urgência e afirmação na obra de Sidney Amaral.

Leia abaixo artigo de Tadeu Chiarelli sobre o legado do artista.

SIDNEY AMARAL: ENTRE A AFIRMAÇÃO E A IMOLAÇÃO[1]

*Por Tadeu Chiarelli

A arte produzida no Brasil durante o século XIX está repleta de imagens em que o homem negro é representado apenas como força de trabalho, submetido e humilhado em sua condição de escravizado (as obras de Debret (1768-1848), Rugendas (1802-1858) e outros estão aí para referendar esta afirmação). Foram raríssimos os retratos de homens negros captados enquanto indivíduos despidos dessa condição humílima. Tão raros quanto, foram os negros que posaram como personagens mitológicos ou literários.

No primeiro caso destaca-se a obra do pintor José Correia de Lima (1814-1857), autor de Retrato do Intrépido Marinheiro Simão, carvoeiro do vapor Pernambucana[2], 1853. Esse retrato homenageia o marinheiro que teria salvo várias pessoas de um naufrágio na costa brasileira. Esse retrato tem sua importância no campo da história da arte e da cultura do país por ser um dos raros a representar uma pessoa negra fora dos estereótipos do escravizado, captado em uma pose e com uma expressão que o individualiza.

O mito fundador oficial da nação brasileira durante o segundo império – entendida como a união utópica do índio e do branco, sem a presença do negro – foi transferida para a literatura por José de Alencar, romancista ativo na segunda metade do século XIX no Rio de Janeiro. Os principais heróis do seu mais importante romance, O Guarani, eram Peri e Ceci; o primeiro, um indígena que abandona suas raízes para abraçar aquelas portuguesas, com o intuito de desposar Ceci, a segunda personagem, filha de um conquistador branco. Cecy e Pery, s.d., de Horácio Pinto da Hora (1853-1890)[3] é a primeira pintura produzida no Brasil em que se percebe uma inversão consciente desse mito de origem: se Ceci é representada como uma jovem branca, Peri surge na obra como um homem de feições negras embaralhando, assim, o mito construído pelos intelectuais do Império.

Já a partir do século XX, a figura do homem negro vai aos poucos deixando de ser apresentado apenas em situações humilhantes, como escravizado, ganhando forte protagonismo, sobretudo, na obra de Candido Portinari (1903-1963).

Os primeiros autorretratos conhecidos de artistas negros surgem no início do século XX com as pinturas dos irmãos Arthur (1882-1922) e João Timotheo da Costa (1879-1932), de 1908[4]. Durante os anos seguintes, os irmãos da Costa produziram mais autorretratos, assim como outros artistas negros também se dedicaram a esse gênero de pintura.

Nessas obras é notável como os artistas referidos reforçam duas necessidades de caráter identitário: por um lado enfatizam suas relações com a profissão escolhida: são artistas, são pintores, e determinados atributos – a palheta, o pincel, a boina – parecem não querer deixar dúvidas quanto à filiação profissional. Por outro lado, ao mesmo tempo em que investem na representação de suas imagens como uma profissão específica, não deixam de reforçar a subjetividade de cada um deles, por meio da ênfase na expressão sobretudo do olhar.

Entre o tipo e o indivíduo, esses autorretratos parecem buscar a inserção desses profissionais no quadro social brasileiro, não mais como instrumentos de trabalho, mas como seres humanos plenos e integrados. No entanto, é preciso afirmar que em nenhum desses artistas se percebe a produção de autorretratos como uma constante, sendo, como na maioria dos casos, obras eventuais que não configuram um corpus que sustente uma apreciação mais demorada dos mesmos.

Diferente é o caso de Sidney Amaral (1973-2017), cujos autorretratos configuram parte significativa, (se bem que não única), de sua obra que, ainda em constituição, foi brutalmente abreviada por uma doença mortal.

Além do interesse estético e artístico que esses autorretratos de Amaral apresentam (e que serão aqui discutidos), eles, pelo o que se sabe, formam o único conjunto mais alentado de autorretratos produzidos por um artista negro até o presente, no Brasil.

Sidney Amaral, ‘Gargalheira ou quem falará por nós?’, 2014

Tal peculiaridade em princípio guarda um interesse especial porque Amaral, morto aos 44 anos, integrava um grupo especial da população brasileira: justamente aquela que mais sofre com a violência no país: homens negros e pobres[5]. Por meio da análise de sua produção será possível não apenas entender melhor sua contribuição para a arte contemporânea brasileira, como também para uma reflexão sobre a situação da população negra brasileira e sobre como ela explora sua própria subjetividade dentro daquela sociedade, pouco afeita a esse segmento da população.

Para aqueles medianamente comprometidos com a reflexão sobre a arte brasileira da segunda metade do século passado, Incômodo[6] possui alguma familiaridade com uma série de alegorias do Brasil produzidas nos anos 1970, pelo artista Glauco Rodrigues (1929-2004).

São comuns aos trabalhos dos dois artistas a maioria das figuras de cunho naturalista pairando sobre o fundo branco (ou negro, como no caso de alguns trabalhos de Amaral), produzidas a partir da apropriação de imagens de origem fotográfica ou da história da arte do país e que enfatizam a centralidade da composição, reforçando a dimensão crítica de suas alegorias. No políptico de Sidney Amaral, embora também exista essa centralidade, a estratégia mais eficaz para a sua compreensão – como bem sugeriu o estudioso Claudinei Roberto da Silva[7] – é desenvolver uma leitura da esquerda para a direita. Nesse trajeto observamos citações alargadas dos desenhos e aquarelas de artistas viajantes europeus do século XIX (como Debret e Rugendas) que mostram o negro em situação de vulnerabilidade. Porém, a humilhação do homem negro escravizado e acorrentado (na extrema esquerda da cena) é de alguma forma atenuada pela cena em que outros homens negros, mesmo escravizados, parecem travar uma discussão com os homens brancos.

Na parte central do políptico nota-se como que uma apoteose do discurso do artista, em que homens e mulheres negros parecem saudar a cultura afro-brasileira, da qual são herdeiros e protagonistas. No derradeiro painel, uma mulher acariciando sua barriga de grávida, por sua vez, parece jogar para o futuro a crença na redenção total da população negra do Brasil.

Fato interessante é que, se a obra for analisada levando em conta essa linearidade, notaremos que o artista parece ter se inspirado, de forma bastante sintética – como, aliás, costumam ser as alegorias – na linearidade procurada pelos enredos das escolas de samba: na “comissão de frente” da obra (primeiro painel), os negros escravizados apresentam o tema “incômodo” da escravidão, por meio da interação problemática com os homens brancos; na sequência, a apoteose também incômoda: os grandes ícones da identidade negra no Brasil e várias representações da mulher negra entendia como esteio dessa sociedade; no último painel, o futuro antevisto na mulher grávida e nas crianças.

Mas é justamente no painel central de Incômodo que surge, talvez, a figura de maior interesse para este estudo. Refiro-me à figura da garotinha que, no centro da composição, calça um par de tênis.

Conforme observou Claudinei da Silva:

Momento fecundo nesta pintura é também o retrato da criança (filha do artista) representada no centro do múltiplo. Sem camisa, ela compenetra-se no ato de calçar seus tênis e parece alheia a tudo que a cerca, seu gesto corriqueiro é bastante significativo, seus pés já não estão nus, ela não mais corresponde à imagem clássica e recorrente do negro escravizado com pés descalços e erodidos pelo trabalho bruto[8].

 

A filha como duplo do pai. Aqui está o dado mais interessante da obra. Amaral, ao invés de retratar-se no centro da composição, opta por retratar Lisieux, sua filha, desenvolvendo uma ação que, para nós corriqueira, significa a conquista da cidadania possível para as camadas negras da população brasileira. Por outro lado, o fato do artista optar por ser substituído pela imagem de sua filha traz à tona a percepção de que o artista aceita ser colocado em devir por meio da representação do corpo de Lisieux – o que não é pouca coisa, levando-se em conta a sociedade em que foi engendrada a obra: a brasileira, patriarcal e misógina, em que a mulher negra sempre foi vista como objeto de prazer do homem, sendo ele branco ou negro.

Sidney Amaral, ‘Mãe preta (a fúria de Iansã)’. Obra exibida na exposição Histórias Afro-atlânticas, no Instituto Tomie Ohtake.

Dentro dessa perspectiva de substituição da figura do artista por outra que consiga reforçar ações efetivas dentro da composição, assinalaria a pintura Mãe preta (a fúria de Iansã), de 2014. Pautada em uma cena do filme da diretora da República Dominicana, Leticia Tonos Paniagua, Sidney transforma a mulher negra que defende o filho do soldado, em Iansã – deusa das paixões desenfreadas na Umbanda e no Candomblé. De novo, a figura da mulher negra é trabalhada como símbolo da ação afirmativa que busca recolocar as comunidades negras brasileiras em outro patamar[9]. Essa obra, por sua vez, estabelece um intrigante pendant com outra do artista, esta de 2017, Intolerância – as sílabas que formam a palavra “intolerância” gravadas em cinco pedras usadas para ataque em conflitos de rua. Se em Mãe preta, a figura principal da composição é flagrada prestes a completar uma ação de ataque contra a opressão, na segunda, nota-se a violência potencial ali contida, como resposta à repressão a manifestações de protestos. No meu entender, ambas resumem as preocupações do artista quanto à tensão vivida pelos vários segmentos da população negra brasileira, assim como atestam a liberdade com que Sidney Amaral lançava mão tanto de meios tradicionais (como a pintura), quanto outros, de cunho mais experimental, para levar adiante suas inquietações – as pedras que formam Intolerância são apresentadas como armas de ataque passíveis de serem usadas a qualquer momento.

***

Como foi acima mencionado, a coleção de obras de Amaral, hoje pertencentes à Pinacoteca de São Paulo, completa-se com mais cinco obras, todas autorretratos: Imolação e Estudos para Imolação I, II, III e IV, produzidas entre 2009 e 2014. Os quatro Estudos para Imolação, foram realizados em aquarela, grafite e nanquim sobre papel. Como em Mãe preta, o fundo das aquarelas é negro, e a figura do artista – com exceção de Estudo para Imolação II, em que Amaral se representa armando o revólver – é representada com a arma na cabeça, prestes a imolar-se. Pelo resultado final – a obra Imolação, produzida em tinta acrílica sobre uma tela bem maior que os papeis que usou para seus Estudos – ele se auto representa em corpo inteiro, tendo como parâmetro o Estudo III, modificando apenas a boca que, se aparece fechada na aquarela preparatória, na obra final é representada num esgar de desespero mal contido.

Se nos outros trabalhos aqui comentados, nota-se um artista empreendendo a formulação de obras em que propõe um posicionamento de afirmação do negro brasileiro frente à história e a realidade de opressão em que vivem, nesses autorretratos toda a violência social do Brasil parece voltar-se contra si mesmo e seu povo, sendo o ato de imolar-se a única saída em protesto frente a essa situação tirânica de séculos.

Conforme depoimento do artista sobre a obra, concedido ao crítico Nabor Jr., em 2015:

Ao ver no meio da tela um homem com uma arma apontada para a cabeça, a primeira coisa que se pensa é que a pessoa representada no quadro quer se matar. Mas não é verdade. Justamente por isso eu coloco o nome de Imolação. Imolação é aquilo que se faz por uma coisa maior. Você não está se matando por ser um deprimido. Você está se matando porque não quer ser escravo, não quer perder sua identidade, sua liberdade”[10]

Aprofundar as análises sobre esses e outros autorretratos deixados pelo artista, torna-se um objetivo quando se percebe como, por meio deles, é possível se aproximar de determinadas e complexas contradições da sociedade brasileira, marcada pela instituição da escravidão que, abolida em 1888, ainda marca o cotidiano de exclusão de grande parte da população negra do país. Os autorretratos de Sidney Amaral, ao mesmo tempo que podem ser vistos como documentos/monumentos desta situação, também devem ser inquiridos como pistas para a continuidade dos esforços para reverter esse status-quo.

É neste sentido que se torna fundamental o fato dessas obras pertencerem ao acervo público da Pinacoteca de São Paulo, instituição que – diga-se de passagem – apenas acolheu em seu acervo uma obra de um artista negro em 1956[11], sendo que a instituição foi fundada em 1905. Com o acesso aberto a todos os interessados e aberta à inclusão de outros artistas negros contemporâneos brasileiros em seu acervo, a Pinacoteca dá o suporte necessário às iniciativas para as mudanças de paradigmas no campo das instituições museológicas brasileiras.

 

Referências Bibliográficas:

– CHIARELLI, Tadeu. “Sobre a mostra Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca”. In CHIARELLI, Tadeu (org.). Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2016.

– CHIARELLI, Tadeu. “Andar por São Paulo faz com que São Paulo também ande em nós” In CHIARELLI, Tadeu (cur.). Metrópole: experiência paulistana. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2017.

– NABOR JR. “Meu passado (não) me condena: memória, raça e identidade nas pinturas de Sidney Amaral”. in O Menelik Segundo Ato. São Paulo: ano 5, ed. 017, out/dez., 2015. Págs. 16/21.

– SILVA, Claudinei Roberto. “A sedução do incômodo”. In SILVA, Claudinei Roberto da (cur.). O banzo, o amor e a cozinha de casa. São Paulo: MINC/Funarte ; Museu AfroBrasil Ipsis, 2015, pág. 9 e segs. Catálogo de exposição.

[1] – Este texto serviu de base para a comunicação proferida durante o Encontro “La creación artística de hoy, patromonio de mañana: Museu y Archivo, Memoria e Identidade”Proyecto de Investigación Interuniversitario Unión Iberoamericana De Universidades (UIU), ocorrido em fevereiro de 2018 em Barcelona. Em espanhol, o título do texto era: SIDNEY AMARAL, UN ARTISTA AFROBRASILEÑO: ENTRE LA AFIRMACIÓN Y LA INMOLACIÓN.

[2] – A obra encontra-se no Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, RJ.

[3] – A obra encontra-se no Museu Histórico de Sergipe, SE.

[4] – O autorretrato de Arthur Timotheo da Costa pertence à Pinacoteca de São Paulo; o autorretrato de João Timotheo da Costa pertence ao Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, RJ.

[5] – Segundo o Atlas da Violência 2017, publicado pelos Instituto De Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no dia 5 de julho de 2017, “homens jovens, negros e de baixa escolaridade são as principais vítimas de morte violenta no País. A população negra corresponde à maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios”. #carta. Ideias em  tempo real. 4ª feira, 10.1.2018.

[6]Incômodo foi a primeira de uma série de obras do artista adquiridas para o acervo da Pinacoteca do Estado. As pinturas de Sidney Amaral aqui comentadas fazem parte do acervo daquela instituição.

[7] – “A sedução do incômodo”. Claudinei Roberto da Silva. In SILVA, Claudinei Roberto da (cur.). O banzo, o amor e a cozinha de casa. São Paulo: MINC/Funarte ; Museu AfroBrasil Ipsis, 2015, pág. 9 e segs. Catálogo de exposição.

[8] – SILVA, Claudinei Roberto da. Op.cit. pág. 21.

[9] – Chamo a atenção para o seguinte detalhe: com o intuito de levar a cena para a realidade de São Paulo – cidade onde residia –, Sidney Amaral troca a lapela de identificação da manga do uniforme do soldado. Ao invés do emblema dominicano, na tela o soldado usa identificação da Polícia Militar de São Paulo.

[10] – Depoimento de Sidney Amaral concedido a Nabor Jr. Publicado em “Meu passado (não) me condena: memória, raça e identidade na pintura de Sidney Amaral”. In O Menelik Segundo Ato. São Paulo. São Paulo: ano 5 ed.017, out/dez.2015, pág.19.

[11] – A primeira obra de um artista negro a ingressar no acervo do Museu foi o mencionado Autorretrato, de Arthur Timótheo da Costa, de 1906.

As mulheres e a resistência antifascista

As milicianas fizeram a diferença na guerra civil espanhola. Foto: Reprodução

As primeiras combatentes vestiram o uniforme azul típico das milícias operárias. Eram as mulheres libertárias (anarquistas), às quais não demoraram a se juntar as socialistas e as comunistas. Na guerra civil que destroçou a Espanha entre 1936 e 1939, as mulheres ocuparam postos nas fábricas, assumiram enfermarias e também foram para o front.

 

Apenas a Coluna Aguiluchos, organizada pela Federação Anarquista Ibérica (FAI), contou com 200 milicianas. Para outras frentes de batalha antifascista também se alistaram estrangeiras, entre elas a filósofa francesa Simone Weil. Franzina e sem treinamento militar, Simone acabou reafirmando seu pacifismo após passar por uma unidade anarquista.

 

Coube a outra francesa, Marina Ginestà, estrelar uma imagem icônica da participação feminina no conflito. Integrante da Juventude Socialista, Marina tinha 17 anos quando posou com um rifle nas costas, no terraço do Hotel Colón, em Barcelona, para o fotógrafo alemão Hans Gutmann. Era julho de 1936 e o olhar de Marina não poderia ser mais desafiador.

 

A imagem ficou nos arquivos da agência de notícias Efe até começar a correr mundo, em 2002. Quatro anos depois, um pesquisador da agência identificou a retratada. “Aos 17 anos, eu não estava em condições de fazer a guerra”, disse Marina, lembrando que posara com um rifle emprestado. Ela viveu em Paris até janeiro de 2014, quando faleceu, com 94 anos.

 

Na época da fotografia, Marina atuava como intérprete do jornalista soviético Mikhail Koltsov, correspondente do jornal Pravda. Marina militou sem pegar em armas, mas garotas ainda mais novas que ela deram a vida à causa antifascista. Uma delas, Victoria López Práxedes, morreu aos 16 anos na Batalha de Talavera de La Reina, em setembro de 1936.

 

Para conquistar espaço no front, mulheres de todas as idades tiveram que batalhar tanto contra o fascismo como contra os preconceitos de seus próprios colegas de trincheira. No final, elas perderam a guerra para os fascistas liderados pelo general Francisco Franco, mas entraram para a História de cabeça erguida. Inspirado nesse processo, o cineasta espanhol Vicente Aranda filmou Libertarias. Abaixo, link para trailer do filme:

 

Formalização e Temporalidade nos Museus

[Este é o terceiro texto de uma serie de sete, elaborados pelo Professor titular em Psicanálise e Psicopatologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP, Christian Dunker, que estamos publicando semanalmente.

Sobe o título A Educação do Olhar e a Leitura de Imagens –  Desafios Éticos para os Museus“, já abordamos

1] Curadoria como sistemas simbólicos em conflito2] Forma estética e contradição social

Resumo

Pretendo mostrar como as práticas de mediação convidam ao encontro com a obra como experiência de leitura reconstrutiva. Este processo pode ser entendido como experiência ética de reconhecimento, envolvendo forma estética e contradição social. A função ética do discurso, concentrada na noção de letra determina modos de relação com a obra que são também modelos de relação intersubjetiva com o outro. Apresento este tema a partir de sete desafios éticos para os museus contemporâneos.

 

Formalização e Temporalidade

 

Dar forma ao sofrimento, cuidar do seu reconhecimento e mediar a inspiração político transformativa que ele inspira e demanda requer que, antes de tudo, o museu perceba sua própria posição histórica neste processo. Afinal é isso que move a sua própria vocação e tarefa. Ora, não faz muito que a museologia deu-se conta de como ela concorre para produzir e reproduzir formas de sofrimento. Isso ocorre, e aqui devemos nos aproximar mais ainda do caso brasileiro, porque os museus se erigem como imenso banco de capital cultural do qual grande parte da população sente-se excluída, e porque não dizer intimidada.

Isso ocorre em parte porque este é o efeito que a maioria dos museus causam, em todo mundo, em decorrência dos muros que hierarquizam a cultura, colocando certos códigos, genericamente incompreensíveis acima de outros. A verticalização entre cultura erudita e cultura popular, pode ser reproduzida de tal maneira a sincronizar o capital cultural com o capital financeiro, legitimando sua distribuição não equitativa. Isso não se resolve apenas abrindo as portas e colocando no espaço dos museus arte popular. De certa forma esta foi a resposta dadas pelas vanguardas dos anos 1960. Pop-art, arte póvera, op-art, movimentos punk e beatnick, assim como o cultural studies e o terceiro-mundismo universitário se esforçaram por horizontalizar o conteúdo da contradição social, assim como as vanguardas formalistas, abstracionistas e geometristas prosseguiam na pesquisa de formas estéticas capazes de nos prover linguagens para estados informulados de mundo, de vida ou de sofrimento.

A inversão mais significativa neste processo ocorre quando começamos a nos dar conta de que a ideia do museu como algo orientado para a conservação do passado, no fundo envolvia também uma dada concepção de futuro. As línguas ininteligíveis, da alta cultura, assim como as profanações do espaço sagrado do museu, com baixa cultura, no fundo eram instrumentos para um mundo que ainda não está dado. Línguas a procura de sujeitos, linguagens a espera de mundos, falas deixadas em uma garrafa jogada ao mar, destinatários por devir.

Ora, se levamos adiante a hipótese de que o inconsciente estético, proposto por Ranciére, oferece as regras de forma, enquanto o conteúdo é dado pelo Real, três procedimentos fundamentais são decisivos. Estes procedimentos são também as formas pelas quais o psicanalista reconhece a incidência do real em sua experiência clínica. Cada um destes procedimentos liga-se com uma incidência específica de linguagem.

  1. A negação. As séries significantes são a condição na qual podemos detectar modalidades de negação. Negações no simbólico que voltam no simbólico, negação ou abolições no simbólico que voltam no simbólico, negação imaginárias que representam se em imagens. Aqui a obra tem estrutura de fala, nela a mensagem volta ao seu próprio destinatário de maneira invertida.
  2. A deformação. Aqui estamos no domínio das imagens, no seu enquadramento, na sua textura, na sua relação entre forma e cor. Aqui a obra tem estrutura de fantasia, com suas capturas e armadilhas para o olhar, como suas inversões entre quem olha e quem é olhado, com suas realizações e figurações dos estados de sexualidade e de violência, deformados, segundo a consideração de figurabilidade necessária para manter o destinatário dormindo e acordado, em vigília e em sonho.
  3. A repetição. Aqui o conceito chave é a noção de letra. Temos então o traço, a escrita, os procedimentos de sistemas de representação e de inscrição, ou de fracasso de inscrição, são decisivos para que possamos estabilizar um determinado discurso. Aqui a obra tem estrutura de trauma, ela captura como evento ou acontecimento um ponto de junção, histórico e temporal, entre a verdade e o real.

O traumático é uma das figuras mais importantes do Real porque ele se organiza como uma operação de repetição, mas não só como uma repetição do mesmo, que volta em sonhos ou imagens intrusivas em sua reapresentação idêntica. O traumático compreende também a repetição do que não cessa de não se inscrever, ou seja, do vazio de representação ou de nomeação que precisa ser captado em uma experiência, cujo efeito é de mal-estar.

No caso da 33a Bienal de São Paulo, podemos encontrar, de forma recorrente a busca da escuta do traumático em Siron Franco e sua série sobre o acidente radioativo com o Césio 137 na cidade de Goiânia. Nesta série os objetos são separados de contextos mas figurados em um contraste branco contra negro, ao modo de uma chapa radiográfica. Lembremos que o acidente acontece porque crianças abrem uma máquina odontológica de radiografia, espalhando o pó radioativo que existe em seu interior, matando e adoecendo os habitantes de uma rua.

Exposição de Siron Franco para a 33a Bienal de São Paulo. 15/09/2018. © Leo Eloy / Estúdio Garagem / Fundação Bienal de São Paulo.

Subtração e deformação compõe a estratégia comum entre o brasileiro Siron Franco e o guatemalteco Aníbal López*, que nos mostra a face manchada de vermelho ou sangue de um jovem, no cartão onde se lê “Archivo abierto”  ou na foto de duas mãos envelhecidas, com respingos de sangue. Duas convocações poderosas, para o dever de memória. Aqui o traumático aparece na forma do passado de violência civil e repressão que tomou conta do país entre 1976 e 1982, envolvendo extermínios paramilitares, terremotos, repressão aos indígenas do norte, guerrilhas castristas e sandinistas.

O que está em jogo nos dois casos é a ação do tempo, o conflito entre lembrança e esquecimento, entre elaboração e fracasso de simbolização. Este trabalho é antes de tudo um trabalho de restauração do desejo, de composição da história dos desejos desejados. Freud dizia que o desejo é como o fio que parte do presente, vai ao passado e se projeta realizado no futuro. Assim também a escuta museológica cria este fio que reinventa o presente para um determinado futuro a partir de um certo passado.

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Radicante

Forma Estética e Contradição Social

O incêndio do Museu Nacional -UFRJ destruiu quase todo o acervo de 20 milhões de itens. Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

[Este é o segundo texto de uma serie de sete, elaborados pelo Professor titular em Psicanálise e Psicopatologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP, Christian Dunker, que estamos publicando semanalmente. Sobe o título A Educação do Olhar e a Leitura de Imagens –  Desafios Éticos para os Museus“, no primeiro texto, abordamos Curadoria como sistemas simbólicos em conflito

Resumo

Pretendo mostrar como as práticas de mediação convidam ao encontro com a obra como experiência de leitura reconstrutiva. Este processo pode ser entendido como experiência ética de reconhecimento, envolvendo forma estética e contradição social. A função ética do discurso, concentrada na noção de letra determina modos de relação com a obra que são também modelos de relação intersubjetiva com o outro. Apresento este tema a partir de sete desafios éticos para os museus contemporâneos.

2. Forma Estética e Contradição Social

 

Ulpiano T. Bezerra de Meneses *, em sua conferência sobre “Os museus e as ambiguidades da memória: a memória traumática[1] argumenta que os museus devem problematizar a memória.  Ele não apenas lembra, mas toma posição sobre quais são nosso modos de lembrar e de esquecer, eles gramáticas de esquecimento e lembrança que ainda que  não se identifiquem o lugar de um tribunal, produzem este efeito sobre o público, que por isso mesmo, genericamente, sente julgado desde sua ignorância. Ele nos lembra as vicissitudes e conotações do verbo “esquecer”: o apagamento repressivo (o poder abafa a memória, como nas ditaduras), o esquecimento prescritivo (por pressão da sociedade), o esquecimento que é constitutivo da formação de uma nova identidade (quando os ganhos sobrepujam as perdas, como com os imigrantes); a amnésia estrutural (derivada das hierarquias  sociais); o esquecimento como anulação (por saturação); o esquecimento como obsolescência planejada (típica do sistema capitalista de consumo); o esquecimento como silêncio humilhado (aquele de acontecimentos vergonhosos ou constrangedores).Todas elas conotações de imediata conotação clínica.

A opulência do Palácio de São Cristóvão, que abrigava o Museu Nacional da UFRJ, destruído em incêndio no início deste setembro de 2018.

Por isso mediação não é conciliação harmonica, mas trabalho, ele mesmo contingente e passageiro, de dar forma e unidade aquilo que não se pode ainda reconhecer. O Estado e o mercado possuem gramáticas de reconhecimento para os seus interesses. Há aqui uma primeira divisão entre as gramáticas institucionais e comunitárias de reconhecimento. Há também uma segunda partição que é inerente ao percurso das experiências de reconhecimento, um percurso que envolve um sujeito em uma relação específica com o outro, segundo um determinado fim consoante a um determinado conjunto de meios. No reconhecimento não está em jogo apenas o quê é reconhecido, por exemplo, tal autor ou qual obra, mas também como, ou seja, em que série, em que lugar, ou qual enquadre se coloca uma imagem. A relação entre aquilo de que se fala e como se fala define o que estou chamando aqui, ainda que vagamente, de forma estética. Lacan tem uma afirmação sintética sobre o fazer do psicanalista que diz o seguinte:

“O que se diz fica esquecido por trás do que se entende, no que se ouve.”

É uma maneira de enfatizar esta operação de esquecimento do que está sendo dito, do que está sendo mostrado, em função do “contexto” no qual se diz. E o contexto inclui o agente e o destinatário da forma estética. O contexto é o museu, mas também seu público, são as pessoas concretas que o visitam, com suas histórias particulares. Quero sintetizar com isso que a mediação estética tem que reunir a relação entre os modos de dizer, de representar, de atuar, de instalar, com as pessoas que as produzem ou compram, que as realizam ou olham.

Pensando em críticos como Hal Foster e Didi-Huberman poderíamos dizer que este ponto de cruzamento se aproxima do que Lacan chamou de Real. Ele é o cruzamento que não cessa de não acontecer entre forma estética e contradição social.

Luzia, o fóssil mais antigo encontrado nas Américas era um dos objetos mais importantes que o Museu Nacional abrigava. O crânio foi perdido no incêndio.

Este ponto de cruzamento serviria como uma espécie de fio condutor possível para uma dada política curatorial. Aqui encontrei um segundo ponto de convergência entre minhas pesquisas psicanalíticas e certas reformulações do pensamento museológico. Isso porque a contradição social apresenta-se sempre segundo uma matriz específica que é a do sofrimento. Contradições sociais não são apenas representações abstratas de processos históricos desencarnados, mas elas habitam corpos. Cada corpo que sofre cria consigo afetos específicos, maneiras próprias de enunciar, de denunciar ou de pedir para que uma determinada experiência, até então vivida como sofrimento seja reconhecida. Isso frequentemente se aproxima da função política da arte, como modo de expressão e demanda de reconhecimento para determinadas experiências que até então permaneciam indeterminadas, silenciosas ou invisíveis. Por isso, dar visibilidade ao que permanecia invisível, colocar em forma estética ao antagonismo social, expressar, portanto, em uma maneira muito específica o sofrimento, é sempre o início de um processo político e psíquico e transformação.

A múmia Kherima foi consumida pelo fogo. Era uma múmia do que viveu entra o 1º e o 3 século d.C.

Creio que é nesta direção que Freud dizia que os poetas e artistas andam na frente dos psicanalistas, no sentido de que existe uma política de sofrimento e que a pesquisa da arte sempre se adianta, fornecendo vocabulários, formas expressivas e narrativas para o mal-estar até então sem nome, o mal-estar informulado, o mal-estar sem forma.

Estados informulados do espírito” esta é a expressão de Lévi-Strauss para designar aquilo que o xamã cura em uma determinada comunidade. Ele dá forma, oferece palavras, cria meios para que o informe adquira uma forma. Por isso o xamanismo envolve sempre uma forma de leitura (letras que o xamã sabe decifrar) e uma determinada forma de corpo (no qual o xamã se transforma para operar a cura).

Por isso podemos dizer que o ato museológico segundo é o ato de escolha, é o ato que sincroniza demandas sociais que clamam por reconhecimento e a história das formas, o debate das línguas, a concorrência entre as gramáticas expressivas (conforme a concepção estética ou poética que se tenha em mente).

Assim como o psicanalista que mantém sua escuta equiflutuante, aberta, suspensa de prejuízos e que se esforça por se separar de si mesmo e seus preconceitos, mas que, justamente é capturada por um momento de descontinuidade e corte atencional, a experiência do museu começa pelo deixar-se afetar e continua pelo ponto de captura, pela escolha, pelo chamado da obra.

O incêndio destruiu quase todo o acervo de 20 milhões de itens. Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

Voltando a 33 Bienal. Poderíamos contrastar a série do artista paraguaio Feliciano Centurion, composta por objetos como travesseiros cerzido com dizeres, tais como “Luz divina del alma” e “Revela-me tua mensagem” com o trabalho de transparenciação, no qual um livro, cujo título é  “Como imprimir sombras” ou um conjunto de moringa e copo é representado por arestas metálicas indicando que delineiam a forma, mas deixam vazio o seu preenchimento. Ambos evocam a intimidade, ambos recorrem a significantes e letras, mas o primeiro joga com a com preservação da imagem, separando-a brutalmente do contexto e o segundo com a subtração de elementos composicionais.

A contradição social dada por um mundo sem lugar para a intimidade, colonizado ironicamente por mensagens, legendas e manuais de uso é articulada segundo duas estratégias diferentes com a forma estética: no primeiro há um deslocamento do enquadre da imagem, no segundo há uma subtração do preenchimento e da cor, remanescendo e destacando a forma.

 

  • Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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