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Delicada potência

Rosana Paulino, a permanência das estruturas

*por Solange Farkas

 

Em meio à produção artística que emerge das regiões de passado colonial do mundo, a obra de Rosana Paulino vem se tornando referência diante de nossos olhos. Na pesquisa curatorial que busca as vozes e falas desse polo geopolítico – e que alimenta as ações do Videobrasil –, sua força se impõe cada vez mais. Lembro-me da impressão que me causaram os primeiros trabalhos da artista que vi, sobretudo a série Bastidores (1997), na qual uma costura raivosa e definitiva toma o espaço de decoro e recato (branco, feminino e burguês) do bordado para calar e cegar mulheres negras. Ou das monotipias Proteção extrema contra a dor e o sofrimento (2011), nas quais linhas de costura caem dos olhos de uma figura nua de mulher para compor algo que parece um arremedo frágil de coberta protetora, mas também um emaranhado que limita e aprisiona.

Esta última série foi escolhida pelo artista e curador Daniel Lima para integrar a exposição Agora somos todxs negrxs?, que compôs o programa do Galpão Videobrasil em 2017. A mostra incluía ainda Tecido social, gravura de título irônico em que Paulino junta imagens com suturas malfeitas e costuras forçadas para por em xeque ideias de sociabilidade pacífica e unidade nacional. Disposto a desafiar a perpetuação do mito da cordialidade racial brasileira, inclusive no meio da arte, Lima reunia uma geração que se propõe a desconstruir o que descreve como o “tríplice trauma da colonização (extermínio das populações nativas, escravidão e perseguição religiosa) por meio do poder micropolítico da arte”.

Essas experiências pregressas com o trabalho da artista não me prepararam para o impacto que senti ao percorrer a exposição Rosana Paulino: costura da memória. Foi só diante do corpo de obra reunido pela Pinacoteca de São Paulo que me dei conta da real dimensão da produção da artista. Impressiona o domínio e a maestria com que ela se serve de uma diversidade de técnicas e linguagens, como aquarela, desenho, cerâmica, vídeo, bordado, escultura. Mas, mais ainda, a potência poética e política de sua narrativa, que mergulha na história para trazer à tona um passado doloroso e sua herança muito presente, seja na forma de impacto sensorial, seja por meio de associações instigantes de ideias.

Olhando em retrospecto mais de duas décadas de produção da artista, é especialmente tocante notar a delicadeza com que expõe questões e situações extremas, como a violência imposta à mulher, sobretudo negra, o mal-dissimulado racismo brasileiro e a ausência e a invisibilidade social do negro, frequentemente reduzido à condição de objeto de estudo das ciências naturais por nossa iconografia histórica – um repertório do qual Rosana, não à toa, se utiliza amplamente. Alguns entre muitos exemplos são o traço delicado e fluido com que ela reconecta à terra o corpo feminino negro, fragmentado e desenraizado pela escravidão, em Assentamentos; e a leveza das pequenas esculturas de cerâmica reunidas na instalação Tecelãs (2009), que evoca com grande pungência a dor da dupla submissão de ser mulher e negra.

Ao fazer jus a uma produção madura e de potência rara, a exposição na Pinacoteca revela Rosana Paulino como uma das artistas mais importantes em ação na cena contemporânea brasileira. Essa percepção reforça, mas não antecede, o convite que fizemos a Paulino para que apresente, na 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, uma obra inédita, que está sendo comissionada pelo evento. A Bienal acontece a partir de outubro em São Paulo e investiga, por meio de um conjunto expressivo de trabalhos, como poéticas oriundas do Sul se relacionam com a ideia de comunidades novas, criadas por princípios distintos daqueles que fundaram os Estados nacionais. Como as que se aproximam de um caráter familiar ou tribal, expressando seus afetos em experiências de cunho doméstico ou memorialístico. Partindo de questões recorrentes em seu trabalho, relacionadas à memória e à ancestralidade, Rosana Paulino dialoga com esse universo e se aventura em uma nova linguagem. A exposição apresentada na Pinacoteca irá para o MAR – Museu de Arte do Rio em 13 de abril e ficará em cartaz até o final de agosto.


Rosana Paulino: a costura da memória
Curadoria de Valéria Piccoli e Pedro Nery
A partir de 13 de abril
Museu de Arte do Rio: Praça Mauá, 5 – Centro, Rio de Janeiro – RJ

Um jardim de códigos

Detanico Lain, Mares da Lua (lunar maria), 2018

É limitador atribuir à dupla Angela Detanico e Rafael Lain separadamente uma formação quando se fala em sua produção artística. É mais verdadeiro dizer que ambos são linguistas, designers gráficos, tipógrafos e semiologistas. E, claro, artistas. Afinal, há mais de 20 anos juntos, desde que migraram pela primeira vez, do Rio Grande do Sul para São Paulo, tudo o que foi aprendido era compatilhado. Tanto isso é verdade que chega a ser admirável, inclusive, o fato de um completar o outro de forma precisa quando uma palavra foge ao raciocínio, apesar de dificilmente palavras escaparem dessa dupla que a domina. “Uma parte grande da nossa produção é a criação de tipografias, de sistemas de escritas, nos interessamos muito pelos códigos, pelos alfabetos de diferentes lugares do mundo”, conta Angela. A mostra no Espaço Cultural Porto Seguro, em São Paulo, que se estende até 21 de abril, dá a dimensão disso na obra da dupla.

Hoje casados e com dois filhos, Rafael e Angela vivem em Paris e fazem parte de um grupo seleto de artistas, observados de perto por colecionadores e instituições de todo o mundo. A arte passou a ser a dedicação definitiva dos dois quando, em 2002, receberam uma bolsa no Palais de Tokyo. Já trabalhavam com design gráfico, desenvolvendo projetos e identidades visuais.

Angela e Rafael comentam que a ideia para organizar a mostra parte de um conceito de jardim, mas os japoneses, não os parisienses: “Os da França são muito organizados para nós”, ela brinca e continua: “Se bem que somos até bem ordenados nesses trabalhos, mas acho que a experiência de jardim corresponde mais ao japonês, um pouco mais selvagem”. Todas as obras possuem alguma ligação com a luz. Afinal, é a luz que indica a passagem do tempo, que permeia todas as obras em algum ponto. E é a luz que mantém um jardim vivo e forte.

Os primeiros trabalhos que o público encontra ao adentrar a exposição não dão ainda o tom exato do que será encontrado no andar de cima e no subsolo, além das obras na parte externa do prédio. Apesar de todos terem um diálogo entre si e partirem de códigos, não se invadem e não ditam uma obviedade. Cachoeira do silêncio (2018) foi produzida especialmente para a parede diagonal na entrada do local. Tendo como base uma foto de uma cachoeira que a dupla visitou em Kyoto, é trabalhada verticalmente em cima das linhas de pixels da imagem, desencadeando as cores por toda a parede, explica Angela: “É uma imagem fixa que vai sendo mostrada pouco a pouco”. Rafael conta que o som que acompanha a obra é o original da cachoeira japonesa.

Detanico Lain, Ulysses, 2017

Outra obra que representa um lugar afetivo para os artistas e que é mostrada pela primeira vez é Da Luz ao Paraíso (2018), que remonta o percurso entre os bairros paulistanos, respeitando o traçado das ruas e o relevo do trajeto. No mesmo ambiente, é reproduzida em uma parede Ulysses (2017), trabalho no qual uma figura humana definida por palavras caminha, em referência ao livro homônimo de James Joyce. Na narrativa, a personagem principal caminha pela cidade de Dublin durante 18 horas, redefinindo sua relação com o espaço (a cidade) e o tempo. O texto que constrói o corpo na parede é o livro de Joyce, cada passo é uma página virada.

Essa sensação da modificação do espaço e do tempo pode ser sentida por quem visita a exposição, que está a todo momento trazendo a reflexão sobre essa temporalidade. E é essa a intenção da dupla, podendo-se dizer que concluem esse desejo com sucesso.

Também inédita, a obra Nuvens de São Paulo (2018) esconde um texto de Oswald de Andrade, graficamente transformado em formatos de nuvens ao serem desfocadas, que se deslocam pela enorme tela na parede do mezanino. A literatura se faz muito presente na vida de Angela e Rafael, sendo material de muita pesquisa também: “A nossa biblioteca é uma parte muito importante da nossa vida”, reconhece Detanico. E a linguagem, seja por códigos, pixels, palavras ou imagens, permeia toda a exposição. Tudo se vincula também à origem do casal, que começou a trabalhar em conjunto na área do design gráfico, especialmente com tecnologia, no final dos anos 90.

No mezanino, os artistas explicam a vontade de trabalhar usando a arquitetura do espaço na construção da paisagem: de um lado as nuvens, opostas à cachoreira. No chão, a instalação Onda de Sal (2010), sendo uma figura formada pela palavra “onda”, escrita em um código criado pela dupla: “Uma parte grande da nossa criação diz respeito ao desenvolvimento de novas tipografias. Nos interessamos muito pelos alfabetos, as diferentes formas de escrita pelo mundo”. A geometria das letras nesse alfabeto cria diferentes modulações para a onda.

Já em outra parede, o público se depara com as 28 Luas (2014), uma videoinstalação onde a figura é formada pelo texto (assim como em Ulysses). No caso, a figura de uma lua é construída pelo texto de Galileu Galilei na primeira vez que observou o satélite, cada um dos vinte e oito minutos pelos quais o vídeo se estende forma um estado da lua a cada 28 dias de sua variação durante um ciclo. Outra experiência com a lua espera o público no subsolo: Mares da lua (2018) é uma videoinstalação que reflete em telas compostas por pedrinhas de jardim o nome dos mares presentes no satélite, como Mar da Tranquilidade e Mar das Ilhas. A luz cai sobre posições de letras, como uma gota, também em um código, formando as palavras e se abrindo pelas telas.

Para trazer uma reflexão sobre os problemas contemporâneos que envolvem um espectro geopolítico, Detanico Lain achou pertinente que a obra Ruído branco (2006), que teve estreia durante a Bienal de Veneza, fosse incluída na mostra. Fechando o percurso de 14 obras, várias imagens de satélite de um espaço da Floresta Amazônica são colocadas em camadas, aos poucos isso ganha intrusões de um branco, sendo apagado continuamente, fazendo referência aos problemas do desmatamento e as questões climáticas: “Se em 2006 isso era importante, agora isso é urgente”, dizem os dois quase em uníssono.

O Espaço Cultural Porto Seguro fará uma série de atividades relacionadas à mostra durante o período expositivo, que vai de 19 de janeiro até 7 de abril. Uma dessas atividades, ainda sem data, consiste na apresentação de uma performance pela SP Companhia de Dança, em um espaço reservado na instalação de Quadrado branco, trabalho que se desdobra a partir de três poemas do japonês Kitasono Katue. A obra foi criada em uma residência feita pelo casal no Japão, na qual se propuseram a estudar os textos do poeta.

 

Conexões no acervo do MAM

Keila Alaver, Sem título, 2000

Passado/Futuro/Presente, exposição em cartaz no Museu de Arte Moderna de São Paulo, é mais do que uma mostra comemorativa. Concebida no bojo das celebrações de 70 anos de criação do museu e originalmente criada há dois anos para apresentar o acervo da instituição para o público de Atlanta (vale a pena destacar que foi a primeira mostra do MAM em território norte-americano), a seleção oferece uma interessante oportunidade de fruição e reflexão sobre aspectos importantes da arte contemporânea brasileira. 

O critério adotado pelos curadores Cauê Alves e Vanessa Davidson não é nem cronológico nem temático. As 72 obras selecionadas para a versão brasileira, que ocupa a sala principal do museu até 21 de abril, não foram escolhidas com o objetivo de narrar ou ilustrar uma história oficial da arte nacional nem tampouco apresentar uma trajetória particular do acervo. A potência plástica, conceitual ou poética do trabalho, bem como sua capacidade de se conectar com outras peças da seleção, parecem ter sido os critérios mais importantes de escolha. Isso já fica evidente na primeira obra, “Notas sobre uma Cena acesa”, de José Damasceno. Este sedutor painel, que recria com centenas de lápis amarelos a imagem em perspectiva de uma silhueta observando uma tela, desperta imediatamente a simpatia do público, como testemunham o sorriso frequente na fisionomia dos visitantes. Apuro e criatividade formal, capacidade de síntese e apropriação de materiais e procedimentos incomuns estão entre os aspectos preponderantes desta obra e que ecoam por toda a exposição.

Como estrutura organizadora, a mostra está subdividida em cinco blocos: O corpo/O corpo social; Identidades mutáveis; Paisagem reimaginada; Objetos impossíveis; e a Reinvenção do monocromo. Mas tal segmentação é bastante porosa, como dizem os curadores já na apresentação. Assim, um mesmo trabalho muitas vezes se vincula a mais de um núcleo e muitas vezes serve de elemento condutor entre um e outro. É o caso, por exemplo, da escultura/instalação em mármore de Laura Vinci, que faz uma suave transição entre o bloco dedicado à paisagem e aquele que apresenta uma série de investigações sobre a monocromia.

Esse segmento dedicado a trabalhos que exploram a potência da cor não em sua diversidade, mas em sua essência formal mais pura, é um dos mais interessantes da exposição. E não só porque reúne obras importantes de autores bastante diferentes, como Rosangela Rennó e Antonio Manuel. Mas também porque ele parece sutilmente indicar que a tentativa de associar a arte brasileira ao uso generoso e abundante das cores seria reiterar estereótipos e que é preciso olhar para os mais diferentes aspectos de uma pesquisa de arte, sem reduzir as pesquisas a um único motivo central como a pesquisa conceitual ou o engajamento político. Curiosamente, este núcleo reúne o maior número de trabalhos abstratos da mostra, indicando que a separação entre figuração e abstração – que tanto marcou a história do museu em seus primórdios – perdeu sua relevância na atualidade.

A noção de identidade, quando pensada em sentido amplo, parece ser a que mais se sobressai na seleção e constitui um elemento central para se pensar a produção contemporânea. Seja no uso do corpo como elemento de criação, seja numa reinvenção/investigação da paisagem como lugar de síntese de uma ideia de nacionalidade que sempre escapa por entre os dedos. É interessante notar como ela está presente em investigações as mais distintas. Há uma forte presença de obras que partem da representação ou investigação do corpo humano como elemento de criação, como por exemplo a série de vídeos de Lenora de Barros acerca da imagem da artista, os comoventes pés com chagas recriados por Efraim Almeida ou ainda no já clássico trabalho 50 Horas, Autorretrato Roubado, de Rochelle Costi feito no início dos anos 1990. Mas a reflexão identitária se faz presente também em outro tipo de investigação plástica, como na irônica instalação Cortina de Vento – que brinca com o estereótipo da paisagem brasileira como um paraíso tropical cheio de coqueiros – ou ainda na icônica série de cartões postais em que Anna Bella Geiger contrapõe imagens de índios e ocidentais, mostrando como é frágil e instigante a oposição nativo versus estrangeiro.

Com trabalhos criados majoritariamente nas décadas de 1990 e 2000, a exposição mescla com cautela obras já bastante conhecidas do público e produções menos conhecidas, possibilitando reencontros agradáveis ou novas surpresas. Nessa relação entre maior e menor visibilidade, se insinua uma outra questão que parece interessante de se levar conta: a relação de mútua dependência entre artistas e museus e uma diminuição da capacidade própria de instituições como o MAM ampliarem seus acervos. Vários são os caminhos de entrada na coleção, mas – como se pode observar nas etiquetas de identificação – é inquestionável a importância das doações, sejam feitas por empresas, colecionadores, ou pelo próprio artista. Confirmando tal sensação, está a mostra que o museu dedica às novas aquisições de seu acervo, que pode ser vista na Sala Paulo Figueiredo. Ali fica claro como cada vez mais as parcerias são fundamentais para ampliar a capacidade dos museus e preencher as lacunas de sua coleção.

Passado/Futuro/Presente: Arte contemporânea brasileira no acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo
Curadoria de Vanessa K. Davidson e Cauê Alves
Até 28 de julho
Museu de Arte Moderna de São Paulo: Parque Ibirapuera (av. Pedro Álvares Cabral, s/nº – Portões 1 e 3)

Diferentes aspectos da vida e obra de Paul Klee

Paul Klee, A Face Of The Body, Too [Um Rosto Também do Corpo], 1939. Cola colorida e óleo sobre papel sobre cartão, doação de Livia Klee

Tentacular, a exposição de Paulo Klee em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de São Paulo apresenta um retrato diversificado do artista, permitindo a expressão de toda sua genialidade. Evidentemente, seu protagonismo na arte moderna e seu estilo absolutamente pessoal – em diálogo com várias das correntes hegemônicas da primeira metade do século XX – estão na base da mostra, que traz mais de 120 trabalhos. No entanto, a maior qualidade de Equilíbrio Instável reside na estratégia de mostrar não uma trajetória única e coerente do pintor, mas sim iluminar diferentes aspectos de sua vida e obra, compondo um panorama – evidentemente não exaustivo – de múltiplas questões caras a Klee e a sua época.

Assim, o que poderia ser uma retrospectiva tradicional que referenda a narrativa oficial sobre a trajetória de um artista profundamente coerente e prolífico, acaba se espraiando por pesquisas, temas, técnicas e momentos distintos. Essa abordagem por capítulos, que respeitam uma cronologia tênue, também responde à difícil arquitetura do espaço, fragmentado em múltiplas salas desconectadas uma da outra. Com isso, o visitante acompanha o artista desde a infância, num conjunto de desenhos singelos, representando, por exemplo, cenas familiares de natal. A presença de tais peças na exposição se explica tanto pela importância do Zentrum Paul Klee (instituição suíça organizadora da mostra e depositária de sua obra) para a preservação de sua história, como pelo fato curioso de o próprio pintor ter incluído esses trabalhos, que a seu critério já apresentariam “autonomia produtiva”, no exaustivo registro que manteve a vida inteira de sua produção.

Paul Klee, Woman in Traditional Costume [Mulher com roupa típica], 1940, Cola colorida sobre papel sobre cartão.

O visitante vai pouco a pouco acompanhando seu caminhar, presencia por meio de obras selecionadas seu desejo de aperfeiçoar-se no estudo acadêmico do corpo humano (que já havia lhe custado uma vaga na Academia de Belas Artes de Munique em 1898) e a posterior libertação de uma arte que apenas reproduz o visível; os interessantes estudos que realiza na primeira década do século XX que recebem o título de “Invenções”, nos quais cria figuras estranhas, precocemente surreais, com certa ironia e acidez; a importância de viagens como as que fez para a Itália (1901), França (1912) e sobretudo para a Tunísia (1914); a presença da família (nos retratos e nos fantoches que fazia para o filho); a descoberta da cor; e a intensa relação com outras formas de expressão artística como a música e o teatro.

Os movimentos são complementares, combinando fatos biográficos marcantes com seus principais veios de pesquisa e estudo, como os trabalhos de viés mais expressionista, desenvolvido nos anos 1910 (quando participou do grupo “Der Blaue Reiter”, com artistas como Kandinsky e Macke) ou os persistentes desenhos de modelos geométricos que realiza nos vários anos em que foi professor da Bauhaus, período em que se dedica a compreender e sintetizar as relações formais da representação plástica. Ora o visitante é colocado em contato com trabalhos que marcam sua relação com o mundo à volta, ora tem diante de si o resultado de um esforço constante para dominar e criar uma nova arte. Disciplinado ao extremo, Klee tinha por norma não passar nem um dia sem traçar uma linha.

Paul Klee, Hanging Down [Pendurado para baixo], 1939, Cola colorida e lápis sobre papel, doação de Livia Klee

Apesar da importância normalmente atribuída à contribuição do artista para o desenvolvimento da abstração na arte moderna, poucas foram as oportunidades do público brasileiro ver de perto sua produção, como mostra Roberta Saraiva Coutinho em estudo publicado no catálogo de Equilíbrio Instável. Tal ausência é ainda mais estranha se levarmos em consideração a grande influência – formal ou teórica – de suas pesquisas no modernismo local, num diálogo a distância que o Zentrum Paul Klee pretende mapear melhor e apresentar futuramente ao público suíço.

A mostra conta majoritariamente com desenhos (80% de sua produção é composta de trabalhos sobre papel), entre os quais destacam-se um impactante grupo de imagens, esboçadas de forma rápida, no calor da hora, nas quais comenta com acidez os trágicos acontecimentos que antecederam a Segunda Guerra Mundial. Essas quase caricaturas, em giz sobre cartão, mostram cenas como a figura repulsiva do ditador ou os horrores vividos pelos emigrantes, pelos perseguidos pelo regime de Hitler e que fazem parte de um conjunto de cerca de 250 ilustrações. O próprio Klee foi vitima do nazismo. Além de ter obras de sua autoria na exposição de arte degenerada organizada pelo Reich em 1937, foi acusado de ser judeu, teve a casa revistada, perdeu o emprego e foi forçado a refugiar-se na Suíça, seu país de nascimento, ainda em 1933.

Outro grupo de trabalhos que merece destaque é o conjunto de desenhos de anjos, ao mesmo tempo humanos e sobrenaturais, decaídos e belos. Lá está por exemplo “Anjo Esquecido” (1939), cuja delicadeza e recato – com as mãos e asas unidas – é comovente. Também está presente na seleção, que depois de São Paulo segue para as unidades da instituição no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, o anjo mais célebre de Klee, “Angelus Novus”, de 1920, que entra para a história como imagem emblemática das teses sobre o conceito de história de Walter Benjamin. Adquirida por Benjamin em 1921, a obra pertence ao museu de Israel e raramente viaja, mas o Zentrum Paul Klee disponibilizou para a mostra brasileira uma cópia fiel e certificada dessa imagem que, segundo o filósofo alemão, funciona como uma alegoria da história, que vê com terror a destruição do passado enquanto é impelido para o futuro por essa tempestade “que chamamos de progresso”.

A “confluência entre a ligação entre uma visão de mundo e o puro exercício plástico”, como definiu o próprio artista, encontra sua expressão sintética em trabalhos como “Riscado da Lista”. A tela, pintada em 1933 traz a imagem de um homem, muito possivelmente um autorretrato, de um homem perfilado, de rosto triste, com uma cruz sobre a cabeça e o peso do mundo sobre os ombros. “Klee sempre tentou unir relações criativas, de conteúdo e forma, com questões existenciais, ideológicas, éticas”, sintetiza a curadora Fabienne Eggelhöfer, reiterando a ideia de equilíbrio expressa no título.

Paul Klee: Equilíbrio Instável
Até 29 de abril
Centro Cultural Banco do Brasil São Paulo:
Rua Álvares Penteado, 112 – Centro, São Paulo – SP

O rigor afetivo de Farnese, na íntegra

Farnese de Andrade, Sem-ttulo, 1981

Não há um ponto fixo a partir do qual se possa olhar para a obra de Farnese de Andrade. Seu trabalho, revisto agora em exposição na Galeria Almeida e Dale, não apenas contém uma potência plástica e simbólica única, como torna a história da arte brasileira mais complexa e interessante. Servindo de contraponto à narrativa oficial, que varre para debaixo do tapete qualquer expressão que escape da ideia de uma vocação abstrata no Brasil de meados do século XX, a arte de Farnese lida com interditos, fantasmas e arquétipos e traz à tona uma subjetividade incômoda. Como afirma Denise Mattar, responsável pela seleção dos quase 100 peças presentes na mostra, seus trabalhos “remexem nas entranhas do inconsciente, e por isso fascinam, encantam, assustam e incomodam”.

Farnese de Andrade, 5 Pensamentos, 1978–82

Densa, a exposição abarca uma ampla gama de pesquisas e momentos da produção do artista. Procura iluminar a importância de sua produção gráfica, pouco vista nas últimas décadas mas fundamental em sua trajetória. Durante boa parte de sua carreira, Farnese foi mais valorizado como ilustrador e gravurista e só a partir dos anos 1990, e sobretudo no século XXI, sua produção tridimensional adquiriu um destaque incontestável, ofuscando as outras formas de expressão. E, mesmo assim, tal valorização não foi suficiente para tirá-lo da margem. É curioso que, apesar de ser considerado um dos mais férteis artistas brasileiros e tenha sido revisitado em diversas exposições, estudos e publicações (com destaque para o alentado livro editado pela Cosac Naify em 2002), ele tenha sido mantido à sombra quando se trata de recontar a história da arte brasileira, ficando injustamente ausente de revisões históricas importantes, como a 24ª Bienal de São Paulo, por exemplo.

Tal esquecimento é muitas vezes explicado pelo fato de sua obra apresentar um certo descompasso em relação ao que se fazia hegemonicamente em seu período de atuação. Ele enfrentou o que Denise Mattar define como “ditadura da abstração” e uma resistência vigorosa a formas de expressão mais vinculadas a uma figuração próxima ao expressionismo e ao surrealismo. O que supostamente o aproxima de autores que o antecedem, como seu mestre Guignard (cujas indicações lhe garantiram emprego como ilustrador em diversas publicações quando mudou-se para o Rio, em 1946, para curar-se de uma tuberculose). No entanto, a força pulsional de sua obra, a capacidade de lidar com os tormentos e agonias íntimas (não só suas, mas também do homem moderno em geral) faz com que esteja mais próximo da arte contemporânea desenvolvida pelas gerações que o sucedem do que de seus contemporâneos.

Ao invés de considerar como blocos estanques as produções bidimensionais e tridimensionais do artista, a curadoria de Mattar procura esfacelar as fronteiras entre as linguagens, iluminando e colocando em diálogo alguns dos momentos mais marcantes dessa trajetória. “Uma coisa está contida dentro da outra. O Farnese dos 1990 está contido no Farnese dos 1960”, defende ela. Deixando de lado uma cronologia rígida, o visitante é apresentado a famílias de obras, a momentos marcantes em sua trajetória. Tem sempre diante de si um artista que parece estar permanentemente testando a si mesmo e a suas possibilidades plásticas, simbólicas, metafóricas.

Os trabalhos mais antigos da exposição constituem um núcleo disposto mais ao fundo da galeria. Ali estão os desenhos compulsivos e intrincados que dizia fazer para “chamar o sono” e que ganharam o nome de “Obsessivos”; um exemplar (bem comportado) da fase erótica que desenvolve no final dos anos 1960; e um dos três desenhos, chamados de “Censura” nos quais faz um comentário ácido e irônico sobre o período de repressão e dá uma resposta ao confisco e destruição pelos militares das obras que havia mandado para o 2ª Bienal da Bahia dois anos antes. Tais peças garantiram a Farnese o prêmio de Viagem no Salão de Arte Moderna de 1970, levando-o a Europa, onde fica pelos cinco anos seguintes.

Outros dois importantes conjuntos de trabalhos bidimensionais foram garimpados pela mostra. O primeiro deles é composto por 24 pinturas realizadas entre 1963 e 1980. Além de demonstrar sua versatilidade – “ele fazia tudo ao mesmo tempo”, diz Denise –, esse enorme painel evidencia alguns interesses do artista, como um fascínio pela sensualidade do corpo humano (não apenas de cunho homoerótico) e sua capacidade de reinventar formas de fazer arte. Nesses casos, por exemplo, ele desenvolve uma técnica particular, que ele chama de “tinta transformada” e que consiste na aplicação de aquarela misturada com um produto químico secreto no avesso da tela já pintada, transferindo para a obra manchas de cores e formas sedutoras, sobre as quais tinha controle apenas parcial. O segundo é um conjunto de monotipias feitas a partir de objetos que encontra à beira-mar ou em aterros no início dos anos 1960 e que em pouco tempo seriam incorporados em suas colagens tridimensionais.

Iniciadas em 1964 e produzidas de forma incessante até sua morte, em 1996, essas peças que reúnem madeiras carcomidas; carcaças de bonecas; santos de devoção popular; objetos garimpados em antiquários, no lixo ou nas ruas; conchas encontradas ao acaso ou imagens herdadas de um tio fotógrafo formam o corpo da exposição. Embalsamados em um ambiente de resina, encerrados em oratórios que passa a adotar no período em que reside em Barcelona, protegidos por redomas de vidro ou abrigados nos ocos das tradicionais gamelas de madeira usadas na cozinha popular de sua Minas Gerais natal, essas composições ao mesmo tempo angustiantes e sedutoras – de um preciosismo formal impressionante – parecem, como diz Mattar,  “paralisar o tempo”.

Os temas são recorrentes. Há as anunciações, os mergulhos nas memórias afetivas relacionadas às figuras paterna e materna, uma longa série de trabalhos intitulados “Viemos do mar”, e outros campos de pesquisa aos quais retorna de forma obsessiva e compulsiva, como que num esforço de expurgo e organização interna. Há algo de lúgubre, nostálgico, neste retorno ao passado, que reabrem feridas, deixam sentimentos à mostra. Como bem definiu Charles Cosac no texto de abertura do catálogo, “ele se alimentou de saudade”.

E nos contagia nesse processo. Suas peças colocam à flor da pele emoções que deveriam ficar sepultadas, sobretudo num país que apostava na via unívoca, redentora de uma arte de ângulos retos e símbolos abstratos, deixando para trás seus pés de barro, suas madeiras roídas por cupins, uma sensualidade estranha e seus santos decapitados. Ao contar suas histórias, marcadas por memórias coletivas terríveis como o afogamento de seus dois irmãos alguns anos antes de seu nascimento e por um estado depressivo marcado por várias crises, Farnese ecoa em cada um de forma subjetiva. Porém, inevitavelmente mexe de forma intensa com sentimentos que vão muito além da razão.

Farnese de Andrade – Memórias Imaginadas
Curadoria de Denise Mattar
Até 15 de junho
Galeria Almeida e Dale:
Rua Caconde, 152 – Jardim Paulista, São Paulo – SP

Stephen Dean, a cor como conexão do olhar

Ladder, 2018, vidro dicróico e alumínio

A obra de Stephen Dean se comunica com o público de forma singular, por meio de relações interpessoais e de contexto do lugar. Em Rehearsal with Props, em exposição na Casa Triângulo, o artista franco-americano trabalha com vidros dicroicos que têm a propriedade de exibir mais de uma cor em certas condições de iluminação. “A concepção desta mostra parte da conexão permanente da cor em meu trabalho, que é próximo à música”. A particularidade de seu trabalho se anuncia neste jogo de transparência, saturação e no deslocamento dos corpos. Não se trata de um olhar estático, há deslocamentos no espaço e no tempo.

A identificação imediata do visitante com a obra de Dean se dá com a escultura Ladder. É uma escada sem base fixa, com paineis de vidro dicroico, material ao mesmo tempo reflexivo e translúcido e um dos pontos chave do discurso dele. Ao realçar a interioridade do vidro, ele cria uma espécie de membrana transparente onde o mundo se projeta e se condensa em cores, como um divisor entre a superfície do vidro e a profundidade simulada do “espelho”. Na abertura da mostra, quase ninguém resistiu a fotografar-se diante dessa escultura enigmática que seduz o visitante ao refleti-lo, criando uma nova obra a cada clique, com reflexividade e cruzamentos de olhares. Vista de perto, pode-se ver a densidade e a saturação do material, a cor, a tentativa de recontextualizar formas comuns.

Dean é um artista multimídia que se expressa tanto em escultura como em instalações e obras sobre papel e vídeo, em que a cor entra no processo como um conector, agente para alterar as relações espaciais, formais. “Tento me manter no meio de um triângulo, em que um ângulo chega ao documentário e os outros à pintura e à vídeoarte”. Com esses elementos ele problematiza a “tela como suporte-transparência”.

Contrapondo-se a Ladder, a série Atlas, mais parece obra de gabinete, uma coleção de pequenas aquarelas, que ele chama de “esquetes de obras espontâneas” e que têm a capacidade de expandirem os limites da cor, mesclando pinturas sobre papel transparente de cigarro. “É um material bem resistente, que suporta a luz e é usado pela NASA”. Com esse tipo de papel pode-se enrolar um baseado e, com humor, Dean o chama de “maconha dicroica”. Os pequenos desenhos são como esboços preparatórios, muito espontâneos, quase como em gesto, motivados por paisagens, elementos abstratos, coisas simples que formam um caleidoscópio que não se esgota. A pintura com superfície saturada é povoada de imagens “aplainadas”, agrupadas em conjuntos de cinco peças dispostas sobre uma mesa vitrine. Esses pequenos retângulos podem ser articulados de várias formas, com diagramações diferentes e traduzem momentos únicos, etéreos.

Janela [Window], 2019. vidro dicróico e borracha

Dean promove a reinvenção de formas ou eventos preexistentes em vários materiais, tendo o vidro como elemento pendular em seus discursos, desde o seu início na arte. Esse material flexível se molda a espaços superdimensionados, como fachadas, vitrines ou janelas, como fez agora em uma renomada loja em um shopping de São Paulo. Dean prioriza as qualidades intrínsecas do material e  mudanças fluídas para chegar à transitoriedade temporal do mundo observado. A cor é o elemento mais importante em sua obra, mesmo antes da linguagem para compreender as ideias. Seu trabalho fala do rompimento do olhar unívoco e convoca outras retinas para traduzirem sistemas cotidianos e novas associações sensoriais. Estes compromissos com a cor e a percepção, a recontextualização de formas usuais, se convertem em uma maneira de encorajar novos e desafiadores modos de ver objetos abordando outros desafios.

O artista, de mãe francesa e pai americano, tem obras tanto em coleções de museus nos Estados Unidos como na França. Seus trabalhos podem ser encontrados nas coleções permanentes do Museu Solomon R. Guggenheim, NY; Museu de Arte de Whitney, N.Y; Galeria Nacional de Arte, Washington, DC; Galeria de Arte da Universidade de Yale, New Haven, CT; no Fonds National D’ Art Contemporain, Paris, França; na Fundación Jumex, México.

Essa é a terceira exposição de Dean no Brasil, onde deixa aberto um campo produtivo, com endereço para expor e seguidores constantes.

Stephen Dean: Rehearsal with props
Até 16 de março
Casa Triângulo:
R. Estados Unidos, 1324 – Jardins, São Paulo – SP

O alfabeto de uma alquimista

Anna Maria Maiolino
Anna Maria Maiolino, Sem título, da série Projeto de Escarificações, 2018, caneta permanente sobre papel, Edição: único, 50 x 78 cm

“Sempre me referi à minha linguagem como ‘meu alfabeto’”, afirma Anna Maria Maiolino aos 76 anos, durante conversa na Galeria Luisa Strina, onde teve exposição em cartaz até o dia 23 de março. A artista acaba de inaugurar também mostra no Padiglione d’Arte Contemporanea, em Milão. Em setembro, Anna terá uma grande exposição na galeria Whitechapell, em Londres, organizada em parceria com a instituição italiana. Recentemente, a artista esteve com uma mostra em cartaz no MOCA, o The Museum of Contemporary Art, de Los Angeles.

É um ano e tanto para a artista, que afirma estar se debruçando sobre o livro Meu Alfabeto, da filósofa búlgara Julia Kristeva. O livro havia sido indicado por uma amiga no final dos anos 90, mas só agora Anna tem conseguido desfrutar das páginas. “Eu gosto muito de ler filosofia, porque é uma forma de alimento para o imaginário. No caso, o meu imaginário”, Anna declara. Rodeada de linhas e bolinhas, signos  marcantes em sua obra, ecoam uma passagem do livro, Kristeva: “Impresso em mim, o alfabeto triunfa; tudo ao meu redor é alfabeto”.

As linhas e bolinhas, sejam elas em nanquim, caneta ou cimento estrutural; os ovos da performance Entrevidas ou na faixa de pano que cobre o corpo em In ATTO, são elementos que para ela representam “o primeiro sopro da ideia que a conecta com o mundo”, especialmente quando em desenho, o que ela chama de “a primeira manifestação da Anna”. É um tipo de alfabeto que não necessita do código em palavra, é uma ante-palavra, algo que precede a palavra.

É sempre importante pontuar as questões migratórias na vida da artista e perceber o quanto os elementos de sua obra se fizeram importantes para sua comunicação para com o outro, tendo em vista que por algum tempo ela sentiu a necessidade de pertencer a um lugar, e a língua faz parte disso. Afinal, Anna saiu da Calábria para a Venezuela e depois para o Brasil, mas também residiu em outros lugares ao longo dos anos, como na Argentina e nos Estados Unidos. Apesar das diferenças nos idiomas, a sua linguagem na arte foi e é universal. Sendo assim, o seu alfabeto, é universal.

Em outro momento do livro de Kristeva, a autora reflete: “O alfabeto revivia em mim, para mim, que eu podia ser todas as letras”. Identificando sua linguagem como o seu alfabeto, é certo que as letras que compõem o abecedário de Maiolino hoje, são intrínsecas a ela, que nunca se preocupou em manter-se estática e não teve receio algum, por exemplo, de afastar-se da figuração nos anos 70. O processo da arte, para ela, sempre foi algo pra construir e também desconstruir, o que ela chama em entrevista para livro Anna Maria Maiolino (Cosac Naify, 2012) de “um estado ativo de meditação transformadora”.

É desta forma que o alfabeto de Maiolino se torna plural e infinito, na medida que ainda quer desenvolver e explorar caminhos. Para isso, pretende descansar um pouco e pensar em outras coisas: “Obviamente você não esquece na sua memória o que você fez anteriormente, porque está tudo dentro de você. O artista é um produto de várias estratificações de cultura. Então, você não escapa dessa sua memória espessa, dentro de ti e de tudo aquilo que já se fez”.

Para um breve afastamento que lhe permita novas óticas, a artista tem pensado em não realizar mais retrospectivas por ora. Além disso, ela pensa em manter um distanciamento regular entre as exposições individuais que fizer em galerias que a representam: “Eu quero me divertir experimentando. Vendo o que é essa nova Anna com 76 anos”.

Mexendo com estruturas

André Komatsu, Realidade perecível #14, 2018, 3 x 630 x 420 cm, tela de fibra de vidro, madeira, tinta esmalte a base d’água e verniz acrílico sobre concreto

Aos 40 anos de idade, o artista André Komatsu coleciona uma série de mostras importantíssimas em seu currículo, tendo participado da delegação brasileira na Bienal de Veneza em 2015 e de duas Bienais do Mercosul seguidas, em 2009 e 2011. O artista divide um espaço com um amigo no Belém, no começo da Zona Leste. O galpão de 400 m2 é usado basicamente para que as ideias tomem forma, ideias essas que surgem em qualquer lugar, seja em um quarto de hotel ou mesmo durante uma troca com o público.

Komatsu é um artista questionador, e que não tem receio disso. Seu posicionamento anti-sistema (ou mesmo no plural) é um fator importante em seu trabalho, desde o início: “A gente precisa entender que a estrutura social nunca foi alterada. Entender que o que vivemos hoje, por exemplo esse levante ultraliberal, é um desenvolvimento do mercantilismo, da burguesia, quando eles começaram a entender que o Estado poderia ser um veículo de acúmulo de capital”, comenta o artista.

Ele vem de um grupo que fazia muita performance no começo da carreira, entre 1999 e 2000: “Antigamente era muito mais visceral. Venho de uma turma que cresceu num momento que o mercado de arte não era grande como agora. Tinha quase nada. E era um grupo de artistas que o pessoal não tinha dinheiro”, ele conta. De lá pra cá, ele já trabalhou com várias modalidades, da gravura à performance à instalação: “Naquela época, você se virava com qualquer coisa. Material eu pegava na rua. Ou fazia performance porque não precisava gastar dinheiro…”. Até começar a realmente tirar um sustento de suas criações, Komatsu trabalhou como motorista particular, professor e barman.

A servidão voluntária, as relações do trabalho, a sistematização das ações, a objetificação do sujeito são alguns dos pontos que André trabalha como artista, se colocando como um pensador que investiga a ética, a política e a sociedade. Muitas vezes, ele utiliza reflexões sobre a arquitetura e a construção civil para falar sobre isso, por exemplo em obras como a da série Realidade Perecível, na qual ele apresenta textos escritos sobre telas finas feitas com concreto, que simulam um tipo de cortina. Tão frágeis que vão se desfazendo com o tempo e com o manuseio, desintegrando palavras termos como “o progresso”, “o novo mundo” e até mesmo a frase “hoje como ontem”, retirada de um jornal nazista. O estrutural e o esfarelamento da estrutura aparecem como analogias, já que ele admite: “Eu acredito que as coisas só mudem com a quebra das estruturas”.

Outra série ligada às palavras, mais especificamente à comunicação, mostrada recentemente na exposição individual Estrela Escura, na Galeria Vermelho, Acordo Social mostra jornais coletados de vários países cujos “nomes estabelecem uma palavra de ordem”, independente da linha editorial: O Mundo, A República, O Manifesto. Komatsu cobre o jornal com placas de chumbo, deixando apenas o nome visível: “Eu isolo a informação, fazendo uma relação com o reflexo de hoje, onde a informação está ali mas é velada, que são as verdades que acabam direcionando o público”.

As discussões que o artista busca trazer estão muito ligadas à sua base teórica. As leituras são frequente e indispensáveis pra ele: “Os livros que acabo lendo são muito ligados à Filosofia. Não tem nada a ver com arte. Raramente leio coisas sobre arte”, ele explica que receia que as leituras sobre arte reduzam tudo a um microcosmo: “Eu tento entender uma outra coisa. E utilizo a arte para isso”. Para isso, ele se debruça sobre autores como Michel Foucault e Vilém Flusser.

Os questionamentos de André se somam em uma representação da realidade, buscando acompanhar as questões do contemporâneo e olhando também para o passado. De referências aos candangos que construíram Brasília às que envolvem a recente crise hídrica em São Paulo, André se envolve com uma espécie de preservação da História, afinal: “Quando você apaga a História, você apaga o entendimento sobre a realidade”.

Leitura plural da obra de Pedro Motta

Ao apresentar as mais significativas séries produzidas por Pedro Motta na última década, acompanhadas de textos de curadores, fotógrafos, artistas e escritores, o livro Natureza das Coisas não apenas expõe a vasta obra recente do artista mineiro como aprofunda – em várias direções – o debate sobre seu trabalho.

Isso porque cada uma das dez séries escolhidas para estampar as páginas da publicação, que tem organização do curador e crítico Rodrigo Moura e lançamento pela editora UBU, é seguida do texto de um autor diferente, possibilitando leituras múltiplas da produção do fotógrafo, artista e “arqueólogo-viajante” – como escreve Ricardo Sardenberg.

Foto que está no livro. Crédito: Divulgação

Apesar de todos os trabalhos terem como suporte básico a fotografia, Moura ressalta já no primeiro texto que o trabalho de Motta não cabe em definição simples: “Fotografia direta, desenho, colagem, manipulação digital, mock ups, simulacros e esculturas são usados e recombinados para ficcionalizar a realidade ou aproximar o documento fotográfico da ficção. Na era da pós-verdade, essas são estratégias para desnaturalizar a fotografia de natureza e de paisagem, norte orientador de sua prática”.

Além de Moura e Sardenberg, o livro reúne escritos de Eduardo de Jesus, Agnaldo Farias, Ana Luisa Lima, Luisa Duarte, Nuno Ramos, Kátia Hallak Lombardi, Cauê Alves e José Roca. Nas palavras de Lima: “Pedro Motta tornou-se testemunha e narrador das agruras resultantes da interação entre ‘cultura’ e ‘natureza’”. Se por vezes o artista aborda, como ressalta Farias, a frieza com que o homem lida com a natureza, por outras salienta a “insistência” desta em resistir.

Seja em obras feitas em ambientes rurais ou urbanos, com intervenções mais ou menos nítidas, “o trabalho de Motta atrai o olhar e logo questiona o que vemos, pondo sempre o espectador em estado de alerta. A oscilação entre verdade e ‘verdade construída’ mantém a atenção instável e exige um olhar lento, consciente e questionador”, escreve Roca.


Pedro Motta: Natureza das coisas
Rodrigo Moura
Ubu Editora
R$ 89,00

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As pulsões de Iole de Freitas

 

“Receita para criatividade: o mês de Maio + um pacote de bolachas”, escreveu em inglês, em um caderno, a artista Iole de Freitas em meados de 1974, quando começava a produzir e expor os seus trabalhos. Muitos meses de maio e pacotes de bolachas de passaram desde então, a produção de Iole foi crescendo e se desenvolvendo. Fotografias, filmes experimentais, instalações, performances e esculturas aconteceram nos mais de 40 anos que passaram desde então.

Um panorama de sua produção e sua linguagem acaba de ser lançado pela editora Cobogó, no livro Iole de Freitas – corpo/espaço. O volume espesso tem organização do curador e crítico de arte Paulo Venancio Filho, que já no texto de abertura do livro traça um delineia um quadro lógico entre sobre o uso do corpo na obra de Iole, desde as primeiras fotografias e gravações (“uma intersecção entre body art, performance e filme experimental”) até as esculturas, que, ainda no início, manifestavam “a busca por algo flexível como o corpo”, sem dúvidas explorando o espaço para isso.

Além deste ensaio de Paulo que funciona como uma introdução para o livro, há um outro da curadora Elisa Byington que o encerra. Este último se debruça sobre os trabalhos mais recentes de Iole, nas quais a artista explora a maleabilidade do aço inox ao ser dobrado, formando as mais variadas curvas. Iole também participou ela mesma da elaboração do livro, tendo se envolvido com seu acerto pessoal hoje no Instituto de Arte Contemporânea (IAC), em São Paulo, para oferecer o mais vasto material para a edição, tendo também a auxílio da filha, Rara Dias. Para além dos ensaios, estão anexados textos passados e essenciais sobre a trajetória da artista, escritos por Lucy Lippard, Sônia Salzstein, Paulo Sergio Duarte, Ronaldo Brito, Manuela Ammer e Rodrigo Naves.

A fluidez evocada por uma leveza nas formas das esculturas ou mesmo nos gestos de performances (mesmo que quando com facas) é ponto bem perceptível nas páginas do volume, talvez por ser necessária para os cursos das pulsões, sobre as quais Ronaldo Brito aponta: “Algo nas construções passageiras e inquietantes de Iole de Freitas como que traduziria a mobilidade permanente e indecidível das pulsões”.


Iole de Freitas – corpo/espaço
Paulo Venancio Filho (org.)
Cobogó
R$ 90,00

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