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Igualdade de gênero é tratado como ideologia pelos conservadores. Foto: Reprodução / EBC

Quando estive na Inglaterra, em 2001, o ambiente acadêmico fervilhava em torno da herança das teorias feministas dos anos 1970, agora revigoradas em estudos de gênero (Gender Studies), estudos gays e lesbianos e mais tarde pela teoria Queer. Independentemente de seus temas e autores específicos, o movimento incluía uma espécie de retomada da presença da política nas ciências humanas. Mas as teorias de gêneros só podiam ser compreendidas em uma paisagem composta por outras teorias emergentes, como os estudos culturais de Stuart Hall e Raymond Williams, que questionavam a hierarquização entre cultura erudita e popular, e a teoria pós-colonial, de Spivak, que criticava a presença de processos de racialização e subalternidade em sociedades complexas que, aparentemente, teriam deixado isso para trás. Essa paisagem incluía ainda o pós-marxismo de Zizek, Laclau e Badiou, o pós-estruturalismo de Derrida e Deleuze e, fechando o trem, quase saindo do comboio, a psicanálise de inspiração crítica de Juliet Mitchel e Julia Kristeva.

Um dos aspectos mais interessantes dessa tendência nascente era a forma como ela conseguia estabelecer debates transversais bem como unir a pesquisa universitária ao mundo real. Talvez isso decorra das origens bífidas do feminismo, entre intelectuais e sindicalistas. Quem faz academia costuma concordar quanto aos dois problemas que nos assolam: a mania administrativa, que faz com que o pesquisador se dedique mais a preencher formulários do que a aulas ou projetos, e a prisão departamental, que acorrenta cada qual a seu tema, suas revistas, sua comunidade, tendencialmente superespecializante. Recentemente perdemos uma de nossas mais dedicadas neurocientistas, Suzana Herculano-Houzel, para o primeiro problema. Os estudos de gênero, por estarem dispersos pelas humanidades, sem residência fixa na antropologia ou na psicologia, nas letras ou na filosofia, acabaram sendo uma espécie de alívio contra o confinamento da conversa universitária e uma forma de voltarmos ao “mundo real” depois do declínio do que antes se chamava debate político, cujo epicentro era a economia, o direito e a história.

De volta ao Brasil, não entendia por que tais teorias estavam subrepresentadas, com seus pioneiros ainda com pequena visibilidade e a maior parte dos autores de referência pouco traduzida. Contudo, em dez anos as coisas se alteraram substancialmente e de forma inusitada. Hoje não há escola que se preze em São Paulo que não conte com um coletivo feminista. Os movimentos LGBTTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Transgêneros) multiplicaram-se, ganhando visibilidade e reconhecimento, mas o mais importante é que se nota uma crescente alteração de nossos modos de pensar e praticar relações entre gêneros. Quero crer que a grande novidade desse conjunto de movimentos está em pensar que nossas relações mais cotidianas e nossos hábitos mais simples replicam e atualizam relações de poder. Em nossas pequenas decisões linguísticas ou comportamentais, de consumo e de estilo, no campo do trabalho, do saber e do amor, há um jogo envolvendo o poder. Isso traz para cada aspecto do cotidiano a possibilidade de uma transformação dessas relações, ou seja, um caminho real e acessível para que inventemos outro mundo, e para que nos sintamos parte da diferença que faz diferença nesse processo. Se nos anos 1950 o trabalho e a nação definiam o teor dessa diferença e nos anos 1970 o lugar da transformação migra para a sexualidade e o desejo, os anos 2000 convidam a pensar uma encruzilhada, ou melhor, uma intersecção, entre as diferentes formas de minorização do outro e de si mesmo, bem como as políticas de reversão dessa minoridade. Para tanto a profissão e o estudo, as formas de amar e desejar, as modalidades de governo e de família, sobretudo, o corpo e a cultura, devem ser pensados como determinados por opções construídas, e não naturais. Nelas não há nada de essencial, compulsório ou coercitivo.

Ao que tudo indica, os descontentes com a ascensão das demandas de gênero só conseguem ler nesse conjunto de reivindicações perda de espaço e de poder, ameaça à família e ao recato. Uma concorrência entre feminismo e machismo, como se fossem partidos particulares e simétricos em busca de uma fatia de poder. Os descontentes com a questão de gênero a transformam em uma ideologia, como se a verdadeira ideologia não fosse esta que nos impede de ver as desigualdades flagrantes na relação entre homens e mulheres, a discriminação de homossexuais, o horror aos transexuais e até mesmo o sofrimento daqueles que não se definem em nenhum gênero. Quando o intrainterino Temer deixa as mulheres de fora de seu ministério, isso não deveria ser lido apenas como uma ofensa à equidade de participação no poder, nem nos levar a qualquer consideração de excelência comparativa, mas como uma declaração ostensiva de que ele não ”pensa com gêneros”. Ele não pensa com tudo o que essa questão representa em termos de metonímia do problema da violência, da segregação, da iniquidade e da diferença social em nosso País. Assim como ele não “pensa com a cultura”. Sua forma de fazer política é ainda dos anos 1950, parodiando Pascal, “ajoelha e trabalha que a fé virá por si mesma”, como se do progresso da economia brotasse, espontaneamente, a felicidade dos povos. Seu problema não está nas soluções que ele está a praticar, mas no anacronismo de sua teoria da transformação.

A chamada quarta onda feminista, assim como a maior parte dos movimentos adjacentes, sofreu um grande impulso com a internet. É como se tivéssemos passado de uma situa­ção de flagrante atraso discursivo, que retratei acima, para um salto rumo a uma vanguarda de problemas sociais maltratados. Problemas que estavam há muito esperando reconhecimento, tendo como ponto de convergência a violência e a segregação. De certa maneira, a colonização brasileira da internet seguiu rapidamente as etapas do debate sobre o poder. Primeiro foi usada para assuntos estratégicos, científicos e militares de interesse da nação. Depois veio o tempo dos grandes negócios, do ecommerce e da startups milionárias. Em seguida tivemos a fase da pornografia farta, copiosa e massiva. Agora, o vazio de sentido e o excesso de meios formais disponíveis parecem ter encontrado na questão de gênero e no sofrimento de gênero um conteúdo universal. Campanhas como #PrimeiroAssédio, #MeuAmigoSecreto e #AgoraÉqueSãoElas trouxeram uma nova estratégia de tematização da opressão e da violência. Não apenas conscientização e luta por direitos institucionalizáveis, mas uma reforma do cotidiano e uma indignação prática contra a iniquidade entre gêneros. Junto com isso vem a descoberta de uma nova força da palavra, capaz de denunciar e responder na mesma moeda a ofensa recebida. Isso é bastante compatível com a ideia de que o gênero não é apenas uma condição anatômica ou biológica, por exemplo, homem ou mulher, nem uma orientação de desejo ou de afeto, como homoerotismo ou heteroerotismo. O gênero é algo que se faz, não só algo que se é. Ele é uma prática que por meios performativos, ou seja, pela eficácia na repetição de certos padrões, cuja origem ou referência pode ser vazia, referenda ou desconstrói relações de poder.

O atraso universitário na questão de gêneros é um sintoma de como o Brasil pensa ainda seus meios de transformação como excessivamente ligados à institucionalização do tratamento de diferenças. Leis são fundamentais, mas nem sempre elas alteram a substância social dos que são tocados por ela. Quero crer que uma grande novidade e parte da força política do novo feminismo residem nesse ponto. Tocar as relações imediatas, pré e pós-institucionais, a vida privada e a esfera desejante, assim como seu impacto público e econômico. O preço a pagar pela eficácia dessa estratégia é a sedimentação de identidades que se particularizam excessivamente no espaço público. E isso é distinto de fazer valer a singularidade de cada sujeito, objetivo de uma verdadeira política dos despossuídos, inclusive dos despossuídos de sua própria identidade.

Por isso a opressão da mulher pela mulher deve ser pensada junto com todas as outras opressões. Em uma era pós-identitária, e seguindo a tese da essência vazia como forma de resistência ao poder, a militância por um grupo específico exige critérios performativos para saber afinal: quem é uma mulher? Ou seja, a política de identidade pode ser decisiva para criar reconhecimento diante de outras tantas identidades. Mas isso não parece funcionar tão bem para além desse plano estratégico. Separada de uma política que reconheça em todos um fragmento de minoria, tenderá a praticar a segregação e a autossegregação que pretende erradicar. Sem retomar sua função de transversalidade entre os saberes e de interseccionalidade entre minorias, seu destino será o de reificar a posse capitalista desse bem narcísico: a própria identidade.
Para tanto precisaremos de uma quinta onda.

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