Saudade de conversarmos pessoalmente. Enquanto não o fazemos, e porque já me cansei das mensagens em grupos de WhatsApp, resolvi lhe escrever essas mal traçadas, tudo bem?
Em sua última mensagem, você me perguntou se eu já havia lido o artigo que o Rafael Cardoso publicou na Folha, no último dia 15. Pois é, li e gostei do texto porque toca num ponto preocupante do nosso ambiente artístico: a falta de consistência que hoje o caracteriza, motivada, em grande parte – mas não apenas – pela avalanche de obras discutíveis que o assolam.
Quando li o artigo, a primeira questão que me veio foi: será que o jornal decidiu publicar o texto como início de um processo de mea-culpa? Afinal, a Folha é um dos jornais responsáveis, no país, pela disseminação de textos pautados em releases de galerias, alavancando artistas e/ou exposições sem nenhum significado concreto para a arte e para a cultura. Agindo assim, a meu ver, ela acaba atuando como um agente para a concretização de tudo aquilo que Cardoso escreve.
Mas acho que o artigo do nosso amigo não é o início de nada. Para a Folha, quero dizer. Mesmo depois da sua publicação continuaremos a ver estampadas semanalmente em suas páginas um tipo de texto apressado, produzido para ser lançado na véspera ou no dia da inauguração de algum desses eventos. Resenhas com críticas consistentes às exposições, por exemplo? Nem pensar!
A mostra e/ou o artista são vistos pelo jornal como produtos que – chancelados pelos marchands e/ou por um ou mais colecionador –, no dia seguinte tornam-se cartas fora do baralho, a serem substituídos por outros na próxima semana.
Outro dado que me dei conta após a leitura do texto foi o seguinte: aquele clima geral descrito por ele tem sua origem, certamente, na própria história recente das artes visuais. Leia e depois me responda, dizendo o que pensa da questão que vou levantar agora:
A partir do final da Segunda Grande Guerra, quando as vertentes artísticas modernas começam a se institucionalizar – tomando conta dos grandes museus e de importantes coleções particulares –, ao mesmo tempo se inicia a expansão/dispersão do próprio conceito de artes visuais.
Lembre-se que, até mesmo durante o período moderno, esse campo estava fundamentalmente circunscrito às modalidades tradicionais – pintura, desenho, gravura, escultura. Na medida em que as artes visuais abriram suas portas para as neo-vanguardas, ela também se abriu para uma série de outras modalidades compostas, tanto pela fotografia e pelo cinema (ou vídeo) de autor, quanto para a performance, para a instalação etc. Assim, o terreno das artes visuais deixava aos poucos de estar voltado para assuntos apenas concernentes ao seu universo tradicional, para abrir-se a outras áreas da atividade humana. O artista-artesão –especializado em pintura ou escultura etc. –, passou a conviver com o artista-antropólogo, o artista-botânico e o artista-sociólogo, entre muitos outros.
Assim, ao mesmo tempo em que assistíamos à apoteose da institucionalização do moderno, vivenciávamos também o solapar desse processo por meio de obras ou ações que, em última instância, colocavam em xeque os pressupostos estéticos e artísticos expandidos pelo modernismo triunfante. Esta situação introduzia questões até então estranhas à arte moderna.
Não sei o que você pensa a respeito, mas para mim essa abertura trouxe um ganho para o terreno da arte. Muitas obras, hoje fundamentais para a consciência que temos do mundo contemporâneo, apenas surgiram porque os horizontes das artes visuais foram expandidos. Mas essas mudanças tão importantes não significaram que essas novas formulações do conceito de artes visuais mudaram o sistema de arte. Pelo contrário, apesar de toda a radicalidade assumida por algumas propostas, sabe-se bem que todas foram devidamente tragadas pela institucionalização. Se surgiram como alternativa ou negação do sistema da arte, esse, desde o início, abriu-se para o alternativo para abarcá-lo e, consequentemente, neutralizá-lo.
Enfim, o que estou querendo lhe dizer é que, dentro dessa situação, ganhava força a consciência de que os parâmetros artísticos e estéticos que haviam dominado as vanguardas históricas agora perdiam a hegemonia, assim como, antes, a arte tradicional também perdera a sua. A arte contemporânea não era a arte moderna.
Lembro até de um texto de Ronaldo Brito que, a meu ver, ainda resume bem essa situação. Ele escreveu – não sem ironia, é claro – que, se naquela época, alguém se colocasse escandalizado frente a uma obra de arte contemporânea e bradasse: – Mas isto é arte?! A obra responderia: – Não. A arte é que é isto.
Fico pensando: o que Brito queria despertar em seus leitores com essa espécie de parábola? Para mim, ele queria chamar a atenção para o fato de que a obra de arte contemporânea pauta – ou deveria pautar – suas próprias premissas e que, assim, ela só pode ser analisada a partir desses pressupostos, e não de outros. Está me entendendo, Patricia?
Pois bem, o problema é que tudo isso acontecia em um momento em que o circuito, supostamente buscando “democratizar” a arte, equivocadamente elevou à última potência outra afirmação que também surgia (ou ressurgia) naquela época: “Todo ser humano é ou poderia ser um artista”, máxima proferida por alguns artistas (entre eles, Beuys, mas também, e do seu jeito, Warhol, entre outros). O que muitos, equivocadamente, concluíram com essa frase? Que, se todos eram artistas, tudo poderia ser arte. Então ninguém era artista e a arte não existia.
Como em outros momentos em que foi anunciada a morte da arte, sabemos que também nesse caso, a arte e o artista não acabaram. Pelo contrário, criadores e criaturas proliferam e proliferaram prodigiosamente durante essas últimas décadas, ressoando uma situação nova, típica das últimas cinco ou seis décadas: a ampliação do número de escolas de arte, de estudantes, de colecionadores, do público para as exposições em novas e velhas galerias, novos e velhos museus, antigas e novas bienais (Hal Foster tem um texto interessante sobre isso, Patricia).
“Aberto” e “democrático” (escrevo essas palavras entre aspas porque sabemos que de aberto e democrático o circuito não tem nada), o ambiente artístico se abria para todas as novas possibilidades que a arte oferecia ou passava a oferecer, assim como – e é para isso que eu gostaria de chamar sua atenção – também se mantinha aberto para as modalidades artísticas convencionais.
Para complicar ainda mais, essa últimas – produzidas no passado remoto ou recente –, já estavam com seus maiores e melhores exemplares devidamente confinados, em coleções públicas ou privadas, e valendo cada vez mais. Impossível para a imensa maioria de colecionadores surgidos nas últimas décadas no Brasil, por exemplo, comprar um Hélio Oiticica ou uma Lygia Clark.
Por mais consagrados que sejam esses artistas, por mais que estejam representados nos melhores museus e nos mais importantes acervos particulares, esses colecionadores medianos – com ou sem muito dinheiro, mas todos sem muita cultura também – não estão, de fato, dispostos a gastar um dinheirão para poderem “pendurar no teto um monte de tecido costurado” – como os trabalhos de Sonia Gomes –, ou espalhar fios de metal pelo chão, como alguns trabalhos de Tunga. Não estão dispostos mesmo.
E é aí que eu chego a meu ponto, Patricia:
Será justamente nesse momento de desamparo dos compradores de arte – sem o apoio de um verdadeiro debate – que o mercado surgirá para “salvar” esse colecionador doido para comprar, mas sem ter exatamente o que comprar porque, ou não tem dinheiro, ou não tem real paciência com “essa tal de arte contemporânea”?
Aproveitando-se daquela permissividade e daquele relativismo que mencionei acima, o mercado providenciará uma série de novos produtos para colocar à venda, produtos preferencialmente ligados às modalidades artísticas tradicionais. Para o colecionador mediano que não pode mais comprar um Volpi, um Portinari, um Sérgio Camargo ou uma Maria Martins seria ok colocar mais uma obra de arte convencional na parede – desde que “nova” e de autoria referendada pelo repórter do jornal – uma peça que case bem com o sofá e o tapete da sala (para, quem sabe, um dia sair nas páginas das revistas de decoração).
Penso que propositadamente o circuito se esqueceu de que, se as regras da tradição e da arte moderna foram superadas, outras foram colocadas em seu lugar. Tunga e Sonia Gomes são importantes, porque são fiéis às questões que seus respectivos trabalhos determinam. Apenas por isso, e não porque são primeira página do caderno de cultura desse ou daquele jornal.
Entendendo a arte contemporânea como uma espécie de “terra de ninguém”, como um território destituído de regras, o mercado impõe as suas, é claro. Não é propriamente que “tudo é arte”, não. Na atual indigência cultural em que vivemos, é arte aquilo que está na galeria, aquilo que é produzido para o rápido consumo, incensado pela imprensa.
Obras impecáveis do ponto de vista formal ou obras com acentuado apelo político? Não importa, não interessa se a obra se resolva com qualidade ou não. Tudo vale nesse mercado, desde que ela possa ser colocada na parede ou no pequeno pedestal da sala. Ou seja: é arte aquilo que está na galeria e que se comporta como uma obra de arte “de verdade” e por um preço razoável.
A lástima é que, como diz o texto de Cardoso, grande parte dessas obras que invade o circuito e que, de lá, vai para coleções públicas e privadas – antes passando por bienais e outras grandes mostras –, não consegue ser o “isto” que deveria ser.
Você me pergunta o que fazer para mudar esse quadro, Patricia? Não sei, mas acredito que esta situação poderia começar a mudar se outros setores do circuito da arte e da cultura começassem a se sentir incomodados com essa precessão absoluta do mercado em tudo o que diz respeito à arte.
Patricia, foi mais ou menos isso o que me veio à cabeça a partir da leitura do texto de Rafael.
Fico por aqui. Beijo saudoso,
Tadeu.