modernismo
Fachada do Trianon, onde foi inaugurada a 1ª Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Foto: Reprodução site da Bienal de São Paulo

Interessante como, mais uma vez, a tradição beletrista brasileira põe de escanteio as artes visuais e seu circuito, quando se trata de refletir sobre a arte e a cultura no país. O mais recente índice da permanência dessa prática foi o artigo “A vanguarda oficial”, publicada pelo jornalista Ruy Castro na Ilustríssima, da Folha de S.Paulo, no dia 6 de fevereiro deste ano.

Seu interesse é demonstrar como se inicia o processo de construção da Semana como mito fundador da modernidade/modernismo no país, localizando o início desse fenômeno em plena ditadura civil-militar, mais precisamente em 1972, quando a Semana de 1922 completou 50 anos.

Se houvesse uma votação entre os que estudam a Semana – seus antecedentes e supostos desdobramentos –, para saber se, quando se fala sobre aquele festival, fala-se sobre algo mitificado, minha tendência seria concordar, pelo menos em parte.

Sem cair na cilada de entrar na disputa boboca para decidir se a arte moderna nasceu em São Paulo ou no Rio (podemos notar essa questão já presente em textos de Menotti Del Picchia, publicados em 1924, rebatendo suposta tentativa do Rio tirar de São Paulo a primazia de criação do modernismo – ou seja, um blábláblá quase centenário![1]), meu objetivo aqui será deslocar a questão das comemorações dos 50 anos da Semana e da desqualificação de Oswald de Andrade como intelectual (que pena que ele não nasceu no Rio, né?) e voltar-me para o circuito das artes visuais do país que, no final dos anos 1940, ganhava outra dimensão, com a criação do Museu de Arte de São Paulo, do Museu de Arte Moderna de São Paulo e do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Meu objetivo é chamar a atenção para o fato de que foi ali, no interior daqueles dois museus paulistanos que o processo de mitificação da Semana e dos modernistas ganhou seu primeiro e grande impulso.

O que sempre esteve em foco naquelas duas instituições paulistanas citadas foi projetar a arte como uma das conquistas possíveis da sociedade brasileira e paulista, em particular, após os vários desastres ocorridos, desde o início dos anos 1930 até 1945, com o final da Segunda Guerra Mundial. Confiantes no devir do Brasil e de São Paulo, tanto o Masp quanto o Mam-SP irão se dedicar à realização de grandes exposições de arte moderna, produzidas no exterior e no país.

O corolário imediato dessa intenção será, já em 1951, com a inauguração da I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo – sim, a Bienal, de início, era uma espécie de departamento do Mam – colocar a arte brasileira num contexto internacional. Não foi à toa que, segundo as palavras de seu diretor artístico, Lourival Gomes Machado, a Bienal objetivava colocar a arte brasileira “em vivo contato” com a arte internacional.[2]

No entanto, para alcançar essa meta, parece que, tanto no Mam-SP quanto no Masp, sempre existiu a consciência de que, para projetar a arte contemporânea brasileira, era necessário buscar uma base histórica para ela, uma plataforma que a sustentasse para tão grande impulso. E, como essa base parecia não existir, pelo menos de forma já sedimentada, era preciso arquitetá-la.

Esta questão está mais detalhada em outro artigo que publiquei faz quase duas décadas[3], mesmo assim, tentarei aqui sinalizar os índices que demonstram que a institucionalização da Semana de Arte Moderna de 1922 e do modernismo paulistano começou pelo menos duas décadas antes daquela data proposta no artigo de Ruy Castro.

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Ao se estudar a história do Masp e do Mam-SP, nota-se que desde o início ambos estavam decididos a construir uma narrativa que embasasse e, em última instância, justificasse a existência e as atividades das duas instituições. É neste sentido que se percebe a necessidade de recuperar e homenagear os artistas ligados ao modernismo paulistano. Em 1950, o Mam organiza uma retrospectiva de Tarsila do Amaral. No ano seguindo, durante a I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, são premiados dois artistas que efetivamente tinham participado da Semana de 1922 (Emiliano Di Cavalcanti e Victor Brecheret), um que também teria participado do certame – apesar de algumas controvérsias (Oswaldo Goeldi) –, e mais quatro artistas ligados ao posterior “desenvolvimento” do modernismo de 1922: Lívio Abramo, Candido Portinari, Bruno Giorgi e Lasar Segall.

Em 1952, o Mam-SP realizou a mostra Semana de Arte Moderna de 1922. Exposição Comemorativa, uma homenagem ao aniversário de 30 anos da Semana. Menotti Del Picchia – poeta e um dos integrantes da Semana – afirma no texto para o catálogo, que o então presidente da República – Getúlio Vargas –, em documento oficial, responsabilizava positivamente a Semana de ter provocado uma “revolução visceral” no país, atingindo, além da estética, “a economia, a política e a própria estrutura social brasileira” – o que demonstra que o processo de consolidação da Semana como “marco fundador” da modernidade no Brasil, já se constituía num fato para os setores oficial brasileiros, já em 1952.

Foto de 1924, no Hotel Terminus, em almoço em homenagem a Paulo Prado que reuniu escritores e artistas participantes da Semana de 22. Foto: Reprodução

Apesar dessa mostra, nota-se que na edição da Bienal, ocorrida entre 1952 e 1953, aquela narrativa ainda se encontra em construção, ganhando contribuições que pareciam querer problematizar a paulatina hegemonia da Semana (e de São Paulo) como elemento fundador da modernidade no Brasil. Aquela edição contou, entre outras, com duas importantes mostras que procuravam, de alguma forma, deslocar para um passado anterior a 1922, o surgimento da arte moderna entre nós. Refiro-me à retrospectiva de Eliseu Visconti e o panorama dedicado à paisagem brasileira.

Na primeira – organizada por José Simeão Leal -, Visconti era apresentado como o artista que “inicia a arte moderna brasileira, rompendo com um academicismo estéril no seu artificialismo”[4]. Como se percebe, a disputa entre Rio e São Paulo para reivindicar ser o “berço” do modernismo se expressa de novo em plena II Bienal.

Esse recuo em busca das “raízes” do modernismo brasileiro anteriores à Semana não se desenvolveu nas edições seguintes à II Bienal. Pelo contrário, marcadas por salas especiais dedicadas a Segall (que teve quatro salas especiais na Bienal durante os anos 1950), e também a Candido Portinari (que teve três) e Brecheret (que teve uma), essas edições estavam marcadas pela necessidade de construir uma outra narrativa, também importante: qual o artista era o mais moderno, representando melhor o modernismo local: Segall ou Portinari?[5]

A recuperação da Semana como base de lançamento do modernismo no Brasil continua quando, na edição de 1963 – ou seja, quando a Semana já completara 40 anos no ano anterior –, são produzidas salas especiais em homenagem a Di Cavalcanti e Anita Malfatti – “pioneiros” do modernismo paulistano e supostamente brasileiro –, e daqueles que surgiram imediatamente após a Semana, dando continuidade ao seu cunho “revolucionário”: Tarsila do Amaral e Flávio de Carvalho.

Conforme enfatizei no texto de 2003 aqui mencionado, durante os anos 1960 parece que os responsáveis pelas edições das bienais trabalhavam para sedimentar o mito de que a arte contemporânea brasileira era derivada do modernismo da Semana de 1922, ligando o “passado” de 22 ao “presente” dos museus e das bienais de S. Paulo:

Não resta dúvida de que essa foi uma importante estratégia para a construção de uma história da arte brasileira do século 20 onde os cortes, lacunas e hiatos foram todos obliterados a favor de uma ficção triunfalista, que conta a história do modernismo paulistano como uma saga feliz e sem percalços maiores, de Anita ao Museu.[6]

É claro que, ao escrever esse parágrafo, estava na minha mente o importante livro de Paulo Mendes de Almeida que, surgido como uma série de artigos na imprensa paulistana, foi publicada em forma de livro em 1961 – em comemoração aos 40 anos da Semana, que seriam comemorados no ano seguinte[7].

Nesse livro, Almeida naturaliza todas as idas e vindas do ambiente artístico de São Paulo, dando a entender que, na capital do estado, aos poucos a arte moderna foi deixando de ser uma questão individual (de Anita Malfatti) para tornar-se uma necessidade coletiva (o Museu de Arte Moderna de São Paulo).

Durante a década de 1960 foram várias as salas especiais nas Bienais e as retrospectivas organizadas pelos museus de São Paulo em homenagem a todos os modernistas “históricos”, o que aos poucos foi consolidando a narrativa de que, de 1917 a 1948 (de novo, “de Anita ao Museu”) a arte moderna brasileira teria nascido, crescido e florescido. Em São Paulo.

Dentro dessa construção, é importante lembrar das mostras comemorativas dos aniversários “redondos” da Semana: a que marcou os 50 anos do evento, ocorrida em 1972 no Masp – Semana de 22. Antecedentes e Consequências (citada por Ruy Castro) –, e, em 1982, Do Modernismo à Bienal, apresentada no Mam-SP, uma espécie de espacialização do esquema proposto pelo livro citado de Paulo Mendes de Almeida.

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A divulgação dos artistas da Semana e seus “descendentes”, bastante divulgados pelos museus paulistanos e pelas várias edições da Bienal, aos poucos foram retirando as obras dos ateliês e depósitos dos artistas fazendo-as migrar para as paredes de alguns poucos museus e para aquelas dos novos colecionadores, sobretudo os de São Paulo.

Como corolário desse processo eu destacaria o trabalho da Universidade de São Paulo que, a partir do final dos anos 1960, passa a incentivar a elaboração de uma série de dissertações e tese sobre o modernismo paulista e os artistas que o integraram, entronizando o movimento e seus protagonistas como “o” modernismo brasileiro.

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Pelas considerações acima, espero ter deixado claro que não discordo de todas as ideias expostas no artigo de Castro para a Ilustríssima. Na verdade, apenas desejei resgatar um fato: a narrativa ideal sobre a Semana de 1922, para ser melhor compreendida, não deve prescindir das questões ligadas ao ambiente das artes visuais. Me parece que o circuito de arte que se firmava em São Paulo a partir dos anos 1940/50 – dos museus à universidade – é determinante para se formar uma visão mais complexa do fenômeno que aqui interessa[8].

Se, depois de um século, o debate permanecer preso apenas à estratégia desabonadora de alguns de seus protagonistas ou a fofocas, na certa demoraremos mais cem anos para dar, de fato, um belo passo à frente.

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[1] – Para quem tiver interesse, consultar alguns artigos de Menotti Del Picchia publicados no Correio Paulistano, entre meados de junho e julho de 1924.
[2] – Texto de Lourival Gomes Machado, publicado no catálogo da I Bienal: I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, Outubro a Dezembro de 1951. 2ª. São Paulo, Museu de Arte Moderna de São Paulo, p. 18.
[3] – CHIARELLI, Tadeu. “Arte em São Paulo e o núcleo modernista da Coleção”. In MILLIET, Maria Alice (coord. Edit.) Coleção Nemirowaky. Rio de Janeiro: MAM, 2003.
[4] – LEAL, José Simeão. “Eliseu Visconti”. In Catálogo Geral da II Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. São Paulo, Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1953, p.2.
[5] – Essa polêmica vinha desde os anos 1930, conforme pode ser estudado na produção da estudiosa Annateresa Fabris, Portinari amico mio. Cartas de Mário de Andrade a Candido Portinari. Campinas: Mercado de Letras, 1995.
[6] – Chiarelli, Tadeu. 2003. Op. cit. Pág 90.
[7] – o livro De Anita ao Museu – fundamental item da bibliografia do modernismo paulistano – teve uma segunda edição em 1976, pela Perspectiva, e uma excelente nova edição, em 2015, pela Editora Terceiro Nome.
[8] – E é claro que também é necessário não se esquecer de que os estudos mais recentes sobre a música e o Modernismo aumentam o coeficiente de complexidade do movimento.

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