Espaço expositivo de "À Nordeste". FOTO: Divulgação

Ambiente saturado: objetos, esculturas, desenhos, gravuras, salas fechadas, vídeos, sons, gente. O primeiro movimento foi escapar daquele espaço repleto de entradas/saídas, mas com algum esforço me aproximei de um pequeno monitor em que uma moça ia dizendo em libras (com legendas em português e inglês) que eu estava no final da exposição. Mais um sinal para cair fora de uma vez? Resisti. Voltei, então, para o que seria o início da mostra (não era) e comecei a me esforçar para dar início à visita.

Exposições normalmente são produzidas para “dar a ver” algo: a obra de um ou mais artistas, objetos industrializados ou artesanais etc. “Dar a ver” é criar condições ideais ou, pelo menos, satisfatórias para que o visitante possa percorrer o espaço sem entraves, sem ser bombardeado por inúmeros estímulos. Muita informação tende a ser igual a nenhuma informação ou a informações truncadas que se prejudicam mutuamente. É o que ocorre com a mostra À Nordeste (com crase, mesmo), no Sesc 24 de Maio.

À Nordeste foi concebida para lacrar. E conseguiu, claro que conseguiu. O que a ensejou foi sublinhar (ou explicar) a diferença entre o Nordeste e o resto do Brasil, diferença esta manifesta nas últimas eleições, quando aquela região, opondo-se à tendência majoritária no país, não elegeu aquilo que acabou sendo levado para Brasília. O Nordeste ali, nessa pretendida (des)exposição, foi apresentado ao “Sul maravilha” como o seu outro. O “lado de lá”, a nossa diferença (por mais próxima de nós que ela esteja, como a própria À Nordeste revela).

E com tal propósito, À Nordeste chegou chegando na vontade de desconstruir o estabelecido, a começar com uns catiripapos na língua portuguesa, colocando crase na proposição do título, suprimindo os artigos definidores dos gêneros de determinadas palavras, substituindo-os pelo “x” (assim quiseram xs curadorxs). Pueril? Pode ser, mas se a lacração tem momentos discutíveis – a implicância com a língua, mas também os painéis em madeira “natural” me parecem um problema entre muitos outros –, À Nordeste tem momentos fortes, outros fortíssimos que justificam uma visita.

Embora nos textos publicados no folder e espalhados pela exposição, xs curadorxs não analisem uma obra sequer, para dela extraírem os postulados que jogam no visitante, À Nordeste está repleta de obras fundamentais, não para pensarmos apenas o Nordeste (o que seria restritivo demais, vamos combinar), mas para pensar o Brasil como um todo.  Dentre elas, O caseiro, 2016, de Jonathas Andrade. Essa obra talvez seja o momento mais alto da (des)exposição: colocar ao lado de um antigo documentário que “flagra” Gilberto Freyre em seu cotidiano, o vídeo sobre o cotidiano de um senhor que trabalha como caseiro da antiga residência do senhor de Apipucos, e hoje museu, reafirma Andrade como um dos melhores interpretes do Brasil, de suas complexidades estruturais.

A dupla Barbara Wagner e Benjamin de Burca também amplia a força da exposição. Ela está representada na mostra por dois trabalhos de 2013: Edifício Recife – documentação fotográfica sobre esculturas em entradas de alguns edifícios do Recife – e o vídeo Faz que vai. Apesar das diferenças de suporte é notável como a dupla ressignifica criticamente o cotidiano por meio de ações que nem folclorizam e muito menos insistem em discursos visuais/textuais repletos de retórica vazia sobre questões sociais (da qual À Nordeste está repleta, diga-se).

Cristiano Lenhardt, com o vídeo Polvorosa, 2012, também empresta à exposição a importância do trabalho que vem realizando. O vídeo subverte o discurso televisivo mais vulgar trazendo para a exposição um sopro ficcional bem-humorado que também destoa da maioria das obras apresentadas.

Curiosamente, tanto Lenhardt quanto a dupla Wagner/de Burca e Jonathas Andrade são algumas das estrelas de duas das mais prestigiadas galerias mainstream do Sudeste do país (Fortes D’Aloia & Gabriel e Galeria Vermelho). A inclusão, em À Nordeste, de obras desses artistas tão significativos (não esquecer que Wagner/de Burca representa o país na edição deste ano da Bienal de Veneza), poderá parecer para alguns uma espécie de contradição da mostra que, obstinada na ênfase à diversidade nordestina, acaba apostando em nomes que, afinal, foram já devidamente adotados pelo poder hegemônico do circuito São Paulo/Rio. Ao contrário, prefiro acreditar que a integração dos trabalhos desses artistas responde a duas questões. Em primeiro lugar, são produtores de qualidade e seria indigno não os incluir na exposição pelo fato de já terem alcançado reconhecimento no “sul maravilha”. Em segundo, considero a presença deles na mostra um índice importante sobre como xs curadorxs pensam bem a complexidade do Brasil de hoje, em que divisões regionais do país são no mínimo discutíveis. O Brasil, apesar do que ainda querem alguns, é muito mais complexo do que mostram as estatísticas, as divisões regionais etc. e, neste sentido, a inclusão na mostra, não apenas das obras dos artistas citados, mas também da peça de Ton Bezerra – Signos eletronejos, 2013, um vídeo que documenta sua performance no centro de São Paulo – sublinham aspectos dessa complexidade.

Afinal, o estranhamento que causa aquele ser estranho caminhando pelo centro de São Paulo em Signos eletronejos, diz muito também sobre essa cidade que é a mais nordestina do país.

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Pelos comentários acima, penso ter ficado clara a intenção deste texto: se o visitante insistir em permanecer no recinto da mostra, e se tiver disposição para procurar naquele espaço labiríntico e confuso, encontrará mais motivos para ficar contente por ter ido visitar À Nordeste. E, é claro, não apenas pelas obras de Lenhardt, Wagner/de Burca e Jonathas Andrade. Creio que vale a pena também prestar a atenção aos vídeos de Zahy Guajajara e Marcelo Pedroso. É certo que ambos excedem na retórica, o que não carecia. Talvez jovens demais, cometem exageros quando poderiam confiar mais na potência das imagens que concebem, mas isso pode diminuir com o passar do tempo. A pintura de Dalton Paula – Canção das abelhas, 2018 – também justifica a visita, assim como algumas joias raras dos irmãos Joaquim e Vicente do Rego Monteiro e as delicadas pinturas produzidas em 1964 por Montez Magno.

(No final saí da mostra com a sensação de que, apesar dela mesma – de todos os entraves que criou para si e para o visitante –, À Nordeste aponta para questões que precisamos pensar com urgência. Questões sobre a sociedade brasileira, sobre a arte que produzimos e, tão importante quanto, sobre como adequar satisfatoriamente o desejo de romper com o trabalho curatorial tradicional e, ao mesmo tempo, manter a inteligibilidade do que quer ser apresentado ao público).


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