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LIVRO RAPHAEL GALVEZ



 evidente a importância do   traça o perfil do artista, sublinhando   Este é mais um motivo para a   universo de exposições e salões de
 lançamento do texto de Galvez.   uma de suas peculiaridades: de   leitura de Autobiografia. Por meio   arte. Denomina as ruas, avenidas e
 PETIT MAÎTRE  Mas ela não para por aqui.  origem humilde, imigrante, Galvez   dela, é interessante poder pensar   os parques por onde passou, por
                                             como sua experiência se
            era um trabalhador e, em sua
 Como todas as outras obras do
                                                                             onde ele e seus amigos moraram,
 gênero, esta autobiografia projeta
                                             teatros e cafés e dos salões da
 um personagem idealizado (o   produção, arte e artesania se uniam,   desenvolve fora dos grandes   trabalharam, circularam e se
                                                                             perderam e se encontraram.
            não havendo desconexão entre
 Alguns motivos para ler a recém-lançada   próprio autor), configurando-se,   o artista e o artesão que nele   “aristô” paulistana. Esta   Galvez também se preocupou
 autobiografia do escultor e pintor Raphael Galvez   assim, como uma espécie de   conviviam. Segundo as palavras    peculiaridade traz ao leitor uma   em redigir pequenas crônicas sobre
 exercício de autoficção. Acima das   de Martins:  São Paulo talvez menos    algumas personalidades. Em sua
 por taDeu Chiarelli  cenas rememoradas e descritas   glamourizada, é verdade, mas,   maioria, esses pequenos relatos
 pelo artista paira a imagem de um   Galvez é o ser de uma classe   certamente, muito mais humana.  trazem dados importantes, e talvez
 indivíduo incorruptível, ingênuo,   social em que as pessoas não   Como também sugere Martins,   esta resenha se alongasse demais
 puro. Alguém que apenas, sem   têm biografia senão pelas   a cidade é outra personagem do   se fosse focar em todos os assuntos
 desejar, fornece algumas pistas de   mediações, o que é diferente   texto, é a circunstância do artista,   ali tocados. Assim, dedico-me à
 que sua vida não foi tão linear    do que acontece nas classes   o espaço real e afetivo em que ele,   reflexão sobre dois relatos
 e destituída de erros ou   sociais egoístas, em que as   seus amigos, conhecidos e   esboçados por Galvez, o que,
 arrependimentos.   pessoas são autoras de si   parentes se moveram. Uma cidade   espero, possa despertar ainda mais
 Uma dessas pistas se torna   mesmas. Essa característica   entre o passado de província do   o interesse dos leitores. Optei por
 visível quando Galvez, já nos   de sua história pessoal tem   qual queria se libertar, e seu devir   comentar o que o artista escreveu
 últimos parágrafos, escreve:  muito a ver com sua obra,   de metrópole; São Paulo como   sobre o escultor Nicola Rollo e
                 expressão do vivencial      limite infinito de Galvez.      sobre a pintora Tarsila do Amaral.
 Espero realmente que haja   e da alteridade. 3
 reencarnação para podermos                  Durante todo o texto, o escultor/  Nicola Rollo, apesar de ter sido
 tirar as diferenças das coisas   Mais adiante, em seu esforço em sin- pintor escreve sobre alguns dos   uma das principais figuras na vida
 que não foram realizadas   gularizar o escultor/pintor no contexto   principais estabelecimentos de   de Galvez (ou justamente por esse
 nesta primeira vida.  da arte de São Paulo, o Professor  ensino de arte na cidade, sobre o   motivo) não recebeu uma crônica
 Retrato de Raphael Galvez, no ateliê da Rua Lopes de Oliveira, na década de 1980  E, se isso for verdade,   demonstra as diferenças entre os   ambiente das marmorarias que   específica no capítulo
 gastarei a nova vida com   horizontes dos modernistas de 1922  vicejavam ao redor dos principais   Personalidades e amigos, que
 muito mais controle e com   e aquele de Galvez:  cemitérios de São Paulo, sobre os   congrega todos os perfis traçados
 neste ano em que se Comemora   arrolamento que excetuasse   mais realizações, pois o que   ateliês coletivos de então (o Grupo   por ele. A presença do escultor,
 o centenário da Semana de Arte   apontamentos para futuros   ficam são as obras... 2  Outras diferenças dão   Santa Helena), assim como sobre o   no entanto, perpassa grande parte
 Moderna de 1922, com a exceção   escritos (nunca concretizados),   sentido a esta autobiografia.   do texto, porque Rollo serviu como
 de dois ou três títulos a ela   não iria muito além dos nomes de   A idealização do eu do artista –   A sociedade paulista tinha   uma referência para Galvez, não
 referentes, um dos principais   Antônio Parreiras, Carlos Oswald,   “desvio inevitável” em todas as   para os modernistas o   limitada à sua primeira formação.
 lançamentos bibliográficos no   Emiliano Di Cavalcanti e José   autobiografias –, não lhe retira,   tamanho do mundo:   Os vários momentos em que
 âmbito da história da arte em São   Antônio da Silva . Apenas por esta   porém, um componente   começava numa fazenda do   Galvez citou Rollo também valem a
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 Paulo foi Raphael Galvez:   excepcionalidade já me parece   fundamental: dentro dos limites   interior de São Paulo e   leitura de suas memórias porque
 autobiografia. Com organização    que esse gênero de escrita impõe   terminava em Paris, na   trazem uma quantidade
 do estudioso José Armando   (refiro-me a todos os recalques e à   Rússia, na Inglaterra. Já a   considerável de dados sobre o
 Pereira da Silva e projeto editorial   autocensura), Galvez não deixa    sociedade de Galvez, e dos   artista nascido na Itália, com
 do empresário e colecionador   de ser – ou de procurar ser – um   artistas do Grupo Santa   presença significativa no ambiente
 Orandi Momesso, o livro   intérprete meticuloso de sua vida,   Helena, era paulistana,   de São Paulo,
 reapresenta o ambiente artístico   de sua carreira, de seus amigos    começava na Barra Funda e ia   mas ainda praticamente
 de São Paulo de início e meados   e conhecidos e, igualmente,    FOTOS: AUTOR DESCONHECIDO| DIVULGAÇÃO | HUGO ZANELLA  até o Canindé, a Freguesia do   desconhecido do público.
 do século passado a partir de um   de sua cidade.  São Paulo é uma   Ó, Santana, a Várzea do Tietê,   As informações a respeito
 ponto de vista peculiar: o texto de   das principais personagens    o bairro do Limão,    de um importante projeto
 Galvez – um petit maître da   do livro de Galvez.   a Casa Verde, o Pari e,    escultórico de Nicola Rollo –
 escultura e da pintura.  bem mais longe, Santo                              a maquete de um monumento em
 Autobiografias de artistas   No texto que introduz a publicação,   Amaro, no outro extremo    Retrato de Nicola Rollo em sua   homenagem aos bandeirantes,
 brasileiros são artigos raros. Um   o Professor José de Souza Martins   da cidade . 4  juventude, na década de 1920  a ser colocado nas encostas

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