Page 80 - ARTE!Brasileiros #56
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ENTREVISTA ROSÂNGELA RENNÓ



            A gente está ali no filme Brazil, do Terry Gilliam. Aí pen-
            sei: é isso que eu vou fazer agora. Peguei a historinha
            do Zé Ninguém, o homem que não era Homem (com H
            maiúsculo), que era o nome original dessa parábola, e
            inverti. O Zé Ninguém virou o José Ninguém. Na história
            original o personagem toma “Personalina” e se torna
            um homem, a história dos salesianos era essa.

         A gente sempre à volta com os milagres que parecem
         resolver tudo?
            No fundo é exatamente isso. Criei uma nova ficção para
            um indivíduo que se chama José Ninguém. Ele é José,
            não um Zé. Só que ele tem uma dúvida. Vai procurar
            ajuda científica, que dá para ele dois tipos de tratamento:
            ou ele toma “Amnesilax” ou “Memorilina”. Os dois têm
            efeitos colaterais, nenhum diagnóstico é categórico,
            ele tem que escolher. Só que ele não escolhe e a vida
            dele continua igual. É triste, mostrei para amigos que
            falaram que é deprimente.


         Um humor negro, uma melancolia de fundo que de
         certa forma perpassa teu trabalho todo, não?
            É, porque eu acho que a vida é isso, a gente faz o que
            pode. Eu não conseguiria contar uma outra história a
            partir daquelas imagens, uma história que tivesse algum
            final feliz. É slide, não tem imagem em movimento. Não   me levaram a tomar certas decisões por um caminho e
            queria que nada escapasse da lógica original. Os slides   não por outro, e não consigo deixar de pensar nisso. Uma
            são modificados, cada imagem foi atualizada. Fiz o   leitura de fora é sempre legal. Isso do que é coletivo e
            trabalho com uma amiga, Isabel Escobar. Ela é uma   do que é individual, meu trabalho tem o tempo todo. E
            das minhas editoras de vídeo e ela é fera em colagem.   Rosângelas é um exercício explícito disso. Eu criei um
                                                               personagem coletivo, falso, mas é feito de 133 casos
         Essa história me remeteu a questão da identidade e    específicos de Rosângelas. Com histórias horríveis ou
         a outro trabalho seu, Espelho Diário...               engraçadas. O próprio Arquivo Universal é isso. São
            Tem tudo a ver. Tanto que a gente fez a opção óbvia de   casos específicos, mas no momento em que eu tiro o
            colocar os dois trabalhos juntos. Nós temos à esquerda   nome, a referência histórica, você forma uma imagem
            o Espelho Diário e à direita o José Ninguém. Espelho é   que pode vir de muitos lugares.
            uma das questões muito vinculadas ao universo foto-
            gráfico, desde sempre. Está em muitas questões, no   Tem uma questão meio inevitável. Você é uma fotógrafa
            tema dos negativos, dos duplos. Sempre trabalhei muito   que raramente fotografa. Trabalha com a economia
            com a noção de duplo.                           da imagem, com a circulação da imagem, mas tira
                                                            todo esse lado da autoria. Hoje isso é mais comum,
         A exposição se organiza em três diferentes núcleos,  mas na época em que você começou a fazer era uma
         aproxima trabalhos que lidam com as escalas do     grande novidade. Seria interessante se você pudesse
         indivíduo, do coletivo e do político. Mas pelo menos   falar um pouco sobre isso.                        FOTOS: INTERNATIONALE PHOTOSZENE KÖLN / SILVIU GUIMAN
         nesses dois trabalhos todos estes aspectos estão      Quando você me perguntou se eu dou importância ou
         presentes. No fundo, seu trabalho é político o tem-   não para teoria, não posso dizer que não. Lógico que
         po todo, mesmo quando não está explicitamente         dou. Muitas ideias e convicções nasceram nos anos 1980
         falando nisso?                                        em função de muitas coisas que eu li. E uma das coisas
            Para mim essas classificações sempre são muito difíceis.   que me marcaram muito foi o Bourdieu. Ele fala muito
            Tenho certas preocupações, certas questões, coisas que   dessa arte mediana, que é a fotografia. Foi por passar a

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