Page 82 - ARTE!Brasileiros #55
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CENTENÁRIO JOSEPH BEUYS





                 Arte não deve se resumir à retina – por isso estou   Quando Beuys defende que a arte é o ponto de partida
                 engajado com a substância, como “um processo   para produzir algo em qualquer campo, ele está afi-
                 do espírito (soul)” (HARLAN, 2004, P. 14).  nado com aqueles que, nos anos 1960 e 1970, viam na
                                                            arte o único espaço possível para novas práticas que
            É como Beuys justifica o uso dos elementos naturais em   descondicionassem o ser humano de, ao menos, duas
            sua obra. Na versão de Cadeira com gordura, de 1981, (a   visões então hegemônicas, faces do mesmo processo
            primeira foi realizada em 1964) ou em Terno de Feltro, de   civilizatório, tal qual descrito por Norbert Elias: o pen-
            1970,  vemos como o artista não está preocupado em criar  samento racionalista e o condicionamento do corpo
            uma escultura de maneira tradicional, mas em provocar  através de formas de comportamento então vistas
            uma reflexão sobre o papel da artista, construindo uma   como civilizadas, mas que o contrapõe às forças da
            narrativa a partir desses materiais. Assim, Beuys preocu- natureza, como se o homem estivesse delas excluído.
            pa-se em reorientar o sentido e a função da arte.   Um dos pontos centrais do pensamento de Beuys é,
               Durante o nazismo, a arte moderna foi combatida   justamente, a “defesa da natureza”, como prega numa
            oficialmente através da mostra Arte Degenerada, uma   obra, uma fotografia de 1984, numa concepção holística,
            espécie de manifesto contra os movimentos modernistas   que se relaciona em grande medida com antroposofia
            como a Bauhaus, o cubismo e o expressionismo alemão,  de Rudolf Steiner (1861-1925), ou seja, da necessidade
            que pregavam na arte uma nova forma de observar  de integração entre homem e natureza. É a partir daí
            o mundo. O que os nazistas defendiam, então, era o   que, explica o artista, sua obra deve ser compreendida.
            retorno das belas artes, das formas clássicas como as
            mais adequadas à sociedade ariana que se pretendia    Meus objetos são para ser vistos como estímulos
            erigir como soberana.                                 para a transformação da ideia de escultura, ou da
               Arte Degenerada, a exposição que teve início na    arte em geral. Eles devem provocar pensamentos
            Haus der Kunst de Munique, em 1937, e depois seguiu   sobre o que escultura pode ser e como o conceito
            para mais 11 cidades na Alemanha e na Áustria, reuniu   de escultura pode ser estendido para materiais
            650 obras de 112 artistas, entre eles Paul Klee, Kurt   invisíveis usados por todo mundo:
            Schwitters, Marc Chagall, Mondrian e Lasar Segall.    Formas de pensar – como moldamos nossos
            Em quatro meses, em Munique, a mostra reuniu mais     pensamentos ou
            de dois milhões de visitantes.                        Formas de falar – como damos forma aos nossos
               Quase vinte anos depois, em 1955, Arnold Bode criou   pensamentos ou
            em Kassel uma exposição, a Documenta, cujo objetivo   ESCUL TURA SOCIAL: como moldamos e damos
            central foi reapresentar ao público alemão os modernis-    forma ao mundo em que vivemos:
            tas censurados no regime nazista. Essa mostra, que se      Escultura como um processo evolutivo;
            tornaria de periodicidade quinquenal, e hoje funciona     Todo mundo artista (HARLAN, 2004, P. 9).
            como o grande farol da arte contemporânea, foi uma
            das grandes plataformas usadas por Beuys para suas   Dessa forma, chegamos aqui no cerne da concepção
            ideias. Ele participou de quatro de suas edições - em 1964,  de arte de Beuys: usar a arte como uma plataforma de
            1972, 1977 e 1982 -, contribuindo para a reconstrução do   transformação da sociedade, como um estímulo para
            pensamento artístico alemão de forma decisiva. E qual   a reconstrução do mundo. Como afirma Harlan, em
            foi essa forma? Em Beuys existe uma pergunta essencial:  outra publicação:
           “Qual a necessidade que justifica a criação de algo como
            arte?”. E sua própria resposta é bastante clara:      A principal preocupação de seu trabalho artístico é
                                                                  a reformulação do campo social. Ele chama o orga-
                 Se essa questão não se torna o foco central da   nismo social de escultura social (FARKAS, 2010, P. 27).
                 pesquisa e isso não é resolvido numa forma ver-
                 dadeiramente radical, que de fato veja a arte como   No entanto, não se trata aqui de uma plataforma mera-
                 o ponto de início para produzir alguma coisa, em   mente política, Beuys não é apenas um militante da
                 qualquer campo de trabalho, então qualquer  transformação no campo social, mas também um revo-
                 pensamento de desenvolvimentos posteriores   lucionário das formas plásticas, por isso seu discurso
                 é apenas perda de tempo (HARLAN, 2004, P. 10)  e sua prática artística não podem ser separados: “Arte

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