Page 81 - ARTE!Brasileiros #55
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Uma lenda não é nem verdadeira nem falsa, ela é,
em latim, aquilo que deve ser lido e dito, aquilo
que é narrado sobre a obra e seu autor, “o ponto
em que a biografia deixa de ser extrínseca”: tudo
aquilo com o que a figura legendária contribui
e colabora na medida em que o próprio artista
vigia zelosamente, e isso em toda obra, o que
será dito sobre ela (BORER, 2001, P. 12).
É assim, portanto, que devemos ler a mitológica história
de Beuys e sua queda de avião na Criméia: como um
preâmbulo à sua obra. Ela é narrada, em sua biografia
publicada por Heiner Stachelhaus, da seguinte forma:
Ainda jovem, começou o estudo de medicina, pre-
tendendo devotar-se aos mais humildes. Esse
desejo, no entanto, foi destruído quando pilotava
o seu Stuka, depois de ingressar na Luftwaffe [a
força aérea nazista] em 1941. No ano de 1944, aos
22 anos, ele miraculosamente escapou da morte
na Ásia. O seu avião, um JU 87, caiu numa região
coberta de neve chamada Crime ou Criméia. Joseph
ficou inconsciente por vários dias, semicongelado,
foi levado por genuínos tártaros, que cuidaram
de suas chagas. O povo, natural do lugar, logo o
tomou por um dos seus: “Você não alemão, você
tártaro”, e trouxe-o de volta à vida, enrolando-o em
seus tradicionais cobertores de feltro e aquecen-
do-o com gordura animal. Depois de seu retorno,
tendo encontrado abrigo em uma fazenda, Joseph
enfrentou uma crise profunda, familiar a todos
os grandes artistas, que lhe permitiu elaborar os
princípios básicos de sua arte (BORER, 2001, P. 13).
La Rivoluzione Siamo Noi, 1972, de Joseph Beuys
Não podemos esquecer que Beuys assume aí que par-
ticipou da esquadra nazista e seu martírio se torna,
Beuys criassem em torno de si uma série de lendas, assim, uma espécie de redenção, como se ele fosse
como uma amostra simbólica de suas concepções a transformado de maneira tão vital com esse episódio
respeito da arte. Cada um, à sua maneira, criou sobre que tivesse uma gênese a partir da ajuda dos tártaros,
si uma série de lendas que, sejam verdadeiras ou falsas, com seus meios fraternais e primordiais de salvamento.
pouco importa, são a maneira como encarnaram sua É a partir dessa história que Beuys justifica não
própria concepção de arte. só o caráter de suas proposições artísticas como um
No caso de Beuys, seu uniforme foi sempre o de um campo que deve salvar o ser humano de suas crises,
tipo simples: o chapéu de feltro, a jaqueta de pescador, dando a elas um caráter terapêutico; mas também
os jeans e os sapatos pesados, como alguém pronto ao explica os materiais envolvidos em suas obras, espe-
trabalho braçal em uma das mais antigas profissões. cialmente o feltro e a gordura animal, elementos que
A construção de sua figura pública, uma espécie de representam uma forma de proteção, através do calor,
pescador de almas, relaciona-se ainda diretamente como materiais orgânicos que possibilitam uma rela-
com a lenda que o artista construiu em torno de sua ção vital à natureza, lembrando como o ser humano é
biografia. Como diz Borer, na publicação citada: parte integrante dela.
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