O MAM-SP apresenta Ianelli 100 anos: o artista essencial, exposição que abre seu calendário de 2023, quando completa 75 anos de atividades, e resgata a pesquisa de linhas, formas e cor do pintor, que teve uma relação estreita com o museu paulistano. Foi ali que Ianelli fez sua primeira individual em uma instituição, em 1961, e, a partir de 1969, participou de seis edições do Panorama de Pintura, sendo premiado em 1973. Em 1978, o MAM-SP abrigou também uma retrospectiva de sua obra, com mais de 160 de suas criações, numa exposição que recebeu o prêmio de melhor do ano da Associação Brasileira dos Críticos de Arte (ABCA).
Com quase 100 trabalhos, Ianelli 100 anos apresenta desde a fase inicial da carreira do artista, com pinturas mais acadêmicas, até sua imersão na abstração. Ao conceber o percurso da mostra, a arquitetura do MAM – um volume que se afunila a partir da entrada – acabou definindo bastante como a curadora Denise Mattar iria construir seu caminho pela trajetória do pintor, caminho esse que não obedece exatamente a uma cronologia.
“Acho que uma exposição é um ensaio visual, que tenta conversar com o lugar onde ela vai ser montada. Como a produção do Ianelli parte do pequeno para o grande, e eu queria que o público enxergasse as diferentes fases dele, uma nas outras, pensei num percurso meio retroativo, que começa nas obras de maiores dimensões, feitas até 2000, em que ele explora os campos de cor, até voltar ao figurativo, do início de sua carreira”, explica Denise, à arte!brasileiros.
A PESQUISA
Denise Mattar conta que teve um contato mais próximo com Ianelli no próprio MAM, de que o pintor era assíduo frequentador, entre 1987 a 1989, período em que ela trabalhou como diretora técnica da instituição. Feito no início de 2020, pouco antes da pandemia, o convite para que Denise fosse a curadora da mostra partiu dos filhos do artista, Kátia e Rubens. Iniciada a pesquisa, Denise teve acesso ao vasto material documental da família – o próprio Ianelli, vale ressaltar, tinha uma organização bem sistemática de sua produção – e lançou mão também de publicações da biblioteca do próprio museu. Desde o começo, a proposta da curadora foi apresentar ao público novidades acerca da obra do pintor.
“Uma coisa que eu descobri foi o fato de que [o crítico e escritor] Mário Pedrosa (1900-1981) tinha exposto pela primeira vez a obra do Ianelli numa instituição, no próprio MAM-SP, na virada de 1960 para 1961, ano em que a mostra foi para o MAM Rio”, conta Denise. O que mais chamou a atenção da curadora foi uma passagem do texto de Pedrosa, para a mostra, em que ele ressaltava haver ‘uma vibração, uma liquidez cristalina’ nas telas do artista, algo que parecia antever a produção de Ianelli na série Vibrações (1999-2000).
Outro achado de Denise foi um poema de Ferreira Gullar (1930-2016) em espanhol, que ela encontrou no catálogo de exposição feita por Ianelli na 3ª Bienal Internacional de Pintura de Cuenca, em 1991. A curadora não apenas localizou a versão original, em português, em Relâmpagos, livro do poeta publicado em 2004, como identificou que havia um trecho a mais. No MAM-SP, o poema é mostrado na íntegra. Numa passagem, Gullar descreveu assim a pintura de Ianelli:
Pintar, para Arcangelo Ianelli agora é
suscitar o surgimento da cor.
Fazer silêncio e deixar que ela (a cor) imerja
nele – do cerne dele – densa, luminosa.
Vinda do fundo da sombra, a cor
[…] Pintar para Ianelli agora é mostrar a cor como pura duração
Em sua pesquisa, Denise Mattar também encontrou um texto de Gian Carlo Argan (1909-1992) de 1966. Em 1964, Ianelli havia ganhado o prêmio de viagem ao exterior no Salão Nacional de Arte Moderna (SNAM), passando em seguida dois anos (1965-1967) na Europa. Em sua análise, feita por ocasião de uma mostra de Ianelli no Consulado do Brasil em Munique (Alemanha), o teórico da arte italiano teceu considerações que pareciam antever as recorrentes comparações da pesquisa de cor do brasileiro com a produção de Mark Rothko (1903-1970), pintor norte-americano de origem letã, apontando em que se aproximavam e se distanciavam as respectivas práticas. Escreveu Argan:
“Na pintura de Rothko, Ianelli reconhece com razão, e absoluta franqueza, o ponto de
chegada do desenvolvimento histórico da representação do espaço por meio de
relações colorísticas qualitativas e quantitativas. […] No caso de Ianelli, o fator dominante é uma evidente especulação sobre valores proporcionais: é isso que o distancia consideravelmente da dimensão da espacialidade expansiva e transbordante de Rothko e o leva da consideração das relações métrica e tonal entre os campos de cor, a uma delimitação geométrica das áreas coloridas e sua assunção como núcleos formais em relação às distâncias de fundo.
Já em 2002, quando a Pinacoteca realizou uma retrospectiva da carreira de Ianelli – o pintor, então com 80 anos, não compareceu à abertura, porque teve um AVC – a analogia com Rothko voltou à tona, em uma crítica de Olívio Tavares de Araújo, publicada no jornal O Estado de São Paulo. Araújo escreve que “em algumas fases, manchas e faixas flutuantes podem lembrar a pintura de Mark Rothko”. Mas ponderou:
[..]. basta observar atentamente a evolução interna da pintura de Ianelli para perceber que ele não foi beber em Mark Rothko. Ambos chegaram a soluções da mesma natureza porque têm sensibilidades parecidas. São temperamentos líricos que seguram o próprio lirismo, amantes de uma ordem inabalavelmente apolínea. Beberam nas mesmas fontes. São irmãos, não descendentes um do outro.
TRAJETÓRIA
Nascido na capital paulista, Arcangelo Ianelli (1922-2009) começou a desenhar ainda na adolescência, como autodidata. Em 1940, entrou para a Associação Paulista de Belas Artes e, no início daquela década, frequentou o ateliê de artistas como Waldemar da Costa (1904-1982) e Maria Leontina (1917-1984). Ao longo dos anos 1950, fez parte do Grupo Guanabara, ao lado de Manabu Mabe (1924-1997) e Jorge Mori (1932), entre outros. Em sua trajetória artística, foi da representação figurativa, do início da carreira, nos anos 1950, ao abstracionismo e à pesquisa dos campos de cor, passando ainda pelas experiências com formas geométricas, pelas pinturas sobre madeira e esculturas de mármore.
Segundo Denise Mattar, o próprio Ianelli consentia que sua carreira tinha fases e que ele “as desenvolvia à exaustão, até passar para outra”. Em um texto, lembra a curadora, o crítico Paulo Mendes de Almeida também via ciclos “quase que estanques” na prática do pintor. Mas Denise não percebe a produção do artista do mesmo modo. Para exemplificar isso, no catálogo da exposição, ela isolou parte de uma obra figurativa, dos anos 1950, em que já se insinuava o que o pintor viria a fazer nas décadas seguintes, a saber, “toda uma redução da forma até chegar aos campos de cor”, segundo a curadora.
“O que eu queria mostrar na exposição é que o percurso de Ianelli não era exatamente assim, estanque. Na verdade, você vai vendo uma interpenetração em sua produção”, conta Denise. “Mesmo na obra totalmente figurativa, de seus primeiros trabalhos, ao olhar uma janela você vê nuances de luz e cor que têm tudo a ver com a produção posterior dele, por exemplo, na série Vibrações, dos anos 1990, assim nomeada pelo crítico Paulo Mendes de Almeida. Há um processo interior, de extrema coerência, que está presente na mostra”.
Ainda sobre aqueles trabalhos, que abrem a exposição e são comparados às obras de Mark Rohtko, Denise lembra que estão na moda as chamadas exposições imersivas, mas que elas não passam de projeções. “Enquanto que o Ianelli proporciona um mergulho na cor propriamente dita. O público é atraído pelo pigmento, que o leva realmente para dentro da pintura. E ele usa essas dimensões extraordinárias para justamente as pessoas terem essa sensação”, diz.
Como parte da pesquisa sobre a trajetória de Ianelli, Denise fez visitas às casas de Rubens e Kátia Ianelli, que abrigam o acervo do pai. Delas, tirou a ideia de levar à mostra um pouco dos bastidores da produção do pintor. Três vitrines trazem à exposição algo do dia a dia de Ianelli em seu ateliê, um material nunca antes visto pelo público. Uma delas exibe parte de sua biblioteca – livros sobre colegas de ofício, como Samson Flexor, Flavio-Shiró, Lygia Clark e Hélio Oiticica, ou ainda do fotógrafo J.R. Duran – dividem o espaço de duas estantes com inúmeros pincéis e algumas tintas, assim como reproduções de frases diversas, uma delas atribuída ao escritor francês André Malraux, que diz: “A ordem é o prazer da razão; a desordem é a delícia da imaginação”. Entre as estantes, um cavalete com das obras do pintor.
Noutra vitrine, encontram-se experimentos que Ianelli fazia em paralelo à prática de pintura, voltados à produção de esculturas, nos anos 2000. O artista fazia primeiro um modelo de papel, depois partia para o papelão, uma folha de metal, a madeira e a madeira pintada, explorando possibilidades, com pequenas alterações. Duas das esculturas, cujas etapas de criação estão evidenciadas nesta vitrine, estão presentes na exposição.
“O interessante desse material é que muitas pessoas se perguntam como um pintor tão pintor, como o Ianelli, num certo momento resolve fazer esculturas. Ver esse ateliê ajuda a entender melhor essa obsessão dele na busca pela essência da forma”, ressalta a curadora. “O público percebe que o Ianelli é um artista de processo, num momento das artes em que o processo era valorizado. Hoje em dia, temos certo desprezo por isso, todo mundo está focado no resultado inédito, em algo que nunca foi feito”.
SERVIÇO
Ianelli 100 anos: o artista essencial
Até 14 de maio
Curadoria: Denise Mattar
Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) – Parque Ibirapuera – Av. Pedro Álvares Cabral, s/nº – Portões 1 e 3
Horários: terça a domingo, das 10h às 18h (com a última entrada às 17h30)
Ingressos: R$25,00 inteira e R$12,50 meia-entrada; aos domingos, a entrada é gratuita